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junho 16, 2021

Nigredo por Pedro Cesarino

Nigredo
por Pedro Cesarino

Thiago Rocha Pitta - Nigredo, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 19/06/2021 a 14/08/2021

“É triste e sem remédio a sorte dos mortais…/ Esboça-se a ventura em traços imprecisos,/ os males chegam logo, como esponja úmida, / e num instante apagam para sempre o quadro” [1]. Com essas palavras, a profetisa Cassandra vaticinava o assassinato de Agamênon e a destruição de sua casa real, maculada por crimes pretéritos. A dinâmica trágica, tão bem explicitada pela voz dos profetas, implica na negação da herança criminosa por sujeitos que se imaginam senhores de seus atos, embora não passem de joguetes de forças maiores que, cedo ou tarde, cobrarão pelo dolo causado. Thiago Rocha Pitta prenuncia em suas obras o avanço da catástrofe que, antes de 2020, já mostrava os seus sinais. Na noite de 2 de setembro de 2018, o incêndio do Museu Nacional surgia como aviso sinistro do que estaria por vir nos atuais tempos de pandemias virais e fascistas. Embora recente, o incêndio é resultante de outros tantos crimes acumulados (e jamais devidamente expiados) desde que as naus portuguesas aportaram por aqui. É esse acúmulo que parece impor a Thiago uma inflexão histórica nas obras aqui reunidas, que elaboram, contra o pano de fundo do não humano já explorado pelo artista em outros trabalhos, os impactos do cenário de terra arrasada em que vivemos.

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O apodrecimento da terra e de seus corpos, consequência direta do saque colonial, implica na passagem pela via obscura, cujo portal é iluminado pela falsa luz de um sol refletido – a luz lunar. Encontramo-nos diante dos umbrais, nas fronteiras tornadas indiscerníveis pela coloração crepuscular que dissolve os corpos, toma de assalto a respiração, empurra nossos ânimos para as profundezas de uma cova que julgávamos não ter escolhido. Saturno, com sua densidade melancólica, é quem preside o nigredo, a putrefação e a morte envolvidas nesta primeira etapa alquímica. Sua contrapartida é a imagem de uma deusa da água que emerge do mar, igualmente noturno, mas redimido pelo maravilhoso. O céu que a recebe e que é seu próprio corpo, contudo, não é aquele infestado pelas chamas que tragam dos subterrâneos o carbono antigo, permanentemente transformado em lucro – essa suprema perversão alquímica de que somos prisioneiros. A bem da verdade, a redenção pelo maravilhoso não será possível enquanto o crime não for expiado. Lembremo-nos: no dia 2 de fevereiro, cultua-se na Bahia a única grande festa popular brasileira integralmente dedicada a uma deusa-mãe, e cujo nome permanece sendo de origem africana: Yemanjá.

As séries melancólicas de Thiago Rocha Pitta, se bem que prenunciem os crimes e seus efeitos deletérios sobre um tempo cada vez mais incerto, o fazem a partir do que excede e limita o humano. Eclipses são avisos de tempos sombrios, dir-se-ia, mas poderiam muito bem não ser nada disso. Afinal, porque tais fenômenos precisariam figurar como imagens de nossas relações internas? Por que deveriam de alguma maneira significar? Eclipses são pura exterioridade, a indicar os paradoxos de um pensamento que não consegue sair de si mesmo. Os presságios que eles supostamente transportam poderiam ser apenas projeções de um sujeito desesperado sobre aquilo que lhe é completamente alheio, ou então mensagens realmente emitidas por fenômenos que nos escapam. É nessa ambiguidade que reside a sua potência, pois não se pode decidir se os augúrios são expectativas nossas ou se, ao contrário, são impostos de fora para designar nossa infeliz condição. Deve haver, portanto, alguma correlação entre as duas posições para que o sentido se torne possível, ou então estamos afundados em um horizonte de fenômenos indiferentes que não tardarão por apagar os traços imprecisos de nossas angústias. Uma porta não estaria aberta ou fechada se o fogo já tivesse corroído o seu batente. Conquanto insistimos em ser essa estrutura de contenção, não temos como escolher entre as duas alternativas.

Um filósofo dizia que apenas a contingência absoluta, com a qual o tempo coincide, é que designa o possível, essa dimensão que em muito escapa ao que é pensável. Ora, aquilo que extrapola o pensamento é, também, o que transborda o humano, mesmo quando este imagina ser capaz de controlar o que o excede. O saque, derivado de tal ilusão do controle, termina por conduzir à catástrofe, uma espécie de vingança do possível com relação às pretensões do pensamento. A extração do carbono pelas refinarias se quer interminável, feito incêndio perpétuo a corroer o céu da Baía de Guanabara. Mas o tempo a dissolverá, junto com os desfeitos que ela propiciou ao criar este mundo possível que nos habita. Um meteorito que antes caiu sobre essa terra agora dela se afasta – por desgosto ou por indiferença, como saber? Se tal hesitação fundamenta dilemas filosóficos que parecem aqui encontrar uma potente expressão estética, ela não serviria entretanto para desviar o foco do que, mais especificamente, nos compete: não esquecer que a justiça é o lume em meio ao céu nublado pelos incêndios.

