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abril 26, 2019
As Quimeras de Claudio Cretti por Tadeu Chiarelli
As Quimeras de Claudio Cretti
TADEU CHIARELLI
Claudio Cretti - Quimeras, Galeria Marilia Razuk, São Paulo, SP - 03/05/2019 a 01/06/2019
Faz anos que acompanho a produção de Claudio Cretti, artista nascido em Belém do Pará, mas que, morando há tantos anos na cidade de São Paulo, já é quase um paulistano nato. Recentemente esse interesse por suas esculturas ganhou novo direcionamento quando a ele acoplei minhas indagações sobre a trajetória de outro escultor, outro paulistano nato, só que nascido na Itália: Victor Brecheret.
Pensar a obra de Brecheret como constituída nas franjas entre a tradição da escultura europeia e as prescritivas modernistas para a escultura do início do século passado, me fizeram rever a mais recente produção de Claudio Cretti como constituída nas franjas que mal separam (ou separam ainda com alguma dificuldade) a escultura moderna da contemporânea. De modo geral a primeira sustenta-se na unicidade, na autorreferência e na raridade dos materiais (mármore, bronze etc.); a segunda teria como características principais o uso de materiais prosaicos, a dependência do espaço real onde se situa e a disponibilidade para ser manipulado pelo (ex) espectador.
Quimeras – título da série que Cretti apresenta na Cassia Bonemy Galeria, no Rio de Janeiro – são exatamente o que pode significar o termo: cada peça ali exibida se caracteriza como uma combinação heterogênea e muitas vezes desconcertante de vários objetos. Apesar da aparência estranha (a estrutura gráfica que as caracterizam não repele a eventual aparência de formas vegetais ou animais), são esculturas únicas tendentes a perdurarem no tempo e no espaço.
Levando-se em conta apenas essa última característica, elas poderiam ser incluídas, não apenas na tradição da escultura modernista, mas também na grande tradição da arte europeia, que sempre tiveram a unicidade da obra como ponto máximo de avaliação.
Mas as peças que configuram Quimeras possuem características que problematizam seu status dentro da tradição moderna. Além do fato (já mencionado) de serem constituídas por meio de articulações de objetos não previsíveis – batutas, arco de violinos, objetos para limpar instrumentos de sopro (artigos musicais que o artista encontra em lojas especializadas em Pinheiros, bairro onde mora), encadeados a cachimbos, zarabatanas e outros artefatos populares, que Cretti sempre colecionou –, muitas vezes elas são ainda mais problematizadas pela articulação entre algumas delas e as bases que as sustentam.
De fato, nesses casos, bases e esculturas tendem a resultar em uma única peça. Em outras ocasiões opta por situar suas peças em bases convencionais, guarnecidas por aparatos de acrílico que as envolvem e as protegem.
No primeiro tipo de ocorrência, o artista, ao transformar base e escultura num único objeto, o aproxima daquelas obras do escultor romeno Constantin Brancusi, que ficou conhecido como um dos fundadores da escultura moderna por integrar a base às suas esculturas, formando também um todo indissolúvel. Quando transformou base e escultura num único objeto, Brancusi integrou a obra ao espaço que a circundava, mesmo mantendo – é importante que seja aqui mencionado – a integridade formal das mesmas.
Mas as esculturas de Cretti não se resumem a essas formulações brancusianas porque não se adequam a elas com tranquilidade. Afinal, ao contrário das peças do romeno, as articulações de objetos sobre as bases se estruturam com alguma fragilidade, são instáveis e, como resultado de qualquer oscilação, podem ter suas extremidades direcionadas para outros sentidos que não aqueles decididos inicialmente pelo artista. Meio cambaios, se sustentam com dificuldade e parecem sempre estar prestes a sucumbir por sobre a base ou diretamente no chão.
Nessas formulações já se torna patente a relação ou a dependência dessas esculturas ao entorno, o que as desvinculam da busca pela integridade formal que caracterizou a escultura moderna.
(A aparente instabilidade das Quimeras de Cretti, essa submissão ao espaço real, por sua vez, remetem o espectador a algumas obras dos anos 1960/1970, ligadas à arte povera italiana, ao pós-minimalismo norte-americano e mesmo a um segmento importante de obras do escultor paulistano José Resende, um artista que, forjando sua poética sobretudo a partir dessas últimas vertentes internacionais que caracterizariam o contemporâneo, foi uma referência importante para Cretti em seu início de carreira).
Essa dependência do entorno, torna-se absolutamente explícita em suas peças de maior porte, que parecem assumir com mais voluntarismo certo aspecto gráfico que define suas peças menores, e em que se nota como as mesmas jogam com arsenais que replicam, desde a escultura tradicional – o uso do mármore e do granito nos remete diretamente a ela –, até a soluções que parecem embaralhar os conceitos de escultura moderna e de escultura contemporânea, esbarrando em certas configurações que dialogam com o site specific. Afinal, mesmo funcionando ainda como objetos autônomos e portáteis, essas peças são (talvez ainda mais do que as menores) absolutamente dependentes dos lugares que ocupam, trazendo-os para o bojo da proposição estética ali explicitada, o que faz com que o espectador se torne consciente de que ele e a obra ocupam o mesmo espaço.
Já em outras obras – subsérie Bijoux –, Cretti experimenta o contrário do que faz com as outras Quimeras. Ao invés de deixa-las à mercê das circunstâncias do tempo e do espaço, o artista as isola em estruturas de acrílico. Ali dentro, protegidas, as peças parecem atuar, em sutil alusão ao palco cênico, tão aparentado ao espaço pictórico tradicional. Com as Bijoux, as estruturas articuladas de Cretti se refugiam do entorno, como animas ou plantas numa estufa, obras que parecem se recusar aos aspectos mais desafiadores da experiência estética contemporânea, sem que essa recusa as isentem por completo de tais desafios.
