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junho 29, 2018
Suzana Queiroga por Fernando Cocchiarale
Embora tenha se formado em gravura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, e faça incursões experimentais pela escultura, por instalações e performances, Suzana Queiroga é conhecida, sobretudo, como pintora e desenhista.
Tal identidade resulta certamente do lugar fundamental ocupado pela pintura em seu processo de invenção poética, mas talvez também se deva à participação de Queiroga na mostra Como Vai Você Geração 80?, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 1984.
Assim como mostras semelhantes haviam ocorrido tanto em instituições euro-americanas, quanto em suas congêneres internacionais, a exposição do Parque Lage tornou-se um marco histórico da retomada da pintura como meio hegemônico da produção artística brasileira durante os anos 80. Seu teor emblemático, contudo, não decorria somente da guinada proposta pelos defensores da perenidade desse meio ancestral, já que incorporou também a crescente importância das obras de alguns dos artistas pintores que nela foram lançados e que ainda hoje seguem produzindo, com sucesso.
Desde essa época, porém, a pintura de Suzana já divergia de modo flagrante, não somente dos repertórios figurativos da nova pintura, como também do fazer expressivo, da pincelada matérica, do uso da cor intensa e da valorização da potência expressiva do gesto, cuja expansão exigia telas de grandes formatos − características então consideradas pelos discursos de muitos artistas, curadores e críticos como sinônimos da própria “linguagem” pictórica.
Na contramão desses repertórios, a pintura de Queiroga possuía referências difusas do construtivismo. Questionava o retângulo convencional do quadro por meio da produção de suportes-forma de diferentes configurações, pintados por meio de pinceladas lisas uniformes e não matéricas. No entanto, é preciso ressalvar que, a despeito de tais referências, Suzana jamais se interessou pelo rigor da forma geométrica inseparável das poéticas construtivistas:
“A paleta de cores é reduzida, com a predominância de tonalidades delicadas de azuis, verdes, cinzas róseos e violetas. O repertório das pinturas é geométrico, porém uma geometria ligada aos fenômenos ondulatórios, à termodinâmica dos fluidos e à propagação das ondas de luz e à expansão das mesmas num espaço pictórico que tenderia ao infinito.” Suzana Queiroga, anotações avulsas, 2018.
Conforme estas anotações da própria artista, é possível concluir que sob as notáveis transformações experimentadas por sua pintura, permanece, alinhavando-as, a diferença alternativa de sua fatura luminosa em relação à fatura matérica que frequentemente marcou a produção daqueles que promoveram a retomada da pintura na década de 1980. Mas tal diferença não se restringe a estas duas maneiras opostas de pintar. Como um portal, elas nos levam a questões muito mais amplas, como as das intenções poéticas que realmente identificam a produção de um artista, desde o fazer (ou projetar) até a conclusão do trabalho.
Portanto, a fatura nunca pode ser pensada somente no âmbito da proficiência técnica, posto que nela já estão contidas as direções poéticas de uma obra. Para Suzana,
“O tempo é um fator essencial para o meu pensamento artístico, a cor é explorada aqui no sentido de ativar o fenômeno da luz em diferentes frequências cromáticas entregando ao olhar a pulsação do fluxo, visando gerar uma experiência perceptiva de imersão que demanda um tempo estendido para a observação”. Suzana Queiroga, anotações avulsas, 2018.
Nenhum desses caminhos apontados como alvo do interesse da artista poderiam ter sido trilhados por meio da fatura matérica. A pintura de tradição europeia clássica entrecruzou a invenção da perspectiva (voltada para a representação tridimensional do espaço em que circulam os seres vivos e as demais coisas que existem em nosso planeta), com a representação de luz – energia luminosa – e da sombra dela derivada que moldavam, apenas opticamente, o volume das coisas existentes e permitiam sua representação ilusionista, no plano pictórico, pelo pintor. A transmutação da solidez mundana (tátil e óptica) em pura percepção visual (luz e sombra) é, segundo Maurice Merleau-Ponty, um processo em que o pintor é inquirido por aquilo que ele quer pintar:
“Que lhe pede ele exatamente? Pede-lhe desvelar os meios apenas visíveis, pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos. Luz, iluminação, sombras, reflexos, cor, todos esses objetos da pesquisa não são inteiramente seres reais: como os fantasmas, só têm existência visual. Não estão, mesmo, senão no limiar da visão profana, e comumente não são vistos. O olhar do pintor pergunta-lhes como é que eles se arranjam para fazer que haja subitamente alguma coisa, e essa coisa, para compor esse talismã do mundo, para nos fazer ver o visível”. (O olho e o espírito)
Pinturas matéricas, no entanto, deslocam-nos da observação desse espaço óptico-tridimensional voluminoso (Ponty) − representado no plano pictórico por meio da perspectiva e do sombreado − para transportar-nos para a observação da própria materialidade da tinta de que é feita a pintura e do gesto que a configura.
Evidentemente, não podemos esperar da distinção entre matéria e energia formulada do ponto de vista poético-discursivo pela artista, um rigor semelhante ao de sua conceituação pela produção científica. Condutora rigorosa do devaneio, a arte opera no âmbito da sensibilidade poética, mesmo quando esse devaneio pode ser remetido, por analogia, a algum discurso teórico. Entrecruzamentos entre arte e ciência foram e ainda são frequentes, mas irredutíveis um ao outro.
A geometria, por exemplo, foi adaptada pelos pintores da Renascença para produzir, por meio da perspectiva, a representação ilusionista do espaço tridimensional, contudo, o conhecimento matemático oculto pela simulação da profundidade no plano pictórico, característica do espaço renascentista, nunca foi exigência prévia para a contemplação destas obras, pois sua função era representar e não dar-nos uma lição de matemática.
Não há, portanto nenhum motivo para atribuir às teorias científicas o papel de regular a pertinência poética da produção artística. Entre os séculos XV e XVI a pintura europeia deixou de ser um ofício − “arte mecânica”, resultante da habilidade artesanal − para tornar-se, segundo Leonardo da Vinci, uma “coisa mental”. Referia-se a uma arte livre, superior à mera proficiência, posto que concebida mentalmente, por meio da invenção de um sistema de questões derivadas da geometria e dos estudos anatômicos, então compartilhado por todos os artistas. Tal sistema perdurou, com variações, até sua academização nas Belas Artes, cerca de três séculos mais tarde. Foi sucedido pela pintura moderna, em que o plano pictórico tornou-se, para parte significativa dos artistas, referência objetiva para a organização (composição) e ocupação da superfície da tela.
