|
outubro 15, 2020
Enxertia - Coleções por Ariana Nuala
O tocar é uma ciência profunda, talvez uma máxima sobre complexidades infinitas, assim como a dimensão de um buraco negro que altera tempo-espaço a partir de sua emissão de energia.
Seria possível sentir a força que nos agrupa?
Há milênios comunidades agrícolas observam as plantas dos mais variados tipos, esses organismos irradiantes e prismáticos espelham um comportamento de vida tornando-se saberes sobre as relações em coletividade.
Tecnologias que estão ligadas aos processos de transmutação e vida/morte são criadas nesta absorção da não distinção ontológica entre cultura e natureza. A compreensão sobre aquilo que muda existe em uma temporalidade anterior ao da ação exploratória sustentada por um cientificismo regulador das espécies.
Assim seguimos com Enxertia, uma ferramenta que reconhece as estruturas próprias de cada corpo-planta, e que, através de um agrupamento, consegue ser estratégia de manutenção da vida e também de uma conversa sobre entrelaçamentos. Um sistema de apoio em um acordo mútuo que podem gerar corpos híbridos e complexos.
Cultivar enxertos enquanto motrizes práticas-metafóricas para auto-organização de 21 artistas em parceria com a Galeria Amparo 60, nos desloca para um fortalecimento de uma rede que deseja alimentar construções, e identifica as responsabilidades dentre as distintas esferas e suas pluralidades.
AS COLEÇÕES
1. Iagor Peres | Clara Moreira | José Paulo:
Sugerindo uma experiência mais intrínseca entre materialidades, este conjunto de trabalhos observa os agenciamentos possíveis entre cada elemento. A matéria se sobressai enquanto discurso e sua condução de energia que é proporcionada em cada fricção, densidade e camada equivale a um ato no espaço. Um reagente que é conduzido por corpos distintos, e que não se limita apenas a movimentos humanos. As dimensões e as disposições das estruturas são motes para investigação, pois como transformar o que sustenta um corpo? As forças visíveis e invisíveis se apresentam na irradiação destas matérias mediando suas relações com os meios e os espaços. Assim, organizam-se entendendo que não há uma ordem classificatória que distingue e separa essas matérias, mas sim uma rede complexa que as compreendem enquanto esferas relacionais.
3. biarritzzz | Juliana Lapa | Ramsés Marçal:
Nesta série de imagens acompanhamos corpos atentos em uma investigação latente que procura refletir sobre os espaços de trauma e de feridas. Há nesse exercício uma busca que caminha para um ato transmutável. A dor gera um motim para um processo em andamento, que não é inerte, mas sim profundo, misterioso e de força. Os trabalhos aludem a uma inversão de pontos que se tornaram comuns em uma medicina clássica cientificista, há um escape para uma exposição daquilo que se tornou tabu, que parece obsceno em uma sociedade higienista. Em ritmos distintos pode-se perceber a anunciação de um rasgo que as imagens propõem sobre um lugar aparentemente inabalável. Através do sangue, da negação ao fármaco alopático como via única e também da mão enquanto gesto de poder e de cura, estas pesquisas reelaboram uma própria definição de saúde.
3. Mariana de Matos | Caetano Costa | Marie Carangi:
Há um desejo que se presentifica nas 03 obras que compõem este eixo. Cada artista em sua produção desmonta padrões que comumente acabam se tornando regras de uma estrutura rígida na construção de um território baseado em silenciamentos de algumas culturas e na hegemonia de outras. Tanto o léxico, quanto os símbolos patrióticos aparecem enquanto material de estudo para um redesenho da própria pátria e de sua língua, um exercício de imaginação e observação das identidades que escapam ao normativo. As coletividades se anunciam enquanto corpos disruptivos diante daquilo que não às representam; nutrindo, assim, campos de criação.
4. Lourival Cuquinha | Cristiano Lenhardt | Francisco Baccaro:
As relações entre conquista e território ainda não se findaram. O esvoaçar de uma bandeira no alto de uma haste significa a presença de alguém, é um estado impositivo, uma estratégia de destaque. Sem dúvida, se transforma numa performance a partir do próprio anúncio sem a necessidade do corpo presente, pois a demarcação enquanto símbolo já está firmada. Assim, como uma escrita em uma parede que indica de maneira pública um registro de uma posição política. Nestes contextos discutimos como habitamos espaços digitais e físicos e como agimos em uma disputa de relações. Há uma aproximação da figura do cavaleiro que abre caminho para passagens de outrens, uma etapa anterior à conquista ou a derrota, uma corporificação que muda paisagens e como um compromisso organiza variadas formas de saberes. Porém, existe um exercício de manutenção de corpos que estão em evidência.. Como então estão sendo enunciadas as dissidências para uma não permanência de um agir imperialista?
