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agosto 31, 2019
Emanuel Monteiro - Tinha textura o meu silêncio por Henrique Menezes
Emanuel Monteiro - Tinha textura o meu silêncio
HENRIQUE MENEZES
O avanço do tempo torna as memórias mais sutis, esmaecidas, no mesmo ritmo em que a nitidez da experiência se dissolve no que chamamos: reminiscências. A velocidade desse apagamento tem seu fluxo ditado por indizíveis motivos – é o caso do nosso bloqueio a experiências traumáticas ou do rememorar constante que torna certas vivências mais cristalinas por seu exercício. É nesse último ponto – em um processo metódico de reiteração das lembranças – que encontra-se a produção recente de Emanuel Monteiro: as paisagens incógnitas do passado ganham traços mais precisos, o artista avança para encontrar seu lugar.
A exposição Tinha textura o meu silêncio parece negar a verdade de que o tempo desbota o que é vibrante (literal ou metaforicamente). Nos últimos dez anos, a obra de Emanuel Monteiro caminhou para um aprofundamento da manipulação dos materiais – terra, sementes e flores transmutam-se em pigmentos – trabalhados pela aplicação sucessiva em técnicas de aguadas, aquarelas, pontas-secas. As materialidades empregadas e sua tatilidade evidente, bem como o exercício de recorrer às memórias pessoais proporcionam uma formulação peculiar da paisagem: de pinturas abstratas a desenhos com poesias manuscritas, de raízes brutas em seu horizonte natural a móveis em ambientes domésticos. O artista alinha a tríade corpo-casa-paisagem para propor uma relação dialética entre o espaço interior e o espaço exterior: sua investigação tem sugerido a transposição do tão-pouco em significado superior.
Recorrente em seu trabalho, o uso da palavra escrita sempre funcionou enquanto potencial de evocação, encarnação e formação de imagens. Agora, sua caligrafia mostra-se voraz. Já na antessala do espaço expositivo, circundando a histórica escadaria da Galeria Mamute, o artista realiza uma obra in situ onde cunha um trecho de Drummond diretamente nas paredes. Para Emanuel, o ato de escrever reivindica não somente o anseio pela manutenção da lembrança, mas também a possibilidade de seu esquecimento – presente aqui na natureza temporal da ocupação do espaço. Após este prelúdio, a mostra evolui reiterando elementos que aos pouco dão identidade à trajetória do artista: observam-se tintas produzidas com terra de Minas Gerais e do Paraná, assim como a composição fragmentada das folhas de papel perfeitamente alinhadas – tudo tão familiar se não fosse a amplificação das relações de tensão e trégua.
Ao esquivar-se dos limites ortogonais do papel, a obra Sal da terra: enquanto os homens dormiam encerra a mostra marcando uma expansão escultórica da terra que se converte em barro e ganha forma em um vaso. Uma passagem ontológica, de materialidades e de necessidades, entre um momento de ruptura e um ato de construção. Partido, o vaso sugere a narratividade da sequência interrompida, índice de algo que foi, de obra una, agora contaminado pela luminosidade de um projetor de slides.
E quando a luz se eleva, Emanuel escolhe a sombra, evita a exacerbação do gesto. É essa contenção que não o deixa ser piegas, quando estanca um passo antes do exagero visceral que a investigação memorialística poderia sugerir. "Tinha textura o meu silêncio" deixa mais visível o peso do trabalho de Emanuel Monteiro, as manchas turvas enegram-se, as obras são carregadas, são pesadas (na aplicação mais modesta desse termo). Sente-se o peso da memória, da verdade, da cor. O peso da consciência, da matéria, o peso nos ombros. A aspereza da palavra proferida. Ou o peso do silêncio.
Henrique Menezes
Curador da mostra
Agosto/ 2019
agosto 24, 2019
Renato Morcatti - Pirajá por Vicente de Mello
Renato Morcatti - Pirajá
VICENTE DE MELLO
O nome da exposição Pirajá surgiu de uma atmosfera de significados que vai desde do locus vivente do artista até a etimologia da palavra, confluindo para composição anímica da obra. Renato Morcatti mora no bairro Pirajá em Belo Horizonte onde tem sua casa-atelier, ambiente inspirador estruturante de sua criatividade. Pirajá é uma palavra de origem Tupi para designar lugar onde se coloca os peixes para serem tratados ou ... o que está repleto de peixes: pira (peixes) + já (repleto). Nesta atmosfera reluzente e telúrica tem-se também a definição do dicionário Aurélio: aguaceiro súbito e curto, violento e aluvial, acompanhando de ventania, comum nos trópicos, entre a costa da Bahia e os estados nordestinos.
Sim, pelo viés do realismo fantástico, podemos imaginar que Renato habita um espaço concentrado em tensão com respeito a natureza da alma e executa sua obra dentro de uma voluta física em situação limite, como uma narrativa intangível.
Em Pirajá temos os desenhos a carvão, pigmento minerais e grafite e as séries escultóricas realizadas em cerâmica, em três distintas expressões: o entalhe, a modelagem e a fundição. Abrasados pela técnica secular de queima japonesa Bizen, tem se a harmonia ímpar de nuances e cores infinitas.
