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outubro 24, 2018
HNWI por Adolfo Montejo Navas
HNWI ou outra lei de fuga (811 palavras para uma grande maquete)
“Não há nada no mundo que seja tão invisível como um monumento.”
Robert Musil
A necessidade de atingir outra escala de entendimento perceptivo, no caso, outra visualidade mais pertinente de qualquer coisa, seja como distorção ou paráfrase imagética, ainda mais sendo uma mala de dinheiro, é uma tentação gestáltica e crítica de Patricio Farías de que uma forma consiga traduzir alguma aura diferente além da aura estética. Outra indagação linguística, especular. Ainda mais quando o jogo das proporções e dimensões faz parte do repertório do artista, de uma convocatória sensível – sensorium – que produz certo abismo sensorial, cognitivo... Pois aqui não se trata, apesar das aparências, de um salto ou decolagem – de uma aspiração aérea –, senão de um pouso, uma aterrissagem – de um fato físico e real – de um meteorito respeitado: uma mala que abriga a idolatria-rei, o dinheiro (e lembre-se aqui de passagem de outra obra do artista, uma grande esfera coberta inteiramente de moedas). Portanto, mais perto da simulação do bezerro de ouro que das tábuas da lei, se sintonizamos com aquela encruzilhada bíblica tão imagética.
O peso não só cromático da mala marrom clássica de viagem, e com alças para facilitar, é uma verdade visual pululante que engana em todos os sentidos. (Claes Oldenburg incluído, pois a distorção aqui agigantada é bem mais dessacralizadora, satírica, política em sua escala.) Não há como negar que o trabalho do artista é atual, quase jornalístico, mas sobretudo se inscreve nas obras-radiografias do Brasil contemporâneo – algumas delas já emblemáticas, como o vídeo com lavado infinito da bandeira ou as séries documentais de Novelas ou Desaparecidos. De fato, aquele país midiatizado combina com esta mala icônica, que ainda oferece tentações de sereia econômica.
Aliás, como complemento objetivo, e segundo informações recentes, o Brasil está no top dez de fuga de capitais, mais concretamente no sétimo lugar no ranking de fluxo de saída de fortunas, tendo 2017 como registro. Ou seja, 2.000 milionários brasileiros fizeram suas malas como emigrantes classe A (os chamados HNWI, high net world individuals, que é a sigla em inglês que se refere a quem tem mais de US$ 1 milhão). O relatório é da confiável agência New World Wealth, e parece que o Brasil, pelo terceiro ano consecutivo, atinge esta distinção. O destino sempre é mais secundário: Portugal, Estados Unidos e Espanha, assim como os motivos. Porque o importante é a dimensão simbólica que o gesto tem, a perspectiva que oferece, sobretudo em relação ao país, ao coletivo, ao bem comum como razão destronada, e pior, travestida no pior sentido, quando parte da classe social que utiliza a bandeira verde-amarela para algumas reclamações instrumentaliza o nacionalismo à sua conveniência, ainda que seja, grosseiramente, como simulacro, para tentar cobrir outras vergonhas mais graves, outros deslocamentos perversos.
Por isso a instalação HNWI, desta generosa escultura de quase 2 x 3 metros, ou maquete aparentemente desproporcional de Patricio Farías, joga com as desequivalências ocultas, subliminares, com as dimensões do conteúdo ao que alude, respirando sua pertinência como obra política, sendo porém uma peça metalinguística e metacultural que se desdobra em tamanho quase arquitetônico e metaforicamente, pois o dinheiro sempre é proporcional, geométrico em suas reverberações, mas sobretudo em sua leitura fisiológica ou espiritual. Na alusão a este impasse, também Arnaldo Jabor acertou na mosca, há tempos, quando vaticinou na volúpia da sonegação a sombra da “realpolitik da criminalidade global” quase como diversão.
Se a monumentalidade, historicamente, arrasta um signo comemorativo, e se vincula ao poder, hoje sabemos que a crise do domínio público afeta tudo, as imagens, sua fenomenologia, seus significados. E nada melhor e arriscado ao mesmo tempo que propor uma escultura alegórica, emblemática em sua representação, mas paródica em sua simbologia. Sobretudo quando a ironia visual acionada é só uma aproximação a um problema real, mais colossal que o quantum escolhido desta maquete como obra pública (em todos os sentidos). E que aqui se tenciona num espaço reduzido e de trânsito na Fundação Iberê Camargo, como se fosse uma aparição.
