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abril 13, 2006
Anos 50 produziram um "Machado coletivo" nas artes, entrevista de Paulo Sergio Duarte a Marcos Augusto Gonçalves
Anos 50 produziram um "Machado coletivo" nas artes
Entrevista de Paulo Sergio Duarte a Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustrada, originalmente publicada na Folha de S. Paulo, Ilustrada, São Paulo, quarta-feira, 12 de abril de 2006
Para o crítico Paulo Sergio Duarte, artistas construtivistas sofisticaram modernidade brasileira
Não tivemos um Machado de Assis nas artes plásticas brasileiras, mas no opinião de um dos mais prestigiados críticos de arte do país, Paulo Sergio Duarte, paraibano radicado no Rio de Janeiro, os artistas que participaram do construtivismo brasileiro na década de 50 podem ser considerados uma espécie de "Machado coletivo". "É um Machado constituído de diversos sujeitos empíricos, que cumpriu, de certo modo, o papel do escritor no final do século 19 e início do 20", diz ele.
Para Duarte, "a partir do programa construtivo, nossa modernidade adquire um patamar de sofisticação até então desconhecido". Professor-pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes, no Rio, ex-diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas da Funarte, ex-membro do Conselho de Arte e Cultura da Bienal da São Paulo, Duarte escreveu sobre alguns dos principais expoentes da arte brasileira. Entre seus livros mais recentes (e não-esgotados) estão "Waltercio Caldas" (Cosacnaify, 2001); "Carlos Vergara" (Santander Cultural, 2003) e "A Trilha da Trama" (Funarte, 2004).
Curador da 5ª Bienal do Mercosul, no ano passado, em Porto Alegre, ele diz nesta entrevista que a precariedade institucional do Brasil favorece a promiscuidade entre público e privado (no caso da arte, entre curadores e mercado) e considera que vivemos um estado de "indigência" no que diz respeito às políticas de Estado.
Folha - A arte contemporânea brasileira tem conquistado prestígio no circuito internacional. Tratando-se de um país jovem, colonizado por um Portugal de rarefeita expressão nas artes plásticas, como o Brasil veio atingir esse patamar de sofisticação e qualidade?
Paulo Sergio Duarte - É todo um processo histórico no qual um rei português, consciente das limitações da arte portuguesa fora das ordens religiosas, importou uma missão francesa para nos introduzir no universo estético da França pós-revolucionária. Depois vieram outras contribuições até formar o arquipélago modernista da primeira metade do século 20.
Mas o continente, o território contínuo e mais denso, aquilo que de um modo um pouco herético, eu chamo de nosso "Machado visual", se forma mesmo a partir dos anos 50 com o advento dos projetos construtivistas em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Não tivemos nas artes visuais uma obra individual da estatura da de Machado na literatura, mas tivemos um Machado coletivo, constituído de diversos sujeitos empíricos, no início dos anos 50, que cumpriu, de certo modo, o papel da obra de Machado no final do século 19 e início do 20.
A partir do programa construtivo, nossa modernidade adquire um patamar de sofisticação até então desconhecido. Mas acredito que com o endurecimento da ditadura militar, nos anos 70, nossos melhores artistas passaram a olhar mais para o mundo de fora e estabeleceram contatos sistemáticos e permanentes com artistas, críticos e instituições. Essa interação com a produção contemporânea internacional ajudou muito a encontrarmos um patamar de qualidade muito elevado a partir de uma inteligente interação com questões locais.
Folha - De que forma essa interação se traduziu na produção artística brasileira?
Duarte - Para entender essas conquistas é preciso não confundir questões locais exclusivamente com temas e conteúdos locais. Falo sobretudo de maneiras de pensar e de proceder diferentes tanto da tradição européia quanto da norte-americana.
O importante é não confundir essas questões com o problema da identidade nacional e outras bugigangas ideológicas que não têm nada a ver com o modo como um pobre favelado carioca se vira para sobreviver ou um sertanejo resiste aos ciclos eternos de seca enquanto as elites se locupletam aos custos de sua miséria.
Os inteligentes artistas incorporaram elementos locais nesse sentido de maneiras de pensar e proceder e, quanto a isso, a obra de Hélio Oiticica, morto precocemente em 1980, continua a ser um dos exemplos maiores, com sua lúcida sentença: "Da adversidade vivemos".
