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outubro 31, 2019

...Uma história que eu nunca esqueci... por Rosana Palazyan

...Uma história que eu nunca esqueci..., videoinstalação cujo vídeo, produzido de forma artesanal, sem pretensões de virtuosismos técnicos, nasceu como um exercício solitário de anotações visuais e sonoras no cotidiano. Propõe reconectar a memória fragmentada das histórias e relatos ouvidos, desde a infância, sobre a diáspora em consequência do genocídio armênio (c. 1915 a 1923). Uma história que sempre foi impossível esquecer, pois seria o esquecimento do próprio ser.

Brasileira, carioca do subúrbio, de ascendência armênia, tendo iniciado minha trajetória no final dos anos 1980, cercada por episódios de violência, traumas sociais, econômicos e políticos, nunca me sentia à vontade para tratar do tema Armênia. Desde então, venho buscando ampliar a reflexão sobre a violência e exclusão no tecido social.

Porém, ao ser convidada para participar da 4ª Bienal de Arte Contemporânea de Thessaloníki, na Grécia, em 2013, descobri durante a pesquisa que aquela era a cidade onde meus antepassados se refugiaram por alguns anos. E o passado distante estava diante de mim, tão próximo...

“Quem lembra do genocídio armênio?” Eu lembro. O extermínio de 1,5 milhão de pessoas e a tentativa de fazer uma cultura inteira desaparecer. Foi preciso remontar cada fragmento da memória como em um quebra-cabeça, carregado de enorme custo pessoal.

O fio condutor da história é um lenço bordado por minha avó materna, quando refugiada em Thessaloníki. Transformado em cada episódio, ele permeia sua história e a da família, desde as memórias de origem em Konya, sua cidade natal, passando pela vida como refugiados na Grécia e pela viagem para o Rio de Janeiro, por volta de 1926, até a nova vida.

Durante a apresentação nas exposições anteriores*, pude vivenciar que a narrativa conecta-se a muitas outras histórias e biografias, tocando as memórias de cada pessoa e impulsionando-a a contá-las. Ao tratar da reconstrução de uma identidade, aproxima o Outro e faz refletir sobre o quanto essas histórias continuam se repetindo.

Chegando ao Rio de Janeiro, o ciclo continua. No Museu de Arte do Rio, tão perto, o mesmo porto de chegada, o mesmo mar que um dia representou, por um lado, saudade, e por outro, esperança. Aqui, na cidade que no passado foi escolhida como um sonho bom de recomeço, contar essa história hoje propõe uma reflexão sobre os acontecimentos políticos, sociais e de violência que estamos vivendo em nosso país e sobre os nossos próprios genocídios. É como uma ferramenta que pode nos fazer acionar pensamentos na luta por manter viva nossa democracia.Trazendo de volta o desejo de ficar e não de partir. Como um não a uma nova diáspora.

Rosana Palazyan
Rio de Janeiro, abril de 2019

* Após 2013, a obra participou em 2015 (ano do centenário do genocídio) do Pavilhão Nacional da República da Armênia, premiado com o Leão de Ouro na 56ª Bienal de Veneza. Em 2017, na 1ª Trienal de Arte Contemporânea na Armênia, pude levar ao país de origem, onde tudo começou, a história enriquecida pela diáspora. E nesse mesmo ano, participou da exposição Água no SESC Belenzinho em São Paulo.

Posted by Patricia Canetti at 7:43 AM

outubro 21, 2019

Stockinger 100 anos por Francisco Dalcol

Aclamado como um dos mais consolidados referenciais da arte do Rio Grande do Sul, Francisco Stockinger (1919-2009) é também reconhecido como um dos mais importantes representantes da escultura no Brasil. Hábil desenhista e artesão, esculpiu em gesso, madeira, metal e pedra, trabalhando também com desenvoltura em gravura, desenho, ilustração, charge e caricatura.

Nos anos 1950, trilhando o caminho inverso ao tradicional — do centro para a província —, mudou-se do Rio de Janeiro para Porto Alegre, cidade onde passaria a vida, tornando-se uma personalidade fundamental do cenário cultural com sua forte e atuante presença. Além de artista, teve um papel decisivo como agente do sistema da arte no Estado, participando de sua constituição ao se engajar em causas coletivas à frente de instituições culturais como o MARGS, o Atelier Livre e a Associação Chico Lisboa.

Ao lado de Iberê Camargo e Vasco Prado, Stockinger formou o tripé de maior projeção da arte moderna gaúcha, compondo uma espécie de santíssima trindade das artes visuais do Estado. Comungavam de certa visão na abordagem artística moderna, especialmente no tratamento dado à condição humana, seja em sua dimensão social ou existencial.

Com séries escultóricas como a dos seus afamados “Guerreiros”, iniciada nos anos 1960, Stockinger foi figura decisiva na fixação de valores modernos na cultura artística do Rio Grande do Sul, consolidando uma vertente de matriz expressionista. Também estabeleceu um fecundo diálogo entre a tradição da arte ocidental e os temas regionais, emprestando à sua obra um sentido coletivo e ao mesmo tempo universal.