Patricio Farías exibe de novo uma obra que responde a um pathos histórico, infelizmente banalizado. Assina assim outra peça de época, outro sismograma do momento, um drama sem causa: a lei da fuga econômica, como a dos paraísos fiscais, pertence todavia a um limbo histórico, offshore. Nesta mala não só cabe muito dinheiro, saindo pelo ladrão (a linguagem mordendo a própria cauda!), como também sua escala além do natural permite intuir o espaço plausível para pessoas, entidades, uma corporação do saque. Um lugar para uma idolatria a contestar. HNWI, se cabe batizar ela como genoma identitário, parece uma mala tremendamente física para uma operação quintessencialmente jurídica, duas coordenadas que se atraem em seu conflito e exploração. Como ferida, ela é um totem artístico que, todavia, responde a um tabu sociocultural.
Adolfo Montejo Navas
setembro de 2018
outubro 16, 2018
Subversão da Forma por Bernardo José de Souza
Nas sociedades ocidentais, cultura e natureza constituem esferas distintas, as quais designariam, grosso modo e respectivamente, o mundo criado pelo homem e o mundo que nos foi dado - portanto anterior a toda e qualquer forma de construção (racional) humana. Alternativamente, para os povos ameríndios, tudo o que há é cultura, não havendo separação absoluta entre homem, bicho, planta e mesmo objeto (há exceções), uma vez que estes também possuiriam alma, embora dotada de perspectivas diversas em relação à humanidade alheia.
As teorias do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro sobre o Perspectivismo Ameríndio, formuladas a partir de suas pesquisas em meio às culturas indígenas da Amazônia, trazem à tona um novo filtro a partir do qual vislumbrar as relações travadas entre o homem e o mundo, entre a humanidade e as coisas que a cercam, inaugurando um processo de subversão da própria natureza de nossa existência e de nossas indagações metafísicas, uma vez que transformam, em larga medida, o outro num igual.
Para além das simplificações açodadas desta introdução, Subversão da Forma busca relacionar um conjunto de obras, mas sobretudo de artistas - Daniel Steegmann Mangrané, Erika Verzutti, Iberê Camargo e Luiz Roque -, que exploram um repertório comum, embora façam uso de vocabulários distintos e assaz particulares, em última análise imbuídos da curiosidade especulativa que lhes (nos) faz rever o mundo sob novas perspectivas, quer plásticas, políticas, afetivas ou mesmo místicas. Esta mostra nasce justamente do desejo de repensar as formas reconhecíveis que nos rodeiam, de instar o público a encontrar estranhamento naquilo que lhe (nos) é familiar, bem como identificar semelhança naquilo que parece estranho.
As obras presentes na exposição são dotadas de uma presença escultórica e, mesmo aquelas que à primeira vista possam parecer bidimensionais, são elas também investidas de uma carga senão coreográfica, altamente performática. Figuras metamorfoseadas em seres quasi mitológicos, sobre-humanos/inumanos, objetos que transcendem sua função para alcançarem um plano místico, reveladores tanto da geometria quanto da natureza amorfa do universo em seu primeiro estágio - afinal, a linha reta, bem como as curvas e as espirais - em suma, toda a forma -, derivam de uma mesma matemática, ancestral, anterior à própria ação humana.
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Os corpos que passeiam pelo espaço expositivo são todos os mesmos corpos, ainda que na aparência distintos - "o mesmo que o Outro"? -, e as obras são como reflexo de uma certa uniformidade entre a matéria humana e a não humana que, no entanto, se nos apresentam disformes, como se o humano houvesse sofrido alguma espécie de metamorfose. Há aqui um irmanamento entre os corpos e suas substâncias a desafiar nossa própria capacidade de significação dos elementos que nos circundam, como se fôssemos subitamente acometidos de uma miopia/distopia/epifania capaz de subverter as regras do jogo, nos reposicionando no centro de um vórtice ficcional que passa a responder pela realidade.
Este corpo que nos é dado a ver - e mesmo nosso próprio corpo - é imantado por uma zona de alta voltagem sexual, a qual equipara, a um só tempo, pulsões de vida, destruição e morte, fazendo atravessar nossos sentidos uma vaga de fantasias, ora febris, ora oníricas, ora paranoides, sempre idiossincráticas. Há no ar uma atmosfera predatória, canibal, um corpo devora o outro e os restos dão forma a uma nova natureza, quiçá perversa.
