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setembro 25, 2019
Ascânio MMM - Prisma e Quacors por Guilherme Wisnik
As peças espaciais de Ascânio MMM têm uma vocação pública, que denota seu vínculo de base com a tradição construtiva e, mais especificamente, uma proximidade com a arquitetura, e com a noção de estrutura. Daí que muitos desses trabalhos seus tenham sido instalados em espaços abertos, fora de galerias ou museus. Com efeito, no caso dessa exposição, a tipologia piramidal, remetida a formas históricas totêmicas, se combina a um novo trabalho mais aberto e abstrato (Quasos/Prisma 1), cuja escala permite que as pessoas penetrem o seu espaço interior e o atravessem. Sua consistência diáfana denota um diálogo intenso com a arquitetura moderna, para a qual a diluição de fronteiras entre dentro e fora é algo fundante na construção de uma espacialidade contínua. E, não por acaso, o volume da peça se afina ao tocar delicadamente o solo para flutuar no espaço, tal como nos pórticos seriais do MAM do Rio de Janeiro, de Affonso Eduardo Reidy.
Dependendo do ângulo pelo qual olhamos as peças espaciais de Ascânio - Quasos e Piramidais -, elas assumem aspectos mais sólidos ou mais vazados, dada a profundidade dos perfis utilizados. Também com as leves cortinas feitas de módulos de alumínio e parafusos (Quacors) acontece algo semelhante: suas distâncias em relação à parede provocam sombras cambiantes, e o halo de cor que se produz a partir das pinturas de faces laterais dos módulos cria ambiências sutilmente escapadiças, variáveis conforme o ponto de vista do espectador. Isto é: em ambos os casos há uma relação dialética entre a universalidade de sua matriz construtiva e o dado contingente da experiência que cada pessoa estabelece com os trabalhos e o ambiente ao redor.
Todas as peças são construídas segundo princípios claros (perfis modulares, encaixes e parafusos idênticos), mas as percepções que temos delas são ambíguas. Essa é uma questão crucial do trabalho de Ascânio: a idealidade da forma é temperada pela contingencialidade da percepção. Daí que ele oscile entre as fixações rígidas das peças maiores, feitas para garantir a estabilidade da forma e do volume em grande escala, e as articulações flexíveis das cortinas e malhas, nas quais a folga entre parafusos e perfis permite uma certa acomodação fluida, dinamizando o rigor das estruturas, e dando à geometria uma certa organicidade mais próxima da vida. No jogo de ambiguidade entre o bidimensional e o tridimensional produzido por esses Quacors, uma ambiência esquiva é criada. Nítida "vontade de forma". Abertura às indeterminações variáveis da vida.
Guilherme Wisnik, agosto 2019
Ascânio MMM - Prisma e Quacors, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 30/09/2019 a 14/11/2019
ASCÂNIO MMM [Fão, Portugal, 1941. Vive e trabalha desde 1959 no Rio de Janeiro, Brasil]. Exposições individuais selecionadas: As Medidas dos Corpos, Casa Triângulo, São Paulo [2016]; Flexos e Qualas, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro [2008]; Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro [1999]; Atelier Finep, Paço Imperial, Rio de Janeiro [1997]; Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo [1996]; Galeria 111, Lisboa [1995]; Subdistrito Comercial de Arte, São Paulo [1991]; Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro [1984]; Galeria Arte Global, São Paulo [1976]. Exposições coletivas selecionadas: Modos de Ver o Brasil: Itaú Cultural 30 anos, Oca, São Paulo [2017]; 10ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre [2015]; Sotto Voce, Dominique Lévy Gallery, Londres [2015]; Gigante Por La Própria Naturaleza, IVAM - Instituto Valenciano de Arte, Valência [2011]; 1ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre [2011]; IX e XV Bienal de São Paulo, Pavilhão da Bienal, São Paulo [1967 e 1979]. Principais coleções: Fundação Edson Queiroz, Fortaleza; Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro; Itaú Cultural, São Paulo; Museo de Arte Contemporáneo de Buenos Aires, Buenos Aires; Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo; Museu de Arte do Rio, Rio de Janeiro; Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro; Museu de Arte Moderna, São Paulo; Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo.
GUILHERME WISNIK [São Paulo, Brasil, 1972. Vive e trabalha em São Paulo, Brasil] é professor Livre-Docente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
setembro 24, 2019
Percurso da Artista Teresa Poester por Eduardo Veras
Percurso da Artista Teresa Poester
EDUARDO VERAS
Artista com longa trajetória, Teresa Poester (Bagé, 1954) vem se dedicando nos últimos anos a investigações de caráter experimental sobre possíveis fusões do desenho – ou do gesto de desenhar – com outras linguagens expressivas, sejam a fotografia, o livro de artista, a gravura a performance, o vídeo videoperformance e, mais recentemente, a animação.
Examina possibilidades de combinação entre a gestualidade do corpo e a reverberação de seus movimentos no desenho, ou ainda, entre o processo de criação da linha, da macha e do ponto e a observação de formas da natureza. Fotografa e desenha em um percurso inverso ao tradicional: não desenha a partir de fotografias, mas fotografa a partir de seus desenhos de imaginação.
Teresa, que é Doutora em Artes Visuais pela Universidade de Paris I (Panthéon, Sorbonne), foi durante vinte anos professora de desenho no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, tendo recentemente dado cursos, também de desenho, na UJVP- Université Jules Verne, em Amiens.
Ao lado de diferentes artistas tanto no Brasil como na França tem desenvolvido um trabalho coletivo que alimenta sua prática individual. Pesquisando de forma teórica e prática as inúmeras possibilidades do desenho na contemporaneidade – sua autonomia como linguagem artística, seus trânsitos e seus desdobramentos , trabalha entre os limites tênues entre a figuração e a abstração.
Apresentando regularmente sua produção em exposições individuais e coletivas, Teresa vai progressivamente, em um percurso não linear, mas feito de idas e vindas, voltando-se à abstração – embora mantenha, nunca de maneira óbvia, a paisagem como referência.
Em sua trajetória destacam-se séries como os Jardins d´Eragny, feita de linhas leves, frequentemente riscadas com caneta esferográfica; e, mais recentemente, os Anagramas, que conjugam matrizes da gravura em metal, manipulações digitais e desenho livre, em uma insuspeitada orientação caligráfico-matemática.
Essas preocupações criativas e experimentais, da artista sintetizam-se em seus projetos e exposições.