5. Lia Letícia | Izidorio Cavalcanti | Isabela Stampanoni:
Uma das maneiras que a memória se encontra enquanto espaço palpável é a partir da existência de rastros como pistas diante as marcas dos gestos, peso e forma, de um corpo. Impressões que registram manuseios, revelam narrativas e escolhas de caminhos que foram percorridos. Aqui, estes trabalhos rompem com uma passagem de tempo histórica, e são ativados cada vez que são reconhecidos ou vistos. A cada proposta artística é percebida uma tomada de decisão frente às relações entre as materialidades e seus significados em contextos expostos a colonialidade. Assim, são retirados de seus lugares comuns objetos e corpo para anunciar histórias ainda não contadas. A mão ocupa todo este fazer, ela é o vestígio da ação, é a partir de sua interferência que percebemos as diferenças entre o antes o depois. A fabulação de novos contos por retomada.
6. K. Iara | Josafá Neves | Célio Braga:
A maneira mais antiga de produzir mudanças está na criação de tecnologias, engana-se quem interpreta que estas são apenas advindas de processos maquínicos modernos e seus desdobramentos. A imaginação é uma das maiores tecnologias, enquanto ação de reestruturação de códigos, um vislumbre de mundos ainda não vistos que estão por emergir. Milenarmente contam-se itans, histórias iorubanas sobre os orixás, que narram o usos de ferramentas por essas divindades enquanto agenciadoras de conflitos políticos e de ordens mais afetivas. Nestes contos as tecnologias se apresentam enquanto presenças não palpáveis e também como ferramentas de trabalho, a exemplo de espadas e facas. As contradições em seus usos existem, porém quando a matéria-prima é rearticulada ou o pensamento é redesenhado - o por vir já está em andamento. Enquanto proposta, este eixo é um contínuo ciclo de ressignificações destas ferramentas, uma germinação necessária ao imaginário coletivo.
7. Ramon Vieitez | Fefa Lins | Fernando Augusto:
Acompanhamos olhares enquanto dialogamos com estes trabalhos - há uma opacidade entre os retratos. Neste momento existe uma percepção daquilo que é exposto, um ponto que conecta corpos virtuais com corpos físicos - de identidades e trajetórias próprias. Aqui, a noção de virtual se entrelaça numa transposição com aquilo que se apresenta enquanto corpo territorializado, pois as duas imagens também são reféns culturalmente de observações e especulações. Há um problema crônico na ideia de outridade, ela carrega aspectos de exclusão e de hierarquias baseadas no entendimento sobre o outro. Até que ponto estamos dispostos a abandonar esta premissa que passa pelo desejo de capturar e determinar a imagem de alguém?
outubro 10, 2020
Como habitar o presente? Ato 3: Antecipar o futuro por Érika Nascimento
Esta exposição marca um terceiro ato, até então existente apenas no campo imaginário de reflexão de um estado de esperança em uma possível distensão do tempo presente, para sinalizar o momento em que desejamos: antecipar o futuro.
Neste lugar de expectativa e com a finalização desta tríplice temporal– “É tudo nevoeiro codificado”, “Estamos aqui” e “Antecipar o futuro” – habitamos um presente-futuro em que seja possível criar rupturas, compartilhar sonhos e reconhecer-se com e no outro.
Os trabalhos que habitam esta exposição tensionam a intangibilidade do futuro, a hierarquização sócio-virtual, a fragmentação e ativação da memória, o risco da permanência dos corpos na sociedade e as estratégias de reexistir no presente.
A construção da exposição em atos simboliza um rito de passagem que atravessamos, não seguindo uma ordem cronológica linear, mas, sim um prolongamento da temporalidade onde o presente está conectado ao passado e ao futuro, e a um estado de potência, no sentido de se permitir ser afetado e afetar o outro. Esses atos podem ser lidos como um contínuo de intensidades que permitam criar cartografias de desejos, uma linha de fuga, a invenção de novas possibilidades de vida.
Dirnei Prates - Filme-fátuo por Mario Gioia
Filme-fátuo
MARIO GIOIA
As imagens que formam o conjunto de Filme-fátuo, primeira individual de Dirnei Prates em São Paulo e a quarta edição do projeto Perímetros, traçam, entre a aguda urgência e o exercício contemplativo, um percurso vigoroso, não linear e permeável ao risco. O caráter multidisciplinar de sua obra faz com que filmes, vídeos, fotografias, instalações, livros de artista e objetos, entre outros, transitem atualmente por meio de estratégias conectadas a um espírito de tempo mais combativo, de um agora algo perplexo, ou focadas nas transformações mínimas e cotidianas pelas quais todos passamos e que usualmente nos escapam de visadas mais atentas.