A intenção figural pela multiplicação de gestos gráficos, determina a escala humana, a partir da silhueta do corpo do artista, nos desenhos de Escala Madre, com múltiplas cabeças de ferramentas da agricultura. Os desenhos da série Ostiário, são as chaves escultóricas da série Nós, representadas no plano, em uma indistinção das chaves que se mesclam.
Entre, um conjunto de pequenos totens “trancados” em gaiola de ferro. Sem dúvida alguma, uma reflexão às questões sobre liberdade, opinião e posicionamento.
Nós, são molhos de chaves unidos por anel de couro. Cada peça única é um nó dos elementos de uma metáfora do sistema de proteção retorcidos de sua finalidade como elemento de segurança.
Em Segredos, as esculturas são a representação da linha de encaixe e sucos dos segredos das chaves, que fazem girar o tambor, apresentadas em um agrupamento. O conjunto das peças provocam expectativas particulares a cada observador, que vão além suas formas.
Seus Guardiões são observadores de manufatura simples, de aspecto humano, moldados a mão, onde Renato transpõe a gênese da eclosão, da pulsação, dos fluxos, odores, massa, matéria, tatos, cortes, dores, amores e prazeres. Enfim, um ciclo que bilhões de humanos vivenciaram em negociações vazias e temporais, que moldam o que podemos ser pelo gesto de amassar a terra, da qual somos parte.
Contumaz são os elementos plásticos, cujas repetições sequenciais dos conceitos impregnados nas esculturas e nos desenhos formam a tessitura de pequenos sozinhos que se tornam sociedade.
A exposição Pirajá se dá por uma leitura de definições, onde tudo que é estranho, é “conclusão” da dúvida.
Nó ou nós por Nuno Ramos
Nó ou nós por
NUNO RAMOS
Boa parte da arte mineira parte de coleções – essa é uma característica que atravessa trabalhos tão diferentes quanto os de Marcos Coelho Benjamin, Thaïs Helt, Rivane Neuenschwander, Cao Guimarães ou Eder Santos (é quase uma singularidade de Amilcar de Castro não colecionar, partindo da matéria, e não do objeto). Há em Minas um veio muito particular da história brasileira, que a Inconfidência, os poetas oitocentistas e um barroco tão singular iniciaram, mas que prosseguiu até o Brasil contemporâneo. Colecionar é, de certa forma, historicizar, problematizar e preservar este veio, mas com uma ambiguidade de que é difícil se livrar. Pois há, ao lado da vida e do vetor propositivo de toda obra de arte, algo adormecido, em suspensão, naquilo que foi colecionado, que permite o próprio ato de colecionar. A obra, então, parte de certa forma da necessidade de ressuscitar a matéria de que é feita. Esta ambivalência, que tem o peso do tempo e as aporias da memória em seu centro, atravessa estes trabalhos, e é com ela que têm de lidar.
Renato Morcatti vem da prática da argila, da gravura e dos materiais mais diversos. Foi um assistente decisivo para os trabalhos de Marco Tulio Resende e Thaïs Helt. Aos poucos, seu próprio trabalho vai tomando forma, e não é de estranhar que partilhe esta característica geral. Estamos às voltas aqui com coleções de molhos de chaves, segredos, retratos, instrumentos de trabalho, cravos. Há de fato um mundo rural atravessando estas obras, com seus artefatos, suas enormes fechaduras, suas portas emperradas rangendo, seus passos vergando o assoalho no andar de cima.
Mas a idéia de coleção aqui está atravessada pela de multidão – tudo é múltiplo, aqui. Não vemos tanto os objetos um a um, mas seu conjunto, a totalidade deles, que forma um desenho próprio. Pirajá, o nome escolhido para a exposição, é um lugar onde se concentra uma população efervescente de peixes. Quase todos os trabalhos têm 260 unidades, o que relega o indivíduo à insignificância. No caso do segredo das chaves (na obra Segredos, 2014-2016), esta totalidade só pode ser vista de cima, como uma passeata de rua em foto aérea.
Esta multidão absurda me parece o mais interessante no trabalho de Renato. De um lado, há um fazer singular, um elogio mesmo do artesanato, da queima Bizen, por exemplo, que vem da vivência e habilidade do artista com tantos materiais. De outro, uma forma de entender este trabalho como multidão, o que apaga os rastros depositados em cada unidade. Como se uma força anônima fosse arrastando e apagando o rosto, o nome, os traços de cada um de nós.
Renato Morcatti - Pirajá por Fernanda Lopes
Depois de passar por Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, chega a São Paulo a primeira exposição individual de Renato Morcatti. Pirajá - revela já no nome elementos importantes da poética do escultor e desenhista mineiro. A palavra-título da mostra tem origem no Tupi e é formada na junção dos termos “pira” (peixes) e “já” (repleto), tendo como significado “o que está repleto de peixes”. Como cardumes, as séries de esculturas e desenhos apresentam para o publico da Caixa Cultural o interesse do artista pelo múltiplo, pela profusão, pela repetição e pela organização em conjuntos.