Todas estas referências são passíveis de releitura pelos contemporâneos − apropriações, paródias, citações temático-icônicas, técnicas e formais, são procedimentos habituais, inseparáveis da produção de seus trabalhos. Hoje os artistas buscam seus próprios sistemas como condição indispensável para a compreensão processual de seu trabalho, para sua inscrição no circuito institucional, midiático, para sua difusão pública.
A pintura de Suzana, bem como suas experiências com outras mídias, não possui elementos imagéticos que favoreçam a tematização de questões políticas e micropolíticas demandada por parcela significativa dos discursos curatoriais, institucionais, e mercadológicos hegemônicos.
Tal hiato icônico, evidenciado nos trabalhos, não deve ser aproximado do universo da arte abstrata. As intenções poéticas nele enunciadas não são as mesmas daquelas que moveram o debate em torno da distinção entre figurativismo e abstracionismo, cuja tensão moveu a arte do século XX até a primeira década do pós-guerra.
Para além desses repertórios, a pintura de Queiroga é uma celebração da luz. Não a luz representada com base no conhecimento pictórico construído entre a Renascença e o começo dos modernismos, tampouco aquela de ilustração das teorias físicas sobre a luz e sua propagação.
A luz de Suzana, inversamente, é uma construção processual que atualiza o sistema por ela inventado para nortear sua pintura. Prenunciada pela fatura de suas obras da década de 80, a realidade somente luminosa do cromatismo energético desses trabalhos decorre de um método de pintar e organizar suas telas com base na fatura lisa de faixas de cor luminosas que nos propõem um sistema cuja verdade – a luz causal referida por Merleau-Ponty − encontra-se somente no universo de seu próprio trabalho.
Fernando Cocchiarale
Rio de Janeiro, junho de 2018
Suzana Queiroga, Cassia Bomeny Galeria, Rio de Janeiro, RJ - 06/07/2018 a 15/08/2018
junho 28, 2018
Luz encarnada em corpo/Corpo evanescido em luz por Douglas de Freitas
Luz encarnada em corpo/Corpo evanescido em luz
DOUGLAS DE FREITAS
O chiaroscuro, que nasce na pintura renascentista do século XV, é uma estratégia para a representação dos contornos. Com ela, os objetos e figuras das pinturas deixam de ter contornos lineares, passando a ser definidos por imersão em luz ou sombra.
Albano Afonso produz em suas obras uma reflexão sobre a tradição da história da arte. Seus trabalhos partem dos gêneros e temáticas provenientes principalmente da história da pintura, em que, não por coincidência, a questão “luz e sombra” se apresenta como elemento central. São luz e sombra, ou o chiaroscuro, que conferem volumetria às pinturas de natureza-morta, dramaticidade às pinturas históricas, mistério e melancolia às pinturas de paisagem, poder e força aos retratos e autorretratos. O princípio primário de fidelidade na captura do real aos poucos passou a dar lugar a estratégias de expressão; trazer à luz ou deixar-se esvair na escuridão passa a ser ferramenta compositiva conceitual na pintura.
A ideia de binômio se apresenta; afinal, luz e sombra, apesar de opostas, andam sempre ligadas e são inseparáveis. A existência de uma depende da ausência da outra, ou de uma constante batalha de existência compartilhada. Para além desse princípio físico, a ideia de oposição e dependência entre luz e sombra se amplia como metáfora estabelecida, também pela tradição, para diversos outros binômios como bem e mal, esclarecido e misterioso, sagrado e profano, vida e morte, entre tantos outros.
As imagens, instalações e objetos de Albano Afonso estão irradiados por essas ideias. Os trabalhos produzidos pelo artista constantemente fazem menção a pinturas consagradas pela história da arte; ou, se não mencionam diretamente, são compostos a partir de elementos que deixam claro a referência a elas.
Suas esculturas são naturezas-mortas de luz. Em Natureza-morta, ossadas, frutas e jarros revestidos de espelhos perdem a definição clara que suas matérias lhes conferem para refletir luz. Perdem também identidade, viram apenas formas ausentes de alma. A matéria viva suscetível às ações do tempo está cristalizada e agora é perene. Enclausurados em uma caixa de vidro, esses objetos estão ao alcance da luz e da visão, mas indisponíveis ao toque. Residem ali, eternizados, porém mortos.
Em O lobo e os pássaros e em O pássaro e os lobos as peças que formam a escultura são mãos em diferentes posições. Fundidas em bronze, negam a luminescência das peças espelhadas; são opacas e densas. Banhadas por luz, projetam-se no espaço encenando a presença dos animais. Constroem a mágica de um teatro de sombras, onde uma forma é convertida em outra, e a matéria se desconstrói para revelar uma cena onírica.
Esse cenário onírico de luz – que parece viver entre momentos reais, o universo dos sonhos e as próprias referências históricas da arte – se amplifica ou se reduz em escala, mas é uma constante no trabalho.
Uma atmosfera construída por projeção e refração, onde cristais replicam ou refratam a luz atravessa as obras, e agora atravessa as salas da Casa Bandeirante. Em Anatomia da luz nº 3, galhos de árvores se juntam a cristais e ossos espelhados. As formas se misturam e se complementam, gerando outras formas. Suspensas, essas peças se movem delicadamente, rebatendo a luz nelas projetada. Surge então um espaço em constante movimento, de embate entre formas definitivas e provisórias. As peças que compõem a obra permanecem as mesmas, mas a movimentação delas criam luzes inconstantes, que dançam pelo espaço. Brilho, reflexo e refração se tornam objetos de estudo e assunto das obras.
Imagens de luzes e de brilhos e a própria paleta luminosa característica do dia e da noite, novamente binômios, assumem o espaço da Casa Bandeirante. Aqui, se vê parcialmente o artista em algumas esculturas. A presença do artista está convertida em partes do corpo fundidas em bronze, ausentes de vida, mas moldadas a partir dele. É essa a alquimia que Albano opera: luz e corpo se convertem em matéria sólida e opaca, e matéria sólida e opaca se converte em imaterialidade e luz.
junho 26, 2018
Estratégia para o desafeto por Renata Laguardia
O projeto Estratégia para o desafeto começou durante minha estadia na França. A minha constante sensação de não-pertencimento, de falta de lugar e da perda de sentido da palavra “lar”, me levou a colecionar fotografias de imóveis à venda e para alugar, em sites de classificados online. Esses ambientes frios, vazios e sem-afetos me fizeram desenvolver uma série de pinturas onde retrato os ambientes das fotografias com chãos vermelhos, anunciando uma violência pungente.