Eduardo Ferreira Veras Crítico de Arte
Historiador de arte e Professor do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul , Porto Alegre, Brasil
setembro 20, 2019
Renata Tassinari - Beiras por Taisa Palhares
Sua beleza é total
Tem a nítida esquadria de um Mantegna
Porém como um Picasso de repente
Desloca o visual [1]
Sem expor individualmente na cidade de São Paulo desde 2015, Renata Tassinari apresenta um recorte de sua produção mais recente em sua primeira exposição na Galeria Marília Razuk. Trata-se de três conjuntos de trabalhos [2] nos quais a artista explora de maneira diversa elementos marcantes de sua poética desde meados dos anos 2000: as relações entre cor a partir de uma estrutura combinatória aparentemente simples, e o jogo com o espaço arquitetônico. É também nesta década que o trabalho irá se constituir de maneira original na tensão entre a autonomia das cores e a fisicalidade do material, quando a artista incorpora a superfície do acrílico e a textura da madeira na composição. Neste momento, os trabalhos ganham em intensidade ao tencionar os limites da pintura que surgem ao mesmo tempo como objetos manufaturados e pura virtualidade pictórica.
Essas características são retomadas no conjunto atual, contudo com importantes variações. Como em fases anteriores, na base de seu fazer pictórico temos retângulos e quadrados padronizados que convivem em harmonia, mesmo que as combinações sejam a princípio dissonantes. Essa forma quase impessoal de organização está presente na série de desenhos “Xadrez” e na grande pintura “Quadrado Vazado”, apresentados na primeira sala da exposição. Mas aqui chamam a atenção a grade branca entre os planos chapados de cor e o espaço vazado da pintura. De certa maneira, nota-se de saída que esses trabalhos pretendem se deslocar pelo espaço, em alguns casos sugerindo até mesmo continuidade com a parede. Sem dúvida, a referência é Mondrian. Mas é preciso confessar: um Mondrian um tanto esquisito no qual a grade preta se transforma na grossa linha branca feita por meio de máscaras, o que torna o espaço entre os retângulos coloridos aerado.
Em certa medida, também estamos longe da racionalidade objetiva das cores primárias que domina as composições do artista holandês. Aqui diríamos que Matisse com seus encontros de tonalidades improváveis (em que cores complementares convivem harmoniosamente ao lado de pequenos hiatos) foram geometrizadas numa estrutura que sugere antes de tudo a leveza e a alegria das descobertas intuitivas e dos achados casuais. Há sim, naturalmente, toda uma ciência por trás da combinação de cores de Renata Tassinari, um saber conquistado com paciência ao longo dos anos, e que hoje se revela em sua maturidade. Mas a exemplo daquele tipo de conquista que se dá de forma quase natural e acumulativa, seus trabalhos aparentam a leveza das brincadeiras infantis. O preto, contudo, não deixa de ser uma presença decisiva, mesmo que não mais enquanto estrutura quadriculada. Ele é, a meu ver, aquela unidade constate que surge em diferentes posições e tamanhos e dá a nota grave e concreta que modera a vibração flutuante das superfícies.
Será na série intitulada “Beiras” que a vocação espacial das pinturas de Renata Tassinari se realiza em sua potência maior. Nestas pinturas quase esculturas aquela linha orgânica dos desenhos se autonomiza e incorpora a cor, experimentando um novo espaço. Expostos pela primeira vez em 2018, eles podem ser montados de diversas maneiras na parede, ora desaparecendo no canto superior de uma quina real, ora recriando os limites da arquitetura ao formarem desenhos que deslocam as fronteiras do observador. Concisos e complexos, vistos à certa distância traçam linhas coloridas que invocam a continuação e um possível entrecruzamento virtual, perfazendo deste modo a ordenação estrutural das pinturas no universo tridimensional. Entre estes e aqueles, o grupo de painéis em L faz a passagem ideal: o quadrado vazado é aberto e as arestas, individuais ou em duplas, instauram um movimento de expansão em direção ao mundo.
Há uma certa alegria nesse conjunto de obras, mesmo que contida. Mais soltas, tanto a cor como a linha dançam uma melodia que rompe a monotonia da repetição do “uma coisa depois da outra” do nosso cotidiano cada vez mais idêntico e enfadonho. Todavia, sem perder o fundamento que possibilita sua realização.
Taisa Palhares
Agosto/2019
[1] Trecho do poema “Sua Beleza” de Sophia de Mello Breyner Andresen.
[2] Essa divisão é de minha inteira responsabilidade.
setembro 17, 2019
Desideratum / Desejante por Adolfo Montejo Navas
Desideratum / Desejante
ADOLFO MONTEJO NAVAS
Já Maimônides, o filósofo árabe de Córdoba do século XII, colocou a imaginação no patamar mais alto do conhecimento sobre o resto das atividades humanas. E é precisamente como fruto dessa natureza plástica, maleável mas também plausivelmente rigorosa ou científica que a pesquisa de Mauro Espíndola respira uma especulação linguística que é ao mesmo tempo temporal e cultural, sobretudo quando o que se divisa no horizonte é um museu imaginário que joga com a ciência e a taxonomia, o desenho, a monotipia e a cultura mais híbrida da imagem, aquela que repousa iconograficamente, incluso campo afora da arte. E em consequência, estabelece uma dialética com a memória e o presente, a vida e a morte como ciclos sempiternos, aliás, como vasos comunicantes do trabalho do artista. Onde de novo também aparece a figura identitária da heteronímia no nome do Dr. Emanoel Leichter, assim como os jogos da realidade e da ficção construindo sua própria indivisível teia de aranha, uma armadilha semântica que pode assombrar aos mais incautos ou fiéis dos maiores dogmas positivistas de que tudo é categorizável, só circula pelos mesmos canais que dita o chamado ainda melancolicamente progresso, com sua ordem impositiva, linear, nunca cosmológica.
De fato, nesta aventura plural do artista: de pesquisa, de construção, de apresentação de certo bestiário, se pode contemplar um inventado tratado visual que tem como correlato as expressões latinas, porém funcionando na base da aparência para subverter o que esta língua morta ainda pode significar quando a ironia visual e conceitual eleva seus significados. O inventário gráfico relata uma coleta de restos de animais: mariposas, borboletas, insetos, batráquios, répteis... cuja apresentação é oferecida como um antigo tratado de estúdio.
No fundo, a criação de uma topologia artística que responde ao locus de um lugar quase não-lugar, porque sobre eles gravitam, por partida dupla, a sensação de estranheza e de pertença. De estar numa margem em que o tempo habita de forma diferente o espaço… obrigando a escutar tudo como semente, genealogia, parentesco, em suma, incorporação, melhor, encarnação. Assim, de novo, a arte se imiscui em territórios limítrofes, desenha, fotografa, filma situações em que o canto da vida animal se submerge no húmus da matéria, no magma que absorve tudo para que o giro das coisas, a ronda do mundo continue com suas metamorfoses. Daí que a glória, a impermanência, a ruína, a vidência, a aura, os segredos da observação, o trânsito, a imortalidade, o umbral, thanatos e o espírito estejam com suas legendas a pé de imagem propondo sua leitura enigmática, aparentando a forma e considerações de um novo desideratum que religa uma expografia que é uma fábula visual.