Acostumado a trabalhar com materiais diversos, como madeira, argila, cimento e aço, Morcatti incluiu a cerâmica em seu repertório escultórico desde 2017. Parte do resultado dessa nova pesquisa é o que pode ser visto nesta exposição. Ao invés de grandes esculturas, essas séries são formadas pela repetição e acúmulo de objetos cerâmicos de pequenos formatos realizados em três técnicas distintas – o entalhe, a modelagem e a fundição. Queimadas na técnica Bizen, as peças são levadas ao forno sem esmaltagem, realçando a textura e a cor crua natural do material. Nas séries de desenhos realizadas com carvão, grafite e pigmento natural é também a repetição que constitui a base do trabalho. Aqui, isso se dá no número de folhas e em sua organização em sequência, mas também nas formas que mantém evidentes os múltiplos traços que as constituem.
Em Pirajá (também o nome de um bairro na cidade de Belo Horizonte, onde o artista nasceu, e onde vive e trabalha até hoje), ver esse conjunto de trabalhos reunidos é ter também a possibilidade de pensar como uma lógica escultórica permanece presente no plano bidimensional , e, ao mesmo tempo, como aspectos fundamentais do desenho se fazem presentes nas esculturas.
agosto 20, 2019
Ana Teixeira: É tarde, mas ainda temos tempo por Galciani Neves
Ana Teixeira: É tarde, mas ainda temos tempo
GALCIANI NEVES
Quando passamos pelo Centro Universitário Maria Antonia, localizado no bairro Vila Buarque, na cidade de São Paulo, é quase inevitável escapar do que evocam a rua e os cantos do prédio: tiros, explosões de coquetéis molotov, gritos de estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP que aqui se reuniam em assembleias em 1968 (ano fortemente marcado pela resistência estudantil contra o regime militar). Em 2 de outubro de 1968, por se incomodarem com um pedágio realizado por estudantes da USP, que queriam custear o congresso da União Nacional dos Estudantes, estudantes da Universidade Mackenzie, ligados ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC), bem como forças militares responsáveis pela manutenção da legalidade, atacaram violentamente o prédio. O conflito conhecido como A Batalha do Maria Antonia, que durou dois dias, ocasionou a morte do estudante secundarista José Guimarães com um tiro vindo do prédio do Mackenzie. A Batalha do Maria Antonia é considerada um dos gatilhos para o enrijecimento do regime, que dali a dois meses, promulgaria o Ato Institucional Número 5.
Em 1993, o prédio reabriu com a tarefa de ser arena de discussões sobre arte, cultura e direitos humanos, deixando latentes tempos de convulsão como os de agora, tão difíceis de sobreviver. É tentando convocar energias para construção de um lugar de troca e encontro que Ana Teixeira adere com seus trabalhos/ações a alguns dos espaços do prédio. Em É tarde, mas ainda temos tempo, a artista apresenta 14 trabalhos, entre proposições inéditas (“Bandeira”, “Ninguém manda no que a rua diz”, “Encontre-se”), ações realizadas no próprio prédio do Centro Universitário Maria Antônia e arredores (“Cala a boca já morreu”, “Escute!”) e traduções/atualizações de trabalhos produzidos ao longo dos seus vinte anos de trajetória (“Em contato”, “Empresto meus olhos aos seus”, “Falta-me qualquer coisa que seja feita de vento”, “Escuto histórias de amor”, entre outros).
O título da mostra propõe articular algumas dimensões e sensações de tempo: o de processo de tradução com o qual Ana atualiza e reinventa tempos de encontro e acontecimento de seus trabalhos – reconstituindo-os numa vontade de fazer pulsar outras experiências – e um tempo de urgência e angústia que convoca o desejo de agir a qualquer custo. Nesses dois eixos em que se alicerça a mostra, os procedimentos de Ana costuram e atravessam as ficções e resíduos poéticos de seus trabalhos: resistir, insistir, traçar encontros. Enfrentando a lógica dos dispositivos de opressão que nos impõem margens de ação cada vez mais encurtadas, Ana age nas brechas do tempo incerto – e apesar das barreiras que já erguemos, como sujeitos, para viver em sociedade – na busca de alguém que não quer ser buscado e/ou não espera ser visto. Daí uma troca imprevisível, inesperada e que não apresenta preparo prévio ou protocolos estabelecidos, mas tem a vontade do encontro como ignição. Encontro que acaba por aproximar sujeitos que não se conhecem, mas que podem se identificar, pois se alimentam da mescla de subjetividades postas em exterioridade (social, cultural, sexual, política, de classe, de raça, de gênero e em todas suas hipóteses de fluidez), num quando em que não se perdem a aspereza e a diferença de estar diante de outre [1]. Encontro que instaura sutilmente um fluxo de narrativas, de confissões, de ritmos de muites eus que podem tornar-se nós. Encontro que pode acolher o corpo, o gozo de estar junto, os sentidos de existir, numa espécie de alquimia de reinvenção de si diante de outre.
Como mulher, como artista, como ser político atuante e porosa à esfera pública da cidade, Ana vivencia a polifonia da escuta, guiada pelo sensível, confiando na organicidade da troca. É nesse contexto em que ela atua e também no contexto da supressão de tempo, seja para o encontro, para a convivência sem maiores pretensões, para a militância. Na escassez de tempo para os gestos e ações precisamente arquitetadas, Ana age porque é preciso reagir e não sucumbir. Pois parece mesmo não haver lógica nas nossas ações e gestos que sobrevivam à intempestividade das urgências contemporâneas, do presente de sufocamento instaurado. “Todo gesto é tarde demais (urgente) e cedo demais (nunca estamos preparados)”, como disse o artista Pedro França ao incorporar as reflexões de Rosa Luxemburgo numa fala menos vestida de rigor teórico e, por isso mesmo, mais arrebatadora.