Com esta exposição que celebra o centenário de nascimento de Stockinger, o MARGS afirma o compromisso com a nossa história artística, em seu dever de prestar esta importante homenagem, cuja solenidade se torna necessária para que a relevância de um grande artista seja recolocada e não se apague da memória coletiva.

Ao apresentar a quase totalidade das obras de Stockinger pertencentes ao acervo do MARGS, onde está suficientemente bem representado, esta exposição ainda reúne um significativo número de peças de acervos públicos e coleções particulares, que gentilmente aceitaram o convite de tomar parte na comemoração, apoiando este projeto com realização própria do museu.

Resulta disso uma exposição ampla, que traz a público obras bastante relevantes, mas não isenta de alguma lacuna pontual. Seja como for, o conjunto aqui apresentado é altamente expressivo e representativo da produção do artista. Stockinger obteve consagração ainda em vida, tendo sido frequentemente reconhecido ao longo de sua trajetória, como atesta a extensa fortuna crítica, teórica e histórica encontrada nos inúmeros textos, catálogos, livros e exposições a ele dedicados.

Reconhecendo se tratar de um artista já legitimado e amplamente abordado, esta exposição se assume mais panorâmica do que retrospectiva, tendo sido organizada segundo estratégias que procuram oferecer compreensão e legibilidade frente a uma produção tão extensa quanto diversa em suas etapas. Reforçam a opção por esse viés os diversos textos de mediação apresentados no espaço expositivo, com os quais se procura situar e contextualizar a obra e a trajetória do artista.

Ao assinalar e afirmar a importância de Stockinger, o esforço é tomar o seu centenário de nascimento, e os 10 anos de sua despedida, como um momento oportuno para se difundir o seu legado. O intento é proporcionar um reencontro e um renovado interesse com uma produção tão conhecida e aclamada, mas sobretudo oferecer uma experiência intensa e enriquecedora paraum público mais amplo e não totalmente familiarizado com a importância de sua obra e vida, notadamente as novas gerações.

Francisco Dalcol
Diretor-curador do MARGS
Doutor em Teoria, Crítica e História da Arte

Posted by Patricia Canetti at 2:08 PM

Narrativas em Processo: Livros de Artista na Coleção Itaú Cultural por Felipe Scovino

Narrativas em Processo: Livros de Artista na Coleção Itaú Cultural

FELIPE SCOVINO

Esta exposição, Narrativas em Processo: Livros de Artista na Coleção Itaú Cultural, não permeia apenas os livros-objetos – comumente associados à expressão livros de artista –, mas propõe uma investigação das diferentes relações que podem ser estabelecidas entre livro e artista.

São várias as possibilidades de entendimento desse encontro: podemos compreendê-lo como uma publicação da qual o artista concebe conteúdo e design gráfico; a manufatura de um livro ou a intervenção conceitual ou física nesse suporte, em caráter de tiragem limitada; a ilustração de uma publicação; a execução de um álbum de gravura.

Depois de passar por Ribeirão Preto, São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte, a mostra chega ao Recife, cidade que abriga muitos artistas que se dedicam a essa produção tão singular nas artes. Em cada cidade, a escolha e o recorte das obras e das seções sofreram mudanças – e aqui não foi diferente. Com exceção da obra do argentino Jorge Macchi, esta mostra destaca os artistas brasileiros da coleção de livros de artista do Itaú Cultural na transição entre o moderno e o contemporâneo, especialmente o momento em que o formato do livro cria novas fronteiras em sua forma conceitual, expandindo o lugar da palavra para além da página. Acompanhando a criação de novos procedimentos para a concepção de livros de artista, são constituídas diversas relações entre obra e leitor.

A percepção dos livros se dá também por meio das imagens e do espaço gráfico construído. A ilustração, em particular, não é mais considerada uma mera reprodução visual e mecânica do que foi escrito pelo autor. Ela agora tem seu próprio campo de atuação e liberdade criativa. Um exemplo icônico dessa prática é o imprescindível livro Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, ilustrado por Cícero Dias, presente na mostra. O desenho ilustra o pensamento de Freyre ao mesmo tempo que cria o seu próprio espaço de autonomia e liberdade. Acredito também que a prática da ilustração foi fundamental para a experimentação e o desenvolvimento da técnica por parte desses artistas.

Com caráter histórico, a investigação do suporte livro de artista passa pela produção moderna e seu diálogo com a ilustração, pelos livros-esculturas dos poetas concretos, pelos álbuns de gravura, incluindo a literatura de cordel, e termina com um núcleo contemporâneo, dividido em Uma Escrita em Branco, Livros-Objetos, Rasuras e Paisagens.

As narrativas transbordam novas interpretações, entre as quais destacamos dois pontos de vista: o primeiro, da pluralidade de ações e das relações não só com a literatura e as artes visuais, mas com o design, a política e, em alguns momentos, a música; o segundo, de uma leitura que não se esgota, que se desdobra redefinindo os papéis do próprio livro, do leitor e do artista. Assim, alguns questionamentos são provocados: como um livro pode ser visto, representado e transformado? Como os procedimentos e a invenção do campo das artes visuais traçam fronteiras com a literatura e o design?

