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julho 9, 2021
Confinamentos por Juliana Borges
Confinamentos
JULIANA BORGES
Ao pensar uma curadoria relacionando acervo audiovisual e prisão, muitas perguntas emergiram. Mas quais seriam, fundamentalmente, as pontes a interligar? Como discutir a dimensão do cárcere considerando a questão do encarceramento em massa no país e, ao mesmo tempo, ampliando as noções de confinamento a que estamos expostos?
A seleção de vídeos teve como partido expandir olhares sobre a prisão. Do ambiente do cárcere aos manicômios, passando pelas prisões do consumismo, pela prisão da alienação. Se por um tempo os conflitos ficavam submersos, vivemos um momento em que eles parecem saltar diante de nós. Como esses conflitos se dão? Quais são as violências que ora escondem, ora escancaram? Quais foram as tecnologias desenvolvidas para aprisionar corpos, identidades, ideias e até sonhos?
Uma coisa é certa: não é possível compreender as dimensões do cárcere sem discutir política criminal. E esta, importante afirmar, é fruto de processos econômicos, sociais e culturais. Ou seja, uma organização de princípios políticos que seleciona os bens e as ações que serão tutelados de forma penal, e determina como essa tutela será exercida. Sendo do âmbito político, é preciso compreender que há processos de disputa em torno dos caminhos percorridos na formulação de uma política criminal. Um Estado violento, que não provê nem impulsiona direitos, terá uma política criminal a serviço da desumanização e da manutenção de hierarquias e desigualdades.
A amplitude de uma política criminal pode ser aferida pelas taxas de presos e pelas instituições que a atendem: a magnitude do sistema penitenciário, da própria justiça penal, e até mesmo da polícia que, mesmo não sendo vinculada ao sistema de justiça, estabelece relação direta com ele, posto que é a responsável pela “captura da clientela” sobre a qual a justiça criminal irá se debruçar.
Essa magnitude traz consigo diversas implicações. Se pensarmos no contingente de população prisional – o Brasil é terceiro país que mais encarcera no mundo –, e nos atentarmos às motivações dessas prisões, algumas perguntas tornam-se necessárias. O que é um crime, e como defini-lo? Quais condutas podem ser criminalizadas? Por que determinadas condutas são consideradas crime e outras, não? Atos passíveis de criminalização são como recursos ilimitados: partem de um conceito funcional e relacional, totalmente aberto e modular.
Ao passear por essa seleção de vídeos, como pensar nas condutas criminalizadas e nos corpos marcados por essa criminalização? O que configura um sujeito suspeito e outro, cidadão de bem? Por que em algumas sociedades viver uma sexualidade que não seja a normatizada é conduta criminosa, enquanto em outras a sexualidade é um exercício absolutamente comum do ser? Por que determinadas substâncias que modificam nossa percepção são consideradas lícitas e outras, que fazem o mesmo, ilícitas? Por que determinados mercados são legais e outros ilegais? Quem lucra com a ilegalidade?
A organização do poder penal contribui para a organização do exercício do poder. E seria ingênuo acreditar que a criminalização de determinadas condutas é arbitrária. O poder penal é formalizado na seleção de grupos a serem submetidos a coação, imposição de pena, marginalização, aprisionamento e exclusão. Esses processos são sustentados pela constituição de imagens de controle desses grupos, ligadas a uma gramática da negatividade que incutirá na sociedade o senso comum de vê-los como inimigos penais que precisam ser controlados, reprimidos, isolados e extintos.
O medo que é produzido com a mobilização do imaginário em torno desses inimigos penais faz com que o interesse no crime suprima outros temas relevantes. Assim, o combate à criminalidade ganha cada vez mais os holofotes, ao passo que a promoção de direitos perde terreno na arena política. Esse medo alimenta a demanda por medidas cada vez mais severas e punitivas, de mais controle e exclusão. Assim, a política criminal precisa ser discutida sob o viés da teia estrutural que o racismo compõe na sociedade brasileira. Quem serão considerados as classes perigosas?
Sendo o racismo um mito fundacional do Brasil, assim como a violência, a política criminal tem papel especial na manutenção de desigualdades e na reprodução de hierarquias raciais. E esse é um aspecto trabalhado pelos vídeos escolhidos. Não há como falar em racismo e em marginalização da população negra no país sem falar de cárcere. Portanto, não há como discutir outras possibilidades de sociedade sem que desmistifiquemos as prisões, sem que nos questionemos sobre a ineficácia de espaços que, em verdade, servem para precarizar e excluir. É preciso pensar os sistemas punitivos como espelhos da sociedade, porque eles demonstram, em seus indicadores e funcionamento, qual tipo de sociedade estamos vendo e vivendo. E para que esse questionamento ocorra, precisamos romper os silêncios existentes em torno do cárcere e avançar em direção às variadas e refinadas formas de aprisionamento da contemporaneidade.
Esses vídeos foram selecionados buscando demarcar um profundo questionamento de lógicas punitivas alimentadas pelo racismo. Mas, também, colocando em tensão as variáveis possíveis de confinamento. Em tempos pandêmicos, a experiência parece mais presente. Mas estamos mesmo refletindo sobre isso, no sentido de alargar a compreensão de que nossa prisão espelha a prisão do outro? Ou estamos nos sentindo confortáveis no desconforto da situação, seguindo em frente sem imaginar possibilidades outras, sem buscar reinventar o possível e desafiar o impossível? Na lógica hiperindividualizante do vírus, que nos transforma em armas biológicas que podem colocar em risco a nós mesmos e àqueles que mais amamos, quais confinamentos estamos aceitando por empatia – e esses são necessários e passageiros – e a quais estamos simplesmente nos acomodando, pelas difíceis redes e conexões reflexivas que nos impõem, impelindo-nos a nos movimentar para modificar o jogo?
Não se trata, portanto, de uma mostra que apresenta respostas. Ela propõe um ponto de reflexão e inflexão para superarmos as fronteiras e os muros das verdades relativas, construídas por interesses alheios aos direitos inalienáveis que nos são usurpados cotidianamente. Uma mostra que nos convida a nos olhar no espelho, a romper silêncios e preconceitos, a superar confortos e a ser ponto fora do lugar. Afinal, em qual prisão você está?
Juliana Borges é escritora e estudiosa de política criminal. É consultora do Núcleo de Enfrentamento, Monitoramento e Memória de Combate à Violência da OAB-SP e conselheira da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e da Plataforma Brasileira de Política de Drogas. Autora dos livros Encarceramento em massa (Jandaíra, 2019) e Prisões: espelhos de nós (Todavia, 2020), é colunista da revista Claudia e da plataforma Bemglô.