|
setembro 14, 2004
Boa idéia que não coube dentro do espaço disponível
Texto de Luiz Camillo Osório, publicado originalmente no Segundo Caderno do jornal O Globo no dia 13 de setembro de 2004.
Boa idéia que não coube dentro do espaço disponível
Luiz Camillo Osório
"Tudo é Brasil", atualmente no Paço Imperial, é uma exposição interessante. O seu maior mérito é não se furtar diante da interrogação sobre uma possível e problemática identidade nacional. Em uma época de superação dos ideários nacionalistas e de globalização inexorável, é fundamental repor os termos da discussão sobre as singularidades culturais. Propor uma reflexão sobre nós mesmos, em uma época de crise das identidades coletivas e frente a ausência de novas promessas civilizatórias, é o que mais interessa nesta exposição que tem curadoria de Lauro Cavalcanti.
A vontade de misturar vários segmentos da cultura brasileira, passando pela música, pela poesia, pelo teatro e tendo nas artes plásticas o eixo principal, foi uma opção arriscada. Por um lado, é fundamental perceber as conexões, os diálogos, a contaminação entre as várias linguagens. Por outro, as dificuldades são imensas para reunir tudo em uma mesma temporalidade expositiva e fazer escolhas coerentes entre artistas que dêem um mínimo de equilíbrio para a exposição.
Na década de 50, Brasil encontra a modernidade
A contaminação entre as artes e, para além delas, entre a produção erudita e as artes populares obriga-nos a rever as formas de inserção da arte na vida contemporânea. Não se trata de querer popularizar as artes, mas de mostrar que a experimentação poética e a qualidade estética são bens comuns. Independentemente de se tomar qualquer expressão popular como arte, ser ou não arte é o que menos importa aqui, o relevante é fazer ver a potência criativa disseminada nas práticas cotidianas. Abrir canais entre as ilhas de especialidades artísticas é uma demanda da cultura contemporânea, e mais particularmente ainda do Brasil, que vive da tensão diária entre criatividade e injustiça.
A mostra toma a década de 1950 como o momento inaugural de um sentido de moderno na cultura brasileira. Em se tratando de uma exposição, o foco obviamente aponta para as artes plásticas, mas, dentro deste território específico, vai privilegiar uma necessidade de hibridização poética que vem sendo, há pelo menos 50 anos, fundamental para a renovação dos seus procedimentos criativos. A opção da curadoria foi o de evitar o óbvio na seleção de obras e artistas. As escolhas priorizaram nomes menos conhecidos do público carioca ou então os que ampliam o cânone da experimentação contemporânea. Na primeira sala estão Lygia Pape, Geraldo de Barros, Waldemar Cordeiro, Celso Renato de Lima e Raimundo Colares. Uma bela linha de frente para uma seleção de artistas de filiação concretista. Cada um deles, à sua maneira, deslocou e fez reverberar o vocabulário plástico construtivo para além das expectativas convencionais. Esta sala e a que reúne algumas interessantes experimentações na confluência entre palavra, forma e espaço, ou seja, entre poesia e artes visuais, são o ponto alto da exposição. Devem ser ressaltados nestas duas salas a pesquisa histórica e o resgate de trabalhos pioneiros e relevantes para se avaliar o desenvolvimento da arte brasileira recente. A construção dos poemas-objeto de Ferreira Gullar e a notícia de que farão parte de uma sala especial no Paço dedicada ao poeta são a boa nova de "Tudo é Brasil".
Na sala de vídeo, um destaque para o trabalho de Lula Wanderley que pegou três gols históricos de Pelé, Romário e Maradona e retirou a bola, valorizando a plasticidade que envolve o rude esporte bretão e a graça que não se submete à objetividade da bola. A frase do Nelson Rodrigues, que abre o vídeo, é perfeita: "O cego no futebol só vê a bola". Esta frase é interessante também para se pensar a tal singularidade nacional, que não vai estar nunca onde se espera e que implicará sempre em uma invenção coletiva, periférica e comum.
Contemporâneos estão ligados à arte popular
Dois senões da exposição. A escolha dos artistas contemporâneos deixou a desejar. Optou-se por nomes menos conhecidos e que teriam uma ligação mais direta com o universo da arte popular. Até aí tudo bem, mas as obras não têm força suficiente para enfrentar o desafio. Os infláveis de Paulo Paes são ótimos, mas não precisava de tantos. Outros dois artistas a serem destacados são Davi Cury e José Patrício. A presença dos artistas populares também ficou tímida e dispersa, não produzindo o ruído necessário. Na verdade, a abrangência histórica e simbólica da exposição era maior do que o espaço físico disponível. "Tudo é Brasil", mas nem tudo cabe ao mesmo tempo. A idéia ficou maior do que o lugar. Para dar conta do tema e da pesquisa realizada, o ideal teria sido montar mais do que uma exposição.