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setembro 1, 2005

'Estou do lado das bruxas’, Gilberto Gil, entrevistado por Arnaldo Bloch

'Estou do lado das bruxas'

Gilberto Gil, entrevistado por Arnaldo Bloch, originalmente publicado no Segundo Caderno do Globo do dia 31 de agosto de 2005

Gil rompe silêncio sobre crise, mostra-se leal a Lula e diz que ministério é 'música para os ouvidos'

Contrariando o clima de luto vigente nas fileiras governamentais, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, estava de ótimo humor na tarde de anteontem, quando veio ao Rio para visitas e reuniões. Vestindo terno de riscas de giz, camisa Armani e meias Tommy Hilfiger, Gil decidiu, após muita resistência, que era sua vez de quebrar o silêncio sobre a crise, mesmo entendendo não caber a ele responder por uma situação externa à sua pasta. "Estou do lado onde as bruxas são caçadas", ironizou, referindo-se à dificuldade de tomar posição diante dos escândalos. Em meio a uma cruzada para compensar o corte de verbas do MinC (que inclui uma dura missiva ao governo) e vociferar a importância estratégica da Cultura, o ministro se disse feliz com o cargo e pronto, se convidado, para dar o bis.


O GLOBO: Chico Buarque disse que a alma do país está ferida. Caetano e Milton estão de coração partido. E Gilberto Gil?

GILBERTO GIL: Indignação, comoção, decepção e desilusão são emoções que se manifestam de forma diferente de pessoa para pessoa. Tem gente que não suporta sofrimento moral. Eu, por questão de índole, não reajo com tanta intensidade. Mas tem outro aspecto: eu sou do governo Lula! A não ser que algo resvale na minha área, não tenho que responder pela crise política. E não gosto muito, nunca gostei, dessa coisa inquisitorial de caça às bruxas... é muito bom que tenha, que se faça mas... mas...

Não é a sua praia...

GIL: Não é a minha praia, até porque eu estaria hoje... ou melhor, eu estou hoje, do lado das... do lado onde as bruxas estão sendo caçadas! Então não tenho muito o que dizer (risos)! No mais, já há uma pletora de opiniões. Vivemos numa sociedade de espetáculo e toda opinião é espetáculo, e é preciso que seja assim, porque tudo é TV, tempo real, tudo é teatralizado.

Ano passado a própria equipe do MinC sofreu seu processo inquisitorial, com a saída de quase toda a cúpula.

GIL: Pois é... todas aquelas dificuldades, de apurar, de avaliar, enfim, recompor a dimensão de integridade da ação pública. Essas coisas existem, temos que enfrentar, mas não se esgotam no plano da moralidade, do bem e do mal. É mais complexo. Como dizem filósofos pré-contemporâneos, estamos numa época em que somos cada vez mais controladores e controlados, uma época pragmática para além do suportável. Todo mundo sabe que o PT não inventou nada do que está aí. Pode até ter inovado (risos) aqui ou ali, mas inventar não inventou.

Como o senhor interpretou o silêncio da filósofa Marilena Chauí?

GIL: Gostei muito quando ela abordou a questão da virtude como capacidade de enfrentar adversidades e não apenas no sentido da chamada ética em política. É a virtu como responsabilidade maior. Ela inclusive citou os estudos de Maquiavel, ao detectar que muitos dos príncipes virtuosos de seu tempo tinham fracassado enquanto governantes. Exige-se do homem público que seja probo, honesto, mas não é só isso. Há todo um outro mundo de qualidades e habilidades.

O Brasil talvez precise de alguém com esse perfil. É comum citar JK como paradigma da tal virtude. Lula o fez semana passada.

GIL: Eu me lembro dos períodos pós-juscelinistas, como ele foi execrado. Caetano mesmo se referiu a isso na entrevista de domingo passado (publicada no Segundo Caderno), lembrando que JK inventou a inflação, essa praga que nos assolou. Ao mesmo tempo é tido como um virtuoso. Eu era fã de Juscelino, até hoje foi o único político por quem me encantei com devoção. Talvez porque ele simbolizasse a modernidade, e meu grupo estava antenado com isso. E ele punha isso no discurso, na maneira de vestir a sua personalidade, de compreender a dimensão psicossocial. Tinha vindo de família pobre mas era doutor formado; era classe média brasileira com um pé no mundo pobre e outro no mundo rico. A dificuldade do Brasil com um presidente como o Lula é muito grande nesse sentido. Ele quebra esse padrão médio.

Talvez Lula, ele mesmo, ainda não tenha compreendido esse Brasil mais complexo...

GIL: É uma colocação pertinente. Mas acho que uns, como Fernando Henrique e o Gabeira, têm se manifestado sobre isso de uma forma deselegante. Eu não poria nos termos que eles põem, mas entendo o que querem dizer.

Gilberto Gil é o 'Lula do Lula', como diz Caetano?

GIL: Ainda ontem, em Divinópolis, onde fui coroado Rei do Congado, a patrona da festa dizia de mim: "por ele ter chegado aqui onde chegou"... É o mesmo discurso que se faz em relação ao Lula, só que sobre um artista brasileiro do povo que chega a ser internacionalmente conhecido, que chega a ministro. É um simbolismo de fácil entendimento.

A decisão de aceitar o ministério em 2003 foi sofrida. Se o próximo presidente o convidasse para permanecer no cargo, o senhor aceitaria?

