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abril 30, 2018
Hélio Fervenza: Tempos Reversos por Eduardo Veras
A noção de reversão de tempo tem aparecido em pesquisas acadêmicas em diferentes ramos da Física, da Matemática, da Biomedicina e de certas engenharias. Não prevê a sorte de viagens ao passado, nem mesmo o postulado filosófico do eterno retorno. Trabalha antes com a perspectiva de que se possa recriar, em laboratório, as condições que coincidiriam com o momento de engendramento de determinado fenômeno. Em tese, isso permitiria a recriação do instante preciso antes de as coisas começarem a desandar. Seria como um contrafluxo da chamada obsolescência programada: uma espécie de reinvenção ou reconfiguração das continuidades desejáveis. Em três novas séries de trabalhos, Hélio Fervenza (Santana do Livramento, 1963) aproxima-se dessa condição dos tempos reversos: uma alteração perceptiva do presente, que possa nos conduzir, ao menos hipoteticamente, de volta ao segundo antes da perda, do desvanecimento fatal. Obviamente, a operação, aqui, não é literal, mas metafórica. Preserva, porém, algo da dimensão utópica das experiências científicas.
Em uma das séries, objetos – que se assemelham, a um só tempo, aos sinais gráficos conhecidos por colchetes e a grandes réguas de acrílico, feito essas que se empregam nos escritórios de arquitetura – pretendem, à primeira vista, medir certas distâncias. Os números que vêm ali estampados, em uma transparência que resiste às opacidades cotidianas, assinalam antes as pontuações do tempo do que as fronteiras espaciais: datas significativas para a configuração do que entendemos por Brasil, começando pelos 1500, data de seu Achamento.
Em outra série, de caráter mais instalativo e performático, o artista apresenta quatro instrumentos em acrílico preto, ainda carregados, como as réguas, por sinais de pontuação. Esses paus-de-chuva, ao serem manipulados, produzem uma trilha sonora, de harmonia intuitiva e artesanal, ao mesmo tempo em que remetem ao esforço característico das ampulhetas. O gesto evoca o transcorrer do tempo cronológico, enquanto o som nos projeta no tempo climático: hora de chover. Sob o título relógios: dias de areia; segundos de chuva, as peças articulam-se a um vídeo, que faz, também ele, as vezes de ampulheta, com mãos que vão mudando de posição para deslizar porções de areia de uma para a outra.
A terceira série reúne uma série de impressões sobre papel de arroz. Essas composições recordam tanto a intensa experiência do artista com xilogravura quanto seu gosto pela incorporação de sinais próprios da escrita: além das chaves e colchetes, presentes nas duas outras séries de trabalhos, agora há também letras, palavras e expressões. Os sinais, dessa feita, expandem, se deformam, se invertem e se espelham. A leitura não se dá de imediato. Experimentamos, de fato, um mundo truncado. A rigorosa construção formal, combinada a heranças do conceitualismo, articula carimbos e espaços vazios. O texto se faz imagem, mas, por mais estranho que pareça, nunca deixa de ser texto.
Dizia Michel Butor que um muro, erguido pelo conhecimento, separa o que se vê do que se lê. Trabalhos que combinam texto e imagem ajudariam, segundo o poeta, a solapar esse muro. Dessa vez, colaboram também na empreitada – ainda que hipotética ou utópica – de reversão do tempo. Nenhuma nostalgia nessa operação. Hélio Fervenza convida antes a que se perceba o que perdemos e quando perdemos. Talvez algumas reversões sejam desejáveis, possíveis ou necessárias.