É como se as chamas tórridas do Museu onde arde um Brancusi (o incêndio no MAM Rio, de 1978, no filme de Luiz Roque) houvessem se alastrado para o espaço expositivo da Fundação Iberê Camargo e desconstruído as superfícies das obras, transmutando o passado em futuro, o belo no feio, o bicho no homem, o terrível no sublime, o natural no artificial. Quimeras ganham forma num apocalipse curatorial projetado in vitro, num laboratório onde forma e matéria evocam uma alquimia quântica, um universo paralelo.
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A suposta plasticidade absoluta da natureza (e de seus recursos naturais, da própria vida, no limite) acaba por encontrar um fim: ao ato de ganhar forma, ou dar forma - esta atividade própria do homem, mas em parte também do artista, do escultor -, sucede a aniquilação total de tudo o que conhecíamos previamente.
A filósofa Catherine Malabou nomeia plasticidade destrutiva ou plasticidade do acidente o fenômeno que rompe com todo e qualquer traço do que havia antes: a impossibilidade de preservar a essência do ente destruído, em que pese sua permanência física, formal. A ruptura neste caso é de tal ordem que não há mais ponto de retorno, solução de continuidade.
Uma explosão - ou espécie de morte - e o "vácuo" dela consequente, consistem no grande e maior risco para nossa aventura sobre o planeta. A natureza rompida, a humanidade dissolvida, a memória esfacelada, a Terra arrasada. Tal qual nos casos estudados por Malabou - a saber o Mal de Alzheimer e os traumas de guerra -, resta o corpo, desprovido de alma, da centelha que o estabelece humano ao invés de simples matéria inerte, desprovida de afeto e de vida.
Esta exposição é sobre o fim. E sobre o começo de um novo tempo, irreconhecível, inominável, inefável.
Bernardo José de Souza
Curador
outubro 3, 2018
Lucimar Bello: Lucimares por Andrés Hernández
LUCIMARES ARES ES
O alerta de uma simulada incompletude momentânea, o inacabado em trânsito, o possível que está por vir, a apropriação hibridizada, o próximo que aconchega e envolve transgressivamente. Assim, as obras da exposição Lucimares, de Lucimar Bello, na Casa Contemporânea em São Paulo, apresentam-se em manifestos estéticos como estágios permanentemente fugazes e processuais. Resultado de uma pesquisa que aponta a delicadeza, simpatia e alegria como necessidades vigentes do mundo, assim como o necessário deslocar-se para participar.
As metáforas diluem-se porque a vivência atemporal é prioridade. E nesse fazer hibridizado, fica evidente (mas questionável) a necessária presença protagônica da artista, patenteada pela própria artista quando pontua Eu sou minha distância. Uma distância que é revisitada e fortalecida, como proposições que andam, que se anulam e reverberam e que se projetam em manifestos visuais de marcada carga estética particular, porque, como diserta Manoel de Barros, As coisas que não existem são mais bonitas, sinal latente no fazer de Lucimar.
O por fazer é o alerta do conjunto de obras da exposição. E não apenas um fazer de responsabilidade da artista; Lucimar divide esta responsabilidade com o espectador, ativando as motivações sensoriais através de todos os agentes artísticos contemporâneos: a obra de arte, a maleabilidade e o agenciamento de retroalimentação permanente nos processos de construção e assimilação das obras de arte. O espaço arquitetônico que se integra, aconchega e/ou dispara sensações e os fluidos gerados pela artista para os interlocutores são ativados por meio da construção de discursos agregadores, a partir de referências literárias direcionadas, como nas Proposições.
São obras que conjuram à sedução sensorial, como amalgamas entre estética e conceito, ratificando indissoluvelmente que estética é, seguindo os preceitos do filósofo Jacques Rancière, “uma configuração específica” do domínio da arte que precisamos aprender a ler. Neste caso, um manifesto em traços de curiosidade e continuidade infinitas.
Eclode, na pesquisa artística de Lucimar, uma permanente concepção autoral, desde a desconstrução de referências que transmutam forças cognitivas e se conjugam em fluídos, até as autorias particulares de similar força conceitual e projeção sensorial ilimitada. Aparecendo assim re-fragmentos completos como matrizes que se projetam em re-estruturas múltiplas, semânticas e nomenclaturas propositivas.
Nas Ações Performáticas episódicas, nos Edifícios de Vestir, A Casa Vestida, Não fui fabricado de pé e Proposições, Lucimar expressa a articulação de operações, a mescla de territórios multidisciplinares – espaciais, pictóricos, literários e, sobretudo, sensoriais – e propõe a diluição de fronteiras elucidativas. Como resultado dessas articulações, surgem manifestos artísticos inéditos, repletos de possíveis referências. Numa primeira proximidade, eles podem parecer díspares, mas ao surgirem rearranjados em outras relações, que vão se saturando e nos impregnando, sugerem e produzem novos sentidos, atingindo sensações e outros abismos, numa leitura sempre fluída, porém, inesperada.