Felipe Scovino

Posted by Patricia Canetti at 11:54 AM

outubro 14, 2019

Respiração #15 anos Opavivará! Boca a Boca por Marcio Doctors

Respiração #15 anos Opavivará! Boca a Boca

MARCIO DOCTORS

Percebo OPAVIVARÁ! como tendo herdado a linha de força que denomino ruptura pós-neoconcreta – o momento em que Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica criam um desvio do neoconcretismo e radicalizam a relação arte/vida. Os três, ao introduzirem o conceito de artista como propositor e de espectador como receptor ativo, como parte fundamental do processo de realização da obra, saem do campo da pureza da percepção para o campo da ação e enfatizam o aspecto concreto (daí concretismo e não construtivismo) da realidade. A obra só é efetivada, de fato, quando se dá o envolvimento do receptor ativo.

Em OPA essa questão é vivenciada de maneira intensa e de lucidez contagiante (posso me permitir afirmar que é a sua principal característica), criando tensões e fricções nos circuitos da vida cotidiana das pessoas e das cidades, pondo em questão os diferentes segmentos que fazem parte da dinâmica dos espaços urbanos da contemporaneidade. O coletivo exercita uma prática de diluição da fronteira entre arte e vida, levando para o espaço urbano práticas da vida doméstica e invertendo a lógica da segregação espacial e social das metrópoles, incluindo-se nisso também os espaços ditos públicos dos museus e das instituições culturais. OPAVIVARÁ! desconstrói o conceito tradicional de espaço urbano, explicitando que o desmonte das relações espaciais tradicionais já existe como estratégia de sobrevivência nas grandes cidades. As pessoas têm de recorrer a vários expedientes de sobrevivência, provocados por motivos como a falta de emprego, problemas de imigração, de transporte, de moradia, etc. ou mesmo por práticas positivas da vida em conjunto como ocorre nas praias cariocas, no Carnaval, nas feiras ou nos grandes eventos musicais ou nos museus-catedrais, que se tornaram destinos de peregrinação da indústria do turismo. Enfim, lida com essa energia do estar junto desde o processo de conceituação da obra até a sua consecução final que precisa ser experimentada e vivida por aqueles que entram em contato com ela.

Puxando as linhas de forças genealógicas pelas quais atravessa, podemos dizer que em algumas obras como os postais Eu amo camelô (Rio de Janeiro) ou a reedição do trabalho em Barcelona Eu amo manteros remetem a momentos Lygia Pape, numa forte relação com o espaço urbano (lembremos os espaços imantados de Pape):
Fazer esse postal é mexer com essa imagem que você quer mostrar de sua cidade. É uma operação de evocar as paisagens icônicas do Rio de Janeiro, pelos trabalhos e pelos vendedores ambulantes que estão também construindo a imagem dessa cidade.

Ou

O que observamos nas cidades globais é que estamos sempre nos espaços públicos e eles trazem essas tensões e essas tensões ficam expostas. E, de um modo geral, elas sofrem muito essa injeção de capital necessário, de uma indústria de produção e consumo onde a cidade tem que ser uma grande vitrine, um grande espetáculo desse sistema e esse sistema vem sempre com um pacote de normatividade de fascismo, racismo, xenofobia, machismo e isso se tensiona muito no espaço público. Há um lado imperativo desse sistema que vai se impondo, mas percebemos também que há uma resposta que tem uma voz que ecoa e é rápida e isso acontece muito no espaço público. Esse espaço público tenta ser muito controlado, sempre muito esvaziado, e nós entramos exatamente nesse espaço.

As ações propostas são sempre muito atraentes – convidando as pessoas para que façam parte delas –, induzindo ao prazer do estar junto, como a experiência de comer junto, repousar junto, cantar junto, enfim, experimentar os prazeres da vida que a rotina do cotidiano pode massacrar.

O prazer da experimentação do corpo sensório motor é fundamental para percebermos o lugar de onde OPAVIVARÁ! nos fala. E quem liberou esse lugar na arte brasileira foi a ruptura pós-neoconcreta. Podemos afirmar que, em linhas gerais, o que está sendo colocado é a busca por expressar a conformação de um novo processo de subjetivação. É a vontade de expressar esse novo acontecimento que está ocorrendo com a diluição das fronteiras entre o que é interior e exterior, subjetivo e objetivo nas sociedades contemporâneas, que foi anunciado pelas experiências propostas pelos artistas da ruptura pós-neoconcreta.

Em cada um deles, esse fenômeno se expressa de maneira distinta. Lygia Clark busca a dimensão do interior, como o avesso extensivo da exterioridade (por isso essa visão mais psicanalítica); Lygia Pape, a dimensão do outro na sua relação com a trama do social, por isso essa aguda sensibilidade em relação ao espaço urbano e as teias sociais; e Hélio Oiticica, com a dimensão do prazer como o grande catalisador e como ponto de encontro e de dissolvência entre a dimensão interior e exterior. Mas, em todos eles, o corpo é o motor da obra.