Nesse corte de tempo, de ausências de chances para os desvios às condutas impostas, em que o desejo também é ameaçado e suprimido, para Ana, o encontro é um instante de reapropriação da potência de criação, tanto do ponto de vista da invenção artístico-poética (em seu sentido mais amplo) como do ponto de vista de um exercício de subjetividades e imaginações interagindo. Assim, estes encontros que são convites lançados ao vento, muitas vezes, sobrevivem ecoando em passantes ou públicos desapercebidos, deixando pistas, vestígios do percurso, da pulsão.
O trabalho de Ana é o acontecimento dessas experiências que se desdobram em rastros de pensamento, impregnados de muitas existências. Suas obras podem ser percebidas na temporalidade e duração do acontecimento das ações, nos registros em imagens e textos arquivados, nas traduções materiais experimentadas em diversos suportes pela artista. São sua matéria prima a palavra e o desenho, que colaboram – dando mais consistência à passagem e participação dos corpos envolvidos e dos laços constituídos – e, ao mesmo tempo, fazem surgir o inigualável de todes. Ana assinala na palavra e no desenho as marcas singulares de todes com quem vivenciou as ações e, nessas distinções, traça presenças diversas do corpo social, daquilo que vai para fora de cada si. E, por isso, essas erupções de subjetividades possibilitam alguma ligação entre nós e o mundo compartilhado, onde nos inscrevemos como sujeitos desejantes e cúmplices em nossas próprias diferenças, com diversos laços e contradições afetivos, políticos, sociais. É nessas inscrições tortuosas e não coincidentes onde pulsam as fabulações artísticas de Ana Teixeira, na tentativa de que mais alguém as perceba, quem sabe, como planos para que possamos nos aliar às pessoas que constroem pontes e não muros.
Galciani Neves
(Agosto/2019 – quando contabilizamos mais de 200 dias de um governo que oferece armas, se notabiliza pela tacanhice ideológico-moral e legaliza a mineração em terras indígenas)
NOTA
1 Nesse texto, optou-se por abandonar o uso do “X” como linguagem supostamente “neutra” para flexão de gênero, pois é impronunciável, e, portanto, inaplicável à linguagem falada. Na tentativa de escrever de maneira não sexista, a redação do texto adere ao uso do “e”.
agosto 7, 2019
Walter Goldfarb: A Menina, a Chuva de Amoras e outras histórias... por Vanda Klabin
Walter Goldfarb: A Menina, a Chuva de Amoras e outras histórias...
VANDA KLABIN
A exposição de Walter Goldfarb - A menina, a chuva de amoras e outras h(H)istórias - focaliza um conjunto resumido e significativo de suas obras em diferentes formatos, realizadas nos seus vinte e cinco anos de trabalho (1995-2019), que registra o desenvolvimento peculiar do seu laborioso exercício de ateliê e visa contemplar também as suas estruturas seriadas, que proporcionam articulações infinitas, dando espessura aos trabalhos e fornecendo consistência plástica ao olhar. O artista revela o seu enfrentamento direto com a pintura pela execução de unidades de grande escala, realizada de forma muito direta e com grande complexidade técnica sobre a superfície das telas, problematizadas pela utilização dos mais diversos materiais e formas de execução, trazendo novos ritmos de investigação estética e afirmando sua maneira particular de projetar a sua realidade.
Nos últimos anos, a pintura de Walter Goldfarb transformou-se em um campo fértil de pesquisa e inovações, ao instrumentalizar o discurso religioso e heróis míticos do legado da cultura semita, singularizando as suas experiências biográficas e espaços pessoais transpostos para infinitas estruturas e métricas visuais. Ao adentrar no núcleo de sua poética, percebemos que ela incide no seu caráter híbrido e numa pluralidade de linguagens. Extremamente envolvido com a atividade física do fazer, a formação do seu olhar adota referências culturais na pintura, na literatura, na música – sua forma de estar no mundo –, que sugerem narrativas e encontram continuidade através da sua ferramenta principal: a ideia do diálogo culto com o repertório da história da arte como artifício pictórico, como um dos elementos constitutivos do seu processo de trabalho, em que parece que o tempo se fragmenta na estrutura compositiva, transcende o fato pictórico e a pintura ocorre em algum lugar imaginário, penetra o mundo real e assume todos os seus próprios riscos como um motivo de espiritualidade e de questões místicas. Essas temáticas vieram à tona a partir de interesses específicos que o artista já manifestava em sua pintura e se apresentam como uma extensão natural de sua atuação, complementando e rebatendo as inquietações geradas no embate cotidiano com a tela, seja ao incorporar elementos tridimensionais como signos, bordados, pedras e metais preciosos, como ingredientes ativos e de forte impacto visual.