Em algumas obras como as Viagens de Vezes e Viagens por Fazer, e nos títulos que identificam cada uma das obras, Lucimar estrutura diagramas heterotópicos a partir dos metaesquemas arquitetados. Diagramas estes resultantes da junção de talento, suportes e ações planejadas que, como resultado, expandem as peles plurais do território estético, concentrando-as em obras de arte conjugadas plasticamente por meio de técnicas e processos artísticos contemporâneos inovadores.
Andrés I. M. Hernández.
Curador, professor e produtor
São Paulo, Inverno de 2018
outubro 2, 2018
Morumbi, Caxingui e Butantã por Douglas de Freitas
Morumbi, Caxingui e Butantã
DOUGLAS DE FREITAS
O Museu da Cidade de São Paulo se articula a partir do seu acervo arquitetônico, um conjunto composto por doze importantes construções distribuídas pela cidade. São sítios históricos, onde se encontram moradias rurais dos séculos XVII, antigas residências situadas junto ao marco inicial da ocupação urbana na região central, assim como exemplares representativos de outros momentos significativos na nossa história e no nosso desenvolvimento. A exposição MORUMBI, CAXINGUI, BUTANTÃ se funda no próprio conceito de rede do Museu da Cidade, se espalhando por três de seus sítios históricos, conectando-os.
A mostra ocupa três unidades do Museu: a Capela do Morumbi, a Casa do Sertanista e a Casa do Bandeirante, que recebem respectivamente instalações dos artistas Marcius Galan, Matheus Rocha Pitta e Cinthia Marcelle (clique nos links para acessar as agendas).
A história do território dos três bairros onde estão localizados esses espaços guia a exposição. Morumbi, Caxingui e Butantã, remontam ao tempo da presença dos indígenas do grupo Tupi-Guarani nestes espaços, o que fica evidente na nomenclatura dos mesmos. O Morumbi, do “mero-obi”, que seria “morro ou colina muito alta” ou “mosca verde-azulada”, ou de “mará-obi” que significaria “lugar onde os guerreiros lutam” ou “lugar bom para tocaia”. O Caxingui, do “caátinguy”, uma espécie de planta venenosa, ou do “cuaxinguyba” uma planta da família das moráceas ou, ainda, uma espécie de ratão-do-banhado. E o Butantã, que foi grafado ao longo do tempo na língua portuguesa como ibitatá, ybytantan, ubatantã e botantã, tem como possíveis significados “terra duríssima”, “terra socada” ou “terra de taipa”. [1]
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A instalação de Marcius Galan na Capela do Morumbi parte de uma das possíveis origens da palavra Morumbi, o tupi Mará-obi, lugar de lutas, peleja oculta, cilada. O artista usa a tipologia de grades e cercas presentes na cidade contemporânea, para construir sua instalação. No espaço, essas grades se desconstroem para se ordenar em lanças. Mobiliário urbano de defesa e proteção vira ferramenta de batalha ou resistência. Essas lanças, grades e cercas se armam em estruturas, se espalham, ou se derretem.
No batistério, pequena sala lateral à nave central da Capela, Marcius apresenta duas vitrines. Em uma delas, constrói um mostruário de pontas de cercas, com seus devidos códigos de referência. Na outra, vazia, o artista reproduz apenas as legendas de uma vitrine existente no Sítio Morrinhos, outra unidade do Museu da Cidade, que abriga o Centro de Arqueologia de São Paulo, onde estão expostas lascas, estilhas e uma ponta de lança. São artefatos oriundos do Sítio Lítico do Morumbi, um dos principais terrenos arqueológicos de São Paulo, que apontava para a ocupação da cidade entre 5 mil ou 6 mil anos atrás, que acabou ficando em poder de três grandes incorporadoras, e foi danificado em 2006.
A vitrine vazia de Marcius na Capela aponta para o apagamento da história, se funda na batalha contra a ocultação das histórias da cidade, no lapso entre a São Paulo pré-colonial da ocupação indígena, e a São Paulo contemporânea, dos grandes muros e grades.