Com a minha volta ao Brasil, a pesquisa toma outros rumos e adquire novos significados, uma vez que a noção de pertencimento aqui é mais alcançável. Desenvolvi pinturas que retratam detalhes banais de casas: descargas, pias, maçanetas… comecei a desenvolver uma iconografia da morada, baseada em noções coletivas e individuais do conceito de lar. Esse interesse foi tocando diversos pontos, desde as flores que cultivamos entre quatro paredes, até quartos que, ainda que mobiliados, revelam pouca ou nenhuma individualidade e afetividade. Em outros casos, com o design antigo dos móveis, estes quartos podem nos remeter ao passado e nos fazerem relembrar casas de familiares antigos que frequentamos. Me interessei também pelo que frequentemente vemos envolta às casas, para a proteção contra o outro: grades, cacos-de vidro, cercas elétricas.
A parte do projeto em que me encontro é a de frequentar perícias requisitadas pelo governo a assistentes sociais. Tenho comparecido a algumas visitas às casas de pessoas em situação de elevada pobreza, para que, após avaliadas, possam receber ajuda do governo. Fotografo esses ambientes e tento explorar seus mais diversos aspectos. Acredito que a noção plena de casa se afirma aí: desde os móveis, às roupas-de cama, aos porta-retratos na parede, às bagunças ou organizações.
Acredito que essa exposição é uma briga entre o afeto e a estratégia para o desafeto. As pinturas juntas, como palavras, formam um léxico próprio e podem ser interpretadas como frases.
Renata Laguardia, graduada em 2013 emArtes Visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais, com habilitação em pintura. Em 2017 conclui seus estudos de mestrado na Ecole Européenne Supérieure de l’Image, na França, com menção honrosa da banca. Já participou de 5 exposições individuais dentre elas “Nem tudo tem que ser pra sempre”, que expos na biblioteca Epifânio Dória em Aracaju e na Casa Fiat de cultura em Belo Horizonte. Expôs também a série intitulada “O que não é vasto é raso” no Memorial Minas Gerais Vale em belo horizonte. Dentre as diversas exposições coletivas que participou, destacam-se o Prêmio Diário Contemporâneo na Casa das Onze Janelas em Belém, Douze façons remarquables d’utiliser une brique, no Centro de Arte Contemporânea Les Bains Douches em Chauvigny, Limitrocidade na Aliança Francesa e Habiter la frontière no Confort Modern. Realizou também a exposição “Occuper l’Amovible” em decorrência de uma residência de duas semanas no Espace 23 em Poitiers. Desde 2013 suas obras fazem parte do acervo da galeria Celma Albuquerque em Belo Horizonte.
junho 25, 2018
O lugar enquanto espaço por Francisco Dalcol
O lugar enquanto espaço
FRANCISCO DALCOL
Uma exposição coletiva é um lugar de encontro, ainda que temporário, e por isto mesmo também um lugar de passagem. O que é próprio a cada obra é lançado à multiplicidade dos significados fornecidos pelo que parte, justamente, de cada obra. Ao fim, é como se, frente ao conjunto, um confronto se estabelecesse não somente entre as obras, mas também consigo mesmas, em um movimento no qual acabam sendo devolvidas àquilo que nelas se afirma como particular. Assim, uma mostra coletiva tende sempre a oferecer um tensionamento entre universos poéticos autônomos ora colocados em causa e relação.
Com sorte, é dada a chance de perceber afinidades e inter-relações não previstas nem intencionadas, mesmo que provisórias e circunstanciadas pela exposição. Talvez resida aí uma das forças desse dispositivo de apresentação de obras a que ainda chamamos de exposição: a possibilidade de gerar situações temporárias que renovam nossa sensibilidade e ampliam nossa compreensão da experiência advinda do encontro com as práticas, as estratégias e as operações da produção artística visual.
É também a partir dessa possibilidade que um lugar de encontro e passagem pode passar a um espaço de compartilhamentos, no sentido próximo ao formulado por Michel de Certeau. Em seu livro “A invenção do cotidiano — artes do fazer” (Editora Vozes, 1998), há um capítulo, intitulado “Relatos de espaço”, em que trata de formular uma distinção entre lugar e espaço. O lugar, afirma Certeau, seria da ordem do “próprio”, no qual “se acha excluída a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar” (p. 202). O espaço, ao contrário, nada teria a ver com estabilidade de posições unas, sendo cruzamento daquilo que transita, “animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram” (p. 202). Em suma, Certeau sentencia: “o espaço é um lugar praticado” (p. 202).
O lugar enquanto espaço é uma mostra coletiva que intenta compartilhar um pensamento que se faz espacial à medida que se pratica o lugar de exposição. Praticar em duplo-sentido: na colaboração entre artistas e este crítico — ora curador — na concepção da visualidade que se quer dar a ver; mas também pela experiência do espectador que adentra esse campo de sentidos e o percorre conforme seus parâmetros de acesso e navegação.
Se há uma rota, funciona apenas como sugestão, podendo começar pela sala à entrada da galeria. Nela, Túlio Pinto apresenta duas esculturas que se interligam ao lidar com os equilíbrios, os pesos, as densidades e as forças dos sistemas instalativos que as configuram. Reunidas, “Athar # 4” (2018) e “Retângulo # 3” (2018) estabelecem um ambiente instalativo não restrito à materialidade dos objetos, mas articulado à maneira como mobilizam forças invisíveis contidas no espaço para com elas manterem-se estáveis. Em um texto que acompanha um livro sobre Túlio Pinto ainda em preparação, escrevi algo que me parece sintetizar a produção do artista: “Lidando com a tensão levada aos limites, suas peças e conjuntos escultóricos instauram situações que convocam que os habitemos, ainda que temporariamente, fazendo-nos experimentar nossos próprios corpos como presença matérica no mundo das coisas. Mas também irradiam um sedutor apelo à visão, por conta da clareza, da concisão e da harmonia que emanam dos objetos, dos arranjos e das construções”.
Desta sala passa-se a outra, aos fundos da galeria, onde estão os trabalhos de Frantz. Ao abordar a pintura, seja como prática ou conceito, o artista opera com sua produção uma série de embaralhamentos que incidem sobre uma reconfiguração do olhar. Frantz encaminha uma abordagem conceitual com a qual desloca o pictórico para o objetual, investigando a materialidade da pintura a partir de jogos entre falso e verdadeiro, ausência e presença, original e apropriação. Seus objetos reunidos na sala consistem em resíduos de tinta acrílica acumulados em potes e bacias que funcionam como moldes, enquanto seus trabalhos na parede são gestos que remetem a esses mesmos objetos como se fossem carimbos a deixar rastros e escorrimentos de tinta sobre a superfície.