Animalis Imaginibvs tem esse recurso de ser uma oferenda que olha a roda da vida em seu segredo físico, matérico, uma nova investigação que pede asas próprias, seu desejo de pictura desvendada.
Adolfo Montejo Navas - curador
setembro 12, 2019
Lenir de Miranda - Pintura périplo por Icleia Borsa Cattani e Paula Ramos
Lenir de Miranda - Pintura périplo
ICLEIA BORSA CATTANI e PAULA RAMOS
Pintura périplo traz ao Margs as obras mais recentes de Lenir de Miranda (Pedro Osório, RS, 1945), realizadas entre 2017 e 2019. Intitulada Ninguém – Eu – Migrante, a série dá continuidade aos temas que a artista vem trabalhando desde o início da década de 1980, como o personagem Odisseu/Ulisses, herói mítico que conduz a Odisseia de Homero (século VIII AEC) e que foi retomado por muitos escritores ao longo dos séculos, culminando com o romance Ulisses (1922) de James Joyce, recriação moderna do mito. A partir da literatura, fazendo-a dialogar com o seu pensamento visual, a artista desenvolveu um verdadeiro périplo pictórico. A palavra périplo, originalmente, significa navegação em torno de um mar, de um país ou de um território; aqui, encontramos um circuito, aventuroso e cheio de surpresas, em torno da pintura. Partir, viajar, arriscar-se, chegar só provisoriamente ao destino, partir novamente: é assim que se desenvolve a pintura de Lenir de Miranda, que revive constantemente, na sua prática artística, o próprio mito de Ulisses.
A nova série de trabalhos abre, também, para outra problemática, simultaneamente antiga e contemporânea: as migrações, provocadas em primeiro lugar pelas desigualdades sociais que mantêm a maioria da população mundial na pobreza mais absoluta, e pelas guerras e perseguições políticas, que também surgem para manter o status quo. Mas, para a artista, as migrações têm a ver, simultaneamente, com os deslocamentos subjetivos, que engendram novas identidades. As migrações, portanto, no espaço da utopia que é a arte, celebram as possibilidades de escolha e de mudanças.
Lenir constrói essas novas pinturas, mais do que nunca, a partir de recortes e colagens, de retalhos e fragmentos: de pinturas anteriores, objetos, sucatas, elementos naturais ou manufaturados. Elas se destacam pela força da matéria e da cor, pelos jogos de formas e objetos anexados, pelas associações possíveis entre os títulos e as imagens. A sua fragmentação física e material remete ao próprio processo migratório, no qual o mundo se divide em antes, agora e depois; em lá, aqui e além – na partida, no trajeto e na chegada ao outro lugar, quando este existe.
Ao lado da nova série, algumas obras de fases anteriores estão presentes, entre as quais pinturas realizadas nos anos 1980, quando Lenir iniciou sua investigação acerca de Ulisses, pinturas da série Fragmentos da terra, apresentadas na Rússia, em 2014, além de livros de artista, assemblagens, fast-foods e os chamados “poemáticos conturbados”. Pois, embora fundamentalmente pintora, Lenir de Miranda também trabalha, desde sempre, com outras modalidades das artes visuais contemporâneas. Elas fazem parte da trajetória da sua obra, múltipla, proliferante e, acima de tudo, coerente.
Icleia Borsa Cattani
Paula Ramos
curadoras
setembro 11, 2019
Zanine Caldas 100 anos – Forma e Resistência por Tulio Mariante
Zanine Caldas 100 anos – Forma e Resistência
TULIO MARIANTE
“Em Nova Viçosa, o que me angustiou foram
aquelas madeiras imensas serem queimadas
e jogadas fora.”
Zanine Caldas
José Zanine Caldas, maquetista, arquiteto, paisagista, professor, designer e artista, mas acima de tudo um cidadão.
Esta exposição Zanine 100 anos – Forma e Resistência comemora os 100 anos de nascimento de Zanine Caldas, com uma seleção de seus trabalhos como designer e artista plástico, onde a madeira é o principal personagem. Madeiras que Zanine coletava em restos de abates irregulares e usava como forma de denúncia e resistência.
Zanine começou sua carreira como maquetista dos principais arquitetos modernos brasileiros, como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Autodidata, foi autor de modelos de alta qualidade e criador capaz de propor aos arquitetos soluções para impasses em seus projetos. Seu talento o levou a percorrer os caminhos da arquitetura e do desenho de móveis que acabaram por lhe conferir o título de Mestre da Madeira. Zanine saiu em busca de projetos que atendessem à demanda de um novo estilo de mobília que se adequasse aos novos espaços de um viver mais brasileiro. Nascido no Sul da Bahia, em 1919, muito jovem se mudou para São Paulo, e, em 1948, criou a indústria moveleira Móveis Artísticos Z, inspirada na descoberta da madeira compensada, que evitava o desperdício.
Sua empresa produziu móveis em larga escala, durante mais de dez anos, para a classe média, com forte influência modernista e com preços acessíveis. Arquiteto e designer de prestígio, já no final dos anos 1960 se destacou por explorar o potencial construtivo e a qualidade estética da nossa madeira. Fundou em 1980, no Rio, o Centro de Desenvolvimento das Aplicações da Madeira (DAM), que estimulava a pesquisa sobre o uso das madeiras brasileiras de forma a prevenir a destruição das florestas. Zanine morreu aos 82 anos, deixando um legado que mistura sua vida à história do design e da arquitetura brasileira.
Esta exposição foi produzida pela família do Zanine Caldas e teve o apoio de Etel Design e Escritório de Arte Marcela Bartolomeo.
Tulio Mariante
Curador de Design do MAM Rio
A ponte é uma projeção que liga dois polos por Max Perlingeiro
A ponte é uma projeção que liga dois polos
MAX PERLINGEIRO
A idealização desta exposição/publicação - Leonilson por Antonio Dias – Perfil de uma coleção - iniciou-se em outubro de 2015 em Fortaleza, no Ceará, e prolongou-se até 2017. Durante longas conversas com Paola Chieregato e Antonio Dias, construímos juntos uma linha de afetividade.
Era a vontade de Antonio, além de mostrar a coleção, contar esta história, sua visão e sua amizade pelo “Leo”. E assim tudo começou: Milão, Itália. Outono de 1981. Madrugada fria. Estação de trem. Desembarca Leonilson, vindo de Madri. Depois de beber algumas xícaras de café para acordar, resolve ligar:
AD – Alô?
JL – Antoim!
AD – Quem é?
JL – É o Zé!
AD – Que Zé?
JL – O Zé Leonilson.
AD – E quem te deu meu telefone?
JL – Foi o Piza.
AD – Então vem pra cá!