Eduardo Veras
Porto Alegre, outono de 2018
Eduardo Veras é crítico e historiador da arte
Professor do Instituto de Artes da UFRGS
Curador da exposição Tempos reversos
abril 16, 2018
Îles flottantes, de Douglas Gordon por Lorenzo Mammì
A videoinstalação Îles flottantes [Ilhas flutuantes] foi realizada em 2008 por ocasião da grande exposição individual de Douglas Gordon Où se trouvent les clefs? [Onde estão as chaves?], em Avignon, na Provença (sul da França). Na sede principal da mostra, a Coleção Lambert, Gordon concebeu o espaço expositivo como um corpo, e as obras (algumas novas, outras já exibidas) como agentes de alteração de suas funções vitais.
Para filmar Îles flottantes, Gordon inverteu o fluxo de um antigo sistema de canalização para inundar o jardim da residência Lambert. No vídeo, a água se espalha, encobrindo progressivamente crânios humanos que o artista espalhou pelo jardim. Os crânios remetem a um trabalho de 2007, Forty [Quarenta], em que o artista, então com 40 anos, fez 40 incisões em forma de estrelas num crânio humano – alusão à foto de Man Ray em que Marcel Duchamp exibe na nuca uma tonsura em forma de estrela. Mas os crânios de Ilês flottantes aludem também a uma série de naturezas-mortas que Cézanne pintou no final da vida, compostas apenas por conjuntos de crânios dispostos sobre uma mesa. São quadros que cabem no gênero tradicional da vanitas, reflexão sobre a transitoriedade da vida, assim como o Forty de Gordon.
Título e subtítulo sugerem ainda outras chaves de leitura: îles flottantes é o nome de uma sobremesa tradicional francesa; Montfavet, bairro onde a vila Lambert se encontra, abriga também um famoso hospital psiquiátrico. A paisagem da Provença está especialmente ligada à obra de Cézanne, que ali nasceu e passou grande parte de sua vida. Ao colocar os crânios de sua vanitas numa paisagem aquática, Gordon estabelece uma tensão entre duas maneiras opostas e complementares de ver, próprias de dois mestres do impressionismo: a transparência e a docilidade aos reflexos do jardim inundado, marco das paisagens aquáticas de Monet, se sobrepõem à consistência volumétrica e à concentração luminosa de Cézanne. Os últimos minutos da projeção, quando a água deixa entrever apenas as calotas dos crânios, são muito semelhantes a certas paisagens juvenis de Cézanne, como a Ponte em Maincy perto de Medun, de 1879, em que as manchas brancas das pedras se projetam para a superfície da tela, opondo sua consistência de coisas à fluidez impressionista dos reflexos. É outra maneira de repor a relação, tão constante na obra de Gordon, entre decomposição e permanência, movimento e imobilidade, fluência da percepção e solidez dos corpos, fluidos e ossos.
Lorenzo Mammì
Mauro Restiffe: São Paulo, fora de alcance por Thyago Nogueira
Cidades são organismos vivos – nascem, crescem, desenvolvem-se. Raramente morrem e, em geral, sobrevivem àqueles que as moldaram ou que nelas vivem. A convite do Instituto Moreira Salles, o fotógrafo paulista Mauro Restiffe (1970) percorreu bairros centrais e periféricos de São Paulo, como Luz, República, Pinheiros, Vila Congonhas e Itaquera. Munido de sua Leica portátil e de filmes em preto e branco de alta sensibilidade, Restiffe palmilhou ruas e esquadrinhou a cidade entre dezembro e abril de 2014, um momento de profunda agitação, causada por eventos como as intervenções violentas no bairro da Luz ou as obras faraônicas que antecederam a Copa do Mundo. O resultado das caminhadas é esta exposição – uma síntese visual da paisagem humana, arquitetônica e topográfica de São Paulo e uma representação aguçada das tensões políticas e sociais que dão forma ao espaço urbano.
Os usos variados e inesperados que os habitantes fazem da cidade, os conflitos entre o desenvolvimento econômico e a preservação do patrimônio, a complexidade do relevo urbano – tudo está nas imagens. Eventos cotidianos, como deslocamentos diários ou o lazer do fim de semana, convivem com fatos extraordinários, como um os protestos que tomaram o país ou o incêndio no Memorial da América Latina. Cartões-postais como o Museu de Arte de São Paulo dividem a atenção com lugares menos reconhecíveis, como os arredores da avenida Jornalista Roberto Marinho, na Zona Sul. O que vemos é o espaço e o tempo da cidade, o que lhe dá corpo e vida.