Saindo à área externa da galeria, encontramos o contêiner de exposições, que recebe obras de outros 7 artistas. No chão, ao centro, o duo Ío (Laura Cattani e Munir Klamt) mostra “Demônio pessoal IV” (2018). Trata-se de uma escultura dotada de um mecanismo de armadilha, diante da qual se manifesta invariável apreensão. Seja pela sedução visual ou pela forte tensão, há aqui um diálogo com os trabalhos de Túlio Pinto, particularizado pelo fato de o sistema da armadilha estar armado com seus vidros em pontas.
Uma sedução visual também se rebate no trabalho de Bruno Borne, com particularidades que apontam para o questionamento do real e do virtual. “Lemniscata #3” (2018) é uma imagem que se relaciona à produção que o artista realiza em vídeo e animação gráfica. São trabalhos em que faz convergir imagens de arquiteturas que se hibridizam gerando novas e reinventadas arquiteturas, que, por sua vez, também recriam tanto o próprio espaço que origina o trabalho como aquele onde é apresentado.
Outro jogo de aparências, desta vez entre acaso e manipulação, aparece no trabalho de Guilherme Dable. No vídeo “O domador” (2015), uma grande folha de papel mantém-se flanando verticalmente ao lidar com forças laterais que funcionam como contrapesos e mesmo sustentação gravitacional. Aqui, a leveza e a suavidade se aproximam da obra de Bruno Borne, ao mesmo tempo contrapondo-se à tensão física que emana dos trabalhos de Túlio Pinto e do duo Ío.
O emprego de estratégias conceituais aproxima as obras de dois artistas. Em “Memorial de um pé-de-pera” (2017), Lilian Maus parte de uma vivência íntima: o sítio da família em Osório (RS), onde um dia encontrou ceifada a árvore referida no título. Surpresa com o acontecido, a artista sentou diante da cena e ali mesmo fez uma aquarela dos tocos empilhados e escorados na mangueira. Ao lado dessa pintura, apresenta o primeiro documento legal do terreno, de 1909, quando foram registradas as condições de total devastação das terras hoje recobertas por mata secundária e nativa. Integra ainda a obra um dos tocos.
Já Diego Passos apresenta “Corpo” (2017), um de seus trabalhos realizados segundo estratégias de apropriação e autopublicação, com as quais lança mão de cartazes, livretos, panfletos e camisetas. Outro trabalho do artista na exposição é “Cachoeira” (2010), cujo emprego de texto na composição junto à imagem fotográfica relaciona-se a uma vertente de sua produção.
Por fim, novamente a pintura. Letícia Lopes apresenta trabalhos recentes de uma série em que explora as camadas da tinta a óleo, valendo-se de procedimentos de apropriação, colagem e sobreposição que remetem a estratégias conceituais realizadas com imagens já prontas e em circulação. Mas nessas obras a artista embaralha códigos entre o que resultaria da mão ou o que seria apropriação dos meios impressos, entre prática e conceito, no que estabelece um diálogo com as obras de Frantz.
Em meio às distintas poéticas e abordagens artísticas reunidas nesta exposição, pode-se ficar tentado a encontrar como imediata uma correspondência em comum — Porto Alegre, a capital gaúcha. De fato, os 9 artistas desta exposição têm como procedência o mesmo meio artístico. Contudo, esse dado pouco define suas obras. Melhor é compreendê-lo como uma coordenada entre momento e lugar que informa mais sobre onde se deu o encontro e a partilha entre os seus afetos, e também a partir de onde passam a se cruzar ao longo de suas trajetórias individuais, como é o caso da circunstância oferecida por esta coletiva.
Junho de 2018
Francisco Dalcol
Crítico de arte, pesquisador, jornalista e curador independente. Doutorando em Teoria, Crítica e História da Arte (UFRGS), com estágio de doutoramento pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Integrou o Júri de Indicação do Prêmio PIPA 2017 e 2018. Em 2016, ganhou a 1ª menção honorífica no Incentive Prize for Young Critics, concedido pela AICA. Entre 2012 e 2016, foi editor e crítico de arte do jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS). Membro da AICA e ABCA. Vive e trabalha desde Porto Alegre (RS). Entre suas curadorias de exposições, estão “O tempo das coisas – módulos 1 e 2” (coletiva, 2018, Porão da Pinacoteca Aldo Locatelli e Pinacoteca Ruben Berta, Porto Alegre), “Mudanças – Este é o nosso lugar”, individual de André Venzon (2018, Museu de Arte do Rio Grande do Sul – Margs, Porto Alegre), “Itinerários”, individual de Lenora Rosenfield (2016/2017, Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS, Porto Alegre), “Elementos urbanos”, individual de Xadalu (2016, Centro Cultural CEEE Erico Veríssimo, Porto Alegre), “Antes era só o vão”, individual de Antônio Augusto Bueno (2015, Galeria Mamute, Porto Alegre), e da plataforma virtual “Porto Alegre – Outros Olhares” (zhora.co/portoalegreoutrosolhares).
junho 22, 2018
Histórias de Peixes, Iscas e Anzóis por Paula Terra-Neale
O trabalho de Martha Niklaus opera nas zonas limítrofes dos encontros que se dão entre o individual e o coletivo; entre o real absoluto da experiência e as imagens que engendramos para fixá-las; entre a memória como arquivo e rastro de nossa humanidade e a possibilidade de um futuro utópico construído pela arte.
Combinando elementos da arte contemporânea – conceitual, minimalista e experimental –, incorporando a performance e a videoarte, trabalhando com materiais diretamente extraídos da natureza ou do nosso cotidiano, incluindo sucatas, esta obra não quer se restringir a uma escola, movimento ou tendência artística. O que ela quer é apresentar questões, como as que cita a artista tomando de empréstimo as palavras de Julio Cortázar: que tipos de jogos acontecerão entre nós, como se combinarão as cores frias e quentes, os lunáticos e os mercuriais, os humores e os temperamentos? (Os Prêmios)
A vida e a arte escapam ao nosso entendimento e transcendem os sistemas classificatórios e lógicos, são em si muito mais ricas em experiências e proposições que os sistemas de linguagem ou campos do conhecimento.