OPAVIVARÁ! transita nas diferentes camadas dessas potências expressivas, buscando estabelecer outra espacialidade em que a arte surge como um instrumento possível de questionar de maneira alegre, leve e vivaz as relações interpessoais e interespaciais no contexto das grandes metrópoles. Essa foi mais uma razão que me levou a fazer o convite para participar da 24ª edição do RESPIRAÇÃO. Afinal, o material que estava sendo oferecido para OPA era o de uma casa, cuja vida havia sido retirada dela quando foi transformada em casa-museu. A pergunta é: como se relacionar com um espaço que se pretende público e, ao mesmo tempo, é da ordem do privado, na medida em que se conservam todos os cômodos de uma residência e até os objetos pessoais de sua proprietária, mas que não podem ser utilizados como tal? Do que sentiu falta o OPA e o que muitos artistas que participam do RESPIRAÇÃO também sentem é a ausência do fluxo de vida que foi interrompido, quando a casa virou museu.

Uma das formas como OPAVIVARÁ! equacionou essa questão, de maneira bastante perspicaz, foi quando optou por trazer algumas obras que já haviam sido realizadas em outros contextos (muitas vezes públicos), mas que aqui poderiam adquirir uma nova potência de existir, ao serem reintroduzidas em um ambiente de casa-museu. Apesar desse tema ser “banal” no contexto da arte atual e ser este o próprio mote do RESPIRAÇÃO, ou seja, o da recontextualização, ele deixa de sê-lo, quando se torna uma estratégia de ação, tal como é proposto pelo RESPIRAÇÃO. Em outras palavras, assumem radicalmente o propósito e o objetivo do projeto.

Por exemplo, uma obra como Pornorama sugere (pelo jogo de palavras) que o visitante vivencie a Sala Renascença com uma visão panorâmica, tal como Eva Klabin fez, ao exibir a história da arte de maneira panorâmica, agrupando-a em quatro vitrines nos cantos da sala, que contemplam, cada uma, um dos quatro continentes importantes na história das grandes navegações e do período renascentista (Europa, Ásia, África e Américas). Ao mesmo tempo, induz a ideia de que o visitante de uma casa-museu é uma espécie de voyeur da intimidade alheia. Essa percepção não poderia acontecer melhor em nenhuma outra tipologia de museu, do que numa casa-museu. Desloca o ponto de observação de uma postura ereta e frontal, como acontece nos museus tradicionais, para uma posição deitada, que permite ter uma visão sem obstáculos do conjunto da sala ou fixar seu olhar em determinados pontos específicos de observação, abrindo e fechando as cortinas do dossel. Ou, ainda, simplesmente, relaxar, reafirmando a ideia do museu como local de heterotopia da vida contemporânea, onde é possível usufruir de uma utopia espacialmente momentânea, que nos retira da aceleração do cotidiano em que vivemos.

A reedição do Sofáraokê, assim como as Espreguiçadeiras multi adquirem também outras camadas de sentido, quando recontextualizadas na Casa-Museu Eva Klabin. Costumo parafrasear Borges dizendo que esta casa-museu é a casa de uma europeia no exílio. Quando OPA traz com as Espreguiçadeiras multi o sol das praias para o interior da casa, que foi concebida para ser vivida à noite (Eva Klabin trocava o dia pela noite), remete-nos para um aspecto fundamental da vida da cidade, assim como o Sofáraokê traz de volta a boemia, tal como na época de quando Eva Klabin vivia e promovia noitadas em sua casa. Recupera também um traço importante da vida da cidade, que é a alegria irreverente do bom humor do carioca, que, infelizmente, está desaparecendo, após anos de tantos maus tratos.

No entanto, a obra mais emblemática da 24ª edição do RESPIRAÇÃO é Panis et Circenses. É quando o coletivo manifesta o sentido mais transgressor de suas ações e que melhor contribui para oxigenar a casa-museu e o RESPIRAÇÃO. Panis et Circenses é uma bolha. É um espaço criado pelo ar que é insuflado na bolha e como o pulmão ela pulsa num movimento de inspiração e expiração, tal como uma respiração. E o mais incrível é seu sentido de fina ironia porque cria um espaço onde será musealizada a vida que foi retirada da casa. Há uma inversão de valores. A mesa da Sala de Jantar, onde não acontecem mais os jantares para os quais o ambiente foi destinado, por uma questão de preservação da coleção, evitando a entrada de alimentos em área protegida do museu, com a bolha de ar receberá um salvo-conduto para que alimentos e bebidas voltem a ser consumidos no interior do museu. O ato mais primário da vida – o de alimentar-se – retorna dando vida ao museu, só que agora musealizado, em que nos tornamos objetos de apreciação da coleção que nos observa, fazendo-nos prisioneiros de nossa própria armadilha, como se tivéssemos sido capturados pela imagem do espelho.

1 – Entrevista de OPAVIVARÁ! ao programa de Ronaldo Lemos no Canal Futura (28/11/2017).