Leonilson sai do Brasil em 1981. Chega a Madri, onde é recebido por seu amigo Luiz Zerbini. Faz sua primeira exposição individual internacional, “Cartas ao hombre”, na Galeria Casa do Brasil. Na Europa, decide viajar para Nienburg Weser, Paris, Cuenca, Frankfurt, Florença, Milão e Barcelona. Em sua chegada a Milão, foi recebido por Antonio Dias, que logo se admira com seu trabalho: “Ele bateu à minha porta em Milão recomendado pelo Piza. Se o Piza indicou, deve ser bom”. Leonilson conheceu Arthur Luiz Piza (1928-2017) em Paris, por intermédio de Geraldo Holanda Cavalcanti, embaixador do Brasil junto à Unesco (Paris 1978-1981).
Comentário de Leonilson sobre este momento, em conversa com Adriano Pedrosa em 4 de março de 1991, em “Leonilson: truth, fiction, conversas concentradas” (São Paulo, Pinacoteca do Estado, 2014. p. 224)
Eu tinha alguns desenhos que já tinha feito nesse meio tempo. E ele falou: “Ah, você é artista também...” Eu falei: “Sou”. Eu acho que falei: “Sou” – naquela época eu achava que era. Ele viu os desenhos, gostou e falou: “E para onde você vai agora?”. Eu falei: “Ah, não sei, acho que vou procurar um hotel”. Ele falou: “Não, vem morar aqui comigo, aqui em casa”. Ele morava sozinho nessa época, num apartamentão.
Desta época, seguem palavras de Antonio Dias:
Me mostrou alguns desenhos e fiquei encantado. Indiquei uma galeria em Milão do [Enzo] Cannaviello, que foi seu primeiro galerista e falei: “Não fala que me conhece, fala que é um jovem artista querendo uma oportunidade”. E deu certo. O galerista estava em busca de jovens talentos. Quando retornou para casa estava assustado. Disse que o cara queria comprar tudo. Em seguida, foi convidado para participar de exposições, entre elas Giovane Arte Internazionale na Galleria Giuli em Lecco. E passou um tempo na minha casa. Sua distração era ler tudo o que eu tinha disponível nas estantes. Apresentei-o também ao Bonito Oliva (1939), o criador da Transvanguarda.
Leonilson retorna ao Brasil ao final do ano de 1981. Pelas mãos de Antonio, conhece a galerista Luisa Strina, em São Paulo, e Thomas Cohn, no Rio de Janeiro, que adquirem seus trabalhos.
Uma vez estava sem grana em Milão, e o Antonio falou: “Luisa [Strina], o Leo está sem dinheiro aqui, como é que a gente faz? E ela falou: “Dá um dinheiro para ele e, quando ele chegar ao Brasil, me dá uns desenhos”. O Antonio me deu quatrocentos dólares, eu acho. E eu fui para Bolonha. (Conversas concentradas. p. 225)
Entre o Brasil e a Itália, a amizade solidificava-se, e os registros em sua agenda pessoal tornam-se mais frequentes. Em janeiro de 1982, conta Antonio Dias: “Veio para o Rio de Janeiro e passou uma semana na minha casa. Aí apresentei ao Thomas Cohn, que abriria uma galeria na Rua Barão da Torre, em Ipanema, em março de 1983”. Entre idas e vindas à Itália, cabe ressaltar a visita que fazem juntos a exposição “Transvanguarda”, no dia 2 de junho de 1982. Independentemente da mútua admiração, Leonilson sofre influências de Antonio Dias. Em sua tese, “José Leonilson: entre linhas e afetos”, Renata Perim diz o seguinte:
E nesse eixo – sobre a formação do artista – cabe falar também do interesse de Leonilson pela produção de Antonio Dias. Percebe-se que alguns elementos usados na década de 1980 já faziam parte do repertório de Dias, que vinha de uma geração anterior. É assim que Paulo Sérgio Duarte, ao falar da obra de Antonio Dias, da década de 1970, anuncia algo que ecoa na poética de Leonilson. O crítico aponta que Antonio Dias, “ainda que mantendo seu centro na reflexão sobre a prática pictórica e seus limites no mundo contemporâneo, se estende explorando diversos suportes e media, como o filme, o disco, as instalações e a performance.”
É aí que observamos uma inter-relação com o trabalho de Leonilson: a variação do suporte foi uma atitude empreendida por ele desde o início de sua produção artística. Dado o viés de aproximação entre os dois artistas, destaca-se outra observação do crítico:
Os trabalhos de Dias alcançam diversos momentos de riqueza plástica através de uma poética capaz de coordenar uma arquitetura rigorosa e despida de ornamentos com uma gratificante manifestação de cor associada a títulos/textos integrados na tela.
Daí, ao observar os trabalhos de Leonilson, já no início da década de 1980, se o uso da palavra como recurso conceitual e imagético é uma força expressiva, cabe também apontar para a natureza praticamente inventada do ornamento e da extensão da cor (uma situação quase oposta ao que acontece com Dias), como elementos de um desejo que se instalam em definitivo e inscrevem a marca do artista. Guardamos aqui o recurso conceitual, dessa proposta de Antonio Dias, de submeter a matéria à “arquitetura do conceito” (Ricardo Basbaum, em “Arte contemporânea brasileira – texturas, dicções, ficções, estratégias”, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2001, p. 89). Leonilson parece ter absorvido o suficiente para aderir à geração que o evidenciou, mas filtrando o fluxo com uma espécie de respiração interna de sua relação com a arte, e que suas vivências tornavam possível. O exercício do prazer de pintar.
Em meados dos anos 1980 até o início dos anos 1990, Antonio fica a maior parte do tempo na Europa, entre Itália e Alemanha, mas, sempre que possível, sua correspondência com Leo mostrava o entusiasmo com o sucesso do amigo no Brasil. O retorno dessa nova temporada de viagens de Leonilson ao Brasil é festejada com muitos convites para exposições, tanto nacionais quanto internacionais, além das mostras simultâneas nas duas maiores galerias brasileiras, Luisa Strina (São Paulo) e Thomas Cohn (Rio de Janeiro). O ano de 1985 é bastante agitado para o artista: participa da XII Nouvelle Biennale de Paris, da coletiva “Nueva Pintura Brasileña”, no Centro de Artes y Comunicación, em Buenos Aires, com os amigos Leda Catunda e Sérgio Romagnolo. Participa, ainda, da XVIII Bienal Internacional de São Paulo, apresentando seus primeiros trabalhos tridimensionais, com pirâmides de livros e globo de cobre. Nesse ano, também conhece o artista alemão Albert Hien, com quem desenvolverá projetos conjuntos e uma exposição.