Contemporânea ou moderna, moderna e contemporânea, a produção atual de Claudio Cretti tensiona e problematiza os limites dessas conceituações evidenciando que a obra de arte – e isso desde sempre – se estabelece como resultado ou como um flagrante de um encontro entre vertentes as mais diversas e, no limite, as mais díspares.
Se essa característica pode ser encontrada em diversos momentos da história da arte, parece não restar dúvidas de que nos últimos anos ela se tornou a própria definição da arte que atualmente se produz. Vivemos hoje, talvez mais do que no início do século passado, numa grande franja entre o passado e o presente, entre o moderno e o contemporâneo, sem que se vislumbre o surgimento de novos paradigmas para a arte como a entendemos hoje. A não ser, é claro, que a noção de arte como objeto que interage no e com o mundo acabe de vez sua inscrição na História.
Tadeu Chiarelli – março/abril, 2019
abril 25, 2019
Rebote: correspondências a três por Rodrigo Moura
Rebote: correspondências a três
RODRIGO MOURA
Pai: Que coisas vermelhas você conhece?
Filha: Amarelo.
Há pelo menos três maneiras de se fazer uma exposição.
[scroll down for English version]
...assim como as memórias de viagem se empilham, os souvenirs disputam nichos escondidos na casa (na caixa, na estante, na cabeça, na sala de exposições). O bowl de cerâmica creme, comprado no mercado de pulgas de uma capital europeia e trazido no fundo da mala enroladinho numa camiseta branca roubada de um namorado, guarda pedras roladas de basalto colhidas na rua de um condomínio de artistas na China; ao lado, uma rocha vulcânica crispada, reminiscência de um vulcão ainda em atividade, a 2.829 metros de altitude, na ilha do Fogo, arquipélago de Cabo Verde...
Rebote se refere ao desafio de estabelecer diálogos e correspondências a três, aproximando práticas em pintura, fotografia, escrita e curadoria. Os pontos de partida são os próprios trabalhos, assim como experiências anteriores de colaboração entre os participantes. Não se estabelecem regras a princípio, mas as associações são construídas a caminho. As aproximações podem ser de caráter formal, com paridades entre as obras, ou abranger aspectos mais amplos. O espírito entrópico da pintura de Marina Rheingantz é o princípio animador inicial, diapasão das relações estabelecidas. Uma pintura de paisagem sempre em vias de se derreter, transformando em pura matéria inanimada aquilo que antes de ser forma já deseja ser figura, qualquer figura. Uma chuva que parece um elefante. Um guarda-chuva de sentidos. As imagens extraídas do arquivo de Mauro Restiffe são atestado da elasticidade espaço-temporal que determina sua prática. Os tempos se embaralham, as especificidades de lugar e data se interrogam numa espécie de sala de espelhos, não por acaso um de seus tropos. A escrita crítica e criativa é contraponto às imagens, voz entoada em conjunção aos temas principais. Uma escrita que se decanta no tempo, como nos fragmentos que compõem e interrompem a narrativa principal deste texto, sem que possam se separar dele, remontando às relações entre a frente e o verso dos bordados e entre a luz e a sombra das fotografias. Escrita manual, artesanal, residual, serragem de letras e palavras. Roteiro a posteriori.
...esse pensamento me veio claro depois da exposição na Biblioteca, quando não havia espaço para falar em técnica e todo mundo estava distraído demais com ideias sobre afeto e intimidade na fotografia e outras generalidades. A imagem mental que usei como antídoto a essa tendência foi a de um olhar que transferisse os atributos do aparato fotográfico diretamente para a visão humana. Enxergar o mundo por meio da fotografia, escolher a sensibilidade da película, resumir tudo às verticais e horizontais do quadro. Num sonho que tive na mesma época, eu visitava uma paisagem montanhosa na estrada de Ouro Preto e via tudo em preto e branco, com o contraste ligeiramente acentuado e apenas um ponto de cor no meio das rochas e da vegetação do cerrado. Uma cabana de madeira vendendo película, pura luz amarelo Kodak...
Rebote se refere aos efeitos reativos do contato de um corpo com o outro, “salto ou ricochete de um corpo elástico quando se choca com outro”. Justapor as fotografias de Restiffe às pinturas de Rheingantz pressupõe sublinhar algumas proximidades. Estas se manifestam aqui pelo sentido de lugar e de paisagem, e também pelo interesse por luminosidades atmosféricas. Efeitos reativos são inevitáveis nas disparidades de materialidade das pinturas, bordados e fotografias. O elemento fotográfico se camufla mais nas pinturas de Marina do que o contrário. Não há correspondência exata, mas antes, ecos.
Ocorrências de afinidades, por exemplo, nos desenhos de Jean Cocteau na Vila de Santo Sospir com os fios do bordado Uma passadinha (2018); nos confetti de fim de noite com as pinceladas granuladas; nas montanhas verticais com as montanhas horizontais; nos contra-luz cegantes; na linha das pinturas de Lorenzato penduradas no ateliê de Ricardo Homen com a linha de obras menores penduradas na sala da Carpintaria; no jóquei fotografado em Itália com aquele logo ali; na imagem em frangalhos de Minas Gerais: ressonância de Brumadinho na matéria lama das pinturas de Rheingantz, nostalgia barroca na Congonhas de Restiffe, um retrato na parede deste texto.
... as datas passam. Um dia quando, não dá – esta paisagem aparecerá aos seus olhos. Nova ou velha, que importa. É o testemunho – e o será nesse dia – de um céu estranho e vivido, de um romancista cujo único amor foi viver – passar – que é a paixão de todas...[1]
Rodrigo Moura é curador, escritor e editor. É autor da monografia Marina Rheingantz – Terra líquida (Cobogó, 2016), foi curador da exposição Mauro Restiffe – Álbum (Pinacoteca de São Paulo, 2017) e colaborou nesta exposição a convite dos artistas.