2 – Entrevista de OPAVIVARÁ! ao programa de Ronaldo Lemos no Canal Futura (28/11/2017).

Posted by Patricia Canetti at 4:04 PM

Respiração #15 anos por Marcio Doctors

Respiração #15 anos

MARCIO DOCTORS

“Talvez se pudesse dizer que certos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje em dia se desencadeiam entre os piedosos descendentes do tempo e os habitantes encarniçados do espaço”.
Foucault [1].

O projeto Respiração é uma proposta de dessacralização; de permitir que a densidade do tempo histórico seja permeada pela voracidade pulsante dos “habitantes encarniçados do espaço” (Foucault)[2] no maior dos templos da contemporaneidade, que é o museu de arte. É nele que são guardados os vestígios sagrados, que secretamente sobrevivem ao tempo, insistindo em permanecerem no espaço, como sopros de vidas que não querem ser desfeitos pelo tempo.

É no museu que guardamos o tempo e foi nesse templo que ousei há 15 anos pensar em fazer que o espaço respirasse pelos poros da epiderme sensível do tempo. Do tempo agora. Do tempo aqui. Experimentar vendo como era possível que o clamor do atual se defrontasse com o sono parestésico do tempo, que sobrevive através das ficções históricas, alimentando o devir, que se faz futuro no presente. É desse tempo (quase atemporal) que o RESPIRAÇÃO trata porque anseia pelo espaço. Quer tanto a força da presença do espaço, que ao tempo museu não restou alternativa a não ser curvar-se e resignar-se a que, um dia, aqueles vestígios de espaço do tempo contemporâneo serão vestígios de tempo histórico também.

Todos os que por aqui passaram, e fizeram o RESPIRAÇÃO, fizeram-se tempo presente. Alimentaram a vaidade desse espaço que ansiava por ser para além do sonho de Eva Klabin. Fizeram-se tapetes voadores levando-nos de um tempo a outro, reinventando o espaço, nesse templo do tempo. Ah! A nostalgia do tempo… que insiste em ser como a procura do cego com sua bengala a beira do abismo, buscando o espaço tátil do vazio. É sobre esse risco que vos falo. Sobre esse limiar inebriante do cotidiano, que palpita entre as certezas e as incertezas de sermos para além, sendo aqui. São esses os poros da epiderme tempo, que se contrai e se dilata reconhecendo-se e desconhecendo-se, fazendo o espaço respirar.

Paul Valéry foi quem matou a charada ou a cilada ou quem talvez tenha chegado mais próximo do segredo que alimenta a esfinge arte (decifra-me ou devoro-te), ao enunciar: “O mais profundo é a pele”, que é o lugar onde estamos enquanto somos: no limiar da epiderme. O fora do dentro, o dentro do fora. É nesse lugar que a arte se reinventou, quando a ruptura pós-neoconcreta (Lygia Clark | Lygia Pape| Hélio Oiticica) ousou pensar que a obra de arte, só se faz quando se realiza na impregnação vivente de quem a experimenta. Entende-se fazendo. Não há uma supremacia da transcendência monopolizada pela alma privilegiada do tempo (o artista), nem a presença monolítica e enigmática do espaço (a obra de arte), mas a pulsão ativa de quem a vivencia, abrindo os flancos da respiração, produzindo o acontecimento arte, que não é outra coisa senão a identificação no fazer: a empatia. Reconhecer-se na identificação: encontro-me enquanto faço; descubro-me ali, experimentando; ali me reconheço, reconhecendo as setas do espaço, no meu tempo. É um ato em processo, que pertence a um, nenhum e cem mil (Pirandello).

O RESPIRAÇÃO tem, na sua origem, fazer a exegese da ruptura pós-neoconcreta. O projeto busca explicitar a pulsão que existe em nós entre o dentro e o fora. Entre o Eu e o outro, quando somos também o outro do outro. Quando percebemos que o espaço fora de nós no qual vivemos não é um vazio, mas um espaço tão real e concreto quanto o nosso corpo, como se fôssemos ora o verso, ora o anverso desse espaço. É o vazio pleno (Lygia Clark). Se há um espaço interior pleno, não significa que vivemos, em contraposição, em um espaço exterior vazio. O espaço no qual vivemos, pelo qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em si mesmo um espaço heterogêneo ². É desse e nesse espaço heterogêneo, que o RESPIRAÇÃO quis fazer-se real. O projeto nasce do desejo de provocar a colisão de dois espaços, que desencadeasse em um; a transparência do tempo do outro. Um outro museu possível dentro de um museu, fazendo com que a irredutibilidade de um brilhasse ao encontrar-se com a irredutibilidade do outro.

[1] Foucault, M. 2013. Outros espaços. In: Barros da Mota, M. (org.). Ditos e escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, p. 142.

[2] Ibid., p. 414

Posted by Patricia Canetti at 3:54 PM

outubro 10, 2019

Camila Elis - Da alma, e as coisas suspensas por Bruna Fetter

O amor, sentimento tão desejado e, por vezes, temido. Que nos descola do chão e desloca o centro de gravidade, podendo levar do êxtase ao desespero, da alegria ao ciúme.

