|
abril 3, 2007
"Arte em fuga", por Phydia de Athayde
"Arte em fuga", matéria de Phydia de Athayde, originalmente publicada no sítio da revista Carta Capital, em 3 de abril de 2007
A venda da coleção de Leirner reacende a discussão: como evitar a perda do acervo contemporâneo para o exterior?
Depois de uma grande tempestade, causadora de estragos irreparáveis, é preciso colocar a casa em ordem e tratar de se preparar melhor para os próximos temporais. No dia 17 de março, foi anunciada a venda da coleção de arte construtiva do colecionador paulistano Adolpho Leirner ao Museu de Belas Artes de Houston, no Texas.
No Brasil, a notícia causou uma tormenta no mundo das artes. Foi lamentada por curadores, artistas, expositores e colecionadores. Mais que isso, houve revolta, indignação e trocas de acusações. Tal celeuma é compreensível. As cerca de cem obras de artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Waldemar Cordeiro e Mira Schendel, reunidas ao longo de 40 anos por Leirner, representam um acervo crucial da arte contemporânea produzida no Brasil. A partir de maio, para vê-las, será preciso dirigir-se ao número 1.001 da Bissonet Street, em Houston.
Se perder essa coleção foi uma tempestade, infelizmente não se pode afirmar que depois dela virá a bonança. A coleção de Leirner estava à venda desde 1998. Durante todos esses anos, não houve proposta ou negociação que evitasse o desfecho agora lamentado. Mas, se essa é uma coleção de reconhecido valor artístico, por que não teve destino diferente?
Parte da resposta está na realidade dos museus brasileiros, cujas prioridades são, para ter uma idéia, conseguir recursos para a climatização de salas e restauração de peças. Também lhes faltam critérios e projetos de aquisições.
Além de se resignar pela perda, é oportuno aproveitar o momento para discutir como evitar que o Brasil fique sem o acervo de arte contemporânea que ainda possui. A resposta, como se verá, não é fácil.
Em meio à polêmica sobre a venda a Houston, anunciou-se que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) planejava tombar as obras e, assim, tentar obrigá-las a retornar ao País. Não é bem por aí. "A volta das peças ao Brasil é difícil. Nós não vamos tombá-las, não vamos estatizar coleções privadas", esclarece José Nascimento Júnior, diretor de museus do Iphan. Ele aponta outro caminho: "Queremos formar uma comissão para discutir uma política em relação ao patrimônio cultural. São necessários incentivos para que as coleções privadas possam se tornar visitáveis, faltam mecanismos nesse campo".
Além da falta de políticas públicas, a passividade da iniciativa privada diante da perda da coleção de Leirner também foi duramente criticada. Em seu site Conversa Afiada, o jornalista Paulo Henrique Amorim listou os 15 brasileiros mais ricos do País para provocar: "Onde está a burguesia paulista?" Amorim pergunta-se que falta a "mixaria" de alguns milhões de dólares (estima-se que tenha passado de 15 milhões) faria aos listados, e espinafra: "Os milionários daqui não pensam nem em como gostariam de ser lembrados... Porque, provavelmente, pouco se lhes dá o que 'os outros' pensam sobre qualquer coisa". Nos Estados Unidos, Amorim sabe, patrocinar exposições e acervos de museus é hábito arraigado entre os afortunados.
No entender de Soraia Cals, experiente leiloeira de arte, há uma enorme ironia em toda a polêmica. "O mundo da arte é mesmo contraditório. Todos falam que a arte está globalizada, e agora vêm com essa coisa nacionalista. Leirner ofereceu a coleção a todos os grandes museus, ninguém comprou. Uma hora o colecionador precisa vender o que adquiriu ao longo de anos. É algo privado, é de mercado", diz, para encerrar com uma lembrança. "É como O Abaporu. Só depois de vendido é que começam a sentir a perda." O quadro pintado por Tarsila do Amaral em 1928 é uma das obras mais importantes do modernismo brasileiro. Onde está? Em Buenos Aires, no Museu de Arte Latina da cidade. Antes de partir, foi colocado à venda e seguiu roteiro idêntico ao da coleção de Leirner.
