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Como atiçar a brasa

 


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outubro 17, 2004

Política para abrir acesso aos ‘gozos da alma’

Matéria de Hugo Sukmanpublicada originalmente no Segundo Caderno do jornal O Globo no dia 17 de outubro de 2004.

Opessoal todo já chegando e os parceiros Francis Hime e Geraldinho Carneiro cantam, apressados e aos sussurros, o samba que acabaram de compor. "Gozos da alma, estou partindo agora/Chegou a hora de partir, mas não/Te deixo só, porque não pode ser/ Porque deixei todo o meu ser contigo", dizem os primeiros versos de Geraldinho para o samba de feitio clássico como tantos que Francis já compôs.

O samba é o que importa. Mas não agora. Os "gozos da alma" — verso, " joys of soul ", roubado do poeta inglês seiscentista John Donne — têm que dar um tempo, nesta chuvosa noite de quinta-feira, aos deveres da sociedade. É que Francis recebe em sua casa, no alto do Jardim Botânico, 60 compositores, cantores, músicos, produtores, gente da música em geral para, numa primeira reunião espalhada pela classe por e-mails e telefonemas urgentes, falar das reivindicações que o setor vai apresentar ao Ministério da Cultura.

Reivindicação básica: políticas públicas para a música brasileira, para ampliar sua produção, democratizar o acesso a ela, apoiar sua exportação, atualizá-la em relação às novas tecnologias e, sobretudo, reinseri-la na sociedade através da educação. Ambição: a criação de um órgão federal (câmara setorial, conselho, agência, que nome tenha) específico para a música e para coordenar isso tudo.

— Já entrei em várias roubadas em que a classe se uniu e não deu em nada. Mas, desta vez, não. Pela primeira vez vejo gente jovem, consciente, sem preconceitos, pragmática, com abordagens novas, o que me dá um sopro de esperança — diz Ivan Lins, um dos líderes do movimento, o mais emocionado da noite, falando com lágrimas nos olhos. — Sou apaixonado pela música do meu país e sofro por ela.

Ivan falava para veteranos de tantos movimentos político-musicais, como o letrista Abel Silva — "Lembre, Ivan, que em 1974, em reunião na sua casa, partimos para vitórias importantes como a criação do Ecad, que fez evoluir muito a arrecadação de direitos autorais", corrigiu Abel, dizendo que, sim, movimentos político-musicais às vezes dão certo. Mas também para muitos artistas que ainda falavam gugu-dadá quando Ivan, Abel e a música brasileira unida fundaram a Sombrás, movimento que, em plena ditadura, quebrou o status quo do direito autoral no Brasil.

Como a cantora Fernanda Abreu, representante de uma ala pop da noite, da qual faziam parte, entre outros, Roberto Frejat, Pedro Luís, Zélia Duncan, Charles Gavin (dos Titãs), todos com idéias muito pragmáticas.

— Eu tenho um selo e gostaria de lançar discos de outros artistas. Mas não posso, pois tenho que pagar impostos como se fosse uma multinacional, o que inviabiliza as produções — disse a autora de "Rio 40 graus", que também conceituou uma idéia geral para o movimento que se inicia. — Música é um grande instrumento de inclusão social.

Mexer em Lei Rouanet e educação musical estão na pauta

Representante de uma MPB sofisticada e inclassificável, cujo adjetivo "popular" parece cada vez menos apropriado, e "clássico", pesado demais, Mário Adnet tocou em outro ponto pragmático na política músical.

— A Lei Rouanet permite que as empresas descontem 100% de imposto em projetos para a música clássica, 100% para a música instrumental e apenas 30% se for música popular, o que faz com que as empresas não se interessem — diz Adnet. — Mas acontece que muito dessa chamada música popular, como as outras, está fora do mercado e precisa do incentivo.

Estranho, as reivindicações e projetos brotam de bocas de onde normalmente só deveria sair música. Como a de Maurício Maestro, compositor e boca do Boca Livre:

— A educação musical no Brasil está praticamente abandonada — denunciou Maestro, dizendo que isso não prejudica propriamente a formação dos músicos, que no Brasil brotam sabe-se lá como, mas da platéia. — É preciso que tenha gente para ouvir a música que fazemos.