1 Ésquilo, Oréstia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990. Tradução de Mário da Gama Kury.


Nigredo
by Pedro Cesarino

Thiago Rocha Pitta - Nigredo, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 19/06/2021 til 14/08/2021

“The fortune of the mortals is sad and without remedy…/ The venture is sketched out in imprecise lines,/ the misfortunes soon arrive, like a wet sponge,/ and in an instant they irreversibly erase the blackboard.” [1] With these words, the prophetess Cassandra foresaw the murder of Agamemnon and the destruction of his royal castle, stained by past crimes. The tragic dynamic, so well explained by the voice of the prophets, spells the annulment of the criminal inheritance by subjects who imagine they are the lords of their actions, even when they are nothing but the playthings of higher powers, which will, sooner or later, settle accounts for the swindling. In his works, Thiago Rocha Pitta foretells the advance of the catastrophe which, before 2020, was already showing its signs. On the night of September 2, 2018, the fire in the Museu Nacional arose like a sinister warning of what was to come in the times of viral and fascist pandemics. Although recent, the fire was a result of many accumulated (and never duly expiated) crimes since the first Portuguese ships arrived at these shores. It is this accumulation that seems to place Thiago at a historical turning point in the works featured here, which express, against the backdrop of the nonhuman previously explored by the artist in other works, the impacts of the scenario of the ruined land in which we live.

The putrefaction of the land and of its bodies, a direct consequence of the colonial pillaging, implies the passage along the dark path, whose portal is illuminated by the false light of a reflected sun – the lunar light. We find ourselves before the shadows, in the realms made indiscernible by the crepuscular coloration that dissolves the bodies, takes our breath away, pushes our spirits into the depths of a grave we never thought we had chosen. Saturn, with his melancholic density, is who presides over the nigredo, the putrefaction and the death involved in this first alchemical stage. His counterpart is the image of a goddess of the water that emerges from the sea, also nocturnal, but redeemed by the marvelous. The sky that receives her and which is her own body, however, is not the one infested by the flames that devour the ancient carbon from underground, permanently transformed into profit – that supreme alchemical perversion of which we are prisoners. The actual good thing, the redemption by the marvelous, will not be possible while the crime is not expiated. We must remember the festival held on February 2 in Bahia – the only large popular Brazilian festival wholly dedicated to a goddess-mother, whose name continues to be from an African origin: Yemanjá.

The melancholic series by Thiago Rocha Pitta, while they foretell the crimes and their deleterious effects on an increasingly uncertain time, do this on the basis of what surpasses and limits the human. Eclipses are warnings about shadowy times, one could say, but they also might not have anything to do with this. After all, why do these phenomena need to figure as images of our inner relationships? Why should they somehow signify? Eclipses are a pure exteriority, indicating the paradoxes of a thinking that does not manage to get outside of itself. The predictions that they supposedly convey could be mere projections of a desperate subject concerning what is completely outside and apart from him, or they could be messages actually emitted by phenomena that escape from us. It is in this ambiguity that their power lies, as it cannot be decided whether the auguries are our own expectations or if, rather, they are imposed from the outside to designate our unfortunate condition. There should be, therefore, some correlation between the two positions in order for the meaning to become possible, or else we are then submerged in a horizon of indifferent phenomena that will soon erase the imprecise lines of our anxieties. A door would be neither opened nor closed if the fire has already consumed its frame. Insofar as we insist on being that structure of containment, we have no way of choosing between the two alternatives.

A philosopher once said that only the absolute contingency, with which time coincides, is what designates the realm of possibility, that dimension which lies utterly beyond the conceivable. That which lies outside our ability to conceive it is, also, what inundates the human, even when that human imagines that he is capable of controlling what is beyond him. The pillaging, an outcome of that illusion of control, winds up leading to catastrophe, a sort of revenge of the possible in relation to the pretensions of thought. The extraction of coal by the refineries would like to go on forever, like a perpetual conflagration consuming the sky over Guanabara Bay. But time will dissolve it, together with the faults that it ushered in when it created this possible world that inhabits us. A meteorite which previously fell on this earth is now moving away from it – whether out of disgust, or indifference, how is one to know? If that hesitation underlies philosophical dilemmas which seem to find here a powerful aesthetic expression, it will not, however, serve to shift the focus of what, more specifically, we should be looking at: to not forget that justice is the light in the sky clouded over by the fires.

1 Ésquilo, Oréstia. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990. Translation into Portuguese from the original Greek by Mário da Gama Kury.