Em entrevista, Leda Catunda relata o período de aproximação com Leonilson e os primeiros anos de amizade e de produção, assim como a amizade com Sérgio Romagnolo:
“Nos conhecemos em 1983 porque ele foi à exposição que nós estávamos fazendo, ‘Pintura Como Meio’, no MAC-USP. Era eu, Sérgio Romagnolo, Ana Tavares, Ciro Cozzolino, Sérgio Niculicheff, e ele ficou supercontente com a exposição. Ele já havia feito duas individuais na Luisa Strina e no Thomas Cohn, saído na ‘Veja’, as pessoas já o conheciam. Daí, ele me ligou e falou: ‘Ah, eu vi sua exposição, gostei tanto, vamos nos encontrar’. E aí foi que a gente se encontrou e teve essa coisa que hoje percebo como foi rara, pois nos demos muito bem e muito rápido! E para sempre, né? A partir do momento em que nos encontramos, passamos a nos encontrar toda semana, até uma hora que a gente se encontrava todos os dias e também ele teve essa proximidade com o Sérgio Romagnolo, até que o Sérgio foi morar na casa dele e nós nos tornamos um grupo muito próximo e ele tinha muita identificação com o meu trabalho. Acho que gostava da coisa dos tecidos. Quando ele frequentava o meu ateliê e eu o dele, nós íamos comprar tecidos juntos. Então, a gente tinha essa proximidade. Então, nos encontramos por uma iniciativa dele e, também, começamos a trabalhar juntos na mesma galeria, porque ele nos apresentou. Fizemos uma coletiva em 1984 na Luisa Strina, eu, ele o Sérgio, o Ciro, e depois na Thomas Cohn.”
É através de um contato e uma indicação de Leonilson que alguns amigos têm acesso à exposição “Como Vai Você, Geração 80?”. Também nesse período mantém o primeiro contato com Daniel Senise, como relata Leda Catunda na mesma entrevista:
“[...] como o Leonilson era o mais conhecido, o curador, que era o Marcus Lontra, entrou em contato com ele e ele disse: ‘ah, sim, eu e os meus amigos vamos ficar na sala principal’. E arranjou a sala do Parque Lage para nós, a do meio mais ao fundo. Eu me lembro que havia uma pintura bem grande do Daniel Senise na frente, que a gente também foi conhecer naquela mesma época, e nós quatro ficamos dentro dessa sala, que era a sala de visita, apesar de que é uma sala toda decorada, muito difícil de mostrar, mas foi também através do Leonilson o mais famoso.
Sabendo da saúde frágil de Leonilson, Antonio Dias escreve uma última carta em 3 de maio de 1993, poucos dias antes de sua morte.
“[...] Agora, eu penso em você todo dia. O ano passado foi muito duro, acabei ‘estressado’. Fui passar uns tempos em Milano, tive outra paralisia no rosto e fui me curar com o chinês. Antes de voltar, peguei dois trabalhos seus e resolvi trazê-los para Colônia. Todo dia passo em frente e lembro de você.
Fiquei muito emocionado quando recebi sua carta com a Biblioteca/Espelho. E gostei tanto do que a carta dizia. Gosto muito de ter você como amigo. Estou pensando naquela ponte que você fez em Milano, que agora está no ateliê do Rio. Fica lá pegando poeira, mas eu não me importo, não consigo entender aquilo dentro de uma caixa de acrílico. É interessante caminhar em cima da ponte, fazer a ponte. Neste momento eu não sei aonde estou na ponte. Acho que é ainda naquele pedaço horizontal, que liga dois polos. Uma ponte é uma projeção. Aonde acaba a ponte? Acaba onde toca um outro ponto. Creio que isto é a maravilha da compreensão. Eu só vou chegar no Brasil em fins de julho, gostaria muito de lhe rever e dizer novamente que eu gosto mesmo de lhe ter como amigo.”
Infelizmente, não deu tempo.
Max Perlingeiro
setembro 8, 2019
Imaginação fabulosa por Solange Farkas
Imaginação fabulosa
SOLANGE FARKAS
De potência singular, a produção pictórica de Ana Elisa Egreja se constrói em torno de um pequeno conjunto de obsessões recorrentes: a tematização dos espaços da arquitetura e da maneira como conformam e são conformados pela domesticidade; a deferência aos arranjos clássicos da pintura, em especial a natureza-morta; e a busca exaustiva de realismo na representação de materiais, superfícies e texturas, aqui servindo a uma imaginação literalmente (e cada vez mais) fabulosa.
Os trabalhos reunidos na exposição Fabulações atestam uma trajetória que, curiosamente, começou a ganhar impulso ao passar por esse mesmo espaço, em 2008, quando a artista foi premiada no 15º Salão da Bahia com a pintura Natureza morta com três patos sobre tartan verde. Então recém formada e integrante do grupo 2000e8, de artistas que tinham em comum a pintura e o desejo de atualizar o debate em torno dela, ela seguiria dando forma a uma investigação peculiar, que ao mesmo tempo mobiliza, desafia e garante a justa pertinência a seu arsenal de recursos técnicos.
Suas séries exemplificam as formas como, movendo-se por um mundo de espaços íntimos povoados por sombras e memórias, sensações e associações, ela ora se detém em um elemento-chave – como vidros ou reflexos e a forma como filtram a luz, as coisas, o mundo –, ora agrega o disparatado para embaralhar referências, tempos, realidades. Se em trabalhos iniciais lhe bastavam como estudo colagens digitais de imagens pesquisadas na internet, logo a ideia de encenação se impõe fortemente, exigindo esforços de produção que a fazem recorrer à instalação, ainda que, pela complexidade, remetam mais ao cinema.
Um marco, nesse sentido, é Jacarezinho 92, conjunto de pinturas em que monta e retrata cenas ambientadas na casa onde os avós viveram, e que lhe serviu de ateliê por dez anos, introduzindo nelas elementos externos e improváveis, como a água que alaga e transforma, inexorável, um salão originalmente grandioso. Na recente Cobogós, pintura-instalação formada por 169 telas de 20 x 40 cm, a narrativa se serve dos elementos vazados da arquitetura vernacular brasileira e das linhas modernistas da Casa do Campo Verde, de Rino Levi, enquanto se rende ao chamado enigmático da presença humana que esmaece nos espaços abandonados.
setembro 5, 2019
Bispo do Rosário: as coisas do mundo por Ricardo Resende
Bispo do Rosário: as coisas do mundo
RICARDO RESENDE
Dizem que Arthur Bispo do Rosário ouvia vozes que o ordenava a organizar o mundo. E, nessa tarefa de dar conta das coisas terrenas, preparou também uma obra para o Juízo Final que carregou ao longo da vida, como se fosse uma condenação. Um trabalho autoral, único, que serviu de testemunho da sua experiência pessoal, religiosa, filosófica e, claro, manicomial (não foi pouco tempo: passou 50 anos entre idas e vindas de manicômios, depois de ter sido diagnosticado como esquizofrênico).
Seria sua obra um testemunho dessa passagem pela Terra, um luto diante da finitude do corpo e da impossibilidade de uma vida plena fora dos muros do hospício? Foi uma condição que lhe foi imposta pela sociedade, claro, descrente de suas visões religiosas alucinadas.