Assim é que todos os seres do universo, e mais os conhecimentos, as percepções, as experiências, os tempos e os espaços, enfim, tudo existe por meio de relações combinatórias em que uns influenciam os outros. É disso que a mostra de Martha Niklaus, Histórias de Peixes, Iscas e Anzóis, trata.
O seu modus operandi, a sua estratégia é justamente esta: o embate, o ser ação, o processo entre arte como experiência do cotidiano e arte como reflexão filosófica; entre o projeto construtivo e o fazer experimental; entre uma arte que algumas vezes é pura matéria bruta e outras vezes se apresenta como obras desmaterializadas em traços ou registros. A arte de Martha Niklaus abrange tanto o biográfico quanto o universal, dialoga tanto com as fontes da história da arte erudita quanto com as fontes de nossa cultura popular.
A artista não pertence a nenhum movimento específico ou grupo, mas guarda relações com as produções internacionais iniciadas nos anos 1960/70, como o Neoconcretismo aqui no Brasil e a Arte Povera na Itália; ela tem um forte veio de filosofia da educação (talvez a da tradição experimental americana, em que se afirma a capacidade criadora de todos, de forma que existe um artista em cada um de nós).
A arte de Niklaus é sobretudo dialógica, entre uma inquietante busca de apreender o sentido do mundo e a de fazer sentido no mundo. Ela se produz em diálogo com as comunidades e grupos sociais indistintamente (urbanos, rurais, ribeirinhos, científicos, artístico-culturais, abastados, carentes etc.). E quer descolonizar o discurso vigente que distingue entre cultura erudita e popular. Chega mesmo a querer abolir a noção de autoria nesse afã dialógico.
Os trabalhos de Histórias de Peixes, Iscas e Anzóis refletem esses ideais éticos na sua estética. São trabalhos que em sua maioria questionam tanto o status quo das artes quanto os códigos sociais vigentes, como insuficientes, limitados e ineficazes mesmo. Diríamos então, que desde sua base, essa é uma produção crítica.
Esta obra que se quer decididamente Obra Aberta, em sua busca do diálogo com o Outro, com o Social e com o Aqui e Agora, é, portanto, uma afirmativa de que a arte, esta arte, toda arte, é polissêmica, dialógica e processual. O conceito de Obra Aberta (Umberto Eco) define a obra de arte como algo inacabado e garante ao espectador/participante a liberdade de ressignificação contínua do objeto artístico. Nesse processo de colaboração, sujeito e objeto se re-significam num processo infinito; assim como no entender da artista as pessoas na vida ocupam lugares de “peixes, iscas e anzóis”. O que está em jogo é a possibilidade, mesmo que utópica, de um sistema mais fluido e inclusivo no qual grupos impensáveis no establishment se formam e des-formam. As classificações são tão plurais quantos os próprios seres humanos
Em Rosáceas, partindo da mesma premissa, o critério de agrupamento das pessoas se faz pela predominância da cor no sujeito, criando padrões geométricos. A artista subverte os critérios que caracterizam os grupos em nossa sociedade: ao invés de subdivisões por sexo, gênero, cor da pele, nacionalidade, entre outras, são os grupos dos vermelhos, azuis, brancos, amarelos, pretos que vão determinar a inclusão dos sujeitos. Diferentemente dos critérios excludentes, a cromática do sujeito é totalmente mutável e dinâmica, basta uma troca de roupas para estar dentro de outro grupo, basta que se encontre uma outra associação qualquer em nossa memória ou imaginação, e o sujeito passa para outros grupos, de classificações aleatórias e eletivas.
E a troca de roupa por si só pode vir a tornar o sujeito em um Outro. Não só pela roupa, mas pelo desejo em si, pela mágica do imaginário desse sujeito que se empodera através da proposição artística. Como no projeto Bandeira de Farrapos: a artista funde essas roupas numa forma que remete à representação maior de um país, sua bandeira.
Nessa aproximação com o cotidiano das pessoas e em sua crítica à sociedade de consumo e ao sistema capitalista, essa obra assemelha-se à estratégia política da Arte Povera italiana, a arte pobre, que buscou a desvinculação entre valor comercial e valor artístico. As roupas coletadas por meio de doações feitas pelas butiques são trocadas com os sem-teto. A humildade dos panos rotos e esfarrapados deveria servir de exemplo aos ilustres dignitários que conviveram com a obra nas embaixadas do Brasil mundo afora; ela chegou a ser exibida no Palácio do Itamaraty, em Brasília.
A sua trajetória – a da obra em seu conjunto – não é linear e não indica qualquer tipo de evolução. Se fizermos uma leitura em retrospecto, perceberemos que as obras se relacionam por caminhos entrecruzados, criando jogos semânticos entre si, num continuum. O fim de um ciclo é também o início de outro.
Obras que se referem a outras obras e/ou questões trabalhadas em séries precedentes são recuperadas e retrabalhadas em processos, oferecendo-nos possibilidades múltiplas de leituras e de reflexões críticas, como em um caleidoscópio em que cada giro oferece uma nova leitura.
Se os sistemas classificatórios das ciências e demais campos dos saberes não dão conta de categorizar os processos da vida, novos sistemas dentro de sua produção tornam-se necessários. Criar sistemas torna-se um ritual na elaboração da obra e no processo artístico de Martha Niklaus. Desde as Bolsas de Coleta para a Fiocruz, ela cria, por meio da arte, novos reinos, estruturas, nomenclaturas, ela cria sistemas de linguagens. Nessas “bolsas”, aos reinos animal, vegetal e mineral ela acrescenta o “reino” cultural.
Quanto a sua materialidade, apesar de encontrarmos desenhos, pinturas ou esculturas, de fato pouco encontramos de tinta, tela e papel no que chamamos de obra. A escolha de materiais e suportes não se limita ao horizonte restrito do universo da arte. Encontramos sim um pensamento artístico, uma inquietação filosófica, que se realiza quase que paradoxalmente tanto em obras de uma materialidade exacerbadamente bruta – isto é, de apresentação direta dos elementos como encontrados na natureza: pedra, fogo, água, terra – quanto em trabalhos que provêm de uma materialidade mínima, um gesto apenas.