A relação fluida dos campos de cor, os diversos procedimentos com produtos químicos de escovação e lavagem dos suportes, a forte presença do pigmento do bastão de carvão, associados a um rigoroso jogo de signos sempre em mutabilidade e acréscimos que encontramos na ordenação do espaço interno da tela, temperadas pelos contrastes entre a opacidade e o brilho, a rugosidade e a lisura, aliados aos campos de coloração, trazem maior materialidade pictórica ao seu trabalho. A obra de Walter Goldfarb é uma arte feita de construções e raspagens, onde os fios de algodão são retirados da própria lona da tela, num procedimento de combinação e sobreposição das peças análogo ao modo com que aplica a tinta em seus quadros, seja pelos elementos fragmentários que se superpõem, num movimento realizado do fundo para a superfície, bem como o gosto pela composição cuidadosa e quase artesanal, como se tatuasse a realidade que habita o seu imaginário. O artista declarou na revista Art Nexus: “todo o meu trabalho é um trabalho de cortes e suturas”.
Os elementos de sua iconografia nos alicerçam na sua rede de inquietações, têm uma mesma melodia interna, são como unidades celulares, como os cantos gregorianos que se repetem por si mesmos. Estão ali presentes os jogos rítmicos que exercitam componentes do olhar, numa coreografia em permanente expansão, em que uma dinâmica de cores e veladuras instiga os diversos acontecimentos plásticos que ocorrem pelas suas diferentes tramas, criando grupamentos imagéticos que, pelo desdobramento natural de suas pesquisas nesses vinte e cinco anos, acabaram por se agrupar em diferentes séries.
Walter Goldfarb repensa, rediscute e reinventa a sua extraordinária tradição da pintura a partir de procedimentos plásticos atuais com uma enorme desenvoltura imaginativa, artesanal e intelectual. A valiosa contribuição do artista, ao aproximar a pintura fundada pelos seus contrastes e remissões aos dilemas históricos, redimensiona a leitura artística contemporânea, enriquecendo-a com elementos críticos e questionadores.
Vanda Klabin
Curadora, Agosto de 2019
Vanda Klabin é cientista social, historiadora e curadora de arte. Editora de revistas e catálogos de arte, coordenou várias pesquisas sobre arte brasileira. Realizou diversas curadorias de artes plásticas e é autora de artigos e ensaios sobre arte contemporânea. É consultora para diversos projetos culturais. Nasceu, vive e trabalha no Rio de Janeiro.
agosto 6, 2019
Plano Pictórico Piloto / Myriam Glatt por Ivair Reinaldim
Plano Pictórico Piloto / Myriam Glatt
IVAIR REINALDIM
Plano piloto é um termo que ficou amplamente conhecido, a partir do plano preliminar urbanístico apresentadopor Lucio Costa, em 1957, para a nova capital brasileira. No ano seguinte, Augusto e Haroldo de Campos, junto a Décio Pignatari, publicam Plano piloto para poesia concreta, reforçando não só a recorrência do termo, como também a de seu sentido. Essa espécie de consonância entre as vanguardas nos anos 1950 contribuiu para que, duas décadas mais tarde, a noção “projeto construtivo brasileiro na arte” adquirisse representatividade na historiografia.
Seja na arquitetura ou no urbanismo, na poesia ou nas artes plásticas, um ideário comum, cujas origens remontam às vanguardas europeias, passava a embasar tanto o modo como cada uma dessas “linguagens” se estruturava, quanto sua capacidade projetiva de conceber novas formas sociais para o futuro.Publicações como Ponto, linha sobre plano (1926), de Wassily Kandinsky, apresentavam análise minuciosa das bases visuais da representação, essencial para as artes plásticas e igualmente para suas áreas adjacentes, como o design de produto e a comunicação visual. Essa “sintaxe”, aliada a uma “gramática”, não se limitava à abstração geométrica, constituindo um sistema de estruturação da superfície e do espaço, presente até mesmo sob as aparências da arte figurativa naturalista.
Desse modo, formas de expressão das artes plásticas, da arquitetura, urbanismo e design em geral,no contexto das sociedades industriais, promoviam novos modos de vida, alterando hábitos de convivência social e usos de objetos (mobiliário, indumentária, imagens da publicidade, ambientes arquitetônicos, paisagismo, etc.). Independentemente de seus desdobramentos posteriores, fato é que muitas dessas concepções, mesmo que distorcidas, obliteradas ou fragmentadas, podem ainda ser localizadas, aqui ou acolá, seja por persistência, seja pelo reconhecimentode obras e projetos exaltados à ordem de patrimônio artístico e cultural.
Entretanto, as sociedades fundamentadas nessa lógica moderna, produtorasde objetos em larga escala, transformados em mercadoria e identificados ora como a última novidade, ora como algo defasado e inútil, são as mesmas que descartam diariamente grande quantidade de materiais e artigos. O motor capitalista exige a alta rotatividade de consumo, alterando rapidamente os valores atribuídos a seus produtos, por meio de processos de fetichização e desqualificação. Ao observarmoso grande volume de material descartado por essas sociedades – embalagens em geral, papelão, isopor, jornal, sacolas plásticas, etc. –, constatamos a potencial (e nociva) forma de alteraçãoda paisagem,que nem sempre esteve prevista nesses projetos.