Um artista: é assim que devemos identificá-lo, mesmo não considerando ele próprio que o que fazia seria arte. É certo, Bispo organizou a seu modo um mundo, como uma necessidade para se apegar à vida, e deu a isso, sem querer, forma de arte. Desfiava os uniformes azulados usados no hospício e, com os fios, delicadamente mumificava seus “pertences”. Assim, criou cerca de 900 peças; todas partes de um imenso “xadrez”, em que retratou a poética do cotidiano humano, da vida fora e dentro de um dos maiores polos manicomiais do país, a Colônia Juliano Moreira, no que era, à época, os cafundós do Rio de Janeiro, atual Jacarepaguá.
Organizava essas coisas, serializando-as, como se estivesse na linha de produção de uma fábrica – de tecidos, quiçá. Refiava, costurava, bordava e recobria com linha azul. Catalogou insistentemente os objetos, nomeou-os minuciosamente, em clara intenção de museificá-los, preservá-los para gerações do futuro.
Esse mesmo arquivo de objetos que organizou foi recatalogado no grande Manto da Apresentação (s.d.). Toda a obra está ali bordada, adornando luxuosamente a roupa requintada que, como rei, iria vestir para o encontro com Deus. Também como o profeta Noé, Bispo construiu seu Grande Veleiro (s.d.), onde guardaria tudo aquilo que queria preservar do mundo material dos homens, no fim dos tempos, no outro grande dilúvio que se abateria sobre as terras e oceanos.
Esta exposição pretende criar um diálogo de Bispo do Rosário com o espaço expositivo da Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA). Este em que, antigamente, funcionava a Fábrica São Pedro de tecidos, fundada em Itu, em 1910. E cuja produção se destacou em pouco tempo – já em 1912, operava com mais de 150 teares; em 1944, contava com 2 mil operários e foi a que mais empregou na cidade nesse setor.
Cresceu para os lados: são hoje mais de 20 mil metros de área construída. E, apesar de esse palco do trabalho operário ter tido suas atividades encerradas em 1990, prenunciando novos tempos e em meio à abertura do mercado têxtil para os chineses, a história da fábrica não se apagou. Em 2017, a FAMA inaugurou uma nova era de ocupação para os velhos galpões em estado ruinoso. Agora, os prédios guardam não só a memória do lugar, mas também abrigam arte. Um acervo que vem se avolumando a cada dia.
Em Bispo do Rosário: as coisas do mundo, a seleção de trabalhos de Bispo observou o gesto de serializar, organizar e multiplicar como prática artística, tal qual se via na indústria têxtil, quando os operários é que “produziam” as coisas que seriam usadas no cotidiano. Canecas, pentes, gravatas, sapatos, sandálias, chapéus e roupas; são essas as coisas organizadas por Bispo em suportes que lembram as vitrines dos camelôs de ruas, vendedores ambulantes que se espalham pelas ruas das cidades do país com seus mostruários de mercadorias a serem vendidas.
Vitrines que fazem um paralelo entre o expediente controlado do operário braçal, conduzido a repetir gestos e ações serializadas por horas a fio, e o dia a dia dos pacientes dos manicômios. Como a história que Bispo viveu na Colônia Juliano Moreira, refazendo gestos diária, insistente e compulsivamente por décadas, até sua morte na cidade do Rio de Janeiro. Foi diante dessa condição asilar que Bispo inventou seu próprio espaço de viver, uma fuga da normatividade que rege a vida humana nesses lugares, a fábrica, o hospício e fora deles.
É esse universo que se pretende apresentar ao público do interior paulista Bispo do Rosário, o artista não artista, aquele que nega sua condição de criador. Uma mostra de 50 trabalhos que indicam a sua insistência de pertencer ao mundo da produção, criando coisas da vida cotidiana. Também a sua maneira de nos contar da sua passagem pela vida terrena.
Bispo do Rosário: as coisas do mundo também cria um diálogo de Bispo do Rosário com quatro artistas da coleção da FAMA. São elas: Louise Bourgeois, Carmela Gross, Nazareth Pacheco e Sonia Gomes. Em comum, têm o gesto de costurar e construir coisas da mesma maneira como fazia o sergipano. Mulheres que se acostumaram a tecer o mundo.
Ricardo Resende
Curador
Fábrica de Arte Marcos Amaro - Itu
Sonia Andrade - Às contas por Katia Maciel
Sonia Andrade - Às contas
KATIA MACIEL
As contas chegam todos os meses impressas em pequenos papéis lacrados trazidas pelo carteiro condenado a ser o portador das más notícias. Não apenas as esperadas, mas aquelas inacreditáveis como a de luz ou a do IPTU desprovidas de qualquer sentido contábil.
Às contas, bem estas são outras. São aquelas que a artista carioca Sonia Andrade juntou por 50 anos e nos apresenta, todas de uma só vez, como raios aterrados no Museu de Arte do Rio de Janeiro. Sonia reuniu suas contas de gás, luz, água, esgoto, telefone fixo, celular, televisão à cabo, internet e ancorou-as literalmente. Correntes suspensas içam os papéis em blocos a nos acenar os custos de uma vida inteira iluminadas por fios de luz na imensa sala escura. Um filme kafkaniano na infinitude e incompletude de um processo. Sonia uma das primeiras artistas da videoarte nos revela com um flash nossa imagem mais contemporânea. A dívida. Atenção à altura. Não alcançamos o topo, estamos soterrados, muito abaixo do cume do metal suspenso. Nosso corpo não é a medida para a enormidade dos avulsos e logo olhamos para cima, mas estamos no rés do chão. Deleuze nos anunciava no seu texto sobre a sociedade de controle, seremos números e agora nem mesmo isso.
Sonia me diz. Não esperava. Duas pessoas choraram.
É para chorar e muito porque não temos como estar fora desta obra. Cada um de nós está preso e içado por estas correntes como escravos do mais perverso sistema financeiro que já existiu, pós-mercantil, pós-produtivo, um capital sem lastro real ou existente, flutuante e aterrador.
A instalação Às contas de Sonia Andrade é um oceano de derivações. É construção de imagem, é pesquisa de arquivo, é forma escultórica, é poesia e é um tapa na cara dos mercados, todos eles, que afundam corpos e almas sem jogar botes salva vidas.
setembro 3, 2019
Elvis Almeida - Estrada nebulosa sem olhos de gato por Pablo León de la Barra
Elvis Almeida - Estrada nebulosa sem olhos de gato
PABLO LEÓN DE LA BARRA
A Galeria Mercedes Viegas apresenta Estrada nebulosa sem olhos de gato, segunda individual de Elvis Almeida na galeria. A exposição reúne 18 pinturas inéditas do artista, e tem sua abertura no dia 6 de agosto. Infiltrada pelo grafite, a sinalização urbana e o comércio popular, “Estrada” explicita uma arquitetura em movimento, seduzida por curvas hipnóticas e atacada por cores vibrantes.