Alguns são intervenções sutis que a artista realiza, seja na natureza, sobre a natureza ou em prol da natureza. São reflexões a respeito de como atuamos em relação a nossa própria natureza como seres sociais e políticos ou de como atuamos em relação à biologia de nosso planeta. Muitos dos trabalhos nos oferecem apenas marcas, rastros e traços por meio de fotografias e registros fílmicos. Como no exemplo da obra Choque de Cores, em que a questão se deu sobre o uso do espaço público, a praia de Ipanema. A intervenção propôs um resgate do colorido “carioca”, denunciando a imposição da monocromia dos guarda-sóis da orla do Rio para uso de merchandising.
A artista interfere na ordem autoritária e oficial que daria o tom das nossas praias. O carioca não é monocromático, a praia é o território per se da policromia desse povo – o lugar do lazer e da miscigenação de raças, culturas, corpos, gêneros, idades, o Éden da alteridade.
A ação de trocar as cores das barracas, restituindo o colorido às praias, foi registrada por fotógrafos e cineastas. O vídeo torna-se um elemento crucial quando as intervenções têm caráter efêmero, temporal – cronológico. E apesar de as ações também resultarem em séries de gravuras ou fotografias, produtos e objetos, não são os objetos que ocupam lugar de primazia na seleção que a artista faz para a composição de suas mostras.
Assim, se o que integra a ação vem a ser de autoria da artista, ou de fotógrafos amigos, sejam profissionais ou amadores, também pouco importa, quando se trata de ocupar o mesmo espaço expositivo. A artista procura integrar na mostra as várias visões da obra-ação. A relevância da obra se dá no resultado da ação. Arte como ação política e social. Um Choque, literalmente!
Já nos trabalhos construídos com a materialidade bruta do mundo em terra, pedra, água, fogo, bambu, a matéria não apenas representa a natureza e suas forças, ela quer ser a natureza. A natureza que simplesmente é presente no universo da arte, e ocupa o lugar de arte. A simplicidade desses trabalhos que podemos associar ao minimalismo nas artes, na medida em que se trata de redução da matéria, é, entretanto, mais uma transgressão que Niklaus quer operar nas vigentes tendências da escultura minimalista.
A escultura minimalista “brasileira” que imperava quando ela era ainda uma jovem estudante no Atelier do Museu do Ingá, aluna do Haroldo Barroso nos anos 1980, era em grande parte produzida com materiais industriais, metal, vidro, borracha etc., como vemos em obras de artistas escultores seus contemporâneos.
Martha, que deseja problematizar o que lhe é dado como norma, me disse que, ao refletir na época sobre o jargão vigente no seu métier “o negócio é a transa com o material”, vai além e pensa “bom, então vamos às bases disso, vou trabalhar com as propriedades de flexibilidade, por exemplo, do bambu, como ele verga ou não até o ponto de ruptura, ou como as fissuras do barro se dão quando a água seca”.
Dessas esculturas individuais, passa então a fazer uso também de uma técnica de construção que é vernacular, a do pau-a-pique. Mas materiais como terra e bambu, que são facilmente encontrados na natureza e portanto amplamente usados em construções no Brasil, também são encontrados em museus etnográficos.
Construção Popular é um símbolo unificador, que conecta as pessoas não apenas através do espaço, mas também através do tempo. Raspe-se a superfície das elegantes fazendas de café do Brasil e das igrejas barrocas, e as paredes têm em seu interior a estrutura do pau-a-pique. Essa tecnologia era conhecida pelos colonos portugueses, mas também era usada pelos mais antigos habitantes da nossa Terra Brasilis. Esses trabalhos ilustram ou servem como um emblema da universalidade da cultura brasileira. Faz-se necessário por vezes voltar às origens: das coisas, do conhecimento e da arte.
Obras de materialidade evanescente, os registros fotográficos e fílmicos de suas performances refletem a efemeridade de sua ação e a permanência do conceito que fica impregnado em nossa memória por essas imagens que têm uma pregnância de signo muito forte. Como, por exemplo, no vídeo SIM, realizado em um mosteiro budista, que imprime na memória a imagem de um gesto contemplativo e espiritual de aceitação e de gratidão Zen.
O vídeo NAU-NOW é um registro também de uma quasi não-ação, uma reflexão sobre a natureza. O rio que corre e se movimenta num fluxo contínuo impacta com seu ritmo o balanço do barco e das coisas depositadas em seu bojo. Os gestos que a artista realiza são o de deixar cair as gotas azuis em uma taça com água e depois despejar em ação contínua dezenas de copos de água sobre a taça e o pirex transparentes que estão precariamente apoiados na beira de um barco que segue navegando no rio Arapiuns, na Amazônia brasileira. Em NAU-NOW, a cor azul que contamina e interage com a água se dilui em um movimento cíclico, no movimento da água que cai, no movimento linear do barco no rio, até novamente atingir seu estado de pureza e translucidez. A arte em sua potência de expressão cria fluxos no mundo.
Uma das leituras possíveis é que NAU-NOW quer nos trazer consciência da nossa transiência, da nossa impermanência no mundo e da voracidade com que destruímos a natureza, o sentido de fluxo, de energia, de desmaterialização. Este trabalho é uma reflexão ecológica e uma reflexão sobre a natureza da arte como elemento estético, político, social, como linguagem em sua capacidade de “dar-nos a ver” – na expressão de Georges Didi-Huberman.
Esse trabalho está inserido no Projeto Azul, uma “expedição utópica” para a Amazônia de que a artista participou pela primeira vez em 2014 e que organizou em anos subsequentes. Um projeto coletivo que inclui pessoas com interesses afins. Alguns trabalhos são feitos com esse coletivo, como o vídeo Flutuar. Outros são desenvolvidos com escolas dessa comunidade ou em trocas com alunos de escolas do Rio de Janeiro.
Uma parte desse projeto acontece no contato e nas trocas com a população ribeirinha local. A artista-cronista-viajante levava uma maleta com objetos de apoio à sua sobrevivência e dispositivos para desencadear ações, todos de cor azul. Ela diz “fui aprender com eles sobre modos de vida e de sobrevivência”, no que seria uma reversão da linearidade da história da cultura, em que se pretende que os civilizados educam os primitivos, e não há uma relação de paridade.
Esse gesto é quase dadaísta de tão paradoxal, desconstrutivo por certo, uma vez que é o civilizado quem vai aprender com o nativo. É como a maleta de Duchamp, parte de um projeto utópico e também crítico, que atua no próprio sistema de arte. O movimento de ir aprender com os nativos novas formas de cultura significa aceitar que nos tornamos os bárbaros da nossa civilização contemporânea.