[1] Trecho de dedicatória do escritor Lúcio Cardoso em desenho de 1950
Rebound: Three-Way Matches
RODRIGO MOURA
Father: Which red things do you know?
Daughter: Yellow.
There are at least three ways to make an exhibition.
...as travel memories pile up, souvenirs compete for hidden corners in the house (in the box, on the shelf, in the mind, at the gallery). The egg-shell ceramic bowl bought in a flea market of an european capital and brought in the bottom of the suitcase, wrapped on a white t-shirt stolen from a boyfriend, holds basalt pebbles collected at an artist residence street in China; next to it, a crisp volcanic rock, memento of a 1,76 mile high still-active volcano, at Fogo, Cape Verde...
Rebound refers to the challenge of establishing three-way dialogues and matches, bringing painting, photography, writing and curating practices closer. The starting points are the artworks themselves as well as previous collaborative experiences between the actors. No rules are established at first, but associations are built along the way. Approximations may be formal, matching formally equal pieces, or also embody broader aspects. The entropic mood of Marina Rheingantz' painting is the kick-start, the touchstone of established relationships. A landscape painting that is constantly on the verge of melting, transforming into pure inanimate matter something that already wishes to be figure – any figure – even before taking shape. Rainfall looking like an elephant. An umbrella of meanings. The images taken from Mauro Restiffe's archives are proof of the time and space flexibility that outlines his practice. Time frames change order,placementand timing particularities cross-examine each other in a kind of mirror maze, not surprisingly one of his tropes. Critical creative writing is a counterpoint to the images, a voice intoned in conjunction with the main subjects. A writing that is disenchanted in time, like the fragments that comprise and interrupt the main narrative of this text, which are inherent to it, going back to the relations between the front and the back of embroideries and between light and shadow in photography. Handwriting, artisanal, residual, letters and words' sawdust. A scripted afterthought.
…this thought came clearly to me after the exhibition at the Library, when there was no room to talk about technique and everybody was too distracted by ideas about affection and intimacy in photography and other generalities. The mental picture I've used as antidote to this trend was of a vision that would transfer the photo equipment attributes straight to human sight. Seeing the world through photography, choosing the film exposure, summing it all up to the vertical and horizontal lines of the frame. In a dream I had around the same time, I'd visit a mountainous landscape on the road to Ouro Preto and I'd see it all in black&white, in slightly enhanced contrast and just a single colored spot among the rocks and the savanna flora. A wooden cabin selling film, pure Kodak yellow light...
Rebound is about the reactive effects from the touch of bodies against each other, “bounce or backlash of an elastic body as it hits another”. Juxtaposing Restiffe's photos with Rheingantz' paintings implies highlighting some proximities. These are expressed here through the sense of placement and the scenery, and also through the interest for airborne light. Reactive effects are inevitable in the material difference of the paintings, embroideries and photographs. The photographic element is more concealed in Marina's paintings than the opposite. There's no precise match, but rather echoes.
Affinity outbreaks, for instance, on Jean Cocteau's drawings at the villa Santo Sospir and the embroidery threads from Uma passadinha (2018); on the late-evening confetti and the grainy brushstrokes; on vertical and horizontal mountains, on blinding back-lights; on Lorenzato's paintings hanging on the walls of Ricardo Homen's studio and the line of smaller works hanging at Carpintaria; on the jockey portrayed in Italy and the other one right over there; on the picture in tatters from Minas Gerais: Brumadinho's resonance on the mud matter of Rheingantz paintings, baroque nostalgia on Restiffe's Congonhas, a portrait on this text's wall.
...time has passed. “Someday, when” is not feasible – this landscape will pop in your eyes. New or old, what does it matter? It's the exhibit – and it will be on this very day – of a strange vivid sky, by a novelist whose only love was living – passing – which is everybody's passion... [1]
Rodrigo Moura is a curator, writer and editor. He's the author of Marina Rheingantz – Terra líquida (Cobogó, 2016), has been the curator of the exhibition Mauro Restiffe – Álbum (Pinacoteca de São Paulo, 2017) and has collaborated in this show at the invitation of the artists.
[1] Excerpt from a dedication by writer Lúcio Cardoso on a drawing from 1950.
abril 10, 2019
Cura Bra Cura Té por Ernesto Neto
O Brasil nasce da violência do encontro de um homem europeu com uma mulher indígena.
Em gratidão à nossa mãe indígena, do seu ventre nasce a primeira brasileira ou brasileiro, sua sabedoria está em nós, viva!
Em gratidão à nossa segunda mãe, nossa mãe africana, violentamente retirada de sua terra, sua sabedoria está entre nós, viva!