Posted by Patricia Canetti at 1:04 PM

junho 7, 2021

Acervo em movimento por Francisco Dalcol

O Acervo Artístico do MARGS guarda mais de 5 mil obras de arte do século 19 à atualidade, de artistas brasileiros e estrangeiros. Abrange, assim, desde produções regidas pelos modelos acadêmicos europeus, passando pelas rupturas das manifestações dos modernismos em diferentes geografias, até chegar à pluralidade dos desdobramentos operados pelas práticas artísticas contemporâneas.

Acervo em movimento é um programa expositivo concebido para trazer a público esse rico e diversificado acervo, por meio de uma exposição de longa duração que se vale da estratégia de rotatividade do que está exposto.

Assim, obras entram e saem da exposição com o objetivo de manter uma renovação frequente e constante do conjunto em exibição.

As alterações se dão segundo escolhas propostas pela curadoria do Museu e em colaboração com as equipes, que exercitam de modo compartilhado e transversal um mesmo método de organização de uma mostra dedicada a exibir o acervo.

Para que o público acompanhe a dinâmica de substituições das obras, bem como as configurações assumidas pela exposição em suas diferentes fases e momentos, a data de entrada de cada trabalho consta informada em sua etiqueta.

Fundamentado por noções de dispositivo, montagem e display, o modelo de exposição recombinante adotado por “Acervo em movimento” lança mão de um processo curatorial de caráter experimental.

Cada mudança — em parte ou no todo da mostra — opera o que passamos a denominar como “nova virada da exposição”, sendo sempre concebida como uma resposta à configuração anterior, e por vezes até às outras exposições ora em exibição, estabelecendo diálogos com as demais salas e galerias do Museu.

Com a estratégia de rotatividade das obras expostas, as substituições geram recombinações que procuram propor novos diálogos e chaves de compreensão, oferecendo ao público uma exposição sempre viva e dinâmica, que aposta na experiência mais do que nos discursos, e na descoberta mais do que nas verdades.

O interesse é sondar as provisórias relações de vizinhança estabelecidas entre as obras, assim como as tensões das partes com o todo, propondo desdobramentos que intensificam e multiplicam as formas de ver, sentir e reagir.

Parte-se do entendimento de que obras de arte não “falam” apenas por si mesmas, uma vez que seus sentidos são também efeito do que podem produzir no interior dos territórios narrativos e discursivos que uma exposição é capaz de colocar em causa.

Assim, esta exposição pergunta ao visitante: quais relações podem ser feitas entre objetos de diferentes origens, períodos e linguagens?

O convite é que o público constitua os seus caminhos interpretativos, estabelecendo os seus próprios encontros, relações e conexões, os quais sempre envolvem o que já sabemos, a expectativa do que ainda não vislumbramos e o estranhamento transformador da experiência inesperada e arrebatadora.

Ao abrir mão de roteiros predeterminados por categorias e convenções como técnica e estilo, assim como por recortes geográficos e geracionais de procedência e pertencimento, “Acervo em movimento” se alinha às discussões que reavaliam o processo histórico da modernidade artística e sua noção de desenvolvimento linear, cronológico, evolutivo e sucessivo.

Assim, procura-se oferecer um exame crítico de hierarquias, assimetrias e leituras consensuais que reiterariam a construção de um cânone entre as obras do acervo do MARGS, cujo caráter excludente é aqui reavaliado à luz das questões contemporâneas, em favor da exigência de maior compromisso com pluralidade, diversidade, inclusão, representatividade e equidade.

Em sua proposição, “Acervo em movimento” busca mobilizar questões prementes que orientam a visão curatorial e linha de atuação da direção artística do Museu, como a necessidade de se descolonizar narrativas eurocêntricas, dessacralizar a retórica autoritária dos discursos canônicos, tensionar hierarquias preestabelecidas que reiteram os relatos dominantes, e explicitar as presenças e ausências em acervos e exposições.

Como um dos programas expositivos implementados pela atual gestão já em seu início em 2019, “Acervo em movimento” é um projeto de caráter permanente que integra uma política institucional de exibição do acervo do MARGS instituída com o objetivo de explorar estratégias de sua abordagem por meio de processos curatoriais voltados à experimentação de modelos expositivos.

Francisco Dalcol
Diretor-curador do MARGS
Doutor em Teoria, Crítica e História da Arte

Posted by Patricia Canetti at 8:57 AM

junho 5, 2021

Marcos Roberto: Um só corpo por Fernanda Lopes

São muitos os corpos que habitam a produção de Marcos Roberto. Em suas placas de trânsito e pratos de metal esmaltado, vemos mulheres, homens e crianças, em parte em situação de vulnerabilidade ou isolamento, mas também, em alguns casos, em posição de resistência e força. Mais do que simples retratos, essas pinturas, realizadas entre 2019 e 2021, parecem mais interessadas em discutir e reivindicar a presença desses corpos – não só na história da arte, mas também fora dela. Há no que chamamos de história (tanto aquela mais distante no tempo quanto essa que vemos acontecer todo dia, no nosso tempo), uma trama de relações que a estruturam e, entre elas, estão as relações de poder. Na história da arte é possível pensar nessas relações se nos perguntarmos, ao longo dos séculos de produção artística, por exemplo, quem são aqueles que vemos retratados e como estão retratados, tendo suas imagens eternizadas no tempo.