Amor carnal, amor platônico, amor que se apodera do nosso corpo, sono, fome, dos nossos pensamentos, da nossa alma. Esta mostra é sobre o amor. Não qualquer amor. Ela parte de um enamoramento da jovem artista Camila Elis pelos afrescos realizados por Rafael sobre a representação do mito de Psiquê e Eros no teto da Vila Farnesina, em Roma.

Poucas passagens da mitologia grega são tão expressivas dos mais profundos - e, ao mesmo tempo, cotidianos e banais - sentimentos humanos do que a narrativa da união entre esta mortal e um deus, ou sobre a conturbada relação que se estabelece entre a alma e o amor.

Em suas mais variadas versões, com distintos detalhes e alegorias, este mito expressa as idas e vindas, as venturas e desventuras, o lado sublime e o cruel que relacionamentos erótico-amorosos podem causar. Da elevação do ser à mesquinharia e inveja, do prazer à insegurança, da dor à cura.

***

Segundo o mito, Psiquê - a mais nova das três filhas de um rei de Mileto - era extremamente bela. Tão bela que pessoas de diversas regiões iam até ela somente para admirá-la e render-lhe homenagens. Homenagens essas que costumavam ser prestadas somente à Afrodite, deusa da beleza.

Assim, a beleza de Psiquê desperta a inveja e ira de Afrodite, que pede a seu filho Eros, conhecido também por Amore ou Cupido, para utilizar uma de suas flechas e fazer a moça se apaixonar por um ser monstruoso. Eros se atrapalha frente à beleza de Psiquê, acaba atingido por uma de suas próprias flechas e apaixona-se por ela.

De outra parte, diz a fábula que o pai de Psiquê resolve consultar o oráculo de Apolo, uma vez que a filha, apesar da grande beleza, permanece solteira. O oráculo ordena que Psiquê seja levada ao topo de uma montanha e lá abandonada, para casar-se com uma serpente. Com medo, Psiquê é conduzida até este local, onde adormece, para acordar num maravilhoso palácio, provavelmente de um deus, no qual tem todos os seus desejos magicamente atendidos por ajudantes invisíveis. Ao anoitecer, ela finalmente encontra seu esposo - Eros - que, para esconder a união entre ambos de sua mãe, lhe diz que eles serão casados, mas que ela jamais poderá ver seu rosto. Ao ouvir a voz amável e sedutora de Eros, Psiquê se entrega a ele e se apaixona, vivendo em estado de felicidade plena.

No entanto, e apesar de sua grande felicidade, o tempo passa e ela sente saudades de suas irmãs. E, após muito insistir junto ao marido, vai visitá-las. As irmãs não acreditam na felicidade de Psiquê e, enciumadas, incitam-na a descobrir a identidade do marido, dizendo que se ele não mostra o rosto é porque há algo de errado. Ela, curiosa, cede à tentação e, enquanto Eros dorme ao seu lado, leva uma vela perto de seu rosto e uma faca para matá-lo, caso fosse realmente um monstro. Ao observá-lo dormindo, Psiquê se distrai com sua beleza e doçura, e uma gota de cera escorre e queima o ombro do marido, que acorda furioso e a expulsa do seu palácio dizendo que o amor não pode conviver com a suspeita.

Inconsolável por perder seu grande amor, Psiquê decide reconquistar a confiança de Eros. Para tanto, propõe-se a prestar homenagem à Afrodite e implorar seu perdão. A deusa, enraivecida por ter sido desobedecida e ainda ter que curar a ferida de Eros, impõe quatro tarefas a Psiquê, todas difíceis e perigosas. A última delas, de caráter mortal, leva Psiquê a descer ao mundo inferior e pedir a Perséfone um pouco da sua beleza em uma caixa para levar à Afrodite. Psiquê consegue transpor todos os obstáculos e seu objetivo lhe é concedido. No entanto, por insegurança, vaidade e, novamente, curiosidade, Psiquê abre a caixa. Ao invés da beleza, ela é acometida por um terrível sono que a impede de retornar.

Eros, já curado da ferida, descobre a tirania da mãe e vai ao encontro de Psiquê. Coloca o sono novamente dentro da caixa e a aconselha a ir até Afrodite para cumprir a última tarefa. Enquanto isso, ele mesmo vai a Zeus (Júpiter), pedindo que acalme Afrodite e celebre seu casamento. Zeus atende aos pedidos de Eros e abençoa a união eterna entre alma e amor. Em seu devido tempo, dessa união nasce Voluptas, ou o prazer.

***

O que este mito representado nos afrescos pintados por Rafael no teto da Vila Farnesina há quase cinco séculos e os filmes “My summer of love” (2004), de Pawel Pawlikowski e “Candy” (2006), adaptação do diretor Neil Armfield do romance homônimo de Luke Davies, têm em comum? Além da manifestação do desejo de fusão com o outro, são, também, inspirações essenciais para a exposição Da alma, e as coisas suspensas, primeira individual de Camila Elis na Galeria Mamute.