Na verdade, grande parte do trabalho da artista dá-se como ação no espaço social. Horizonte Negro vem como manifestação crítica à ocupação da Marina da Glória por um empreendimento comercial que visava transformar o espaço público e tombado para finalidade náutica em polo gastronômico, shopping e área de eventos. Numa tarde de domingo, em parceria e em solidariedade à luta dos velejadores contra a obra realizada na Marina da Glória, Niklaus realiza uma coreografia náutica na Baía de Guanabara. Os vinte e seis veleiros içaram as velas negras e plainaram no cenário de postal da cidade, demonstrando seu sentimento de luto contra uma medida antidemocrática. Horizonte Negro reflete a escolha criteriosa de títulos para suas obras e funde aspectos pertencentes ao repertório da arte e à paisagem com um aspecto político, o luto da cidade.
Em sua instância poética e em sua potência crítica, a arte de Martha Niklaus ocupa sem distinção todos os territórios; ela é individual e coletiva, reflexiva e expressiva, minimalista e brutal, presença e ausência, ação e imagem, proposta utópica e reflexo da nossa condição trágica contemporânea.
Como Martha me disse, “toda a minha trajetória de vida, desde que ainda menina, adolescente, entrei para o atelier da Maria Teresa Vieira, está integrada ao meu trabalho como artista, e eu não separo as minhas diversas atuações como profissional das artes da minha reflexão e produção de arte”.
Uma característica que sempre me surpreendeu, ao longo dessas três décadas em que venho acompanhando o seu trabalho, é a integridade com que a artista vive no seu cotidiano os mesmos princípios de que imbui a sua arte.
Arte e vida se complementam e são indissociáveis. Ao lançar o livro em que reedita a coletânea de exposições que organizou durante uma década como responsável pela programação da Galeria do Lago (Museu da República/RJ), ela faz uma performance na qual a funcionária vira artista. Ali, desfolha as centenas de páginas do livro que contempla essa gestão e então sai de cena. Vai trocar de posição e dedicar-se inteiramente a sua arte.
Considero que a capacidade de transformar esse conflito de funções numa obra, ainda que catártica, revela na arte uma maturidade que foi também conquistada na vida. O entendimento das questões com que vem trabalhando e os sistemas que cria requerem esse tempo.
Ao abordar o universo da arte de Martha Niklaus, me deparo com uma produção que opera nos limites, come pelas beiras, perfaz o malabarismo nessa linha imaginária que limita os campos entre a arte e a vida; acho que a obra de Martha veste a camisa, ou toma a bandeira ‘Pedrosiana’ da arte como “exercício experimental da liberdade” (Mário Pedrosa).
Paula Terra-Neale
curadora da exposição
junho 19, 2018
Transformers por Ilê Sartuzi
No vídeo Artist Talk de Pedro França, o artista narra a tomada dos meios de edição das imagens por sua mãe, Raquel. Não importa que ela não seja a pessoa que produz em primeira instância essas imagens, mas “capitaliza simbolicamente sobre as imagens”. Em sua narrativa autoconsciente o artista diz que “O vídeo [...] deglute e nivela tudo [...] coisas filmadas por mim, coisas roubadas, coisas encontradas, coisas traficadas”. É sintomático, portanto, que passem a conviver no mesmo espaço da exposição, toscas imagens familiares, reproduções de Diego Velásquez e a camisa do Milan. Nesse achatamento de tudo que se constrói na cultura visual e no momento onde a circulação de imagens ultrapassa quaisquer limites estabelecidos, a noção de autoria e originalidade são arregaçadas. A ideia de propriedade intelectual – tipicamente burguesa – é ultrapassada por um uso livre das imagens. A partir da década de 1960, a incorporação de imagens da alta e da baixa cultura passaram a povoar o panorama artístico, esgarçando os limites de “gosto”.
A apropriação de imagens é uma prática que se intensificou drasticamente nas últimas décadas. Desde então, incorporar imagens das mais diversas origens é uma das características da produção contemporânea, frequentemente misturando diferentes materiais e técnicas. A exposição Transformers, no auroras, destaca o uso diverso da imagem que é articulada por Leda Catunda, Arthur Chaves, Pedro França e Robert Rauschenberg.
O intuito da aproximação dessas obras não é tentar resgatar uma experiência pop, nem somente observar suas inflexões no país, mas investigar os novos paradigmas em que a imagem está posta hoje.
O ato da apropriação significa também trazer o objeto ao momento presente. Esse movimento deve por em questão, assim como todos objetos históricos, a validade e as novas significações dessas imagens no momento em que está sendo convocada, ao mesmo tempo que, num movimento dialético deve resignificar o passado. Dessa maneira, a escrita projetada na obra de Pedro França é, ao mesmo tempo, reveladora e infantil. O texto “fuck the past” é uma imagem tanto quanto os outros elementos, equivale à colagem do cachorro ou a reprodução da pintura de Albrecht Dürer (1471 – 1528). Seu caráter mimado inconsequente, pseudo-anarquista, é confrontado pela evocação do corpo nu que remete a um passado de ouro, ambos carregando uma certa dose de idealismo.
Nas composições de Pedro França, procedimentos de “ctrl+c + ctrl+v”, de sampling e détournement, aproximam uma série de imagens que tendem a serem (des)organizadas em diferentes layers. Os planos de cor que preenchem o fundo, tentam criar, de alguma maneira, uma relação cromática comum para juntar uma série de tentativas que podem parecer inconsequentes. E se o uso desses tipos de palavras aparece com frequência, deve ser menos pela personalidade do artista e mais por uma maneira de lidar com imagens na contemporaneidade. O acúmulo de imagens dispersas que marcava a produção de Pedro França é, nesse novo momento, condensado num único espaço delimitado e ideal que é o plano pictórico da tela.
Os foguetes (1990) de Leda Catunda fazem parte de uma série desenvolvida a partir da década de 1980 chamada vedações. O procedimento de cobrir partes da estampa, ressaltando e descontextualizando imagens trazidas de um arquivo coletivo, acaba por criar uma liga para os elementos díspares que são usados na obra da artista. Esse procedimento de edição busca dessaturar, de certa maneira, um universo abarrotado de imagens das mais diversas. Em Nove e Novinho II (2013), a composição de emblemas, patrocinadores e padrões geométrico-cromáticos é novamente alinhavada pelo uso comum da tinta. Nesses casos, o suporte é o próprio conteúdo da obra, tornando sua “pintura” não mais a representação da coisa, mas a coisa ela mesma.