Estação de Ramos. Bairro dividido em dois pelos trilhos da linha de trem, e separado da antiga praia de Ramos e da Baía de Guanabara pela construção da Avenida Brasil na década de 1940. Grafites nas colunas da estrada elevada. Em uma parede, o escrito pintado a mão, NEM ELEIÇÃO NEM INTERVENÇÃO MILITAR! REVOLUÇÃO JÁ! UNIDADE VERMELHA. As letras são apagadas pelos empregados da estação. Casas do final do século XIX e edifícios Déco dos anos 20/30 indicam que o bairro já viveu tempos melhores. Um grande cinema estilo Déco abandonado. A uma distância próxima, pode se ver o teleférico do Complexo do Alemão, desativado há três anos. O estúdio que Elvis Almeida compartilhava com outros grafiteiros na Rua Uranos ficava quase em frente a estação. O som da rua e o ruído contínuo dos trens levando trabalhadores ao centro e de volta para casa é parte do cotidiano do artista. A fachada de um prédio próximo está coberta de azulejos que formam desenhos geométricos, estes pichados por cima de maneira aleatória. Estas duas camadas coexistindo na mesma superfície, uma racional, ordenada, e a outra, urbana, com ritmo próprio, pareceriam oferecer a mesma sobreposição de diferentes ordens que acontece na pintura de Almeida. Ramos é o bairro onde Almeida nasceu, cresceu e vive, ali foi onde seus pais se estabeleceram quando migraram do Nordeste. A relação com a estética do contexto imediato poderia ser um dos muitos pontos de entrada para entender a pintura de Almeida. A cultura popular urbana que se manifesta nas fachadas e nas decorações das casas, lojas e botecos. A relação entre diferentes camadas de decoração e informação que produzem uma estética urbana popular que Almeida rearranja, enaltece e incorpora com humor e como forma de resistência, que possibilitam que a pintura de Almeida seja tão carioca sem replicar os clichês post-bossa nova da carioquice. Qual é a mudança radical que aconteceu nos últimos 10 anos no Rio, que permitiu a uma nova geração de artistas da periferia carioca, que não pertencem a Zona Sul, ter acesso aos sistemas de arte e cultura do Rio? Dentro do momento político atual do Brasil, com o desmoronamento dos sistemas de educação e cultura (entre muitas outras coisas), torna-se ainda mais urgente a presença das vozes diversas que questionam as narrativas dominantes e dão visibilidade a realidades mais complexas.
As pinturas de Almeida não tem títulos, portanto não existem chaves de entrada para o espectador que procura uma única leitura a partir do título da obra. Isto obriga ele/a a olhar o trabalho para decifrar o que acontece em cada tela, criando assim a possibilidade das pinturas serem interpretadas de maneira autônoma, de serem batizadas pelo espectador. As abstrações produzem diferentes significados dependendo da pessoa que as olha. Eu me arrisquei no exercício de dar nomes, ou títulos, a algumas telas: Paisagem Guignard Século XXI, White Horses ou Os cavalos do Apocalipses Carioca, Quatro luas com lágrimas sobre o Rio de Janeiro ou Olhos de gato na obscuridade de Guanabara, Momentos perdidos no tempo como lágrimas na chuva, Quarta-feira de cinzas, Pinball Intergaláctico ou Show de Bola, Brasil 3000 ou Matrix encontra Tron encontra Bola Preta, Fogo na Churrasqueira Pop Portátil, Doble mantra com centros deslocados, O país invisível.
Da mesma maneira, tento listar os diferentes elementos dentro de uma pintura na intenção de ir além da superfície e entrar dentro delas. Estrela verde, lágrimas rosas, lágrimas negras, bandeirinhas de festa junina, repetição de linhas verticais em vermelho e rosa. Explosões. Um Sol sobreposto quase invisível. Círculos concêntricos de diferentes tamanhos e tonalidades, na metade superior os círculos se duplicam, a estrutura radial que os gera também, dois sóis, duas sombras, realidades múltiplas, no fundo uma outra camada de padrões geométricos irregulares. Quatro estruturas sobrepostas, uma lembra uma grade de janela, outra uma explosão interna, a terceira está formada por círculos, a quarta feita por linhas paralelas horizontais. Cores ácidas, cores fluorescentes, cores brilhantes e cintilantes. Pinturas onde as cores são constitutivas e resistem a ideia de que a cor é só decorativa. Pinturas criadas no momento, de maneira quase automática, sem regras externas ou um sistema organizador escolhido a priori. Elementos dentro delas que se propagam como um vírus, reproduzindo-se de formas aleatórias e contaminando a tela. Repetição de padrões que parecem iguais mas cada um é diferente, figuras que o artista encontra em suas derivas pela rua: círculos, estrelas, gotas, pílulas, e outras formas que se multiplicam e são ressignificadas, criando novas conversas entre os diversos elementos.
Imagens que poderiam parecer momentos de êxtases na roda de samba ou pagode, no desfile ou bloco de Carnaval, ou lembranças de jogos e brincadeiras de Festa Junina Nordestina. Uma estética surgida em uma feira de diversões ou um circo intergaláctico. Confete pós-festa, antropofagia popular, vômito de purpurina intergaláctica. Pinturas quase autogeradas onde a saturação de símbolos produz um clímax. Pinturas que abrem janelas a outras dimensões e realidades. Pinturas produto de uma explosão onde tudo coexiste: o biológico, o geológico, o mecânico, o cibernético e o virtual. Conexões entre diferentes sistemas operativos, todos com vida própria, cadeias de DNA, células em reprodução, circuitos elétricos, circuitos de informação, maquinarias pós-industriais, mensagens telepáticas. Cortes transversais através da pele ou camadas geológicas do planeta, vulcões ou epiderme humana em explosão. Viagens cósmicas, campos de energia, estrelas supernovas, buracos negros. Desaparição de qualquer sistema de ordem e controle a favor de um caos anárquico e vertiginoso.
Pinturas pequenas em caixinhas de doce de buriti. Pinturas onde a tela é construída a partir da adição de elementos. Pinturas feitas com estêncil ou carimbos. Pinturas construídas com processos de transferências. Pinturas feitas com sobras e restos de outras telas. Pinturas onde você tenta não usar o pincel. Pinturas onde você tenta pintar sem ser pintor. Pinturas feitas nas telas onde você limpa o pincel. Pinturas feitas sobre superfícies de madeira unidas ao chassi por parafusos visíveis. Pinturas como as tatuagens em seu corpo, onde os diferentes símbolos coexistem (a diferença que em seu corpo a representação é figurativa e nas telas é abstrata). Sua pintura não nega sua origem de grafiteiro e desenhista de quadrinhos. Sua pintura é punk: Punk Abstrata, Neo-Neo-Concreta Pós-Sensível Punk, Carioca Punk de Carnaval, SambaFunkPunkBoogieWoogie da Avenida Brasil. Pinturas que falam da experiência de viver em uma cidade fragmentada e segregada. Pinturas que fazem visível o paraíso, purgatório e inferno que é o Rio de Janeiro.
