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novembro 24, 2006
Sem amarras, por Luiz Camillo Osório, Jornal O Globo
Sem amarras
Crítica de Luiz Camillo Osório, originalmente publicada no Jornal O Globo, no dia 18 de outubro de 2006
Como sempre em uma bienal, preparo físico é requisito básico. Com boa disposição, todavia, o visitante verá aquela que podemos denominar, sem maiores receios, a primeira Bienal de São Paulo do século XXI. Quais as razões para esta afirmação? Primeiro, o rompimento com o modelo tradicional das representações nacionais. Segundo, a opção por artistas jovens, escolhidos a partir de algumas influências marcantes dos anos 60. Terceiro, a decisão de trazer um conjunto mínimo de obras garantindo uma visão de trajetória e a criação dos projetos de residência de artista em várias cidades brasileiras. Quarto, e talvez o ponto mais importante, a aposta da curadoria em processos criativos mais abertos e coletivos.
Foi enfatizada pela curadora geral, Lisette Lagnado, a intenção política de suas escolhas. O título-tema da bienal, "Como Viver Juntos", extraído de um livro de Roland Barthes, deixa isso claro. Cabe aqui uma consideração: a presença de um tema não é necessariamente uma camisa-de-força que constrange a liberdade expressiva das obras. Se bem realizada a curadoria, como acredito ter sido o caso desta bienal, o tema pode ser visto como um eixo conceitual a partir do qual as obras ganham um parâmetro relacional. Cria-se uma possibilidade de convivência e relação entre as proposições poéticas apresentadas. Outras articulações e novos sentidos são latências intrínsecas às obras.
Três artistas são fundamentais nesta exposição. O primeiro deles é Hélio Oiticica (1937-1980). Mesmo não tendo suas obras expostas, sua idéia de crelazer (criação/crença/lazer) perpassa muitas das formas de "viver junto" exploradas pela curadoria. Suas instalações, ou ambientes como se chamavam nos anos 60, investigavam maneiras de estar junto e de estar só, formas e ritmos de convivência e de solidão. Oiticica está presente mais diretamente nos filmes de Ivan Cardoso (Heliorama) e Marcos Bonisson (Heliophonia), que dão ao público um breve retrato de sua obra e personalidade. Além dele, os americanos Gordon Matta-Clark (1943-1978) e Dan Graham (1942), cada um com uma sala especial, seriam influências importantes levando a arte para perto da arquitetura, intervindo criticamente no espaço público e procurando formas de circulação para a arte independentes da instituição.
O fator institucional é o tendão-de-aquiles desta curadoria e do escopo político da arte contemporânea. A legitimação garantida por uma bienal pode anestesiar a potência crítica de certas obras. A tensão e o risco, que surgem quando a arte abdica das suas formas convencionais, ficam amenizados. No entanto, o veto jurídico ao guaraná desenvolvido pelo coletivo dinamarquês Superflex junto com produtores alternativos da amazônia mostrou que o conflito pode (e deve) resistir à institucionalidade. Vale sublinhar a parceria produtiva entre artistas e não-artistas. Talvez um dos papéis da arte no mundo contemporâneo seja o de viabilizar potências criativas a partir da abertura experimental e da contaminação do seu espaço institucional.
Esta era uma estratégia fecunda de Matta-Clark, como podemos ver na mostra de filmes, fotografias, desenhos e objetos trazidos à bienal. Ele usava a arte para dar visibilidade às formas de vida excluídas da convivência pública. Suas ações poéticas potencializavam a criação cotidiana e comum, correndo o risco, assumido sem temor, de dissolver a arte na vida. Risco que não inviabilizava a escala de suas intervenções, cortando casas, fazendo buracos gigantescos em prédios e galpões, distribuindo ar puro para os executivos de Wall Street, abrindo um restaurante, construindo muros e paredes com resíduos da cidade que servissem de modelo para casas de desabrigados etc. Construir, destruir e habitar irmanavam-se na fronteira entre espaços de produção e de criação. Seu exemplo está por toda a bienal, em nomes como Rirkrit Tiravanija, Laura Lima, Minerva Cuevas, Paula Trope, Long March Project, Vladimir Arkhipov, Coletivo Mujeres Creando, Atelier Bow-Wow, nas edições de Eloísa Cartonera, no atelier popular de serigrafia, entre outros. Estes dois últimos exemplos não surgiram com a intenção de ser arte, nem tampouco passaram a ser pelo fato de estarem em uma bienal - ser ou não ser arte é o que menos interessa. Sua inclusão ali, todavia, nos faz pensar sobre o quanto há de arte na invenção cotidiana de novos estilos de vida e de sociabilidade.
A sala dedicada a Dan Graham começa com sua série de fotografias "Homes for America", de 1966. Estas fotos tornaram-se emblema máximo da arte conceitual. São silenciosas, ásperas e intrigantes. Lembram as telas de Hopper sem a carga existencial. Projetadas na parede através de slides, estão ladeadas por uma série de projetos arquitetônicos posteriores. Ele passou a criar, nas décadas seguintes, espaços de convivência e contemplação. Os mais interessantes são uma pista de skate com cúpula de espelho e um pavilhão de observação distorcida da paisagem. Natureza e construção se misturam. O silêncio também tem relevância política, especialmente em épocas sombrias e de incertezas ideológicas. Artistas como Florian Pumhosl, Armando Tudela, Damian Ortega, Lucia Koch, Renata Lucas são alguns exemplos interessantes de diálogo com sua obra apesar do uso de suportes e linguagens muito variados.
Uma das obras mais interessantes desta bienal é do suíço Thomas Hirshhorn, intitulada "Restore Now". Política, erotismo e morte perpassam livros ampliados de grandes filósofos junto a fotos de cadáveres dilacerados. Civilização e barbárie caminhando lado a lado. Uma frase grafitada em um pano vermelho reverbera toda a complexidade do engajamento contemporâneo - "culpabilidade organizada e responsabilidade universal".