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dezembro 12, 2018
Elas por Elas por Isabel Sanson Portella
Elas por Elas
ISABEL SANSON PORTELLA
I took a deep breath and listened to the old bray of my heart: I am, I am, I am.
Sylvia Plath
Elas por Elas, coletiva focada nas mulheres que construíram a história da Galeria Mercedes Viegas, reúne obras de 42 artistas que dialogam esteticamente entre si. Diferentes poéticas, temáticas e abordagens, dividindo o espaço da Galeria, é resposta concreta e positiva às indagações e críticas que as relações entre arte e gênero vêm sendo construídas ao longo de décadas. A participação feminina na história da arte passou a ser reconhecida a partir do modernismo. O espaço artístico, cultural e social, antes ocupado exclusivamente por artistas homens, ganhou a presença, embora ainda tímida, das mulheres. Preconceitos sociais de gênero e ausência de oportunidades e reconhecimento criaram muitos obstáculos que mantiveram a mulher fora do cenário artístico mundial. A trajetória de conquistas femininas no decorrer dos últimos 100 anos foi marcada por lutas e crescentes vitórias. Trata-se de consistente indício do impacto que os estudos sobre gênero e arte causaram no ambiente tanto acadêmico quanto institucional. Várias questões têm sido levantadas desde então e as respostas obtidas levam a considerações sobre as causas da aparente inexistência das mulheres artistas na história. Tais lacunas nada têm a ver com a “ausência natural de talentos”, como pretendiam muitos estudiosos, mas sim com a exclusão feminina das instituições formadoras de carreiras artísticas – as academias de arte – ao longo dos séculos XVIII e XIX. Além disso, também contribuíram para o apagamento feminino nas artes a crítica, a imprensa, o mercado e os espaços expositivos.
A mostra Elas por Elas evidencia que no universo das artes não é o fator gênero que define os atributos artístico-estéticos das obras, mas sim o potencial criativo de quem as executa. Não existe “arte feminina”, modalidade classificatória a ser repudiada e que lança um olhar diferenciado e discriminatório sobre as obras.
As mulheres, todas importantes nomes do cenário artístico contemporâneo, no decorrer dos 25 anos de atividades da Galeria Mercedes Viegas, deixaram que suas obras falassem por elas. Com técnicas variadas (pinturas, objetos, fotos, bordados), cada uma é protagonista e usa sua própria linguagem artística com domínio perfeito e expressividade. Reivindicam a plena autonomia, sendo a questão de gênero superada por uma nova sensação de universalidade. O olhar do espectador poderá assim avaliar e entender a longa trajetória realizada pelas mulheres em direção a um lugar próprio na história da arte. A diversidade das obras irá certamente suscitar novas discussões e reflexões sobre arte na contemporaneidade.
Isabel Sanson Portella
dezembro 11, 2018
‘’/ ... tão vivas que até dá vontade de comê-las por Sonia Salcedo del Castillo
‘’/ ... tão vivas que até dá vontade de comê-las
SONIA SALCEDO DEL CASTILHO
Embora Ronaldo do Rego Macedo aspire ao desaparecimento, em sua virtuosa poética pictórica – interessada na invisibilidade do silêncio, do vazio... –, o vigor impresso à fatura de suas telas resulta em espaço e presença pulsantes. Há nela tal frescor que, por vezes, parece sugerir sabor à sua pintura.
“Gorda” (cada vez mais e mais próxima da escultura, dada à espessa camada de óleo de suas bordas), emoldura algo que não se conclui. Algo fugidio, ambíguo... que fica à sombra. Que tende a desaparecer, a afundar... não como mero écran, mas como espécie de abismo...
Incerta, sua pintura é soma de oscilações rítmicas de movimentos e tons. Melhor dizendo: cores... que são fabricadas pelo artista, por misturas diversas, cujos matizes se alteram a cada repasse do pincel, da mão... conforme o tamanho e a intensidade de seu gesto, enfim.
Espiritual, ela convoca à contemplação, à maneira dos pioneiros da arte abstrata: Mondrian, Kandinsky, Malevitch...
Conflitante, ela não é tão somente vibração. Mas acima de tudo dialética, ela é reflexão.
Apesar das surpresas resultantes de seu processo poético, não se trata de uma pintura meramente expressiva ou casual. Ronaldo bem sabe o que deseja fazer, ao enfrentar a vastidão da tela em branco. Das cores, dos tons, direções, espessuras, assim como dos pincéis, trinchas e vassoura, à realização dos recortes e apagamentos de planos, tudo é por ele previamente elaborado. Antes contempla, imagina, planeja, experimenta, ensaia, escolhe e, finalmente, executa seus planos resultantes da extensão de seu gesto.
