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abril 16, 2007
Museus sob nova direção, por Claudia Storino, Eneida Braga Rocha, José do Nascimento Junior e Mário Chagas, Jornal do Brasil
Museus sob nova direção
Artigo de Claudia Storino, Eneida Braga Rocha, José do Nascimento Junior e Mário Chagas, originalmente publicado no Jornal do Brasil de 14 de abril de 2006
O debate sobre a criação de filiais de museus franceses em outros países traz à tona, entre outras, uma questão que há tempos paira sobre o saber-fazer dos gestores culturais: qual a melhor maneira de garantir a sustentabilidade das instituições museais?
Não há dúvida que os museus conquistaram centralidade no panorama político e cultural do mundo contemporâneo, e deixaram de ser compreendidos como depósitos de relíquias ou, na melhor das hipóteses, como lugares de interesse sociocultural secundário.
Observa-se na contemporaneidade interesse crescente pelo denominado campo museal por parte de antropólogos, sociólogos, filósofos, gestores, educadores, arquitetos e militantes de movimentos sociais. Na esteira desse crescente interesse, os museus passaram a ser percebidos como práticas sociais que se desenvolvem no presente, como centros ou pontos de cultura envolvidos com a criação, a comunicação e a preservação de bens culturais. A participação de comunidades populares e o interesse político nesse território simbólico também estão em expansão.
A presença dos museus nas agendas nacionais e internacionais como parte de estratégias de políticas públicas orientadas para indústrias criativas e trabalhos da memória indica que está em curso uma mudança de paradigma no campo da gestão cultural.
Se, no final do século XX, a privatização era apresentada como único caminho para garantir o acesso aos bens simbólicos e solucionar o problema da sustentabilidade das atividades culturais, na atualidade verifica-se que os resultados alcançados pelas políticas neoliberais, para além do seu caráter retórico, evidenciam a fragilidade das promessas de acesso livre e pleno aos bens culturais. Em alguns casos, pode-se mesmo identificar um recuo na democratização desse acesso.
No artigo "Museus estão colocando tudo à venda, de suas obras de arte até sua autoridade", publicado em 17 de maio de 2005 no The New York Times, Michael Kimmelman criticava as políticas de gestão de acervos adotadas por museus e bibliotecas nos EUA, apontando como resultados dessas políticas a exacerbação do processo de privatização, a diluição da autoridade institucional sobre os acervos e a gradual perda de consciência de suas responsabilidades públicas. Em certos casos, essas práticas serviram de justificativa para a venda de acervos, com base em valores de mercado e sem fundamentação em critérios culturais ou vinculação a políticas públicas.
Analisadas no contexto da economia da cultura, as questões provocadas por Kimmelman evidenciam a necessidade de se construir modelos democráticos de gestão dos bens culturais, levando em conta o seu caráter social e simbólico.
Essas preocupações, com conseqüências teóricas e práticas, têm estimulado a busca de alternativas para a gestão cultural. Um dos desafios presentes nessa busca é o encontro de um ponto de equilíbrio dinâmico, no qual a participação da iniciativa privada, das comunidades populares e dos movimentos sociais não implique a exoneração do Estado do papel que lhe cabe na preservação da memória e na garantia do caráter público das ações culturais.
Fora da lógica estritamente neoliberal, dificilmente se consideraria admissível condicionar a sustentabilidade de escolas e hospitais públicos à captação de incentivos privados, por se compreender que a manutenção dessas instituições é dever do Estado. As instituições públicas da área da cultura merecem ser vistas por esse mesmo prisma e com os mesmos critérios, com o entendimento de que na vida social contemporânea os direitos à cultura, à educação e à saúde devem ser equivalentes. Nessas condições, a participação iniciativa privada deveria fazer-se presente como ampliação da ação do Estado.
Em relação à polêmica produzida pelo projeto de abertura de uma filial do Museu do Louvre em Abou Dhabi, nos Emirados Árabes, é preciso, antes de tudo, reconhecer que no imaginário social os símbolos e as práticas da cultura francesa têm um lugar de destaque e são capazes de mobilizar, numa escala mundial, a opinião pública e a intelectualidade. A turbulência causada por esse projeto produziu diferentes discursos e colocou em movimento opiniões convergentes e divergentes.
O socialista Jack Lang, ex-ministro da cultura de François Mitterand, por exemplo, saiu em defesa do projeto e criticou "uma minoria de pessoas que pratica a apropriação cultural e moral, quer reservar as obras de arte para uma população restrita" e não quer "dar acesso amplo aos cidadãos do mundo". Com toda segurança, entre os críticos do projeto francês, encontram-se propagadores das políticas neoliberais que, no século XX, defendiam o valor de mercado das obras de arte e o acesso aos bens culturais.
Para além das opiniões que se agarram aos blocos dos "contra" e dos "a favor", parece-nos importante inserir nessa discussão algumas outras questões: Onde está ancorado o poder decisório desse projeto: nas instituições e em seus técnicos e gestores, ou nos procedimentos de terceirização da gestão? Qual é o lugar do público nesse debate? O que está em pauta é a defesa de um direito cultural restrito, ou sua ampliação em perspectiva universalista? Ultrapassando a hipótese de se democratizar o acesso aos bens simbólicos já produzidos e inseridos na esfera de uma cultura colonialista, há interesse na democratização do sistema de produção desses bens?
O exame dessas questões pode iluminar o debate. Na era da reprodutibilidade técnica e depois da concepção do Museu Popular de Mário de Andrade e do Museu Imaginário de André Malraux, não se deveria temer a reprodução e a circulação de obras, nem ignorar que obras de arte são passíveis de fetichização; também não se deveria desconsiderar que, para muitos críticos e artistas contemporâneos, a história da arte deixou de ter sentido. A arte não está na obra ou na história, mas na poética do artista e do público em relação com o tempo, o espaço, a matéria e o movimento.
Assim, a discussão de fundo não está na mercadoria que, a rigor, também é cultural, mas no interesse público, na forma como um projeto desse tipo é concebido e gerenciado, na atenção dedicada às funções de preservação, pesquisa e comunicação que, ainda hoje, definem a instituição museal.
Na lógica de uma "economia museal" os projetos devem ser examinados em suas especificidades. As questões colocadas pelo projeto francês diferem, por exemplo, das sugeridas pelo Museu Guggenheim, especialmente em sua proposta de implantação abortada na cidade do Rio de Janeiro depois de notável mobilização popular. O Rio - para o bem e para o mal - é uma marca mais poderosa que a do Museu Gug.
Como reagiriam públicos, políticos, gestores e intelectuais brasileiros, se Museus como o Nacional de Belas Artes (RJ), o de Arte Contemporânea (SP) e o de Arte Moderna (BA) recebessem propostas de algum país do hemisfério norte, desejoso de financiar a abertura de uma filial desses museus em uma de suas cidades e interessado em reverter milhões de reais para as instituições culturais brasileiras? Por mais estranha que essa questão possa parecer, pensá-la nos quadros do pós-colonialismo pode ser estimulante.
Abandonar cacoetes, pensar veredas de gestão que não nos coloquem em posição defensiva diante dos processos de desenvolvimento econômico e cultural, esses são alguns dos desafios contemporâneos. No Brasil e no mundo os museus continuam inventando futuros e abrindo caminhos, sob nova direção.
Claudia Storino, Eneida Braga Rocha, José do Nascimento Junior e Mário Chagas são gestores culturais do Departamento de Museus e Centros Culturais/IPHAN, MinC