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Já no período colonial, a região que engloba os três bairros foi uma das rotas de passagem de bandeirantes e jesuítas que se dirigiam ao interior do território brasileiro. Esse é o contexto das Casas do Sertanista e do Bandeirante, construções dos séculos XVII e XVIII, mapeadas pelos esforços da delegacia paulista do Serviço do Patrimônio artístico e Nacional (SPHAN), embrião do atual IPHAN, na época composto pelo diretor Mário de Andrade, o assistente técnico, que era o arquiteto Lucio Costa, e o fotógrafo Hermann Hugo Graeser. O restauro desses imóveis deu-se no contexto das comemorações do IV centenário da Cidade de São Paulo, e representava a vontade dos modernistas “de ligar o passado arquitetônico colonial à nova estética arquitetônica, ignorando quase dois séculos – o período intermediário, de ‘desarrumação’, nas palavras de Lucio, entre o Barroco e o modernismo”. [2]
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Em Reintegração de Posse o artista Matheus Rocha Pitta ocupa a sala central da Casa do Sertanista; os demais cômodos foram esvaziados. Nela, sólidos de taipa de pilão, mesma técnica usada na construção da Casa, ocupam o centro da sala. Tais blocos foram modelados a partir do volume de móveis e eletrodomésticos, que agora estão acorrentados ao redor dos elementos de terra, como que expulsos de seu lugar.
Ao mesmo tempo, esses elementos acorrentados, parecem cercar e proteger esse sólidos, evidenciando seu rebatimento e a perda da função e da figura, para se tornar forma. Se firmam no centro da sala, em penumbra, com ares cerimoniais, entre sacro e profano, ainda que cercados desses utensílios domésticos.
A terra retoma a posse do espaço, mas paradoxalmente é memória dos elementos que o ocupavam anteriormente. Essa operação abre possíveis usos e histórias do espaço: a incerteza histórica toma formas modernas, embaralhando as coordenadas da vida contemporânea e do passado colonial.
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Nos anos 1920, começaram a despontar os primeiros bairros da região; nos anos 30, surgiram outros como o Caxingui e, nos anos 40, o Morumbi foi transformado em área residencial, com a ocupação das chácaras remanescentes da antiga Fazenda Morumbi, uma das pioneiras no cultivo de chá preto em São Paulo. Coube à Companhia Imobiliária Morumby comercializar, desde 1949, lotes em torno da antiga sede do complexo e das ruínas próximas dela, assim como o convite ao arquiteto Gregori Warchavchik para criar uma construção que interpretasse e completasse as ruinas do século XVII presentes no terreno, para chamar atenção para a venda dos lotes, surgindo assim a Capela do Morumbi. Mas a ocupação da região que engloba os três bairros começou principalmente a partir de 1900 impulsionada sobretudo com a implantação do Instituto Butantã e, mais tarde, da Cidade Universitária, vizinha à Casa do Bandeirante.
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A Família em Desordem de Cinthia Marcelle reage às propriedades arquitetônicas da Casa do Bandeirante ao criar duas estruturas que se apropriam do espelhamento da planta da Casa, produzindo também uma imagem espelhada da ordem e do caos. Cada espaço começa o processo forrado por um carpete que rebate esse espelhamento, e iguala as plantas. Em cada sala uma barreira é construída, com quantidade e variedade idênticas de materiais, tanto naturais como industriais, incluindo pedra, tijolo, giz e terra.
A artista trabalha coletivamente com artistas e profissionais do educativo do Museu da Cidade de São Paulo durante uma semana para desestabilizar e potencialmente destruir ou reconstruir uma das estruturas. O resultado visual deste processo permanece desconhecido até que a exposição seja aberta ao público. Nem a artista e nem a instituição conhecem a desordem produzida pelo grupo convidado até a abertura da exposição.
No fim, cada lado isolado da Casa do Bandeirante apresenta a mesma quantidade de matérias. De um lado ordenados pela artista, do outro reconfigurados pela equipe participante. A Família em Desordem se configura assim como processo de criação compartilhada, discutindo limites e liberdade, convivência e resistência, ordem e caos, padrões pré-estabelecidos.
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MORUMBI, CAXINGUI, BUTANTÃ não é apenas estratégia de ocupação e diálogo com os respectivos espaços históricos. Amplia a discussão territorial e arquitetônica, para dialogar com a formação inicial da cidade, anterior inclusive aos espaços que ocupa, e principalmente, conecta a história da cidade com o viver na cidade contemporânea.
Douglas de Freitas
Curador do Museu da Cidade de São Paulo
1 Ponciano, Levino. São Paulo: 450 bairros, 450 anos. São Paulo, SP: Senac, 2004.
2 Mayumi, Lia. Taipa, canela-preta e concreto. Estudo sobre o restauro de casas bandeiristas. São Paulo, SP: Romano Guerra Editora, 2008, p. 29.