Somos filhos de três continentes, mas só sabemos de um, só nos ensinam um, só valorizamos um, ficamos capengas, fracos. Envergonhados de nós mesmos, que bobagem, somos lindos. Quem somos nós? A força indígena e a força africana estão dentro de nós, chegou a hora da cura, chegou a hora de ouvir pajés, babalorixás, yalorixás... chegou a hora de ouvir a espiritualidade de nossa terra, de nossas plantas, rios e árvores chegou a hora de ouvir... A cura vem da terra, a terra dança, a terra canta, está em nós, a força europeia também está em nós, mas de tanto olhar as estrelas esqueceram da terra, achavam que o mau vivia na terra, que loucura! Violentaram a terra, e continuam violentando, chegou a hora da cura, chegou a hora de equilibrar, o mundo está doente, o Brasil também, nossa doença é o desencontro de nós com nós mesmos, com nossa história, mal contada, mentirada, o genocídio continua, vivemos uma escravocracia disfarçada, camuflada, dissimulada, agora, acontece de várias formas sutis, camufladas pela mídia, pela cultura, mas arde, machuca, envenena, rouba, mata. Canto, dança e alegria são a cura, a floresta é a cura, é a sabedoria das plantas, da terra, do conhecimento que está escondido em nós, da sabedoria negada por nós, pelo estado colônia que habita em nós. A arte é a temperança, arte cura, poesia, canto e dança, o passarinho, voa, o tatu entra na terra, raízes descem para escuridão, folhas sobem para a luz, água sol água, árvore vida, mamãe vovó, vamos ouvir nossas mães, mãe terra, planta, rio, montanha, vento, água, elas ensinam, os povos da terra podem traduzir, esta sabedoria é nossa maior riqueza, vamos curar nossa tragédia colonial vamos chamar os espíritos da floresta, reflorestar nosso planeta, nosso corpo, nosso espírito, nossa mente, nossa cultura, nada segura a vida, nada segura a arte, o corpo balança, o corpo canta, o corpo quer vida, alimento de qualidade sem veneno, entramos em estado de transformação é o feminino. A força da terra chegando, tá deixando muita gente assustada, com vontade de matar, envenenar, reprimir, culpar, mas não tem jeito é a força da terra, é a nova vida chegando e ela é ancestral, o novo é ancestral, ela está no ar, vamos receber esta energia maravilhosa, indígena, negra, feminina, ancestral, ela é puro amor, força vital da jiboia encantada que nos trouxe até aqui e voltou pra nos curar, que já está transformando o mundo, é a espiritualidade cósmica da terra, marte está em nós, a lua também, todo o infinito, chegou a hora de ouvir o tempo, que está falando com a gente, é o amor, sagrado profano, tudo junto ao mesmo tempo, a vida é uma preciosidade, viver é nossa glória, a alegria está em nós, tudo é gente neste mundo , tudo é humanidade, pedra, luz, canto, chuva, a gente é corpo, corpo é vida, viver cantar curar, cura Bra cura té, cura bra cura té cura bra cura té....
Ernesto Neto - Sopro, Pinacoteca de São Paulo - 31/03/2019 a 15/07/2019
abril 9, 2019
No meio-fio visual por Adolfo Montejo Navas
No meio-fio visual
ADOLFO MONTEJO NAVAS
Naquele meio-fio visual que sulca pelos caminhos ainda tensionados ou em articulação entre cultura pictórica, iconografia comercial, universos kitsch ou pop de consumo e imaginário contemporâneo, encontra-se esta fábula artística de Marcelo Cipis, cujas raízes se fincam também entre um passado cada vez menos recente (com uma melancolia moderna estranhada, cotidiana, em curso, até denotada no uso de cores rebaixadas, leves) e uma sensação onipresente de estar assistindo a uma latente dramaturgia de situações e fenomenologias, de nosso dia a dia já erodido de ideologias maximalistas, pós-histórico, líquido. Talvez porque cada vez mais faça parte da arte viva das entre-imagens reviver o moto-contínuo de que as aparências enganam. Daí por que, mais que nunca, o lugar obrigatório e crítico da pintura na globalização visual seja tão problemático quanto inquietante.
Sobretudo para obras que falam com uma sintaxe estética paradoxal (composições, figurações, cromáticas), que parecem procurar uma inocência, uma recuperação de certo elã vital das coisas, mas que fazem respirar uma suspeita instalada mais embaixo, a de que esta imagética é distópica e utópica ao mesmo tempo! (Não em vão, “A utopia é aqui”, de 2019, por exemplo, repotencializa pinoquiamente um nariz ampliado, que pode ter alguma alegoria política próxima.) Sempre naquela dialética macro/micro que habitamos, conseguindo assim ter uma dupla militância. Ou outro meio-fio: seja contemplado por meio de pequenas telas-alfabeto – que ensinam a renomear, a assegurar uma abstração com a mão – ou então um sabão que parece lingote ou camisas como produtos corporativos da ficcional firma industrial Cipis Transworld, ou ainda pinturas ou peças icônicas cuja formulação irônica, humorística – “Mulher Legér” (2016) ou “Jeff Koons suprematista” (2010) – rebaixa qualquer pompa estética a mais (seja institucional, mercadológica ou simplesmente coisificadora).
De fato, o ar da globalização pesa tanto quanto o da micropolítica, assim como o peso das vanguardas históricas (suprematismo russo, futurismo italiano, surrealismo), projetado em ecos sintéticos, metabolizados, convive com um pathos da subjetividade que quer estar em suspenso, quando não próximo ao entretenimento, à magia, ao sem peso, ainda rodeado de crise. O traço leve, perfilado, o esquematismo ascético e sensual de sua figuração chegam a ser neoprimitivos (do século XXI), e as cores tênues, mas vivas, voltam a enganar em sua aparência de alegria, quase procurando um estágio neutro possível, uma neutralidade estética quase quimera... Veja-se a aguda diferença entre uma risada e um boi, dois austeros títulos de pequenas telas recentes (2018), que exigem uma participação metapictórica, pelos referentes que gravitam (Delaunay, Arp, anúncios...), num empenho perceptivo oblíquo como é a ironia, como, aliás, acontece com Victor Arruda, artista com quem Marcelo Cipis tem algumas surpreendentes sintonias (configurações humanas recortadas, espacialidades suspensas ou certo background picabiano).
Contudo, a obra de Marcelo Cipis transita despretensiosa, aliada à sua sofisticação. Os seus signos, escritura-desenho-pintura-objetos, prometem uma transversalidade além dos gêneros paralelos com os que convive (ilustração, comic, propaganda, publicidade, design...); na verdade, sua poética funciona como uma convocatória poética, de nuances e sutilezas, formas de enxergar através do muro da realidade quando ele é mais opaco. E, por isso, a conquistada sensação de leveza, a sua respiração quase transparente. Outro contraste é que a superfície de suas telas é muito explícita, não joga com perspectiva, tridimensionalidade dentro dela, e sim fora, com quadros-fractais que se constelam de forma fragmentária, ou obras (em suportes diversos) que escamoteiam o todo como solução, sempre ingênua (retratos arquitetônicos exibidos em sua parcialidade compositiva, em flashback crítico – veja-se a série “Sala de estar moderna e abstrato moderno”, de 2018). E nesse jogo das formas e dos imaginários combinados, de escritura pictórica tão enfaticamente visual em sua cultura, nós, seus contemporâneos, saímos ganhando.