Partindo de referências tão marcantes quanto diversas, a artista explora nas pinturas e desenhos abstratos presentes na mostra diversas emoções e experiências absolutamente humanas. Nas pinturas de grande formato, todas cenas estão em diálogo com passagens presentes nos afrescos de Rafael. Nesses trabalhos, Camila Elis ocupa o espaço de uma forma fluída, no qual as tintas e linhas compõem estruturas chamadas por ela de “moles”. Há momentos solares, outros mais obscuros, fugazes e frios. Há também o enamoramento e sua vertigem expressos em sutis camadas de cores que se avolumam gerando as típicas dualidades vivenciadas por quem se apaixona.

Já nos desenhos, embasados na decadência de “Candy” e suas tardes de extravagante prazer seguidos por ciclos de (auto)destruição, a artista enfrenta plasticamente as dificuldades de alguns relacionamentos (re)existirem. Passando do maravilhamento inicial às dores reais, aqui as linhas são mais contundentes, e a rarefação de manchas conduz a uma dureza não vista nas camadas executadas sobre linho. O papel e sua delicada aspereza ambientam desencontros inevitáveis.

Após o contato inicial, a paixão. E a escolha (seria mesmo uma escolha?) de se apropriar, de ter perto de si, de possuir esse alguém, esse algo, essa narrativa, essas imagens.

Camila Elis apaixonou-se por uma história e suas diversas representações e, a partir dessa referência conceitual e estética, construiu um universo imagético e sinestésico para lidar com suas fantasias, expectativas e decepções, uma perspectiva visual abstrata do sentimento. Para isso utilizou cores e formas, estruturas e corrosões. E assim entreviu o encontro da alma - essa coisa flutuante, intangível, elevada - com o arrebatamento causado pelo amor. Quem não gostaria de sentir o mesmo?

Posted by Patricia Canetti at 2:26 PM

outubro 6, 2019

Entre o Aiyê e o Orun por Thais Darzé

Entre o Aiyê e o Orun

THAIS DARZÉ

Na visão de mundo afro-brasileira os questionamentos não encontram “respostas filosóficas”, pois na tradição africana, a mitologia conta histórias que narram o início e a razão das coisas. Esses mitos, também chamados de itans dentro das religiões afro-brasileiras, formam uma vasta mitologia vinda da África, que criou o modo de ver, vivenciar e sentir o mundo de muitos brasileiros.

Entre o Aiyê e o Orun é uma exposição coletiva formada por 14 artistas que possuem poéticas relacionadas aos mitos africanos que permaneceram no Brasil e por essa razão moldaram em muitos aspectos a cultura brasileira. O Aiyê e o Orun estão em constante troca e integração, são palavras da língua iorubá, e as suas traduções significam mundo material (a terra) e mundo espiritual (o céu) respectivamente. Na cosmologia iorubá, a existência pode ser compreendida através destes dois níveis de mundo e universo. O Aiyê é o mundo humano, materializado, sentido, concreto e tocável, onde a natureza, os seres são produzidos e fiscalizados. Já o Orun está reservado para o intocável, ilimitado, transcendente, espaço dos Orixás e Eguns. Estes dois níveis se complementam, e juntos produzem a harmonia necessária ao ato de existir.

São expostas obras em diversas linguagens, como fotografia, pintura, escultura, instalação e vídeo, realizada pelos artistas Agnaldo dos Santos, Ayrson Heráclito, Caetano Dias, Carybé, Emanoel Araújo, J. Cunha, Jaime Figura, José Adário dos Santos, Mario Cravo Junior, Mario Cravo Neto, Mestre Didi, Nádia Taquary, Pierre Verger e Rubem Valentim. Há ausências, não poucas, mas as exposições nunca são completas. Entre o Aiyê e o Orun pode ser vista apenas como uma iniciativa que pretende fomentar e construir novas narrativas num viés menos eurocêntrico da história da arte, saudando nossa ancestralidade e a relação desta com identidade, mestiçagem, religiosidade, abarcando questões relacionadas à presença e à importância do negro no Brasil.

Um traço em comum entre os artistas dessa mostra é que “o conteúdo afro-brasileiro” transita no território do sagrado, sagrado esse silenciado, velado e perseguido durante séculos. Sabemos que as manifestações culturais de influência africana eram perseguidas, menosprezadas, e até mesmo proibidas até o início do século XX. É a partir dos anos 30 que tais expressões culturais passam a ser gradativamente aceitas e lentamente adotadas pelas elites econômicas e intelectuais do Brasil, que, sobretudo, passam a reconhecer a influência dos povos africanos na construção da identidade brasileira.
As diversas versões do Mito da Criação do mundo na visão afro-brasileira conduzem a proposta conceitual da exposição Entre o Aiyê e o Orun. Nas sociedades tradicionais africanas, as narrativas orais são um traço dominante para transmissão e preservação da sabedoria dos povos. Por essa razão, a pesquisa curatorial dessa mostra também considerou alguns relatos através da oralidade de membros de terreiros de diferentes nações, tais como Ketu, Angola e Jeje.