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A artista Myriam Glatt tem se dedicado a processos de “expansão” de sua pintura, a partir da ressignificação de suportes identificados pela perda de valor e descarte, logo após seu uso ou cumprimento de sua função imediata (proteger, acomodar, informar, vender, etc.). Trabalhando essencialmente com papelão, mas também com páginas de jornais e caixas de fósforo, tem redefinido o lugar de sua produção pictórica, seja pelas propriedades do novo suporte, por seu caráter residual e amplamente acessível, seja pelo interesse na passagem do plano ao espaço, procedimento favorecido pela estrutura que esses materiais costumam apresentar.
Duas questões, pelo menos, surgem aqui, de modo mais evidente. De um lado, a experiência pessoal com a pintura, visto que a artista vem se dedicando a essa linguagem há algum tempo. É fato que sua pesquisa atual advém de um desdobramento inerente aos processos plásticos e a indagações a eles relacionadas, ou seja, não se trata de uma novidade, compreendendo um estágio de uma investigação mais ampla. Por outro, um diálogo inevitável com a propalada noção de sustentabilidade, que proporciona novo olhar para a ecologia (não limitando seu sentido ao senso comum depreservação da natureza), ao trazer para primeiro plano o papel que o ser humano tem na manutenção da vida no planeta, incluindo a si mesmo e a seus semelhantes nessa tarefa.
Em suma, para a artista, interessa propor novos sentidos para esses suportes descartados, rearticulá-los e reintroduzi-los no sistema simbólico dos objetos, mas também dar continuidade a investigações próprias da pintura, como a relação modular entre a forma simples e sua repetição, o gesto evidente na pincelada e a impregnação dos campos de cor, a dinâmica entre a superfície da pintura e sua espacialização, transformando-se em objeto artístico. Esse último aspecto, em particular, remonta a investigações plásticas e conceituais dealguns artistas brasileiros, entre os anos 1950 e 1960, na fusão entre pintura e escultura, para criar uma nova categoria (objeto), caracterizando no Rio de Janeiro, cidade natal da artista, a passagem do concretismo para o neoconcretismo.
Todos esses aspectos ganham nova dimensão neste momento, a partir do encontro de Myriam Glatt com a paisagem e a história brasilienses, ao observar seus elementos estruturais e imagéticos característicos e as narrativas que se referem a sua construção e desenvolvimento. Nos últimos meses a artista desenvolveu uma extensa pesquisa, experimentando novas possibilidades de articulação dos materiais e de direções para sua investigação. Desse encontro nasce o projeto Plano Pictórico Piloto.
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Esta exposição se organiza por meio de três núcleos principais, cada qual relacionando um conjunto de trabalhos com algumas questões de Brasília. No primeiro núcleo são apresentadas Composição Floral 6 e4 Estações, obras anteriores, já exibidas no Rio de Janeiro e em São Paulo, que fazem referência tanto ao interesse de Myriam Glatt pela condição estrutural do módulo que se repete, formando um conjunto maior, quanto pelo caráter cíclico da natureza. Esses trabalhos, neste contexto expositivo, aludem à monumentalidade da paisagem do cerrado e ao orgânico como forte presença frente ao geométrico, elementos que não se excluem, mas se complementam.
Na sequência, o segundo núcleo reúne Autofagias, Periódicos, Entre Abas e Escultura ZigZag, reforçando a passagem de pesquisas anteriores da artista para a presença de novos trabalhos, realizados especialmente para a mostra. Em todos eles, a ressignificação do suporte (tela, páginas de jornal e papelão), ora explicita o resgate daquilo que outrora havia perdido sua utilidade, passando a ter seu valor transformado, ora evidencia a possibilidade de reestruturação do fragmento por meio do ato pictórico, dando nova visibilidade a esses materiais, seja pela inserção da geometria seja pela predominância das áreas de cor. Surge, nesse processo, o desejo de participação do espectador, uma vez que alguns desses trabalhos permitem a alteração de suas formas.
No terceiro e último núcleo temos Aba Móvel, Geometria Móvel, Mandala e o trabalho que dá nome à exposição. Aqui percebemos uma continuidade em relação às questões anteriores, reforçando-se a ênfase sobre a participação do espectador. Em alguns momentos, isso ocorre na alteração da configuração espacial do trabalho por meio da manipulação direta do espectador; em outros, pela presença integral de seu corpo, que se coloca em relação com a proposição artística como um todo. Parte desse módulo destaca o diálogo da pintura sobre papelão com as cores e o ambiente arquitetônico.
A mostra culmina no interesse da artista sobre certo aspecto particular de Brasília: os azulejos modernistas de Athos Bulcão. A partir da modulação, detalhes de imagens que fazem referência a formas geométricas e orgânicas reconhecidas na arquitetura, na escultura, na fauna e na flora da capital federal, combinam-se de diferentes modos, apontando para uma diversidade de arranjos e para novos caminhos a serem explorados nesse processo. O painel de azulejos reitera a pesquisa da artista sobre a relação entre o módulo e sua repetição, assim como sobre a espacialização da pintura, na sua relação íntima com a parede como elemento arquitetônico.