Folha - O curador pode exercer sua função de maneira crítica, intervindo com suas escolhas no debate da arte. Mas pode também ser uma peça numa engrenagem maior, ligada ao mercado. Como você vê a inserção do curador no atual universo da arte?
Duarte - Não tenho nenhuma dúvida de que boa parte dos trabalhos de curadoria são agenciados em íntima e inteligente articulação com o mercado, porque, para muitos curadores, especialmente mais jovens, o mercado é um fato consumado a partir do qual pensam e articulam suas estratégias curatoriais.
Boa parte dos valores estéticos contemporâneos se confundem com os valores do mercado, por isso artistas de elevada qualidade podem estar longe das instituições, das mostras e das coleções, pois não são reconhecidos pelo mercado ou por esses curadores.
"Há conformismo entre artistas e curadores", para Paulo Sergio Duarte, precariedade institucional e falta de políticas públicas favorece promiscuidade nociva com o mercado
Folha - A subordinação ao mercado não chega a ser uma novidade...
Duarte - Não é uma novidade na história. Com o declínio do "artista da corte" no final do século 18 e a ascensão do artista "profissional liberal" no século 19, essa situação de subordinação aos interesses do mercado já se configurava como tendência. Van Gogh e Modigliani são casos bem conhecidos de vítimas, em vida, dessa situação.
O que é novo é o modo como tudo se subordina à forma mercadoria, desde as obras até as instituições. As poéticas contemporâneas nem sempre são tão poderosas a ponto de não se subordinarem a essa forte tendência. O importante é não reduzir tudo a um julgamento moral a partir dessa constatação. Digamos que há muito conformismo entre artistas e curadores ao se subordinarem a essas estratégias marketing.
Folha - No Brasil essa "promiscuidade" entre curadores e mercado é mais acentuada?
Duarte - As relações promíscuas entre curadoria e mercado são mais nocivas em situações de precariedade institucional como ocorre no Brasil. A situação em que nos encontramos do ponto de vista político e cultural não é muito diferente da que nos encontramos do ponto de vista educacional, habitacional ou de saneamento básico. A precariedade de nossas instituições culturais é a mesma que a de nossas redes de água e esgoto ou de nossa educação básica. É nessa situação, sobretudo, que o curador e o artista devem guardar distância crítica em relação às operações convenientes do mercado.
Em países como os da América do Norte -penso mais nos EUA e no Canada, do que no México, embora o México esteja muito à frente do Brasil-, e os da Europa, a existência de instituições culturais mais densas e consistentes, bem como um trabalho acadêmico mais intenso em torno da arte, faz com que essa promiscuidade entre curadoria e mercado tenda a ser menos nociva do que em países com a fragilidade do Brasil.
Folha - Falta política pública?
Duarte - A omissão na formulação de políticas públicas no Brasil foi e continua sendo muito maior que na Inglaterra de Thatcher ou nos EUA de Ronald Reagan. E, quando há alguma tentativa de avanço, gritam logo que é patrulhamento ideológico, intervenção do Estado, e surpreendentemente os responsáveis pela formulação recuam. Os que gritam são os mesmos que estão aí há 40, 50 anos, na cabeça da indústria cultural e do showbiz.
Nesse contexto, não podemos considerar estranho um curador achar "natural" estabelecer relações permanentes e diretas com o mercado no lugar de se dedicar a formular programas públicos em instituições. Quando ele se dedica à instituição pública, é para logo avançar na relação com o mercado, que é o que lhe interessa.
Os poucos que podem se dedicar a uma carreira pública são santos, celibatários de vida ascética ou têm outras fontes de renda.
Folha - Temos assistido a artistas jovens que viram sucessos instantâneos e atingem preços altos no mercado. São "bolhas" de mercado? É possível fazer um julgamento sem dar tempo ao tempo?
Duarte - Na área das artes plásticas não ocorre o fenômeno dos meninos prodígios como na música. Ninguém conhece nenhum Mozart, Rubinstein ou Barenboim nas artes visuais. Existem alguns artistas que fazem sucesso precoce e depois se sustentam. Na minha geração e no Brasil, o exemplo que me vem logo à cabeça é o de Antonio Dias.