Adolfo Montejo Navas
março de 2019
Marcelo Cipis - DeaRio, Anita Schwartz Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ - 15/04/2019 a 15/06/2019
abril 7, 2019
Piti Tomé: 90 tentativas de esquecimento por Efrain Almeida
Piti Tomé: 90 tentativas de esquecimento
EFRAIN ALMEIDA
Em sua primeira exposição individual em um espaço institucional, a artista Piti Tomé apresenta dois conjuntos de obras distribuídos em ambientes diferentes.
No primeiro espaço, a série de trabalhos intitulada Natureza-morta reúne obras nas quais a artista utiliza galhos, folhas, troncos e madeiras. A esses vestígios apropriados da natureza são conjugadas fotografias de paisagens. Há nesses trabalhos um jogo formal e conceitual no sentido de articular e enfatizar contradições e ambiguidades como real e virtual, natureza e representação, memória e esquecimento.
Ao escolher títulos para as obras dessa série, torna-se evidente o universo de referências de Piti Tomé. Sejam elas extraídas do romantismo do alemão Caspar David Friedrich ou das melancólicas paisagens do pintor americano Edward Hopper. Apesar de todas as referências e possibilidades de leitura, o vigor da obra da artista está na maneira como agrega e produz novos sentidos para objetos triviais. Ao recorrer a procedimentos como o recorte e a supressão de partes de imagens ou mesmo a associação de imagens de origens diversas, ela promove o deslocamento de sentidos. Os objetos são retirados de sua condição original — banal e cotidiana — e alcançam assim um novo lugar. Deixam de ser o que pareciam antes — o resto, o resíduo insignificante — para adquirirem um novo estado.
No segundo espaço, na instalação 90 tentativas de esquecimento, Piti Tomé mostra peças em displays expositivos à maneira de um museu de arqueologia, paleontologia ou de história natural. Há nessa escolha muitas possibilidades de significado. O mais evidente de todos talvez seja o de nos falar sobre memórias, apagamentos ou, simplesmente, sobre a certeza da finitude à qual estamos destinados. O impressionante aqui é como, poética e sutilmente, Piti Tomé nos aproxima e nos afasta do aspecto trágico de nossa existência. Aproxima-nos, quando podemos nos reconhecer nas fotografias, nos restos de objetos e nas paisagens por ela apresentados. Mas, ao mesmo tempo, afasta-nos quando não nos reconhecemos ou não nos vemos refletidos naquelas imagens e objetos. Recorrentemente, a artista se utiliza de fotografias antigas, em preto e branco. Talvez essa escolha estratégica em fazer esse corte temporal promova no espectador uma memória associada a um tempo remoto. Agindo assim, a artista se protege e, consequentemente, preserva-nos da tão dolorida e indesejada certeza da mortalidade.
É importante ressaltar os recorrentes vínculos da obra de Piti Tomé sempre com um olhar crítico e atento à história da fotografia e ao ato fotográfico, tendo como função primeira o registro e a permanência da imagem e sua memória, seja ela coletiva ou pessoal. Não podemos esquecer também da importância para a artista de um outro campo de saber — a psicanálise. Ao sobrepor e tensionar arte e psicanálise, interpolando dois campos de conhecimento, Piti Tomé nos revela, com maestria e brilhantismo, seu domínio sobre os sentidos e significância de sua obra.
Efrain Almeida
Março de 2019 Porto - Portugal
abril 5, 2019
Reencenar a pintura por Daniela Name
Reencenar a pintura
DANIELA NAME
William Shakespeare tinha certa predileção por fantasmas. Pilar do teatro na parte do planeta que aprendemos a chamar de Ocidente, o dramaturgo inglês usou personagens mortos, que voltam à cena para uma sobrevida, em Hamlet, Júlio Cesar, Macbeth e Ricardo III, além de outros textos menos conhecidos. Os fantasmas de Shakespeare não são aparições efêmeras e assustadoras de um sobrenatural; eles se misturam aos “vivos” e, mais do que isso, são os propulsores da ação daqueles que ainda têm corpo e respiram. Tais personagens são, ainda, uma espécie de veículo estético para o inconsciente, ou, se o leitor ou a leitora deste texto preferir, para o que não está mais ou nunca esteve visível para a plateia.
Ao longo dos mais de 30 anos de atividade artística, Daniel Senise tem construído uma obra que também pode ser compreendida como uma conversa com fantasmas. Museu, exposição que o Instituto Ling apresenta em Porto Alegre, reúne um conjunto de trabalhos que exacerba e coagula essa característica.
Não escolhi falar de teatro aleatoriamente: a grandiloquência cênica, monumental, quase operística, marca o início da trajetória do artista, nos anos 1980. Conhecido como a “década da pintura”, esse é um período que apresenta questões muito mais complexas que a reabilitação de um suporte – que, diga-se de passagem, jamais foi descartado completamente pelas gerações anteriores. Depois de dada como morta por parte da crítica, a pintura se reafirma apenas como o veículo mais direto, especular e frontal para que se discuta outro retorno: o de uma relação afetiva com as imagens, postas em xeque pela crise da representação. Moribundas, as imagens voltam a ser reexaminadas pela geração de Senise, e esse grupo de artistas projeta para elas novas possibilidades de encarnação.