Parte da frustração e do fascínio que São Paulo exerce em seus habitantes vem de seu ciclo de evolução acelerado e da dificuldade em controlar inteiramente o espaço. É o que sugere a fotografia do largo da Batata, importante entroncamento da cidade ao mesmo tempo em reforma e em ruína. Tão logo surgem, as construções já parecem gastas, como se precisassem ser constantemente substituídas, numa espiral de renovação que não vê fim.
As fotografias apresentam uma complexidade de situações, algumas aparentes, outras menos. O antropólogo Claude Lévi-Strauss acreditava que as cidades eram o produto de uma estrutura mental invisível, um tipo de ordem subjacente, fora de nosso alcance, que se insinuaria sobre os espaços e se expressaria de forma simbólica ou real, “um pouco como as preocupações inconscientes se aproveitam do sono para se exprimir”.
Depois de percorrer e fotografar exaustivamente São Paulo, Restiffe talvez tenha intuído uma ordem própria, construída por microscópicos grãos de prata. Ao expor a complexa interação entre o espaço, as pessoas e a arquitetura, ao exibir a experiência urbana como uma realidade fragmentada, o fotógrafo age como um urbanista inconsciente, um artista que constrói uma nova cidade.
Thyago Nogueira
abril 12, 2018
Todas as Graças por Virginia Aita
Todas as Graças
VIRGINIA AITA
A instalação Todas as Graças é um recorte peculiar na produção de Laura Vinci. Mais intimista, solicita uma ‘escuta’ sutil das formas, que se coagulam num desenho despojado, pontuando elegantemente um silêncio aparente. Condensações de espaço e tempo, essas esculturas funcionam num conjunto dinâmico, cujas relações internas acessam imagens que já habitam a natureza dos corpos ou se inscrevem em sua história. Concebida para este espaço, Todas as Graças é mais um modo característico da artista infletir uma arquitetura, tensionando as cordas de suas linhas de força enfeixadas por formas (Graças, Pins e Mundos) que fazem vibrar o teclado sensível para restituir seus significados.
Um cenário para a contemplação dos sentidos, sem a pressa e a clareza invasiva dos conceitos e das formas reiteradas pelo uso. Tramando relações que imantam vazios, tracionando as superfícies, essas formas absorvem nosso olhar num mergulho tátil. A memória do toque antecipa o olhar. Muito aquém das hipérboles do saber, convida a um despojamento, uma “atenção flutuante, uma longa suspensão do momento de concluir, onde a interpretação teria tempo de se aplicar em diversas dimensões, entre o visível apreendido e a experiência vivida de um despojamento” [1]. Aderido à matéria, o tempo aqui é outro: alongado e remoto, mas, ainda, irredutivelmente presente num ritmo corpóreo que nos torna cúmplices. O espaço – nas palavras da artista, “um gigantesco corpo” – rompe a extensão contínua e inerte da geometria para refazer-se como espaço fenomenológico, ativado pela experiência sensorial.
As Graças, os Pins e os Mundos aqui dispostos desestabilizam e redesenham o espaço com sua concentração de volume e heterogeneidade. Mais que formas escultóricas e menos que objetos (impermanentes, subsistem no intervalo de uma história), são corpos que significam. Híbridos de matéria e sentido, orquestram outros ritmos em configurações que dissolvem fronteiras entre história e natureza, mente e corpo, narrativa e percepção. O contorno fluido das Graças projeta um corpo feminino; formas que deslizam em sua superfície luzidia numa dança de reflexos que recolhe vestígios de uma história. Já os Mundos nos contêm, mapeiam, mensuram, marcam a direção e os limites do sentido com uma clareza efêmera.