Mas nada é mais arriscado que as bolhas de mercado. Na economia da arte não ocorre nada diferente do que ocorre na economia dos outros setores. O importante é isolar essas questões para pensarmos nos valores estéticos e culturais. São esses que vão sustentar a obra e dar sua razão de ser. Não existe nenhum princípio de correlação entre valor de mercado e valor artístico em nenhum setor. Às vezes eles coincidem, muitas vezes não coincidem: o que estou dizendo vale para as artes plásticas e qualquer outro campo artístico.
Folha - Mas os colecionadores não se pautam com freqüência pela lógica do valor econômico da obra?
Duarte - Para o colecionador o importante é ele esquecer se vai ou não ganhar dinheiro. Sempre existem, principalmente no Brasil, numerosas outras aplicações mais rendosas e sobretudo com muito mais liquidez do que o investimento em obra de arte. O importante é ele gostar de arte e não saber viver sem arte perto dele. É importante visitar bons museus, boas coleções para formar o olhar; estudar história da arte também ajuda e muito.
E vou logo avisando que não vai encontrar muito disso no Brasil: bons museus e boas coleções para serem visitados, mas os que existem, que são poucos, devem ser objeto de visitas freqüentes. Se tem preguiça de sair para ver as exposições porque acha que não tem tempo, não vai aprender e vai ficar pedindo ajuda ao marchand e ao decorador. Vai alugar o olho de outro. O que o colecionador ou qualquer um que gosta de arte compra é o prazer de ter sempre por perto algo de que ele tira muito prazer ao olhar. Isto não tem nada a ver com carteira de ações ou aplicações em fundos.
Certamente a quase totalidade das obras de arte não vai se desvalorizar como o seu automóvel, que em cinco anos não vale a metade do investimento inicial. No mínimo a obra de arte vai manter seu valor. Entretanto, olhe as portas dos restaurantes chiques. Tente vender uma obra de arte para um dos proprietários daqueles Audis ou Jaguares, que em 2010 custarão menos da metade do valor atual.
Eles vão achar muito cara a obra de arte. Não adianta MBA em Harvard; salvo algumas poucas exceções, a elite brasileira tem a mesma visão de cultura de uma porta, isto é, nenhuma. O raciocínio é o inverso daquele da elite americana. Os americanos são capazes de pagar milhões de dólares pela obra de um artista ainda vivo, mas jamais aceitariam pagar 75% de imposto sobre o valor de mercado de um Porsche.
Folha - O que falta na política de museus do Brasil?
Duarte - Falta tanta coisa. Como sempre existem exceções, entre os museus de arte, e aqui só estou me referindo a eles, a Pinacoteca do Estado de São Paulo, hoje é a mais honrosa exceção. Isso se deve sobretudo à dedicação de sua equipe e à clareza de seu diretor no que diz respeito ao esforço de manter a instituição como deve ser um museu público. Mas mesmo a Pinacoteca tem muita coisa a conquistar no campo técnico, material e de recursos humanos.
O esforço desenvolvido durante o governo Covas sob a direção de Emanoel Araújo teve uma saudável e rica continuidade na pessoa de outro Araújo, o Marcelo.
Mas veja os outros museus de arte de São Paulo como estão. Não vamos falar da tragédia do Masp. É impressionante a inércia e/ou cumplicidade da elite de São Paulo diante do que se passa no Masp.
Veja a situação de outra instituição exemplar que é o Museu Lasar Segall, que pertence ao governo federal. Precisa urgentemente de técnicos, mas não basta abrir concurso, é preciso salários e planos de carreira que profissionalizem efetivamente as pessoas. Isto é um dever do poder público. Mas, falando sério, isso tudo aqui é uma piada.
Os neófitos neoliberais brasileiros precisam urgentemente se livrar da praga da terceirização e parar de generalizá-la por todo lado. Não se constroem instituições somente com trabalho temporário. São precisos quadros permanentes bem remunerados.
Vamos falar do que falta. Depois de uma política clara, com estratégias precisas de formação de acervo, os museus de arte brasileira necessitam antes de tudo de equipes profissionais competentes e bem remuneradas.
Você sabia que em nenhuma cidade do Brasil, nem em São Paulo, nem no Rio, usando todos os acervos expostos ao público, eu posso apresentar aos meus alunos pelo menos a história da arte brasileira no século 20 de uma forma digna? É muita indigência.