Na série Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito, Marcos Roberto parte de um diálogo com a escritora e poetiza Carolina Maria de Jesus. “A cor da fome é amarela”, escreveu ela, explicando que quando o limite da fome passa do insuportável, as coisas do mundo ficam em um tom só, amarelado. Aqui, os pratos de metal esmaltado têm seu fundo pintado de amarelo. Sobre ele, vemos corpos fragilizados, em situação de vulnerabilidade, alguns pedindo ajuda, outros mais apáticos. Há uma atmosfera de isolamento nessas imagens, não só pelas situações às quais elas nos remetem, mas também porque essas cenas não trazem um cenário. É nesse fundo amarelo que tudo acontece. E essa é uma escolha de Marcos Roberto: evidenciar o prato como parte do trabalho e também a presença dessas pessoas e das situações em que se encontram – normalmente camufladas pelo o cenário onde estão e pelo o que acontece ao redor delas.

Na série Cotidiano, as placas de trânsito se estruturam a partir do mesmo princípio. Os corpos que vemos parecem flutuar, contrastando com a superfície das placas e suas orientações diretas, enfatizando a atmosfera solitária. É possível perceber que as indicações de quilometragem permitida se remetem sempre a baixas velocidades: 10km, 20km, 30km, ou mesmo PARE. Durante o período que se mudou para São Paulo para estudar arte, Marcos morava no centro da cidade e caminhava muito pelas redondezas. Lá, além das memórias desses corpos e cenas, ficou também a percepção que as placas de trânsito sempre traziam indicações de velocidades baixas para a circulação dos carros. Essa indicação de desaceleração, se pensada para os nossos corpos, entre outras possibilidades, é quase como um lembrete para olharmos em volta e vermos o que a velocidade do fluxo urbano acaba tornando invisível.

Em obras mais recentes dessa série, outros corpos começam a povoar essas placas – não só circulares, mas também retangulares, indicando originalmente caminhos e direções pelas ruas da cidade. Eles deixam de se apresentar tão vulneráveis, para assumir uma posição de resistência e força, olhando os espectadores direto nos olhos. Diferente do que vemos nos Operários (1933) de Tarsila do Amaral (uma referência para esses trabalhos) há uma atitude ativa nessas figuras, com uma reivindicação de presença e visibilidade coletiva, com homens e mulheres colocados lado a lado. Misturados, mas individualizados.

As placas de trânsito e pratos de metal esmaltado também podem ser lidos na obra de Marcos como corpos em si. Eles não são tratados pelo artista como simples suportes da pintura. Ao contrário: mesmo quando completamente cobertos pela tinta, se mantém presentes e são incorporados à obra como material e também matéria de trabalhos. Utensílios de esmalte começam a ser pesquisados ainda no século 18, na Alemanha, em pesquisas que queria encontrar um revestimento para louças que fosse uma alternativa econômica, prática e durável. No Brasil, apesar da qualidade, os utensílios de ágata acabaram sendo adotados inicialmente pela população de menor poder aquisitivo. Na obra de Marcos Roberto, os pratos incorporados são usados, trazem em sua superfície as marcas da sua utilização até aquele momento. Essas marcas são como as que nossos corpos também acumulam com a passagem do tempo – que impõe não só um desgaste natural, como as rugas e manchas, mas também cicatrizes deixadas pelas nossas experiências. Aqui, é como se fossem personificados, como se espelhassem, remetessem aos corpos que os utilizam.

O mesmo acontece com as placas de trânsito. Todas as que vemos nas pinturas de Marcos foram usadas pelo poder público. Instaladas nas ruas como ferramenta para controlar a velocidade e fluxo de carros e transportes públicos, ficaram expostas ao tempo e ao espaço urbano. Essa “experiência” ficou marcada em cada uma delas, de maneira individual – assim como nos pratos. Cada placa tem uma história gravada em sua superfície, com amassados e desgastes da tinta por exemplo. Assim como os pratos, apesar de produzidas industrialmente, se individualizam em suas histórias e experiências no mundo real. Esses rastros de memória são incorporados nas pinturas. A bala perdida sempre sobe a favela (2021), por exemplo, reúne quatro placas retangulares e seu ponto de partida foi literalmente um ponto, que vemos na parte superior da imagem: uma marca real de bala, incorporada à cena construída pelo artista. Assim como os pratos, as placas também revelam questões sócio-político-econômicas presentes nas cidades. Ou somos capazes de pensar que uma placa marcada por tiros poderia ser encontrada na zona nobre da cidade? Como evidencia o estudo publicado em 2020 pela Rede de Observatórios da Segurança, logo em seu título, “A Cor da Violência Policial: a Bala Não Erra o Alvo”.