No contraponto desse movimento, o peso das peças as retém no solo; a gravidade faz delas reféns do destino comum da matéria, que acena a corrosão do tempo e a violência infligida aos corpos. Nem mesmo a bela dispersão dos Pins dissimula os alfinetes pontiagudos que perfuram a superfície contínua da parede como se ferissem a pele deste “gigantesco corpo/espaço”. A gravidade e a graça são, aqui, polaridades que organizam essas energias antagônicas, como na irresistível imagem da tensão incontornável que nos define no limite do humano em Simone Weil [2]. Refluem a uma poética minimalista que, reconhecendo ecos de Anish Kapoor, Jessica Stockholder e Olafur Eliasson, ou mesmo Lygia Clark, Tunga e Amílcar, se obstina em desnudar na matéria sensível sua potência formal – mas para recompor seu estranhamento. Para além do deleite, a artista desfere um corte transversal na percepção, num gesto político.
O enigma que resiste nestas obras remete à tensão inerente da arte, entre matéria e luz, o perceptível e o legível, opacidade e transparência, “presença material bruta e discurso codificando uma história” [3]. Mas o que são essas “imagens” que embaralham natureza e história? Para além do instante em que vivem na experiência, as obras-imagens têm uma sobrevida que se estende além da impressão; elas se desdobram em sequências de outras imagens, se sobrepõem e se associam em redes. O que é a memória senão compilação de imagens? Uma vez “carregadas de tempo”, diz Agamben [4], as imagens saturadas “se tornam história”. Há, portanto, uma vida das imagens a ser compreendida, uma temporalidade a ser desvendada, que a artista perscruta com fina consciência de uma natureza desconhecida que subjaz ao mundo físico e à memória da arte.
A figura das Três Graças surge na mitologia grega ligada a Afrodite (e a Vênus, na cultura romana), e é reeditada em diferentes épocas em versões tão ilustres quanto a Primavera (1470-80), de Botticelli, numa alegoria pagã das estações à luz do neoplatonismo florentino. Ela reaparece sob interpretações tão diversas como os estilos de Rafael, Rubens, Canova, Mailoll ou nas surpreendentes Três Sombras de Rodin. É revisitada pela antropologia moderna (Marcel Mauss) no conceito de graça como dádiva, gratuidade, ação generosa como o princípio capaz de converter a espécie em humanidade. Por sua vez, Aby Warburg explora a polissemia da imagem Ninfa na prancha 46 de seu Atlas Mnemosyne, considerando as imagens como fórmulas do páthos (Pathosformel), cifras de tempo, memória e drama. Sua imagem Ninfa, que reintroduz a figura seminal das Graças, não é uma imagem original da qual as outras derivariam, mas um composto de originalidade e repetição, em relações pautadas pela horizontalidade e com efeitos recíprocos. A ninfa, como as Graças, é, sobretudo, “a imagem da imagem que atravessou gerações”.
Com Todas as Graças, Laura Vinci nos interpela e instiga a ir além da trivialidade visual para decodificar a temporalidade impressa nas superfícies, restituindo a memória ao corpo e as histórias à arte. “Toda essa história está contida nas minhas Graças”, diz Laura, vendo nas imagens da arte, antes de tudo, imagens de imagens, condensações de tempo. Paralelamente, o que vemos aqui remete ao percurso da obra, que inicia com a pintura monocromática em telas sem chassis sob uma exígua agenda minimalista (1984). Opondo-se aos planos, as marcas e incisões na superfície diligentemente trabalhada premeditam suas esculturas bidimensionais em ferro fundido ou bronze, que preservam rebarbas e traços da modelagem em formas esguias que recortam o espaço (Verticais, 1990), ou suas tiras escuras estiradas no solo (Pretas, 1997), que lembram Robert Morris (Untitled, 1967-68). Mas é com a instalação Ampulheta (Sem Título, Arte/Cidade III, SP, 1997) que estados, passagens, processos e metamorfoses da matéria passam a ser decisivos em sua poética, intensificando a horizontalidade e entropia da matéria. Nas ruínas de um moinho, um pequeno orifício aberto entre os andares faz escorrer lentamente, ao sabor do vento, 50 toneladas de areia que mimetizam a deterioração gradual do edifício e nos envolvem corporalmente nesta meditação sobre a passagem corrosiva do tempo.
