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maio 20, 2004
Mídia tática X mídia estática
Emeios enviado por stewarthome@bol.com.br para o Canal Contemporâneo: o primeiro, no dia 17 de maio de 2004 sobre matéria publicada no Estado de São Paulo referente ao mesmo dia, e o segundo, no dia 18 de maio sobre matéria da coluna Informe de Arte de Cleusa Maria no Jornal do Brasil, com cópia para a referida colunista.
A semana começa especialmente fria para as artes visuais nos jornais. Tudo bem que a edição de segunda-feira seja feita no fim de semana e também que seja o dia mais morno para as artes, uma vez que a maioria dos museus e centros culturais encontra-se fechada (e que dificilmente se publique um texto inventivo desvinculado da agenda de vernissages), mas o que dizer de uma matéria de página inteira com o título infame "Van Gogh - o lado obscuro do rei dos girassóis"? O lado obscuro de Van Gogh? Puxa, isso sim é que é notícia! E rei dos girassóis??????? Faça-me o favor!
Os desserviços se encadeiam: a "linha fina", que supostamente serve para sintetizar o conteúdo do texto, informa: "o trágico corte da orelha, com o tempo, ganhou um tom divertido que suavizou a biografia do artista atormentado";
O "olho", que, segundo consta nos manuais de jornalismo, deve destacar uma passagem surpreendente do artigo, revela: "gostava de cadeiras, cebolas, botas velhas";vertido ao português do jornal britânico "the sunday times", o artigo não mereceu por parte do jornal qualquer contextualização sobre o autor, waldemar januszczak, ou sobre a relevância de sua publicação: fica parecendo que está ali para preencher um vazio, por falta de assunto? Por falta de cabeças pensantes para produzir (ou ao menos selecionar) conteúdos para o caderno? Não se sabe.
Quem, apesar de todo o desleixo por parte do jornal, tem o incompreensível impulso de ler o texto de Januszczak fica sabendo que ele é um documentarista que realizou uma série para TV sobre Van Gogh e que descobriu, de fato, novidades sobre o "rei dos girassóis". as cartas a Theo que circulam ad nauseum pelo mundo foram retalhadas pela família e, somente agora, por iniciativa do Museu Van Gogh serão publicadas com maior integridade. Os girassóis eram um tributo a Gauguin; Vincent era, na verdade, "o rei das heras", obcecado pela sujeira dos ninhos secretos de
amor; a amputação da orelha (oferecida por Vincent a uma prostituta) foi uma apropriação de um hábito das arenas perto de arles (cortar a orelha do touro e jogá-la a uma dama quando o toureiro luta especialmente bem).
Aliás, Januszczak é autor do controverso documentário que no início de 2003 causou celeuma na inglaterra ao mostrar a performance "eating people", do artista chinês Zhu Yu, em que este ingere um bebê natimorto. Na ocasião, Januszczak defendeu a exibição da performance dizendo que seu filme tentava entender o motivo de a china produzir este tipo de arte.
Bem, agora a coisa está ficando interessante, certo? Eu estou aqui fazendo o trabalho que algum editor teve preguiça de fazer para responder à convocação do Canal Contemporâneo para "atiçar a brasa". Mídia tática contra a mídia estática! Van Gogh em plena segunda-feira? Ok, mas que tal com o título: "as cartas censuradas de Van Gogh", "as heras e a obsessão sexual, segundo Van Gogh" ou qualquer coisa do gênero? Que tal com a linha fina: documentarista britânico desvenda quadros desconhecidos e propõe releitura de obras consagradas do pintor? Que tal com o olho: "em auvers, um jovem casal local afirmou tê-lo visto se masturbando na floresta"?
Maurizio Cattelan é um dos mais importantes artistas da contemporaneidade. é de uma coerência e uma seriedade que encontra pouca equivalência no mundo das artes. seus trabalhos promovem a acareação entre valores adquiridos e posturas renovadoras, entre versões pasteurizadas da história e releituras de ideologia libertária. na obra "século 20", também conhecida pelo título "a balada de trotsky", por exemplo, um cavalo taxidermizado que pende do teto do espaço expositivo, o artista consegue sintetizar, por meio de uma imagem poderosíssima, a passagem de um tempo a outro, além de dialogar criticamente com toda uma tradição pictórica e escultórica.