Não por acaso, boa parte da geração brasileira que iniciou a carreira fazendo a dramática pintura dos anos 1980 encontrou caminhos diversos para dar continuidade ao seu reencontro com a imagem. Alguns migraram para outros meios, caso de Nuno Ramos, com sua obra literária e multifacetada, ou Angelo Venosa, uma das matrizes do (re)entendimento da escultura como um corpo aos pedaços; um corpo, enfim, feito de imagens. Senise, por sua vez, é seguramente um dos maiores representantes de um grupo de construtores de outra pintura. Ela se dobra sobre sua história e seus vocabulários para se transformar em um suporte híbrido e caleidoscópico, capaz de deixar entrever a imagem recalcada, fazendo-a luzir não como imagem em si, mas como memória.
Em sua última aparição para o filho Hamlet, o fantasma do pai recomenda que ele confronte a mãe, Gertrudes, supostamente cúmplice do assassinato do marido: “Mas, olha, o espanto domina a sua mãe / Coloca-te entre ela e sua alma em conflito; / Nos corpos frágeis a imaginação trabalha com mais força. / Fala com ela, Hamlet”.
Fale com ela: o enfermeiro violador que se relaciona de múltiplas maneiras com uma paciente em coma, entre a vida e a morte, no filme de Almodóvar. “Nos corpos frágeis a imaginação trabalha com mais força”: repensar o palco, estudadamente precário, através do qual os fantasmas possam vir a conversar sobre aquilo que já não está. Ou como na famosa passagem do Retrato de um artista quando jovem, de Joyce, imaginar um tempo e um lugar para a “ausência como a mais elevada forma de presença”.
A relação com uma ideia de “aparição” e com figuras que parecem se tornar visíveis de modo espectral é muito forte na obra de Senise desde os primeiros trabalhos em tinta a óleo. Poucos demonstraram isso de modo tão evidente quanto a pintura sem título de 1986, em que um pódio vazio, à frente da cena, não consegue esconder as três figuras fantasmáticas ao fundo. Esse é um trabalho que ilumina o que o artista fez antes, com as obras seminais em que pedaços de corpos, de objetos e de construções arquitetônicas se acumulam aos fragmentos. São vestígios de algo que talvez já não habite um corpo presente, mas segue afetando e importando, numa reencenação que o crítico Wilson Coutinho chamou de “teatro das sensações mutiladas” [1].
A pintura do pódio também poder ser vista como um emblemático retrato histórico dos anos 1980, tempo de especulação financeira, de projeção de vencedores vazios, de flutuação de signos e, especificamente no Brasil, de uma transição política para a chamada redemocratização, coalhada de corpos insepultos e desapontamentos. Por fim, essa é uma obra que ajuda a compreender melhor o que o artista faria cerca de dois anos depois, com a tinta acrílica se misturando à tinta a óleo na elaboração das telas, e com os espaços vazios passando a importar tanto ou mais que as figuras. Estas passam a ser tratadas como corpos não identificáveis, fósseis que quase estalam de tão vivos, mas são provenientes de um tempo e de uma dimensão que nunca saberemos ao certo quais são.
Nessas obras de 1988 e dos anos imediatamente seguintes, Senise já começa a experimentar a monotipia na preparação dos fundos das pinturas. A técnica de impressão passa a emular, na própria constituição material das obras, as ideias de ausência/supressão e de trânsito vindas de seu campo simbólico. Isso adquire uma voltagem ainda maior quando se percebe que a monotipia usada pelo artista vem do chão, registrando inicialmente as marcas arquitetônicas do piso de seu próprio ateliê, do qual também se incorpora todo tipo de vestígio (poeira, marcas de tinta). Mais tarde, o artista passaria a fazer um inventário de pisos, colecionando impressões dos lugares mais variados e guardando-as organizadas como uma paleta de cores – dos marfins quase brancos aos marrons quase negros. Além de mexer com a ideia de frontalidade e verticalidade que marca a história da pintura, com o uso do chão Senise passa a tratar essa outra pintura como um corpo constituído real e alegoricamente por outros corpos, e, mais do que isso, como um corpo que se alimenta material e imageticamente da arte e de suas histórias.
É um corpo de resto, o “corpo frágil” de que nos fala o fantasma do pai de Hamlet. Ao longo dos anos 1990, o artista experimenta variações para a monotipia. Em trabalhos como Quase infinito (1992) e as telas da série Bumerangue (1995), as imagens são constituídas por ferrugem, desprendida de pregos tratados quimicamente e depositados sobre a superfície da tela. Especificamente em Bumerangue, ocorre mais uma vez uma encruzilhada entre o campo material e o campo simbólico do trabalho. A imagem apresenta trajetórias de bumerangues no espaço – desenho de um objeto ausente, que não está mais lá. Por sua vez, a “tinta” que dá forma a esse desenho ausente é também memória de corpos-fantasmas, os dos pregos que morreram um pouco para tirar de si a ferrugem, transformada em pigmento.
Aquilo que falta está ainda na série Ela que não está (1994), em que Senise reconstitui a marca deixada por uma sepultura em um afresco de Giotto, na Igreja de São Francisco, em Florença. O protagonismo dessa imagem, proveniente de outro tempo e outro espaço, permeia toda a trajetória do artista e, a partir dos anos 1990, passa a se referir mais claramente à história da arte. Além de Giotto, Senise já se apropriou de obras de Caspar David Friedrich, Michelangelo e James Whistler, adulterando-as, velando-as integralmente ou abrindo mão de alguns de seus detalhes fundamentais.
Museu reúne um conjunto de pinturas recentes que retratam salões de importantes museus ao redor do mundo – caso da National Gallery, em Londres, e da Frick Collection, em Nova Iorque –, além de aquarelas que reproduzem a padronagem dos pisos de madeira de instituições culturais. Andreas Huyssen [2] lembra que, a despeito de sua eventual histeria espetacularizada, museus são hoje uma espécie de ruína, uma nostalgia de outro tipo de relação com a imagem. Eles apontam para a saudade de um diálogo mais vagaroso e áspero, distante da aceleração das redes sociais e suas fotografias produzidas num turbilhão ininterrupto, mas efêmero e deslizante, com pouquíssima aderência à memória.
