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dezembro 5, 2006
Na mostra, a ética eclipsou a estética, por Juliana Monachesi
Na mostra, a ética eclipsou a estética
Matéria de Juliana Monachesi, originalmente publicada na Folha de São Paulo, no dia 2 de dezembro de 2006
Ao eleger a arte colaborativa, documental, com pretensões políticas, exposição assume risco de ser monocórdia e redundante
Contexto marcado por propostas sem transcendência acaba por prejudicar a leitura de poéticas singulares
A 27ª Bienal de São Paulo é um problema, na melhor acepção do termo. Depois de duas bienais corretas e "agradáveis", a presente mostra equipara-se à 24ª edição -em que o conceito de antropofagia cultural iluminava os processos de construção de identidade-, que gerou debate e propiciou uma releitura da historiografia da arte.
"Como Viver Junto" elege uma vertente da produção contemporânea -a de práticas colaborativas, arte engajada política e socialmente e, por decorrência, arte documental- e busca dar consistência teórica a essa produção ao apresentá-la, em massa, como uma tendência forte na cultura de hoje. Não por acaso a aposta curatorial em obras e artistas que têm como referente conflitos étnicos, religiosos e ideológicos, questões de gênero, raça e desigualdade socioeconômica coincide com uma avalanche de lançamentos editoriais sobre a realidade no Oriente Médio, na África, sobre o dessemelhante.
O assunto está no ar e a curadoria o apanhou no ato, propondo a sua discussão no âmbito da arte. O risco, como apontam certas críticas à Bienal, é um resultado monocórdio. Expor lado a lado, para tratar do esfacelamento das utopias, as impressões em papel de parede de Barbara Visser -fotografias de poltronas e cadeiras modernistas quebradas-, a videoinstalação de Lars Ramberg -que documenta a construção de um edifício onde antes se erigia a sede do governo da República Democrática Alemã- e as "Ant Chairs" de Arne Jacobsen "corrigidas" pelo coletivo Superflex é de fato redundante.
Por outro lado, enfileirar as fotos de Guy Tillim, que retratam a paisagem urbana de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, os resquícios da era colonial no país e a mobilização e ativismo durante as eleições em 2006, em frente à série de Mauro Restiffe que flagra Brasília no dia da posse de Lula, em 2003, gera confusões, podendo sugerir que ambos são fotojornalistas, o que não é fato no caso do artista brasileiro. Nestes dois exemplos, o resultado é o enfraquecimento dos trabalhos pela opção desastrada no estabelecimento de diálogos.
Mas a monotonia não está apenas na montagem da exposição, está na escolha dos curadores de privilegiar a postura ética do artista em detrimento da experiência estética que as obras poderiam gerar. Assim, vê-se o cuidado da artista palestina Ahlam Shibli ao fotografar gays e transexuais que abandonaram os países do leste para poderem viver suas opções sexuais; vê-se nos vídeos de Esra Ersen, nascida em Ancara, o interesse pelas dificuldades de imigrantes turcos para se adaptar ao idioma alemão ou pelos meninos de rua que relatam seus problemas em Istambul.
Prevalece no embate com grande parte das obras em vídeo e fotografia a impressão de que tudo foi negociado e muito respeitoso entre artista e retratado (Paula Trope, Claudia Andujar, Pieter Hugo etc.). A prerrogativa ética em detrimento da estética é ainda mais evidente nos projetos colaborativos: Tadej Pogacar & Daspu, Eloisa Cartonera, Taller Popular de Serigrafía, Long March Project. Causas nobres -defesa de minorias, de economias paralelas, do direito à manifestação política, das práticas artesanais etc.- cuja apresentação em um espaço dedicado à arte peca pela ausência de qualquer tipo de transcendência. E esse contexto acaba por prejudicar a apreensão de poéticas singulares: a instalação de Jane Alexander logo na entrada da Bienal, com cercas, arame farpado e seguranças uniformizados, é de uma literalidade no conjunto da exposição que inviabiliza o fascínio pela produção de uma artista renomada que logrou com seus "garotos carniceiros" (seres híbridos de homem e monstro) construir um emblema dos paradoxos da condição humana.
Nada contra todos os honoráveis valores em jogo na exposição (ética, respeito, inclusão etc.), mas a Bienal fica mais instigante justamente nos momentos em que real e ficcional se confundem (Ola Pehrson, Yael Bartana, Michael Snow, Shaun Gladwell, Ann Lislegaard), em que política e humor se mesclam (Minerva Cuevas, Jarbas Lopes, Antal Lakner, Sanghee Song, Loulou Cherinet) ou quando a crítica está amparada em uma formalização genial, como na obra "Costumes", de Laura Lima.
O maior problema, e aqui na acepção negativa do termo, é entender como uma Bienal que assume um tal esgarçamento de fronteiras entre as práticas culturais pode ignorar as experiências de arte colaborativa on-line e os movimentos de a(r)tivismo que eclodiram com a democratização do acesso à internet, cuja atuação é inseparável da organicidade da rede?