No limite entre realidade e ficção, os trabalhos de Maurizio Cattelan simulam e subverte as regras da cultura e da sociedade em um jogo contínuo de insubordinação. Sucateando toda uma trajetória e um conhecimento construídos em torno do nome do artista, o "informe de arte" (!!!!) do Jornal do Brasil, assinado pela colunista (????) Cleusa Maria, brinda-nos hoje com a pérola "para provocar". Trata-se de uma nota com esse brilhante título que, de maneira conservadora e atestando completa ignorância sobre a estatura de Cattelan, "analisa" a destruição de uma obra pública que o artista realizou este mês na cidade de Milão commissionada pela fundação Nicola Trussardi e concebida para a "Piazza XXIV Maggio", em Milão, "um ambiente monumental nos cruzamentos da história", em que cattelan "faz referência às campanhas napoleônicas e à primeira e segunda guerras mundiais, [a obra] encena o epílogo de um conto de fadas macabro, um antigo ritual popular e uma nova lenda urbana", conforme texto no site da Fundação. Cattelan escolheu a árvore mais antiga da cidade para pendurar três esculturas hiper-realistas representando crianças que, apesar de amarradas pelo pescoço, vigiam com olhos atentos o que se passa ao redor.
Para Cleusa Maria, "depois de chocar o público e indignar autoridades", a obra foi "desmontada" por um transeunte embuído da "tarefa". "Os bombeiros terminaram o serviço", explica a colunista de suposto conhecimento sobre arte contemporânea. Bem, vamos aos fatos: o prefeito de Milão, Gabriele Albertini, afirmou, na inauguração da peça tratar-se de "um bom exemplo de cultura anti anti-conformista"; a obra foi encomendada e chancelada pelo curador da instituição, Massimiliano Gioni. A inauguração, dia 5 de maio, foi badalada, gerando curiosidade e reflexão não apenas no público especializado como nas pessoas leigas que circulavam pela praça."É uma 'mise-en-scene' de uma fábula popular que captura e, ao mesmo tempo, remove as tensões e horrores de nosso presente. Maurizio Cattelan apresenta uma imagem de esperança, sugerindo que por último nós temos a capacidade de escapar de nosso destino, de nossas raízes, de nossas obsessões e pesadelos", escreveu um crítico. O que ocorreu foi que, alguns dias depois, um homem se sentiu tão ofendido que se julgou no direito de pegar depredar uma obra de arte pública. a reação causada foi tão apaixonada que o senhor franco de Bernardo, 42, foi até um lugar conseguir uma escada para poder atingir as esculturas. Depois de ter retirado duas delas, perdeu o equilíbrio e caiu, batendo a cabeça em um trilho, e acabou o dia em um hospital. considero a queda e as contusões mais do que merecidas.
A senhora Cleusa Maria, pasmem, continua e consegue, apesar das ínfimas onze linhas dedicadas ao assunto, cometer mais tolices em sua nota "para provocar" (só pode ser "para provocar" o leitor, penso, a esta altura do texto), afirmando, com ironia, que uma obra de Cattelan foi arrematada por dois milhões de dólares em leilão da Sotheby's [que, aliás, vem grafada de modo errado: "Sothby's" (sic)] recentemente. Trata-se da instalação "Século 20", que ela identifica apenas como "a balada de Trotsky", demonstrando que nunca ouvira falar da obra antes das notícias de agência anunciando a venda, e que descreve assim: "[o trabalho] é um cavalo empalhado, selado e suspenso do teto".
Azar do leitor, que fica achando que o trabalho é realmente só isso. e este é só mais um exemplo do desserviço que o jornalismo presta às artes visuais...
Oi Patrícia, gostei muito desses dois posts sobre o deserviço da mídia.
Só prá lembrar: há 2 semanas, por ocasião da inauguração do Bruce Nauman no CCBB, o Globo estampou em primeira página algo como "A exposiçào de Bruce Nauman traz ao Rio um tipo de arte ainda pouco conhecido por aqui: A Video-Arte"(!!).
É, pelo visto, os jornalistas não conhecem o mínimo da história recente da arte, que nos oferece video arte, mesmo no Rio, desde os anos 70...
Eu mandei uma carta pro Globo, protestando, mas acho que não foi publicada.
Abraços, d.
Posted by: daniela labra at agosto 1, 2005 12:43 AM