Mas há ainda outros corpos que habitam essas placas, mesmo antes delas chegarem às ruas: os dos operários das fábricas que as produzem. Corpos que trazem na pele as marcas do sistema de produção e das jornadas de trabalho, especialmente dos acidentes que acabam deixando muitas cicatrizes ao longo do tempo. E Marcos conhece bem essas marcas. As cicatrizes que se espalham pelo corpo do artista são em grande parte memória dos anos que passou trabalhando ele mesmo como como auxiliar de produção por mais de dois anos nessas fábricas, produzindo essas placas.

E foi justamente interessado em trazer para sua produção esse universo que o rodeava que fez com Marcos adotasse em sua produção artística as placas. E também as cenas e personagens – e aqui me refiro a personagens e não pessoas porque as figuras que vemos povoar suas pinturas não são retratos. Não são referências a conhecidos e sim corpos inventados, apesar de reais. Para construir essas figuras Marcos fotografa pessoas na rua, com posições e expressões que o interessam, e une essas referências às suas memórias e também, muitas vezes, a imagens de seu próprio corpo. Tudo isso é usado como referência para as construções que vemos. Assim, não é a real existência dessas figuras que confere realidade à essas imagens e sim a memória e a vivência de Marcos Roberto sobre essa realidade. Nesse sentido, é como se toda a exposição que vemos aqui fosse na verdade como um grande autorretrato. Como se todos os corpos presentes na galeria fossem, na verdade, Um só corpo.

Fernanda Lopes
curadora

Posted by Patricia Canetti at 10:55 AM

junho 3, 2021

Bruno Miguel: A Beautiful Image por Ulisses Carrilho

Smile at least / You can’t say no to the Beauty and the Beast
David Bowie

Palavras ou imagens são sempre provocações. O inconsciente não cessa de se inscrever: o fabulado e o imaginado se fazem presentes a cada salto dado pelo sujeito. No fluxo contrário, o real não se deixa inscrever – esgueira-se, escapa e acontece no mundo. Faz-se perceber na vida da matéria, apresenta-se como fenômeno sentido. Na pintura de Bruno Miguel, entre os códigos dos quais lança mão e as fartas doses de cor, em tinta e objetos, sobre a superfície de suas pinturas, há também uma dupla ocorrência: de maneira flagrante, percebemos um artista que apresenta hipóteses à história da pintura e, concomitantemente, a um regime das imagens que não acontece apenas no entorno do objeto de arte, mas no campo ampliado das visualidades. O título da mostra, tomado por empréstimo da inscrição na pintura que abre a exposição, deixa essa relação evidente: falemos sobre a imagem.

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Muito embora o artista perambule por referências biográficas em seu trabalho, essa vontade não é memorial, não resulta do desejo de versar sobre um mundo particular do indivíduo. Parece lembrar que a matéria primeira da arte se constitui justamente por um salto entre uma imagem que é criada e outra que é percebida. Bruno Miguel é professor na Escola de Artes Visuais do Parque Lage há mais de uma década e é flagrante o seu interesse em elaborar uma pesquisa poética que investiga a formação de um certo olhar: o artista busca apurar uma sensibilidade em relação às imagens que já estão no mundo. Em outra oportunidade, seria interessante apurar essa hipótese à luz de sua série “Marina Ajuda Bruno”, que merece atenção e oportunidade de exposição, pois levanta uma discussão urgente que reajusta não apenas a ideia de função na arte, mas também a problemática noção da qualidade. Será que, frente a uma sociedade corrompida pelo excesso, pela saturação, pelo espetáculo e pela excludente e elitista ideia de que haveria, a priori, um “bom gosto”, as visualidades não apuradas pelo sistema artístico mereceriam menor oportunidade de investigação?

No discurso do artista, nota-se insistentemente ganas de versar sobre um mundo externo a ele: sobre imagens que o circundam, imagens de objetos que coleciona, mas que estão também impregnadas no seu corpo. Tais imagens não são convocadas pelo artista por um simples interesse de representação das mesmas no campo pictórico. Bruno Miguel explora, por meio da pintura, as imagens de um mundo fraturado pela desintegração; acelerado pelo entretenimento; enganado pela promessa da globalização.