Seu trabalho tornou-se conhecido pelas instalações que exploram a plasticidade de materiais diversos (ferro, bronze, ouro, cobre, mármore, perlita, vidro, areia e água), agenciando suas propriedades e microestruturas (densidade, composição, grão, ponto de fusão e ebulição, etc.) para acessar a natureza dos elementos em seus estados e formas reversíveis. Com o uso de dispositivos (máquinas, sistema refrigeração, vaporização a frio, etc.) que reproduzem artificialmente esses estados e passagens da matéria, a artista metaforiza sua impermanência e instabilidade recompondo a natureza num drama metafísico. O tempo é experimentado a uma distância meditativa, como condição da existência e deterioração das coisas, que percebemos lateralmente ao observar aquele fio de areia que escorre entre as lajes do prédio em ruínas. Nele, tudo é necessariamente transitório, se cristaliza no presente já contendo o germe de sua dissolução iminente.
Mimetizando esse fluxo, a fluidez da água entre o estado líquido e o vapor é programática para sua poética. Turvando a paisagem com uma névoa espessa (No Ar, 2010, Lisboa, Pádua) ou numa fina camada de gelo que cresce na tubulação de uma sala “asséptica” (Estados, 2002), uma mínima intervenção no ambiente produz uma mudança desconcertante de cenário. Em Máquina do Mundo (2005), uma esteira rolante desloca, horizontalmente, montes de areia de um extremo a outro, repetindo ad infinitum o mesmo movimento, como se recitasse o poema homônimo de Drummond: “No sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar”. Parece, assim, metaforizar os ciclos da história, embaralhando mecanismo e natureza num “eterno retorno” em que tudo se desfaz e volta a erigir formas. Em Ainda Viva (2007), centenas de maçãs dispersas sobre uma mesa-escultura de mármore, entre pequenos módulos geométricos, se deterioram numa natureza morta que evoca o tema recorrente de Cézanne. Mas é a colisão desses dois tempos antitéticos, a perenidade do mineral e o ritmo orgânico do vegetal que perece exalando humores, que imprime a carga dramática. Em Choro (2010), um piano é saturado de vapor, gotejando água pelas frestas. Já em No Ar (2011), o impacto fica por conta de bicos de aspersão acionados por uma bomba que converte água em suspensão em nuvens de vapor que emergem em intervalos, engolfando o ambiente.
A artista ampliou sua investigação no universo teatral com coreografias e direção de arte. Em Cacilda! (Teatro Oficina, SP, 1998), com direção de José Celso Martinez, o cenário retinha traços escultóricos com um bloco suspenso (Anjo de Pedra), ainda experimentando efeitos cênicos como o plástico transparente sobre o qual o “sangue jorrava” atravessando o palco. A seguir, realizou o levantamento imagético para a peça Terra (Os Sertões, Euclides da Cunha) e a adaptação do romance O Idiota, de Dostoiévski (Sesc Pompéia, 2010-11). Também atuou na criação de O Duelo, na direção de arte de A última palavra é a penúltima – 2, e participou da criação de Na Selva das Cidades (2015), de Brecht, com a mundana companhia. Entre seus trabalhos mais recentes, Morro Mundo (Nara Roesler, Rio, 2017; SP, 2018) é uma instalação em que uma máquina é programada para liberar vapor quando seus sensores são ativados, que já é visível na tubulação de vidro que percorre a sala antes de tomar o ambiente numa neblina cerrada, subitamente desorientando o espectador. Já a instalação Diurna (Santander, SP, 2018), com projeção de sombras de árvores (vídeo mapping) nas paredes e pequenas folhas escultóricas num arranjo disperso, confronta a aridez da paisagem urbana com esse vestígio de natureza indoors.