Assim como na obra de Shakespeare, os espectros de outros tempos jamais foram assustadores para Senise. Muito ao contrário: as imagens que faltam são a possibilidade de uma conversa ancestral; são seu pai e sua mãe. E o conjunto de obras reunidas em Museu evidencia como a imagem latente – ela que não está – atinge uma força radical ao ser sequestrada dos espaços arquitetônicos e simbólicos que foram concebidos para guardá-las. Ela é talvez mais presente em sua ausência do que seria em sua representação.
Isso ocorre não apenas pelo fato de que os tortuosos caminhos da memória nos induzem a reconstituir ambientes conhecidos – caso da clássica sala do Museu Nacional de Belas Artes (2016), no Rio de Janeiro, com todas as obras que traduzem o imaginário épico de Victor Meirelles e Pedro Américo –, mas também por diálogos mais enviesados com a história da pintura. Em Rothko Chapel (2018), por exemplo, a presença de retângulos monolíticos em carvão é o avesso e o direito da atmosfera do próprio Rothko – geometria ascendendo na direção da luz. Já em Musée d’Arts de Nantes (2018), as manchas em carvão reconstituem as paisagens subtraídas das paredes do primeiro ambiente, mas temos ainda o olhar sendo convidado para uma perspectiva esfacelada. Vemos um museu que tende ao infinito, no fundo que mais parece uma sucessão de pinturas dentro da pintura, como As meninas, de Velázquez.
Em Museu, a presença das aquarelas retratando os pisos de instituições culturais é como uma resposta, mais um eco lançado nessa casa de espelhos da pintura. Senise devolve ao chão tudo aquilo que vem roubando dele, como alguém que oferece abrigo para essas imagens à deriva – um entendimento profundo da palavra “reconfiguração”. Assim como Hamlet, que conversa desenvoltamente com o fantasma de seu pai, o artista vem lidando com o legado de imagens da história da arte como um fóssil em brasa, o leitfossil em constante movimento que Didi-Huberman identifica em toda a catalogação de Warburg [3].
O príncipe atormentado de Shakespeare monta uma peça dentro da peça, num paradigma para a metalinguagem artística. Ao dar outra vida para esses museus amputados, Senise reencena a pintura dentro da pintura, num jogo de reflexos por vezes dilacerante e inquisidor: o que temos feito com as imagens que nos importam?
NOTAS
1 No catálogo da participação de Senise na XVIII Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 1985.
2 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismo, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
3 DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
Philippe Decrauzat - Circulation por Matthieu Poirier
Philippe Decrauzat - Circulation
MATTHIEU POIRIER
Desde o início dos anos 2000, a prática proteiforme de Decrauzat distingue-se pela sua abstração geométrica vibrante e dinamogênica, apresentada por meio de shaped canvases [telas moldadas], pinturas murais, instalações, filmes e esculturas. Aborda criticamente várias correntes históricas: arte concreta, neoconcretismo, arte perceptiva, cinetismo, arte ótica e arte minimalista, que são revisitadas à luz de vários campos culturais, como o cinema, a física ondulatória, a arquitetura modernista, a música drone ou ainda as ciências cognitivas. A atual exposição na Galeria Nara Roesler, que acontece simultaneamente nos espaços de São Paulo e do Rio de Janeiro, reúne cerca de trinta obras sobre o princípio comum da circulação. Essa circulação diz respeito ao olhar – como se guiado por trilhos óticos –, ao corpo do espectador, evoluindo no espaço e, finalmente, às fontes históricas que entram em ressonância. Isso porque a aparência gráfica imediata das obras é, acima de tudo, uma armadilha para o olho, que conduz o percurso incessante dos arcanos comuns da percepção e da memória. Esculturas, pinturas, ambientes ou filmes revelam-se, assim, menos objetos materiais que gatilhos de uma experiência do olhar, como ferramentas de uma especulação estética e semântica.
A parte de São Paulo abre com três esculturas chamadas Les Perspecteurs. A obra faz referência direta a uma gravura de Abraham Bosse publicada em 1648 em um tratado sobre a perspectiva e na qual pirâmides descentradas e delgadas, formadas exclusivamente por suas arestas, materializavam a visão humana ao projetar-se no chão em vários pontos de vista (sentado, de pé e de cima). Na transposição escultural e imaculada de Decrauzat, elas lembram as estruturas cristalinas de Sol LeWitt ou Robert Smithson e destacam-se, no espaço da exposição, sobre dois conjuntos de pinturas: o das Black Paintings, em que a figura pintada determina a forma do suporte, e da série Slow Motion, com seu motivo ortogonal. Variam de uma pintura para a outra o número exato de linhas e a altura da transição de vermelho para branco, o que leva a um "aumento do branco no espaço", ou à aparição de uma névoa que se elevaria do solo corroendo a figura da grade e fazendo com que se confundam as pinturas e o trilho das molduras. Essa modalidade, focada agora na degradação cromática de uma única linha sobre a parede imaculada, encontra-se desta vez sob a forma de uma pintura mural, Cut!, no espaço expositivo do Rio de Janeiro, e evoca os tondi fugazes de Robert Irwin ou, ainda, os Zips de Barnett Newman.
A relação espacial com a parede e o white-cube também é crucial para o tríptico Black Paintings, cujo formato varia de uma pintura para outra, o que nos faz pensar por um momento, de acordo com um princípio elementar de perspectiva, que se situam em distâncias diferentes. Como em X Wave, as curvas correspondem ao corte das molduras e fazem dos quadros objetos ambíguos, entre pintura e escultura. Sua figura faz o eco dos patterns de motivos florais e geométricos em Giacomo Balla, mas também do estilo gótico flamboyant [flamejante]. Isso porque a maioria das pinturas de Decrauzat derivam de um simples módulo gráfico desdobrado segundo uma simetria central. Aqui uma cruz, uma rosa dos ventos ou uma ferramenta sinalética levam o olhar à periferia, igualmente convidando-o a mergulhar em seu fosso central, em um duplo movimento centrífugo e centrípeto que caracteriza da mesma forma a série de grandes pinturas em forma triangular Black Should Bleed to Edge apresentada no espaço do Rio de Janeiro.