GILBERTO GIL: Não descarto a possibilidade de continuar contribuindo se a contribuição for reconhecida. Ao mesmo tempo, não é algo que seja fundamental. Se a gente deixar alguns encaminhamentos feitos, como o Plano Nacional de Cultura e uma conscientização do papel estratégico da Cultura no cenário nacional — coisa que vem sendo feito com muita dificuldade — já terá sido um grande passo para o meu sucessor seguir.

E a carreira de compositor? E o 'sambinha do ministério', quando é que sai?

GIL: Desproblematizei essa coisa de retomar carreira em sua plenitude. Estou fazendo outra coisa, dando uma contribuição cultural. Os fãs, os ouvintes, a cultura da MPB se ressentem um pouco, mas meus colegas cumprem esse papel, não há déficit de boa música. E não sinto falta de compor porque estou fazendo outro trabalho. Estou vendo muita coisa pelo Brasil e pelo mundo. O ano do Brasil na França foi o mais bonito de todos. O Brasil está aí, tem um papel importantíssimo em discussões sobre diversidade cultural, indústrias criativas, novos paradigmas de propriedade intelectual. Essas questões estão diretamente ligadas a mim e ao meu círculo. São música aos meus ouvidos! Estou tocando esses outros instrumentos por aí, e estou gostando. Tem muita gente por aí achando que eu não gosto, mas gosto.

'O PT não inventou nada do que está aí... pode até ter inovado, mas inventar
não inventou'

Gil vê falta de sintonia de áreas como Fazenda e Planejamento com tendências da economia contemporânea

Qual a avaliação do seu percurso como ministro?

GILBERTO GIL: A gente está conseguindo trazer a questão da cultura para uma pauta preferencial no Brasil. Começa a haver uma tomada de consciência de que a cultura é estratégica, ao lado de outras áreas que buscam reconhecimento, como meio ambiente e inclusão social. É um trabalho que precisa ser feito no Brasil, para além da oficina mecânica, da injeção de recursos nas artes, no patrimônio, na produção, na difusão. É preciso requalificar o discurso da cultura no Brasil, porque é um processo que se dá globalmente.

Na última reunião ministerial o senhor apresentou uma carta com duras críticas ao governo quanto a essa tomada de consciência.

GIL: Um governo que está dedicando tanto esforço em relação a superávit, austeridade fiscal etc está na contramão do apoio a setores que não são classicamente apoiados pela força política da sociedade. Há também uma dificuldade histórica de áreas como fazenda e planejamento de compreender o papel estratégico da cultura.

Isto não o deixa frustrado?

GIL: Veja bem: não é porque o governo é de mudança que essa consciência será instalada imediatamente. Se eu for pensar no esforço que vem sendo feito e na resposta que o governo tenta dar, tenho um panorama progressivo. Mas não de ousadia. Ainda não. Ainda carecemos de uma certa visão política que esteja em sintonia com um processo que é global. Há uma crescente migração da grande produção industrial para uma economia que é cada vez mais ligada ao conhecimento, à informação, à subjetividade. Isso é uma coisa nova, a gente não pode imaginar que os ministros de fazenda e presidentes de república tenham uma imediata compreensão disso.

Num país como o Brasil, coisas como infraestrutura vêm na frente.

GIL: Sim. São políticos egressos de quadros clássicos, trabalhando demandas como emprego, com agendas de momentos anteriores à contemporaneidade. Outro problema é a falta de indicadores: a cultura praticamente não tem estatísticas no Brasil. Você vai discutir com o Palocci sem ter os números que outros setores têm. A agricultura vai lá e põe na mesa produção, exportações, empregos gerados. Nós não temos esse dimensionamento econômico da cultura. Estamos buscando, fizemos convênios com IBGE, Ipea e entidades como Firjan, sindicatos, associações patronais.

Mas na Carta a Lula o senhor já apresenta alguns dados preliminares.

GIL: Sim. Por exemplo, 5% do emprego gerado no Brasil hoje vem do setor cultural. Não é pouco. No Rio, 7% do PIB é cultural. Os empregos da cultura são os mais qualificados, os de maior remuneração, os mais limpos...

Limpos em que sentido?

GIL: No sentido ecológico (risos)! Sabia que hoje no Brasil o setor de cultura produz mais que o da construção civil e da indústria automobilística? É esse tipo de discurso, de informação, de catequese, que precisa ser feito. A cultura tem um papel fundamental em questões como coesão social, cidadania, qualificação da subjetividade para aplicação em vários campos. E é uma área que entra no deslocamento da chamada economia pesada para uma economia leve, dos serviços. Nos EUA, a de serviços já bateu a convencional, pesada, de bens materiais. Respondendo à sua pergunta, nesses dois anos e meio, a satisfação vem daí, de estar prestando esse serviço. O MinC tinha que em algum momento - e já passava da hora - atribuir-se a tarefa de fazer esse aggiornamento da questão conceitual sobre cultura.

Deve ser um trabalho difícil, pois a própria palavra cultura é raramente compreendida em dimensões que estão além da produção cultural.

GIL: Mas o fato é que é assim, queira-se ou não! E as pessoas vão ter que se defrontar com isso, se não for agora será logo adiante, talvez os netos, as gerações que vão nos seguir, consigam compreender.

Posted by João Domingues at 1:11 PM