Muitos dos objetos impregnados nas camadas de tinta sobre tela ou nas resinas que aludem às diferentes configurações de plásticos-bolhas são objetos de consumo: patches comprados em larga quantidade, indiscriminadamente, em plataformas de compra na Internet. De origem militar, usados desde os anos 1800 na Inglaterra, para fins bélicos, os patches começaram a se popularizar na década de 1930, como forma de identificar exércitos e patentes ­– questões da ordem de pertencimento. No final dos anos 1950 e nos primeiros anos da década de 1960, foram adotados por “adolescentes rebeldes” na baila do movimento MOD, que teve origem em Londres, na Inglaterra. O símbolo usado pelo movimento, um alvo, é originário do símbolo usado nos aviões da RAF, braço aéreo das forças armadas do Reino Unido, durante a Segunda Guerra Mundial. E foi assim que eles foram introduzidos na indumentária do rock’n’roll, onde se popularizaram na cultura popular. Rapidamente os patches começaram a ser veículos para expor ideias, posição política e amor por bandas. Os pequenos objetos são espécies de escudos que operam culturalmente, gerando pertencimento e denotando ou confrontando identificações. Tais emblemas são partes fundamentais dos trabalhos que vemos na mostra.

Em “Against Interpretation”, livro de Susan Sontag, no seu ensaio “One Culture and the New Sensibility”, encontro linhas em ricochete à profusão dos tais caminhos concomitantes que dão corpo às pinturas de Bruno Miguel. A arte é compreendida como um instrumento que modifica nossa consciência e organiza novos modos de sensibilidade. Viveríamos, segundo a autora, uma asfixiante pressão pela interpretação, que aniquila nossa sensibilidade a partir de uma visão causal, lógica, reacionária e interpretativa do mundo. Tal ideia cientificista, segundo algumas das hipóteses de Sontag, invadiram o campo artístico-literário na modernidade. Como resistir à lógica e confiar naquilo que sente o indivíduo perante um estímulo? É possível superar a ideia de gosto e gozar com o que o corpo vê, percebe e sente?

Na série de pinturas que vemos, o artista oferece, em telas, campos cromáticos repletos de referências a um mundo que, apesar de não ser externo à arte, é frequentemente subestimado por artistas, em nome de uma sofisticação e de um apuro intelectual. Com sorte, a pintura de Bruno Miguel insubordinadamente resiste a essa ideia, instaurando um campo onde é possível elaborar outras hipóteses, outrora já afirmadas pelos teóricos da cultura: uma ideia de cultura mais generosa, encharcada de complexidade, pouco binária. As várias manifestações da cor e da forma eclodem na tela sem a pretensão de confirmar a tradição, mas de atualizar os problemas nela elaborados. Suas estratégias artísticas, no entanto, também não desconfiam da pintura. Ao contrário disso, o artista ostensivamente confia nesse procedimento.

Não à toa, este texto começa pela inscrição e pela irrupção daquilo que não se deixa inscrever. Nas inscrições pintadas pelo artista, ele constitui imagens. As palavras apresentam-se como elementos visuais que integram, de maneira fundamental, a composição dos trabalhos. Sontag, nos anos 1960, colaborou para a compreensão de que a arte produzida naquele momento valia-se de elementos produzidos pela sociedade de consumo menos por um simples interesse visual, mas sobretudo para criar a oportunidade de que nós, o público, possamos reconfigurar nossos próprios critérios preconcebidos a respeito do que pode ou não ser considerado arte. Não há outro modo de terminar este texto: mas, afinal, o que é a beautiful image?

Ulisses Carrilho


Smile at least / You can’t say no to the Beauty and the Beast
David Bowie

Words or images are always a taunt. The unconscious never ceases to self-inscribe: what’s fabled and imagined emerge at every leap taken by the individual. Conversely, reality doesn’t allow itself to be inscribed – it sneaks out, escapes and comes about in the world. It’s conspicuous in material life, turning up as a perceived phenomenon. Among the tokens employed by Bruno Miguel in his paintings and the abundance of color, paint and objects on the surface of his canvases, there’s also a double incidence: we flagrantly recognize an artist who presents hypotheses to the history of painting and, at the same time, an image regimen that doesn’t just develop around the art object, but on the expanded field of visualities. Borrowed from the inscription in the painting at the entrance of the exhibition, the title of the show, makes this connection clear: let’s talk about image.

Although in his work the artist roams around biographical references, there’s no memorial intention to it, since it doesn’t result from a desire of reflecting upon an individual’s private world. It seems to elicit the fact that the very primal matter of art is formed on a leap taken from a created image to a perceived one. Bruno Miguel has been a teacher at Escola de Artes Visuais do Parque Lage for over a decade, and his interest in creating a poetic research that explores the development of a certain view is notorious: the artist seeks to refine a sensibility towards ready-made images. On another occasion, it would be interesting to examine this hypothesis in view of his series “Marina Helps Bruno”, which deserves attention and an opportunity of being displayed, since it brings up an urgent issue that resets not only the idea of function in art, but also the controversial concept of quality. In the face of a society corrupted by overabundance, saturation, spectacle and by the exclusionary and elitist idea of a “good taste” a priori, would the visualities unrefined by the art system deserve the slightest chance of research?