Nessa jornada construída em Filme-fátuo certamente há pedidos de socorro estridentes, átimos-passagens de desespero, contudo o recorte também se apresenta por procedimentos, abordagens e corpus de obra menos ostensivos, em que a reflexão sobre as peças reunidas e observadas coletivamente nos dão um certo amargor, uma sensação de finitude, um sentido de preservação frente a um desastre futuro ou à porta do nosso hoje. O público se situa entre perda e permanência, vestígio e completude, grafismos de cavernas e bombardeios virtuais. Ao selecionar, ver, ler e sentir os trabalhos, trocar ideias, debruçar-se sobre a escrita, me vieram instantes de variadas linguagens e configurações - desde um formigueiro em close por Kiarostami, a Quarta-Feira de Cinzas de Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander, um chuveiro aterrorizante a mesclar Martin Arnold e Hitchcock, a poética analógica de Tacita Dean, os experimentos amadores-mágicos de um cinema ainda a florescer, um epílogo de Spike Lee, polaróides de Tarkovski, fotografias em chamas de Hollis Frampton, produções em menor escala de Cildo.
E o título. Neologismo que se refere a fogo-fátuo, obviamente. O fenômeno que possibilita ver luzes originárias de material orgânico em decomposição provocou tal criação etimológica. Fortalece o aspecto material da utilização de filme - matéria-prima, lembre-se, que possibilitou a emergência do cinema industrial e que hoje vem sendo abandonado pela prevalência do paradigma digital -, tão bem escolhido, manipulado e reinventado na produção do artista gaúcho. E o fogo do termo original que hoje invade e arrasa, não apenas no plano simbólico, a nossa psique. Pantanal, Amazônia, Museu Nacional. Não faz muito tempo, MAM Rio. E que perturba qualquer profissional ligado ao audiovisual frente à desalentadora situação da Cinemateca Brasileira, com seus negativos, rolos, nitratos etc em triste desamparo.
Inicialmente, há um vídeo na entrada do espaço expositivo do Adelina, Pipare, cujo significado em iorubá se refere a apagamento. Formigas saem de cena em um plano fixo que ganha trilha de violência, com sons de tiros, bombas, tapas. Dialoga com Frátria, que se fundamenta em fotografias de imigrantes angolanos dispostas em espaços comuns do instituto, esvaziadas por ação de fita adesiva e que resultam em silhuetas despidas de identidade a personificar a invisibilidade social. Já em A luz não se fez, os diminutos rótulos de caixas de fósforo representando uma árvore, colocados em linha, terminam por desenhar uma paisagem calcinada (novamente a figura do fogo).
Uma das paredes da sala expositiva principal se ancora em uma perspectiva de fragmento, em que há desde um corpo prenhe de desejo (as fotografias que estiveram em mostra anterior do artista, A noite barroca, na Galeria Ecarta, Porto Alegre, 2016) até uma aparição disforme ou do reino do onírico (Peixe de três olhos), uma irônica mirada sobre a ordenação e a normatização, entre outros âmbitos (Zoológico), sem esquecer a face da rebeldia (Revolta) e da submissão (Delilah). Nesses últimos, há uma apropriação dupla de fotogramas cinematográficos (de Encouraçado Potemkin, 1925, e Imitação da Vida, 1934) que, ao serem retrabalhados, distendidos e esgarçados pelo artista, nos aproximam de uma leitura sobre poder, visibilidade e apagamento, entre outros vetores. Pensando no fotográfico como um conceito que transborda o meio e o suporte, o pensador francês François Soulages nos sintetiza: “(...) Em razão de sua própria natureza, a fotografia pertence à esfera de uma estética do fragmento, do dividido e do parcelar, de uma estética do kairós e de uma estética do ponto de vista, do particular e do singular: então, o irreversível e a finitude a governam” [1].
Dois trabalhos deste 2020 exemplificam a habilidade de Dirnei em tratar inquietos estados de espírito, pontuados por incômodos mais subjetivos e psicológicos ou por danos mais concretos do dia a dia, em trabalhos com distintas formalizações e mesmo poder de impacto. Abismo é uma instalação em que a catalogação de seres vivos que vivem nas regiões abissais marítimas ganha um curto-circuito entre iconografias e significados que, por meio de pequenos e fugazes instantes de luz, acompanhados de possíveis leituras, nos lançam em uma rede ruidosa, inútil e distante de qualquer precisão. O filme convertido para vídeo Ontem eu salvei um peixe traz imagens precárias e fugidias, que podem remeter a memórias e reminiscências, conectadas a narrações de episódios banais. Por fim, o tom de melancolia e algum mal-estar se estabelece, não sem levar-nos a rir nervosamente ou a pensamentos de empatia e (falta de) compaixão ou a algo longe disso. Uma espécie de teaser da obra do artista, que foge do previsível e opta por uma poética longe do simplismo, da facilidade e do estrito.
Mario Gioia, setembro de 2020
[1] SOULAGES, François. Estética da Fotografia – Perda e Permanência. São Paulo, Senac SP, 2010, p. 347.