As reivindicações podem ser pequenininhas, singelas como a da pianista Fernanda Cannaud, especialista em música fronteiriça entre clássico e popular (Radamés, Nazareth, etc.), e que mantém uma escola de música na região de Nova Friburgo:

— Um clarinetista lá tem que usar a mesma palheta por três meses quando um profissional usa às vezes 30 em uma hora.

Ou podem ser reivindicações grandiosas, como as que tratam dos temas que mais geraram polêmicas entre os colegas: a necessidade de se impedir a prática do jabá (dinheiro pago pelas gravadoras às rádios para tocar determinadas músicas); renovar ou não o recolhimento de direito autoral no Brasil, acompanhado de uma investigação do Ecad, o órgão que os recolhe e distribui sob influência das poderosas sociedade arrecadadoras; criar ou não novas entidades representativas para o setor, já que sindicatos e a Ordem dos Músicos estariam obsoletos, etc.

— É uma barra pesada mexer nisso, é um avião difícil de levantar vôo — comentou as dificuldades que o setor terá daqui para frente o maestro Jaime Alem, arranjador de Maria Bethânia.

Tal avião pesado vem sendo pilotado com empolgação desmedida ante a correria da vida por um pequeno grupo de músicos e compositores que se apaixonou pelo tema. Ivan Lins, Francis Hime, as letristas Cristina Saraiva e Ana Terra, o músico Dalmo C. Mota, que representa o sindicato.

— O que a gente quer é uma política pública para o setor e ampliar a estrutura governamental para a música, que hoje é totalmente incompatível com o seu peso — diz Cristina Saraiva, letrista-revelação da MPB, dois discos lançados e já gravada até por Chico Buarque. — Eu era professora de história e uma vez falando em sala de aula sobre a obra do Chico nenhum dos 30 alunos conhecia alguma coisa dele. Desde então comecei a notar que havia algum problema com a difusão de música popular no Brasil.

As discussões internas, entre os próprios artistas, ainda vão pegar fogo. Mais ainda quando chegar no âmbito de um Ministério da Cultura, politicamente dividido entre membros originários do PT, como o presidente da Funarte, Antonio Grassi, e a secretária de música da entidade, Ana de Holanda — aparentemente contrários ao movimento e a favor de uma concentração do setor musical na Funarte — e a ala do Partido Verde (PV), da qual fazem parte tanto Gilberto Gil quanto seu secretário executivo, Juca Ferreira, que incentivou a realização da reunião de quinta-feira.

— Música é igual à esquerda: sempre dividida — definiu o experiente Ivan Lins durante a reunião.

Ivan insistia, contudo, que a música deve se apresentar unida contra, principalmente, as verdadeiras máfias que dominam o negócio musical no Brasil.

— O novo órgão vai fazer com que a gente não discuta mais em gabinetes. É claro que há bandidagem na atividade. Mas ela tem que ser exposta. Vai ser bandidagem a céu aberto — diz.

Apesar da crise por que passa a música, reconhecida por todos os lados da questão, os gozos da alma não são contidos. Mesmo enquanto boa parte da inteligência musical brasileira discutia o futuro político da atividade, conversas musicais também aconteciam. Abel Silva e Roberto Menescal, que acabaram de escrever 17 novas canções em parceria, encontraram na varanda de Francis a intérprete ideal para interpretá-las, a jovem cantora mineira Paula Santoro.

Ivan Lins e Ana Terra, que viraram parceiros agora pelo convívio na comissão, ultimavam as duas canções que estão fazendo. Charles Gavin falava das férias forçadas dos Titãs depois de um acidente que Paulo Miklos sofreu quando cuidava do cachorro ("Ele já está bem", tranqüilizava).

E chegou a notícia de que o samba de Francis e Geraldinho Carneiro será gravado por Leila Pinheiro. Samba e disco se chamarão "Gozos da alma". É o que importa.

Posted by Patricia Canetti at 1:45 PM