The will to address a world that is foreign to him is remarkable in the artist’s rhetoric: the images that surround him, images of objects he collects, but are ingrained in his body. Such images are convened by the artist from a mere interest on representing them on pictorial grounds. Through painting, Bruno Miguel explores the images of a world damaged by disintegration; accelerated by entertainment; deceived by the promise of globalization.

Many of the objects embedded in the layers of paint on canvas and in the resins that allude to various designs of bubble wrap are consumer objects: patches indiscriminately bought in bulk from shopping platforms on the web. Used in the military for warfare purposes since the 1800s in England, patches started getting popular in the 1930s, as a way to identify armies and ranks – issues related to a sense of belonging. In the late 1950s and the early 1960s, they were taken on by “rebel teenagers” in the wake of the MOD scene, originated in London, England. The symbol chosen by the mods, a target, has its origins in a symbol used in RAF airplanes, air service branch of the UK armed forces in World War II. And, thus, they were included in the rock n’ roll dress code, through which they were disseminated into pop culture. Patches soon became a conduit for expressing ideas, political views and love for certain bands. These small objects are a sort of culturally operated crest, creating a sense of belonging and designating or confronting identifications. Such icons are a fundamental part of the works displayed in the show.

In Susan Sontag’s essay “One Culture and the New Sensibility”, from her book “Against Interpretation”, I find a reflection upon the profusion of these so-called simultaneous paths that give substance to Bruno Miguel’s paintings. Art is understood as an instrument for modifying consciousness and organizing new modes of sensibility. According to the author, we’d experience a suffocating pressure for interpretation that annihilates our sensibility through a causal, logical, reactionary and interpretative perspective of the world. This scientistic idea, according to some of Sontag’s hypotheses, has seized the artistic-literary field in modern times. How to resist logic and just trust what one feels when faced with stimulus? Is it possible get over the concept of taste and enjoy what is seen, perceived and felt by the body?

In the series of paintings here displayed, the artist shows color fields with plenty of references to a world which, although not foreign to art, is often underrated by artists on behalf of a so-called sophistication and intellectual refinement. Fortunately, Bruno Miguel’s painting insubordinately resist this idea, preparing the ground for devising other scenarios, previously suggested by culture theorists: the idea of a more generous culture, imbued with complexity, and barely binary. The many displays of color and shape erupt from the canvas with no intention of confirming tradition, but to update the issues formulated then. However, it’s not like his artistic strategies distrust painting. Instead, the artist ostensibly trusts this procedure.

No wonder this essay starts with the inscription and irruption of the uninscribable. With the inscriptions painted by the artist, he creates images. Words are displayed as visual elements which fundamentally integrate the works’ layout. In the 1960s, Sontag collaborated to the realization that art created back then employed elements produced by consumer society not as a result of visual interest, but mainly to create the opportunity for us viewers to reset our own preconceived criteria on what could and couldn’t be regarded as art. There’s no other way to end this essay: what is a beautiful image?

Ulisses Carrilho

Posted by Patricia Canetti at 11:34 AM

junho 2, 2021

Iberê e a moda por Gustavo Possamai

Do vestido em linha reta dos anos 1920 aos excessos dos anos 1980, a moda esteve presente em diversos trabalhos de Iberê Camargo. Em 1959, o artista produziu uma série de estudos de figurinos para o balé As Icamiabas. Com libreto de Circe Amado, música de Cláudio Santoro e coreografia de Harald Lander, a peça foi inspirada em um conjunto de lendas e documentos legados pelos primeiros conquistadores e cronistas que estiveram na selva amazônica e que tiveram contato com tribos de mulheres guerreiras.

Para a Rhodia, entre 1963 e 1964, Iberê criou estampas. A primeira, com flores tropicais para tecido crepnyl rhodianyl violáceo, ganhou forma em conjunto único desenhado por Dener Pamplona, um dos pioneiros da moda no Brasil, para a campanha de divulgação da marca. No ano seguinte, produziu uma estampa verde-azulada para tecido musselina. Os dois vestidos originais, apresentados nos desfiles-show, ainda não foram localizados. É também entre 1960 e 1964 que Iberê pintou um pequeno número de saias e vestidos para presentear amigos.

No final de 1985, ao observar as vitrines do centro de Porto Alegre, Iberê Camargo deu início a uma de suas séries mais emblemáticas, a dos Manequins. No ano seguinte, participou de um desfile de lançamento das coleções outono/inverno do Grupo de Moda Vanguarda Sul, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), com um óleo sobre tela de grandes dimensões (1,80 x 2,13 cm), em que retratou as manequins Bebel, Cláudia e Crislaine. "Como já estava pintando manequins de vitrines, achei interessante poder retratar modelos vivas com toda beleza e feminilidade de quem veste moda. Fiquei encantado com a ideia e penso que a moda é uma moldura da beleza feminina. Além de ter achado muito interessante conjugar a arte com a moda dentro do museu", disse Iberê na época.