Um quê de arquiteto; outro, de maestro; um tanto de coreógrafo e muito de poeta, o pintor articula vocabulários de espaços, ritmos, movimento e cerdas, interligadamente. Se seu gesto tropeça em si mesmo, ele retoma o correr da pincelada no ponto de interrupção e, mesmo que não tão liso, conclui o movimento desejado, feito dança que dá origem à escritura de sua fatura – que é tão fluida quanto densa, dependendo do plano que o nosso olhar tome como referência. Mas, sobretudo, uma fatura que parece ser um corpo e, como tal, ser viva!
Enquanto numa visada seus planos matéricos pulsam feito carne, noutra, nos envolvem tal qual atmosfera de tez suave... assim, feito fruição de espaço topológico.
À maneira de estrutura composta por gesto e matéria, rastros cromáticos e gráficos são velados ou desnudos a cada modo de olhar. Como se, diante de sua pintura, cores e palavras sussurrassem: ora, como arrependimentos sem dor, de camadas e camadas de óleo sobre a planura da tela; ora, qual palimpsesto de cerdas, por tingimento fluido sobre a superfície do suporte. Em recíproca visitação, pintura e escritura se fortalecem – mútua e “nomadisticamente”–, quer como presença ou ausência, em inseparável liminaridade poética.
Nessa operação pictórica, vislumbramos algo bem próximo do que Did-Huberman nos indica como trama temporalizada. Um conceito, segundo o autor, no qual se trava uma dialética entre o que aparece e o que desaparece aos olhos, de maneira confluente a um sentido de totalidade, dada a coincidência dos seus meios – aqui, bem entendido, matéria e suporte. Essa poética “liminal” entre superfície e profundidade (ou ao contrário) efetuada por Rego Macedo, graças a múltiplas nuanças brancas e ruídos vibrantes de cores, traz ao entendimento de sua pintura a ideia de ser ela uma estrutura intervalar.
Na produção artística de Ronaldo do Rego Macedo – que flerta tanto com o Expressionismo quanto com o Construtivismo –, há profundo conhecimento da arte moderna brasileira. Sem esquecer Volpi, Serpa, Willis e Amílcar de Castro como referências a uma intensa combinação poética, algumas de suas obras são superfícies ou recortes de planos. Outras, pura vibração luminosa ou viril espessura. Pela adição de espessas camadas de tinta aplicadas sobre aquelas superfícies, sua pintura redimensiona a cor. Pela tinturação fluida, cria atmosferas cromáticas.
Se essa fluidez da tinta revela, elegantemente, espaços feito formas de extremo silêncio e/ou puro vazio, aquela materialidade da tinta permite, a seu campo de cor, sair de sua bidimensionalidade rumo à circunstância da realidade. E nela projetando-se virtualmente, causa-nos certo desequilíbrio inquietante em relação ao suporte. Seja nas pequenas ou grandes telas brancas, a gestualidade rigorosa empreendida por Ronaldo, em sua pictorialidade, indica-nos certa latência – que progressivamente manifesta – à sensação de espaços vastos, de grandeza e expansão, à maneira de campo instável. Onde montagens de planos contínuos, que se encontram e garantem uma hipótese pictural, mantêm um franco diálogo com a pintura monocromática, minimalista e/ou conceitual de artistas como Brice Marden, Blinky Palermo e Robert Ryman.
Dessa forma, massas negativas e positivas se contrapõem, estruturalmente, por meio de nervuras que ora sustentam arranjos aleatórios, ora planos organizados. Em comum, fissões. De certa casualidade, planos fluentes escapam da superfície da tela rumo à esfera arquitetural. De inevitável organização, obsessiva fatura abandona a dimensão do visível em favor do vazio. Assim, nas séries de trabalhos assinados por Rego Macedo, mais do que fronteiras ou territórios, há campos de força geradores de espaços ao mesmo tempo rígidos e orgânicos, telúricos e aéreos, densos e diáfanos, sensíveis e inteligíveis, transparentes e opacos...
Por vezes, tais espaços revelam-se como paisagens proteiformes; por outras, como planimetrias transformistas de inconteste clareza construtiva. Contudo, nas suas obras, ao mesmo tempo em que observamos mais tatilidade, menos percebemos visibilidade. Num momento, a materialidade tonal do conjunto avança; noutro, se esconde. Num lapso, revela-se em ritmos e intervalos que se equilibram entre si, alternando cheios e vazios, por sutil contraste, qual trânsito entre incessantes luminosidade e temperatura: brancos brancos, brancos branquíssimos, brancos nem tanto... continuamente... Mas também azuis, violáceos, terrosos...
Sua pictorialidade sugere fluxos livres não só ao olhar, como também ao corpo. A virilidade do gesto que os disponibiliza confere à fruição de sua pintura mais experiência do que percepção. Diante da monumentalidade de suas grandes telas, por exemplo, parece-nos difícil distinguir se atravessamos ou vemos.