As pinturas de Almeida poderiam existir para além da história, mas sem dúvida existe nelas uma presença subconsciente da história da arte. Poderíamos falar em diálogos imediatos, por exemplo, com Beatriz Milhazes, no uso das camadas e referências ao carnaval, ou com Luiz Zerbini, no uso do cor e referências tropicais. Mas os diálogos poderiam cruzar épocas mais distantes. Formas que parecem montanhas nos lembram de Alberto Guignard, bandeirinhas de festa junina que piscam o olho para Alfredo Volpi; geometrias em verde e rosa que lembram a série ‘Mangueira’ de Ivan Serpa; intestinos que lembram a obra visceral de Antônio Dias; um processo de repetição com origem na gravura que dialoga com estratégias similares na obra de Anna Bella Geiger; padrões kitsch e luzes de neon que lembram a série ‘Olho de guará’ da Lygia Pape na década de oitenta. Se os artistas neoconcretos em seu manifesto publicado no Rio de Janeiro em Março de 1959 propuseram erradicar na produção de arte uma postura mecânica e resgatar a dimensão sensorial da obra, o trabalho de Almeida vai além da dicotomia mecânica/sensorial e produz um novo manifesto a partir de novos fluxos entre as formas abstratas, a tela, a matéria pictórica, o artista, o espectador e o contexto urbano, cultural e social.
No momento atual, onde vivemos em meio a uma constante saturação de imagens, as pinturas de Almeida não pretendem representar esta saturação, mas funcionam como anti-imagens. Um grupo de screen savers que permitem o fluxo contínuo de imagens múltiplas e às vezes contraditórias, e que atuam como forma de resistência a essa constante saturação. Pinturas que funcionam como mantras que nos desconectam da realidade para que possamos voltar a nos conectar com essa realidade a partir de uma nova tomada de consciência. As pinturas de Almeida estão em um constante movimento interno, se abrem e multiplicam, se ativam quando são olhadas. Dentro do espaço de exposição, os elementos transitam e circulam entre pinturas, se contaminam e nos contaminam criando um campo magnético de energias e ressonâncias. Nesse sentido, as telas pintadas por Almeida estão vivas e contém dentro de si uma energia vital da qual precisamos hoje para poder iluminar de maneira coletiva essa estrada muito obscura e nebulosa na qual se transformou a Avenida Brasil.
Pablo León de la Barra, Rio de Janeiro, Agosto de 2019.
setembro 1, 2019
Lição doméstica por Ana Prata
Lição doméstica
ANA PRATA
Vivemos um tempo de autoritarismos, de maneira latente ou manifesta. Lidar com esta realidade não está fácil, até mesmo atividades rotineiras e banais parecem ter seus sentidos postos à prova. Há quem diga que a arte tem que apontar caminhos, encontrar respostas, que ela tem esse papel. Eu acho que a arte não TEM QUE nada, arte é um espaço de liberdade, sem obrigação alguma. A arte PODE muitas coisas, inclusive apontar caminhos, e podendo ser tanto, ela não impõe obrigações a priori, nem para o artista, nem para o público. É muito bom que cada um tenha interesses e necessidades variadas, mesmo quando pertencem à mesma identidade de gênero, classe social, raça e etnia, orientação sexual, território, escola, família, etc. Que a linguagem possa ser um caminho para devires múltiplos e sem regras pré-estabelecidas.
Leandro Muniz, Marcelo Pacheco e Thomaz Rosa se articularam para fazer uma exposição de curta duração no ateliê de um deles. Os artistas estão no começo de suas trajetórias e, além da prática artística, exercem outras ocupações. Chamaram a exposição de Featuring celebrando a parceria, já que são três contemporâneos fazendo essa parceria pontual. E o nome tira onda também, é sério mas não é, estilo super star (como nos feats da música pop).
Eles começaram como quem arruma sua casa, organiza e cuida do que é seu, um gesto que eu entendo como muito necessário para os dias de hoje. Um trouxe seus “varais”, panos azuis com padrões que lembram estampas para pijama ou lençol, clarinho e monótono. Nos tecidos ele insere suas pinturas em retângulos, pinturas abstratas, flores, o céu, entre outras ideias que nascem do desejo. São gestos relativamente simples, que num segundo momento lidam com outras questões, como usar o espaço, como dividir, como traçar percursos na escala de um cômodo. Estas ações me fazem pensar no trabalho doméstico, aquele que os "homens de negócios" entendem como limitado, sem influência, inútil, completamente apartado do espaço público.
O segundo artista decidiu fazer um toldo, porque vem olhando a beleza das faixas, e tem se dedicado, no seu tempo livre do trabalho, a pintar faixas e abstrações geométricas. O toldo é um trabalho novo que foi construído para a exposição, caso chova poderemos ficar ali embaixo, se não chover, poderemos olhar, deve ser um pouco torto, o que é bom de olhar. Tem também um pedaço falso de toldo, que é no fundo só uma pintura.
O terceiro mostra pinturas, estas são uma pequena coleção de objetos para serem dispostos no espaço. São objetos para aguçar a percepção. Algumas têm outros objetos colados ou apoiados, coisas pequenas, como pregos, que estavam fáceis ao alcance da mão; têm relações cromáticas marcadas e premeditadas, são quase escultura por vezes, ou parecem o que não são, como uma folha de caderno ou a superfície lunar. Outras são pintura de céu, eu penso que uma pintura de céu de alguma forma está sempre carregada de tantas outras e infinitas tentativas de pintar o céu, acho que trazem essa lembrança.
O céu, por sinal, parece ser o protagonista nesta exposição. Lembramos dele pela memória que o varal traz, pelo toldo, e pelas próprias representações pictóricas. É interessante como fazeres que parecem domésticos nos apontam para o céu azul, onde não tem deus, nem presidente; onde não há ninguém, mas é o teto do nosso mundo comum, um limite visível, limite apenas visível.
Cada um também vai pintar uma camiseta de papietagem, esculturas pintadas. Camisetas servem para sair e para ficar em casa, camisetas são de banda, de protesto, são propaganda, podem ser arte. Camiseta é um objeto comum, não dura para sempre e isso é bom.
Ninguém sabe exatamente onde está o front da batalha dos dias de hoje, e parece que temos muitos inimigos de fato, existem sérios projetos de destruição em curso. Talvez seja de grande valia fazermos uma lição doméstica e identificar nossos desejos, e começar por eles, aqueles que nos movem a traçar caminhos; cada um sabe do seu teto, o tamanho da sua casa, que pode ir do corpo ao céu, do micro ao macro.
Queria dedicar este texto às mães deles três, que não conheço, mas sei que elas foram boas e eles as amam. E, por fim, escrever Lula Livre, para que não nos esqueçamos da nossa história.
Ana Prata
agosto de 2019