Alçado ao olho desse furacão, Adolpho Leirner diz não querer entrar no mérito da questão. "Só posso dizer que a coleção esteve comigo por 40 anos. Eu poderia pulverizá-la, mas a mantive unida e conservada, e ela continuará exatamente assim em Houston", afirmou a CartaCapital. "Não se pode proibir a circulação de arte no mundo. Eticamente, uma coleção tem de ser oferecida às instituições locais, como eu fiz. Acontece que agora descobriram que eu tenho uma boa coleção. Ela estava à venda desde 1998. Todo esse tempo, assistiram de camarote eu guardando, cuidando, sem ter dinheiro nem para pagar o seguro."
O site Canal Contemporâneo, que reúne artistas, curadores, colecionadores, críticos e interessados no tema, está em polvorosa desde a venda das obras. A crítica de arte Ligia Canongia encabeçou boa parte dos protestos. "É a maior coleção construtiva privada das Américas, e possui a nata da produção geométrica brasileira, o melhor momento de nossa arte. Jamais poderemos recuperar essa parcela", escreve no site.
"Quando se trata de um patrimônio dessa grandeza e importância, e ele nos escapa, temos um sinal de que nossos museus não estão capacitados a ampliar seus acervos e conservar no País a própria história", opina Ligia, de Paris. "Este pode ser o momento de se pensarem políticas públicas para incrementar os museus brasileiros, e lhes dar condições de responder a ofertas dessa magnitude. Há outros acervos contemporâneos que perigam deixar o País."
A pedido de CartaCapital, Patrícia Canetti, artista, criadora e coordenadora do Canal Contemporâneo, também pensou em como evitar que o Brasil perca o que resta de seu acervo. Por não ser a primeira vez que a celeuma acontece somente depois da perda consolidada, ela sugere o debate enquanto ainda se possa reverter a situação. "Propomos que passe a ser exigido por lei a divulgação da venda das coleções em cadernos de cultura de jornais e revistas de grande circulação, usando a cota de publicidade do governo, sem a qual não seria dada a autorização do Iphan para a saída das obras. Dessa maneira, o Estado e a sociedade seriam avisados das ofertas de coleções de arte."
Favorecer o debate, valorizar a discussão, criar comissões e leis. Todas as propostas trazem como pano de fundo a real necessidade de se mudarem mentalidades e posturas em relação às artes visuais. "É muito difícil, teríamos de mudar a mentalidade das pessoas. A cabeça institucional tem de ser mudada", diz a galerista Rachel Arnaud. Ela está à frente do recém-inaugurado Instituto de Arte Contemporânea, na Universidade de São Paulo, e sofre por precisar de doações de obras. "Tenho certeza que não vou receber nada se não entrar com um projeto que deduza o valor delas no Imposto de Renda. Mas tudo é, sempre, muito complicado."
O que o Brasil já perdeu em termos de arte contemporânea é irreparável. E a chance de o País continuar vendo o acervo escoar pelas fronteiras continua alta diante de tantos problemas estruturais, que sabidamente extrapolam o campo da cultura.
Nascimento, do Iphan, enxerga nesse horizonte escuro alguma brecha de luz. "A perda do acervo de Leirner foi um alerta ruim mas saudável. Aponta para a necessidade urgente de se estabelecer uma política pública para as artes visuais acordada por todos, que possibilite a sustentabilidade dessas coleções", admite. "Nunca sentamos, todos os agentes da área, para discutir os limites e como superá-los. Somente unindo todos os campos das artes, a iniciativa privada, o livre mercado e os interesses públicos poderemos chegar a uma solução."
Não é a primeira vez que o mundo das artes plásticas se vê diante desse dilema e promete buscar soluções. Terá sido a última? Tudo indica que não.
Este país é mesmo uma piada. Enquanto todos que fazem o circuito de arte sabiam que poderiam receber emprestado obras da coleção do Sr. Leirner, estavam calados e rasgando seda. mas agora é diferente. Quem vai pagar o seguro que o museu norte-americano vai exigir para emprestar uma das obras para um país como o nosso, por exemplo?
A coleção é dele.
Parabéns ao Sr. Adolpho Leirner por ter se dedicado à arte brasileira durante 40 anos e por enfrentar este país ingrato e mesquinho.