Através de recortes de planos vãos, feito portais de passagens ao infinito, num determinado instante, pensamos ser possível abrigarmo-nos neles; e noutro, não. Estes, em lugar de meros limites entre exterior e interior, tratam de ser passagens... liminaridades feitas de transparência e opacidade... à maneira do ambiente serrano que lhes deu origem. Mas não apenas.
A série de pinturas aqui reunidas parece conter em si uma força motriz. Algo como um mecanismo físico de dupla direção, no qual a espessa camada de óleo impressa por Ronaldo, gradativamente, é tracionada e empurrada, precipitando assim intervalos, quais abismos. É como se nascessem de um movimento semelhante ao de placas tectônicas. Aqui, diante de nossos olhos, vemos uma expansão (semelhante e horizontalmente) oriunda da inversão de densidade e temperatura de tinta: a espessa camada de óleo, que é fria e densa; em comparação à fluidez do fundo – que, portanto, seria mais quente e menos densa –, que se abre e faz surgir falésias, à maneira de superfície oceânica a separar continentes. Eis, construída ao nosso olhar, uma magnificente arquitetura geológica, plena de espaços topológicos e marcações topográficas... O que nos reporta a outra lógica de escala e visada, como espaços abismais e abstratos, semelhantes às paisagens aéreas que foram tão caras à fotografia dos construtivistas russos.
Se conjugarmos a ideia de sua pintura ser superfície, com a premissa de ser plano todo espaço, chegamos a um entendimento sobre o fato de Macedo se lançar na temporalidade escultórica de recortes feitos em aço. É como se estes fossem a materialização de espacialidades imaginadas... uma arquitetura realizada, a partir de certo campo transitório sugerido pelo embate entre presença e ausência, inerente à sua poética.
Se, como indica Rego Macedo, “a pintura está na realidade”; e se, de fato, “talvez esteja entre as formas [...] que habitam a realidade”, sempre haverá uma memória do espaço de representação que, historicamente, alimenta a arte e para o qual a “teoria da pura visualidade nunca dará conta”.
Não por acaso, o artista explora as bordas em sua pintura e, com elas, cria espaços liminais (quiçá, legados da caixa perspéctica renascentista). Passagens, fluxos de transição ao invisível, que ganham forma positiva na arquitetura dos recortes de aço envoltos na temporalidade do mundo visível.
Essa verve arquitetônica da pintura de Rego Macedo, consonante ao que seria um dos papéis da arte, parece pôr em pauta outra discussão: dar lugar ao sujeito, tornando-o protagonista. A despeito da frieza abstrata que lhe empresta forma, nela é impossível não perceber uma vocação ao sensual. Assim, entre o sensível e o inteligível – mediante interioridade, expressividade, racionalidade e exterioridade –, sua pintura aproxima-se de uma reflexão acerca de conceitos representativos contemporâneos para os quais, através da ideia do espaço arquitetônico como metáfora, fricciona-se impressões acerca do estar-no-mundo.
No arco de quatro décadas, suas telas abstratas abordam questões relacionadas à própria natureza da pintura e grande parte de sua produção tende a apresentar uma gama cromática reduzida, exemplificada nas obras realizadas a partir dos anos 1980. Mas esses trabalhos brancos sobre brancos, produzidos desde 2010 e aqui abordados, indicam novas questões acerca da poética do desaparecimento, que é tão cara à obra de Rego Macedo. Eles se revelam mais visuais do que visíveis, pois resultando em presença pulsante, dizem respeito ao que está para além do olhar. Embora as noções de construção e expressão não deem conta do fazer contemporâneo em arte, à medida que a presença (autônoma) da obra de Macedo atinge seu desejo de ser uma visada em direção ao arrebatamento e à experiência vivida, ela se transforma em espaço, no qual não há contradição entre aquele par de ideias e parece abrigar-se vida.
E é nesse âmbito que se insere esta curadoria, cuja expografia almeja articular a produção recente de Ronaldo do Rego Macedo, segundo três segmentos conceituais:
• ESPAÇO MATERIALIZADO, voltado a apresentar uma série de telas que torna o plano pictural linguagem de extrema poética arquitetônica.
• ESPAÇO IMAGINADO, interessado em mostrar um conjunto de pinturas sobre papel, como meio a certa arquitetura pictórica.
• ESPAÇO EXPERIENCIADO, destinado a exibir um grupo de projetos de caráter tridimensional, que nivela pintura e arquitetura.
Há, pois, vida na prática pictórica de Rego Macedo. Sua pintura pensa!!! E seus questionamentos se alicerçam em dinâmicas de aparecimento e desaparecimento, que indicam ser a pintura uma estrutura inemoldurável. Um espaço a ser experienciado, pleno de devires... Cujo alvor nos sugere não só sabor!
fissão > falésia > tectônica > topologia > arquitetura > liminaridade > ab ovo tátil negação
Sonia Salcedo del Castillo
Outubro 2018