Portanto, a natureza usualmente plana dos suportes das imagens são por vezes questionadas, em outros momentos reforçadas. A colagem e a maneira como Chaves e Catunda manipulam os materiais, tendem a dar corporeidade à essa suposta bidimensionalidade. A virtualidade das imagens na obra de Catunda e Chaves é confrontada pela materialidade e o forte apelo táctil que suas pinturas-objetos carregam.
Aproximando materiais de naturezas distintas que pareceriam incompatíveis, da mesma maneira em que se aproximam imagens, as composições de Arthur Chaves tencionam a bidimensionalidade tradicional dos objetos de parede, criando elementos vazados, camadas e volumes. O desenho, assume uma posição fundamental para estruturar sua pesquisa com a materialidade de tecidos e plásticos, sobras e dejetos ora mais moles ora mais firmes. Assim, incorporar imagens é apenas mais um processo para criar campos complexos de profundidade informados por um desenho, contraditoriamente preciso e anárquico.
A máquina de costura foi metáfora para o confronto, quase selvagem e automático, de imagens na experiência surrealista. É curioso que Arthur Chaves, se utiliza dessa ferramenta que fixa, mesmo que precariamente, um conjunto heterogêneo de fragmentos, criando estruturas amorfas que vão se desenhando ao longo do processo intuitivo de associação.
Por fim, LA Uncovered #6 (1998) de Robert Rauschenberg, compreende em seu espaço, imagens tradicionais do repertório estadunidense: sobre o enquadramento que a parede de tijolos vermelhos cria na base da composição, uma imagem anuncia a liquidação de uma “famosa loja de departamento de Nova York” que foi a falência. A circulação de imagens através de uma cultura de massa, que seria parte essencial da produção de Rauschenberg, parece estar contemplada nessa série de obras que buscam desconstruir um imaginário do sul da Califórnia.
A natureza diversa de cada imagem é confrontada com outras num espaço em atrito. Seja num scroll que avizinha conteúdos que em nada se assemelham, na lógica de sobreposição de camadas de um vídeo, da relação entre texto e imagem – com a primazia cada vez mais intensa dessa ultima – e a tinta que tenta apaziguar os ruídos em uma espécie de unidade de retalhos. São desses confrontos improváveis que se constroem novas conexões, as ideias (e imagens) raramente se ordenam de modo linear, e essa desordem é parte de sua beleza.
junho 6, 2018
Daniel Lannes: Dentição por Moacir dos Anjos
As pinturas de Daniel Lannes são onívoras. Nutrem-se de fontes diversas de imagens e técnicas para ganhar corpo original e denso. Cenas documentais ou imaginadas são tragadas para o interior das superfícies amplas onde as reinventa: algumas, vindas de décadas ou séculos atrás; outras, de quase ontem. Imagens históricas ou banais podem lhe interessar igualmente, desmanchando hierarquias convencionais que dão pouca atenção às segundas. E se é com tinta acrílica que esboça a arquitetura de linhas que evoca referências tão distintas, é com tinta à óleo que, sobrepondo-a à outra, põe suas pinturas à beira do abismo sensual que leva ao que não se conhece ainda. Dessa fome de muita coisa diferente, produz trabalhos diante dos quais o olho e a mente dançam em busca de significados possíveis, movimento que captura ou produz alguns deles sem conseguir traduzir totalmente o que é pintado em discurso ordenado e inequívoco. Faz todo o sentido, portanto, que sua produção recente referencie, de modo menos ou mais direto, o imaginário de deglutição do outro que informa o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, escrito em 1928 e marco crucial do modernismo brasileiro. Daquele que come com fome, diria Glauber Rocha quatro décadas mais tarde, não se esperam modos contidos, mas a violência que marca, material e simbolicamente, a vida nos trópicos do sul do mundo.
Afastando-se de uma arte “digestiva”, própria de quem se acomoda com dietas regradas e suficientes, Daniel Lannes deixa à vista, em seus trabalhos, marcas de mistura e incerteza, em flerte aberto com um porvir diferente, feito mais de experimento do que de repetições do que já foi acerto. Essa disposição ao excesso do invento está presente no arco forte que ata, entre as décadas de 1920 e 1960, modernismo antropófago, cinema novo, tropicalismo e arte experimental brasileira. E também mais para atrás ou mais para adiante, em antecipações e reverberações que adensam a necessidade de fuga da fome e que dão forma incomum à vontade de comer. É nessa tradição que o artista mergulha em suas novas pinturas, em mostra que se chama, apropriadamente, Dentição – nome dado a cada uma das duas edições da Revista de Antropofagia, onde o manifesto acima citado foi publicado pela primeira vez.
Em “O filho pródigo”, a imagem de uma mulher que dá à luz um homem feito remete, no imaginário da produção simbólica do Brasil, à chegada ao mundo de Macunaíma, invenção modernista literária da década de 1920 que reaparece, muitos anos depois, como ação performática no cinema e no teatro brasileiros. Na proximidade da cor clara da mãe e da cor escura do filho que chega à vida há menos sugestão de convívio pacífico, contudo, do que reafirmação das desigualdades e conflitos que marcam o país desde seu início. “Guesa errante”, por sua vez, tem título emprestado de poema homônimo de Sousândrade que, escrito no final do século 19, foi admirado por modernistas e, já na década de 1960, por tropicalistas de vários campos. Mas se o texto original narra a trajetória de acuação e fuga de um adolescente indígena destinado a um ritual que o levaria à morte, a pintura de Daniel Lannes mostra uma mulher quase nua que, tendo atrás de si um homem envolto em sombras, parece se debater contra uma violência iminente. Nada, porém, é muito certo na produção pictórica do artista, que mais sugere do que afirma narrativas, convocando aquele que vê suas pinturas a devorá-las e reinventá-las desde o lugar que ocupa no mundo.
“Carrossel Napolitano” talvez seja a pintura que mais flerta com o espírito tropicalista de deglutição de tudo que está no entorno, quebrando barreiras entre alta e baixa cultura e valorando, dessa maneira, não somente o tido como popular, mas também o considerado “mau gosto”. O estilhaçamento da imagem pintada que cerca a mulher que ocupa o centro da tela parece reverberar um mundo onde não há mais referências certas, situação que confunde insegurança sobre o que existe e liberdade para inventar formas de vida novas. Não à toa, a pintura “A herança Asmat” retrata o autor do Manifesto Antropófago envolto em referências a um povo indígena supostamente canibal portando, ao mesmo tempo, espécie de escudo que talvez o queira proteger – inutilmente – não somente do que é novo e é espanto, mas do desejo infinito pelo que é do outro.