Mas, aqui, uma leve inflexão nos redireciona a uma experiência à flor da pele, dilatando o tempo presente, sensivelmente vivido, psicológico, em uma experiência ampliada, histórica e ancestral, cujo catalizador consiste na polidez e no requinte das formas (ao contrário do suspense e da dispersão entrópica de outras instalações). A densidade destas formas sólidas (Pins, Graças e Mundos), inversamente proporcional à dispersão dos fluidos, passa a operar como metáfora de uma condensação do tempo que guarda um imaginário oculto. Uma “densidade” que é sintoma da desconcertante anacronia histórica da imagem artística, da colisão de tempos diversos que a arte faz caber num mesmo corpo-signo. Uma Beleza que fere, seduz e interpela, em seu mundo ainda sem palavras, para nos “fazer ver”.
NOTAS
1 Didi-Huberman, G. Devant L’Image, p. 25
2 Weil, Simone. A Gravidade e a Graça. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
3 Rancière, J. The Future of the Image, N.Y: Verso,2007, p.11
4 Agamben, G. Ninfas. SP: Hedra, 2007, p21.
abril 2, 2018
After Nature: proliferação de híbridos por Lisette Lagnado
After Nature: proliferação de híbridos
LISETTE LAGNADO
Há tempos que o termo exposição não consegue definir as práticas artísticas contemporâneas que absorveram a ideia de expandir a experiência estética para além do projeto moderno. A arquitetura que recebe as obras acaba sempre simulando uma falsa neutralidade (o cubo branco). Difícil anular camadas de história, projeto e memória dos contextos expositivos. Com a virtualidade proporcionada agora pela era digital, o corpo do visitante não precisa sequer estar presente no local. Diante desse quadro crítico, qual o sentido de realizar mais uma exposição que pretende atuar no campo real e questionar a economia da arte?
“O papel social da arte mudou”. Por meio dessa sentença, o duo Manata Laudares sintetiza aqui vinte anos de trabalho em processos colaborativos, desenvolvidos a partir de seu interesse em torno do universo do comportamento e da cultura techno. After Nature é o nome que reúne uma série de “programas abertos” que, a cada realização, retomam uma plataforma de base e lhe acrescentam uma nova fração progressiva.
A casa inteira encontra-se impregnada de uma atmosfera artificial, atravessada por emissões sonoras. Pode-se falar em ocupação artística, deslocando nossa atenção para nosso tecido físico e social. Precursores no Brasil da síntese entre o espaço da arte e a pista de dança, vislumbrada com a Cosmococa CC2 ONOOBJECT (1973) de Hélio Oiticica, Manata Laudares vêm mapeando a produção eletrônica e nos entregam sua versão fria e coerente com a distopia do futuro da civilização humana.
Nesse momento em que o digital e o virtual investem um poder de inclusão do outro, cabe examinar propostas que mantiveram-se à margem da lógica da manufatura de um objeto puro. Manata Laudares transitam entre vários saberes, do bordado à escultura, da taxonomia à biologia. O duo cria um ambiente sintético-real, trazendo reminiscências conceituais (de John Cage a Guilherme Vaz) para repropor a poética em extinção dos passeios românticos. O conceito de panorama, anterior à invenção da fotografia, retorna aqui no tema da paisagem, com elementos concretos, fabricados e representados.
Compartilhar, colaborar e transferir ao público o uso de “produtos” são as três operações fundamentais que norteiam um pensamento em rede cuja visibilidade permaneceu oculta do sistema formal de mercado, mesmo atuando intensamente na economia política das artes. Talvez seja possível creditar à sua origem mineira a parcela de afinidade com a tradição, mas sobretudo com a melancolia da irremediável proliferação de sujeitos e objetos híbridos.