Nesse conjunto de trabalhos, Myriam Glatt não pretende ironizar nem sacralizar as ideias e questões que utiliza como referência. Elas aparecem a partir de certo rigor, mas também com igual senso de liberdade, sem dogmatismo ou aleatoriedade. Claro que hoje podemos olhar com alguma desconfiança para uma visão de mundo que embasou muitas das criações e ideologias dos anos 1950; mas, mais que isso, o objetivo da artista aqui é propor um diálogo entre passado e um olhar constantemente renovado sobre o agora, sem pretender definir um projeto de futuro específico.
Ivair Reinaldim
agosto 3, 2019
Agarrar-se a pedras afiadas por Marisa Flórido
Agarrar-se a pedras afiadas
MARISA FLÓRIDO
“Terror domesticado”, assim definiu Régis Debray a imagem ao associá-la à morte, às máscaras funerárias em que o corpo perdido do morto é substituído pelo corpo visual da imagem, para prolongar sua presença ausente no seio da comunidade. Diante dos ritos funerários pré-históricos ou de obras que tematizam a Vanitas ou memento mori (“lembra-te que és mortal!”), estamos em presença da única certeza da existência, sua fatalidade. Estamos diante da consciência paradoxal da morte, presença negativa que só pode ser pensada como o indefinível absoluto.
Alquimistas se lançariam à busca da transmutação da matéria, para transgredir a morte, essa falta inerente à carne. Não por acaso, o ateliê do artista foi representado nos séculos XVI e XVII como o laboratório do alquimista, no qual a sabedoria secreta do artista-alquimista exercitava sua habilidade em desvendar o mistério dos elementos, da criação e das metamorfoses. Estoicos, por sua vez, defenderiam que é preciso aceitar e não temer a morte. Sobre os terrores da morte, Sêneca escreveria na Carta 4: "muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens minguam e fluem em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver, e ainda não sabem como morrer".
Agarrar-se a pedras afiadas, frase que intitula a exposição de Nathan Braga, foi emprestada dessa carta. Nathan, o artista que é também químico, está entre o alquimista e o estoico, o cientista e o poeta: diante do corpo perdido, da face apagada na morte, resta operar na tensão entre o agarrar-se às pedras afiadas da memória, à transmutação da matéria, e a dolorosa gestão da perda; resta operar na tensão entre a presença do ausente e a estranha materialidade do corpo perdido. Como fazê-lo sem tornar a obra mais um suporte para fantasmas, que assombram (d)o passado, transformando-o em mais um resíduo morto? Convocar pedras com arestas afiadas e cortantes para fazer do luto a força do gesto insurrecto ao porvir; para fazer da memória, uma irrupção em que o próprio tempo se apresenta em suas dinâmicas complexas e heterogêneas, em materialidades impuras e híbridas, ativadoras de memórias ambíguas e apagamentos inelutáveis.
A estranha materialidade do corpo perdido se reveste aqui de lirismos quase sempre trágicos. O artista, técnico em química, cria esculturas-objetos de naftalina por meio de processos físico-químicos, como também em “Crisálida”, trabalho em que a seda é lentamente pintada com pigmento sintetizado quimicamente pelo artista. Em “À tua imagem e semelhança”, valendo-se da semelhança entre os materiais, porta-retratos de mármore (mas vazios de imagem) são sustentados por uma prateleira de naftalina. A ação do tempo dissolve o suporte, os porta-retratos caem e se partem, partindo a imagem que falta. Se o mármore é o material da tradição escultórica por sua perenidade e dureza, também reveste túmulos e guardam a carne que desaparece e o cheiro de sua putrefação. Se a naftalina é um composto para repelir traças e preservar a vida de objetos antigos, seu cheiro impregna o presente da lembrança dos guardados. A memória tem (o)dores.
A mesma ambivalência é encontrada na coroa de flores com a faixa em que se lê: “sempre viva”. A frase traz a nomeação daquela espécie de flores que, entretanto, morrem. Como o paradoxo da palavra “agora” (essa “mentira estúpida”, escreveu Cortázar em Babas do diabo), sempre atrasada ao ser pronunciada, sempre defasada no fluxo irrevogável dos momentos. O cruzamento de tempos diferenciados em que se tramam eternidade e efemeridade, duração e fugacidade, a memória e o esquecimento, é também abordado na relação da palavra escrita com o suporte (nas obras com mármore e naftalina, mas também naqueles com matéria orgânica perecível como ovos e flores), assim como na relação da palavra com a imagem. Em “Acúmulos Forjados”, negativos fotográficos da infância do artista são enlaçados com memórias – e toda memória guarda um infinito de ficções – escritas nos slides.
Na “intermaterialidade e interdisciplinaridade” de seu processo, como define o artista, é justo no interstício entre o que se apresenta e o que escapa, que o olhar, o olfato, o corpo é convocado. Diante das pedras afiadas, sabemos que somos passagem. Que nosso corpo e rosto escavam lentamente seu apagamento e ausência.