Depois disso, volta-se novamente para a artificialidade dos manequins, desta vez, com cores mais sombrias: "O manequim é o protótipo da sociedade de consumo, o simulacro da realidade. As pessoas vivem dentro de caixas, assim como os manequins vivem dentro de vitrines", afirma. Com o tempo, em contraste, os manequins passarão a dividir espaço com corpos nus e fora do padrão na obra de Iberê, até a sua fase derradeira.

Esta trajetória do artista, ainda pouco explorada, permitirá, no futuro, conjugar sua arte com a moda em uma grande exposição.

Iberê Camargo - Modelar no tempo: Iberê e a moda, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS - 01/05/2021 a 04/07/2021

Gustavo Possamai
Responsável pelo Acervo da Fundação Iberê e que assina a organização da mostra

Posted by Patricia Canetti at 11:36 AM

junho 1, 2021

Fábio Baroli: Hotspots - Memória, imaginação e resistência por Andréia Narciso

Muito conhecido pelas pinceladas marcadas e pelo domínio pictórico, sobretudo do chiaroscuro, o artista mineiro Fábio Baroli vem transferindo, há algum tempo, o protagonismo em suas pinturas, da figura humana para a paisagem. Apropriando-se de temas e conceitos ambientalistas, o artista propõe uma reflexão sobre o especismo, o antropismo e a relação do homem com o meio. O título da sua segunda exposição individual na galeria Zipper, Hotspots - Memória, imaginação e resistência, muito bem representado pela composição das obras, faz alusão a regiões de singular biodiversidade e que, ao mesmo tempo, sofrem com constantes ameaças de extinção.

A exuberância dos trabalhos reproduz, em proporções reais, algumas espécies endêmicas da flora do Cerrado e traz consigo reflexões sobre a paradoxal relação humana com aquilo que é substancial, para sua existência, bem como sobre as relações de dominação e poder do capital e da terra.

A escolha do bioma vem não só da influência e da memória do lugar de origem do artista, mas também do contexto de obliteração em que o Cerrado, segundo maior bioma brasileiro, vem passando desde o período colonial. A partir de então, não só ele como demais regiões de hotspots brasileiros passam por um incansável processo de devastação, que tem sido agravado pela flexibilização e negligência de políticas ambientais que atendem ao agronegócio e submetem o país à condição de subserviência e de entreguismo ao estrangeiro.

Não por acaso, Baroli apresenta uma mudança de técnica na preparação de suas telas, com fundos à base de polímeros transparentes, os quais nos permitem visualizar o algodão do suporte. Ele, que até então se utilizava do gesso cré como base para a pintura, nos conduz agora para o diálogo sobre as influências antrópicas nos espaços naturais, já que a monocultura do algodão é uma das atividades agrícolas que mais (des)ocupam áreas de Cerrado no Brasil.

Hotspots - Memória, imaginação e resistência”, trata-se de uma exposição demasiadamente significativa para o movimento de interlocução entre a arte, as ciências humanas e as ciências naturais, pois nos coloca defronte às relações do homem com o uso e o manejo da terra, com a sua subsistência e, também, com a sua interação com outros seres. A partir dessa imersão, temos a chance de descobrir que permeamos ora no excepcionalismo humano, ora na perversidade, uma vez que, por mais que saibamos dos prejuízos que causamos ao meio, ainda assim insistimos em nossa autodestruição e na aniquilação de vidas primordiais à nossa sobrevivência.
A composição dos buritis na parede, sugerindo as formações de veredas, a grandiosidade das obras, as características industriais das bobinas de tecido acomodadas no chão, e a forma como o artista preenche o espaço expositivo e a imaginação do observador nos convida à epifania subalterna de nós em relação às árvores. Ao mesmo tempo, nos leva a provar a miscelânea de sensações que estão relacionadas às nossas competências e aptidões, uma vez que estamos diante de uma produção artística, algo essencialmente antrópico.

É certo que a exposição em questão nasce do desdobramento da série “Selva-Mata”, a primeira série de pinturas de Fábio Baroli que representa o “retrato da paisagem”. Nua e crua. Tal qual as cores primárias que utiliza. Agora, com a representação de um novo bioma, e com muito mais apropriação do lugar, o artista mantém o uso do magenta e do amarelo, não só representando a pureza das cores, como também a lucidez de uma paisagem viva. Tão viva que, durante o processo de execução das obras, em seu ateliê de Uberaba, Baroli narra a visita de abelhas que, seduzidas pelas cores, anunciam o legado da resistência.

Andréia Narciso é produtora cultural pelo Centro de Pesquisa e Formação Sesc-SP, bióloga, professora e mestre em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia – UFU, com pesquisa vinculada ao laboratório de Nanobiotecnologia do Instituto de Genética e Bioquímica da instituição.

Posted by Patricia Canetti at 10:47 AM