As mitologias dos povos iorubás, fon e ewé são mais ricas e personificadas. Uma rede complexa de acontecimentos narram e explicam a razão das coisas. Existem distinções entre as versões e fusões de divindades entre as duas nações (Ketu e Jeje). Segundo Lima, no início do século XIX o processo “aculturativo” entre os nagôs e jejes deve ter se acentuado na Bahia dada a participação de líderes religiosos das duas tradições em movimentos de resistência antiescravista. Já a tradição bantu não personifica as entidades que são para essa cosmologia as forças da natureza. Na visão de mundo desses povos, o raio não casou com trovão e nem a cólera é filha da lama.

Poderia estabelecer diversos paralelos do conjunto de obras da mostra Entre o Aiyê e Orun com as pinturas de Picasso, Braque, Matisse, ou mesmo Gauguin, artistas que foram profundamente afetados pela cultura africana. Outra possível comparação seria o teto da Capela Sistina de Michelangelo, porém esse caminho nos mantém no mesmo lugar de ter a cultura europeia como referencial de uma suposta superioridade. Escolho o questionamento através das palavras de Emanoel Araujo: “Será que não poderemos jamais nos livrar das definições estabelecidas por critérios definidos tão remotamente e desse olhar tão comprometido por uma cultura do racionalismo europeu e de sua hegemonia ocidental?”.

Tentar é preciso!

Thais Darzé

Posted by Patricia Canetti at 9:42 AM

outubro 1, 2019

Patricia Gouvêa - Sobrevida por Luiz Alberto Oliveira

Patricia Gouvêa - Sobrevida

LUIZ ALBERTO OLIVEIRA

Há um momento singular, quando se veleja rumo ao alto oceano, em que a presença da terra firme se esmaece, deixa de predominar, e então o mar, o céu e os ventos envolvem por completo o navegante, e tudo se torna diferente. Algo de similar se passa com os alpinistas quando avistam o cume, e com os astronautas quando o ronco dos foguetes silencia. E, é claro, quando se adentra a floresta.

A floresta condensa toda o viver, toda a vida. Inumeráveis dimensões, possibilidades de ação, movimento e desvio, simultâneas e redobradas, encarnam-se na profusão de seres, em perene mescla, em disparatada harmonia. A floresta é linguagem, mil línguas murmurando-se, mil sombras lampejando-se. Poucos infinitos nos são dados de modo tão inteiro, tão múltiplo, tão intimamente estrangeiro. A floresta tudo toma, pois está no mais de tudo fundo. Estar ali é tornar-se algo, outro; o inconsciente se estrutura como uma floresta. A Amazônia é o inconsciente do Brasil.

Sobretudo, a floresta é complexa. Muitos componentes, em muitas relações mútuas, escalonadas em muitos níveis de ordenação. Ser complexo é dobrar-se sobre si e sobre o fora. O oceano americano de clorofila se conecta com o oceano africano de silício atravessando as águas do Atlântico. Grãos de poeira são trazidos do Saara pelos ventos alíseos e nucleiam chuva na Amazônia. A evaporação da floresta recicla esta umidade, formando rios áereos que irão se despejar nas nascentes e bacias do Sudeste. As cataratas do Iguaçu advém assim do deserto - evidência da interconexão global do sistema complexo Terra - mas ainda mais notável é compreender que a transpiração da floresta é sua respiração: a floresta gera a chuva que a gera.

Este é o contexto em que podemos situar as ações humanas na e sobre a floresta. Durante milênios os povos originais ocuparam e transformaram a floresta, fertilizando-a com a terra preta de índio, semeando com castanheiras uma faixa diagonal sudoeste-nordeste de milhares de quilômetros, incorporando-se a seu corpo. Desde que o Antropoceno - a época em que o conjunto da atividade humana tornou-se uma força de alcance planetário - se instalou, porém, há pouco mais de seis décadas, um terço da extensão da mata foi destruído ou alterado. A suavidade da presença milenar indígena contrasta brutalmente com o impacto da voragem capitalista. E é aqui que a questão da sobrevida - da floresta, dos índios, do Brasil - se coloca, indesviável.

A poesia meticulosa das imagens de Patricia Gouvêa designa precisamente este horizonte de deslimites. A floresta reassimila a casa arruinada, como convém, espalha suas marcas refazendo sua pele de musgos, assoma miraculosa no bocal imóvel do encanamento perdido. O homem dá-lhe o que não carece - um nome, um centro. O tempo humano dos artefatos se afoga no ciclo imenso das terras raízes troncos e folhas, mas cautela: se a floresta vive de si, deslinear como os meandros de um igarapé, sem si se extinguirá. Como nós.

Sobrevida é sobrenós.

Luiz Alberto Oliveira
Rio de Janeiro, maio de 2018

Patricia Gouvêa - Sobrevida, Galeria Murilo Castro, Belo Horizonte, MG - 07/10/2019 a 16/11/2019

Posted by Patricia Canetti at 3:33 PM