Marisa Flórido - curadora
Des-caminho por André Vechi
Des-caminho
ANDRÉ VECHI
Fernanda Andrade - Desenho-caminho, Galeria de Arte UFF, Niterói, RJ - 08/08/2019 a 08/09/2019
Desenho é percurso, resultado da trajetória de gestos circunscritos por um espaço definido. Esses movimentos geram uma série de marcas sobre a superfície, usualmente chamada de plano. As linhas e os pontos são os rastros dessas ações. Na sobreposição ou continuidade desses elementos fazemos surgir imagens, figuras mais ou menos nítidas que assumem ou disfarçam esse caráter quase aleatório dos traços em sua individualidade. O percurso nos leva sempre de um ponto a outro, da superfície imaculada e continua ao contraste gráfico entre figura e fundo, espaço e ação.
O caminho é da ordem da norma, da cartografia e do urbanismo. É percurso que se cristaliza, torna-se via, rua, estrada. Regido por regras, inscreve-se em mapas, condiciona o movimento de quem habita ou se instaura momentaneamente em um espaço. Desenhar, como um dos gestos primordiais de introdução ao território da visualidade e da comunicabilidade, antes mesmo da fala, passeia entre o percurso livre e o caminho codificado. Coloca-se justamente na tensão entre a subjetividade do gesto e a suposta universalidade da imagem.
Analogamente, nosso corpo estabelece ações, percursos contínuos, interrompidos, circulares, pela cidade. A urbe, contudo, não é uma superfície uniforme, embora assim nos pareça nos mapas. Isso se dá, pois a cartografia é ciência que captura a complexa realidade do espaço, sistematizando-a, retirando sua ação, apagando detalhes. Mapear, então, faz parte das tentativas de codificar o espaço, tornando-o cognoscível a partir de um pacto firmado pelos sistemas métricos e pela noção de escala. A cidade que nos engole, agora, cabe em nossas mãos, dependendo do zoom que damos nas telas. É justamente nela, hoje, que deixamos o registro de nossas caminhadas. Ao ativarmos a configuração de localização de nossos dispositivos móveis, permitimos o registro de nossos contínuos deslocamentos ao longo do dia com a precisão possível das limitações tecnológicas. Entretanto, os fluxos também se inscrevem em nossos corpos, não só pelo cansaço, mas, também, na memória, a partir das sensações convocadas.
Fernanda Andrade, na série Desenho-Caminho, refaz com a caneta sobre papel jornal seus deslocamentos cotidianos. Não se trata de relatar meramente o trajeto, retornando ao modo analógico-documental do desenho, não. O conjunto, iniciado em 2015 e ao qual a artista retorna em diferentes períodos e com renovadas intensidades, faz cintilar a imprecisão do humano frente ao desejado rigor da máquina como forma de reabertura para o poético e para a individualidade no espaço coletivo da cidade. É possível pensar em aspectos psicogeográficos desse processo, pois ele está mais preocupado com as marcas afetivas que ficam na lembrança de Fernanda enquanto habitante e usuária do espaço urbano, do que na sua tradução. De fato, pouco reconhecemos da cidade, pois seus indícios nos vem apagados. Identificamos apenas as linhas, volteios das idas e vindas, algumas poucas formas geométricas, que imaginamos ser edificações, e alguns outros elementos de uma gramática própria.
Não se trata de uma mera deriva ou, ainda, da vaguidez do flâneur de Benjamin e Baudelaire. A condução de Fernanda na cidade se faz por compromissos cotidianos, pelas necessidades e atividades diárias, muito mais do que pelo desejo de se reinventar uma cidade, de furar seu tempo e suas constrições. O que fica em seus desenhos é algo da abertura pertinente ao universo das formas abstratas, que não nos permite um reconhecimento direto. Possível efeito do descompromisso com as escalas. A artista rejeita a racionalidade cartesiana e a precisão das coisas, pois no fundo, não são mais do que acordos e convenções que se mostram insuficientes para a transmissão das particularidades experiência humana.
Lega-se ao observador o trabalho de desenhar figuras sobre os desenhos de Fernanda, inventando formas que lhe mais ou menos são familiares, reconhecendo aquilo que nunca esteve presente no papel, a não ser dentro da cabeça daquele que vê. Se não há claramente uma cidade, imaginam-se outras formas. Deve-se, ainda, realizar com o próprio corpo desenhos no espaço, negociando passagens com os objetos dispostos. Há, na instalação, uma série de jogos de equilíbrio entre as formas e o espaço do qual efetivamente participamos. A sobreposição de planos devido a fraca transparência do papel, aponta para a contaminação irrecusável entre as imagens. A corda tensionada que sustenta as estruturas e os trabalhos são linhas maleáveis traçando trajetos. A fragilidade dos desenhos, oscilando com nosso deslocamento são aproximações generosas da artista com o público. Ela não visa apartar suas anotações diárias dos caminhares, protegendo-os, mas apostar na delicadeza dessa forma, assumindo sua vulnerabilidade.
Fernanda caminha no papel e desenha no espaço. Constrói um caos organizado, ou uma organização caótica. Não se trata de estruturar uma definição, mas de encarar o conflito, de habitar a incerteza. Simultaneamente, encontramo-nos fora-diante de um desenho da artista e dentro-imersos em outro enigma de linhas por ela traçado. Desestabilizando as escalas, os princípios e os fins, a cartografia e a deriva, lançamo-nos na perplexidade causada pela fineza de seus traços que emergem da contínua negociação entre as ordenamento das construções e subjetividade do desejo.
André Vechi, julho de 2019.