Carla Chaim por Jacopo Crivelli Visconti
Trecho retirado do primeiro livro da artista que será lançado na SP-Arte, pela Editora Cobogó
Em sua segunda individual na Galeria Raquel Arnaud, “A Pequena Morte”, Carla Chaim reúne novos trabalhos em papel, vídeo e fotografias. O mote da exposição, que ocupará todos os espaços da galeria, é o luto, a morte e ao mesmo tempo, o êxito do prazer. “Como começar a perceber novamente a pele fina que separa o mundo externo do mundo interno, um limite entre corpos, entre mundos. ‘A pequena morte’ pode tratar de finalizações, términos ou conclusões de experiências e rupturas, mas também ‘a pequena morte’ ou la petite mort na língua francesa, refere-se de maneira mais ampla ao gasto espiritual que ocorre após o orgasmo, ou um curto período de melancolia ou transcendência, como resultado do gasto da força vital", explica Chaim.
Com o intuito de buscar um novo recorte ao pensamento ampliado do desenho, Carla traz desta vez, não o gesto da dobra, mas a soma de diferentes superfícies, numa junção de planos físicos, criando assim terceiros corpos. Dois corpos que passam a coexistir. A artista volta a pensar no mais interno deste corpo, nas sensações físicas internas e individuais recriadas por experiências do mundo. Um mundo de luto, mas um mundo também de transformação e prazer. Reconhecer-se em si, reconhecer-se no ar que respiramos, reconhecer-se no limite da pele, para dentro e para fora dela.
Material simples de papelaria antiga, como letratone, letrasets e livros antigos, é explorado com recortes e colagens. O papel vegetal colorido e o papel milimetrado trazem cores leves para a exposição ao mesmo tempo que o preto denso é colocado ao lado. Os gestos transformadores dos materiais são o rasgo e o corte. Rupturas mais bruscas diante do material e que trazem novas composições através de sobreposições e junções destes materiais, novas paisagens que remetem a hachuras e moirés de gravuras.
Carla mostra também a série “Ele queria ser bandeira”, onde recortes em papel-carbono com a planta do piso térreo da galeria se pendem em varetas de madeira, recriando um corpo mole que se transforma com a gravidade e com a leveza do papel ao encontro do ar. Também como bandeiras, Carla traz desenhos em grande formato de bastão oleoso preto sobre papel japonês. Aqui os desenhos são como portais onde a cor preta do papel traz profundidade para o espaço e fala de um campo de possibilidades. O preto é uma ausência de luz, mas não uma ausência de possibilidades. Ele não anula, é um estado de transição, de mudança. Nas bordas dos papéis grandes, os rabiscos remanescentes da feitura permanecem, fazendo ser percebido um gesto, um corpo ativo.
O corpo como personagem na obra de Carla aparece nas suas fotografias. Assim como os desenhos, as fotografias são como gestos congelados. Na série “Line Pieces”, o corpo da artista está junto à arquitetura, elaborando novos desenhos com linhas pretas. As linhas estão como desenhos pelo espaço, tendo como suporte e fixação a própria artista que se apoia num canto de um espaço neutro. Movimentos mais orgânicos são explorados e contrapõe com as linhas duras presas entre suas mãos, pés, chão e paredes.
Para a exposição, Carla produz um novo vídeo, onde pela primeira vez convida outras pessoas, bailarinos para performar. Através da técnica de contato/improvisação, corpos dos bailarinos se misturam entre suas roupas pretas, criando novos corpos, novos seres, amorfos e transformados pela experiência do movimento e da ação conjunta. O vídeo é para a artista como um passo novo de se relacionar, entendendo a importância do convite e da delegação de seus movimentos para outros personagens. Carla dirige aqui a performance gravada, mas não participa. Assiste aos movimentos, como um cientista observa células se juntarem em seus microscópios.