Quanto à escultura Anisotropy, ela pode ser apresentada em uma base plana, como um jogo de xadrez, ou em uma parede, como uma pintura ou um baixo-relevo. O artista escolheu o nome por causa de propriedades físicas próprias, por exemplo, do cristal, que variam de acordo com o ângulo de observação. Sua forma serrilhada regular e concêntrica é inspirada em uma ferramenta científica recente, projetada para o estudo da circulação da água, mas em Decrauzat é o olhar – e não um fluído – que a escultura irradia. Essa ideia de um labirinto circular e vertiginoso é acentuada no filme Double Exposure, no qual ressurgem de forma ainda mais explícita as figuras do zoetrope [zootropo] – esse cilindro perfurado ancestral do cinema – e da arquitetura panóptica.
Decrauzat reconduz alguns sistemas de permutas de valores iniciados por Max Bill ou Richard Paul Lohse. No entanto, essas modulações excluem em Decrauzat a policromia para privilegiar os valores opostos no espectro, tais como preto/branco ou vermelho/azul, ou ainda para explorar os tons de cinza. Se elas recordam por estas razões os quadros "op" de Bridget Riley, ou ainda os Portraits minimalistas de Frank Stella, as composições da série Delay Exa perseguem uma lógica dedutiva, iniciada por Decrauzat em 2003, relacionada à propagação, ao eco e ao esgotamento de uma onda e seu sinal. Nessa série de shaped canvases em grandes dimensões que ocupa o salão principal do espaço de São Paulo, as permutações mencionadas dão origem a uma estrela de seis pontas. Como um circuito, ela tem trinta linhas concêntricas em torno de um centro oco. Em uma série, tais pinturas permanecem únicas em detalhes e distinguem-se entre si pelo número de suas linhas, a escala de seu motivo ou mesmo, como é o caso em Delay Exa, pelo significado de sua disposição. Ao reduzir a paleta para somente preto, branco e cinza (as "não cores" de Mondrian), vários elementos variam de um quadro para outro: o formato, a orientação, a progressão de um valor para o próximo.
Ludwig Wittgenstein, em seu Tractatus (1921), denunciou a confusão de duas linguagens com gramática e sintaxe próprias: por um lado, a do espaço visual ou fenomenal – "o parecer" – e, por outro, a do espaço físico ou geométrico – "o ser". Assim, a mesma tensão existe em Decrauzat entre intensificação dos efeitos e redução da forma. E quando o artista deixa fluir suas referências, não é, de forma alguma, com o propósito de mostrar de modo ostentatório, com transparência ou com erudição: o objetivo, didático, é enfatizar, além da simples influência, a importância das substituições, de sua constante circulação dentro do complexo processo de compor cada obra de arte digna de interesse.
Philippe Decrauzat - Circulation
Galeria Nara Roesler, São Paulo - 02/04/2019 a 01/06/2019
Galeria Nara Roesler, Rio de Janeiro - 17/04/2019 a 01/06/2019
abril 3, 2019
Programa Solo por Fernando Cocchiarale e Fernanda Lopes
O Programa Solo — projeto de exposições individuais de artistas brasileiros reunindo apenas obras pertencentes às coleções MAM Rio — faz seu lançamento com uma exposição de José Damasceno. Dois objetos e um conjunto de desenhos, realizados entre 1987 e 2000, apresentam ao público um pequeno panorama da produção de um dos mais relevantes nomes da produção contemporânea.
José Damasceno desenvolve suas obras como artista desde o início dos anos 1990. Muito provavelmente, a curiosidade que demonstra, desde os primeiros trabalhos, pelo espaço tridimensional do mundo real e pelo espaço bidimensional virtual da folha de papel também o acompanhou na sua formação incompleta em arquitetura. Como artista, ele constrói objetos e instalações que se se interessam pelos limites da forma escultórica com materiais industriais, como a estopa, a madeira, o concreto e o alumínio, que ganham novo significado. Sua poética envolve questões de superfície e profundidade, de solidez e gravidade. Isso não só nas peças tridimensionais, mas também no desenho, encarado pelo artista como local possível para simular, modelizar e inventar.
Para o Programa Solo reunimos desenhos e objetos feitos entre o fim dos anos 1980 — um período ainda de formação de Damasceno — e o início dos anos 2000, momento em que seu trabalho começa a alcançar notoriedade internacional. A litografia realizada em 1987, considerada pelo artista o ponto onde tudo começou, quando era estudante na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, já anuncia o estranhamento como um dos procedimentos que vai acompanhar seu trabalho até os dias de hoje. Aqui somos colocados diante de um conjunto de figuras de aspecto quase primitivo, algo raro na sua produção, que se misturam e se atravessam. Um desenho que deixa de lado ideias como estudo, preparação, escala, em favor da noção de autonomia.
Na produção de Damasceno tem algo do desenho que não se realiza como objeto, assim como há algo do objeto que não se captura como desenho. O trabalho mais recente da exposição é Cartograma (2000). A estrutura de linhas de metal apoiada em compassos revela o interesse do artista pelo espaço real e nos chama a atenção para sua dimensão móvel, instável, com o equilíbrio frágil que articula as peças e sustenta o objeto.
Reunir aqui essas obras é revelar ao público questões como essas que se reconfiguram ao longo do tempo na produção de José Damasceno, e também celebrar sua presença em nosso acervo e sua contribuição para a leitura desse imenso conjunto de obras e artistas.