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fevereiro 26, 2018
A espessura da cor por Felipe Scovino
A espessura da cor
FELIPE SCOVINO
O que sempre me chamou a atenção no trabalho de Renata Tassinari é a forma como ela explora de modo muito próprio uma autonomia da cor. O que quero dizer com isso é que a cor tende a se desprender, sob as mais diversas circunstâncias, do suporte em que se encontra para alcançar um estado de virtualidade e mais do que isso, pois o que passa a interessar a artista é revelar, diagnosticar e problematizar a espessura da cor. A cor ganha em sua obra uma materialidade, solidez, que a faz voltar – poeticamente, é claro – ao seu estado embrionário, isto é, assim como o pigmento, os trabalhos finalizados da artista transmitem um estado de corporeidade à cor. Em Tassinari, a cor é tátil, atraente e pulsante. Esse estado não necessariamente se confunde com a ideia de fatura. Percebam, por exemplo, que as obras feitas sobre moldura acrílica primam por serem superfícies pintadas, lisas, homogêneas. São superfícies de cor numa aparição ambígua que os aproxima do design mas simultaneamente das pesquisas mais rigorosas e originais da arte, tais como as de Brice Marden, Ione Saldanha, Willys de Castro, além dos color fields de Barnett Newman.
Contudo, a fatura nos desenhos – se é que posso chamar de fatura aquela rasa mas potente camada de óleo e grafite sobre papel – vem na medida certa: a cor aplicada neles se coloca como algo leve, delicado e suave. As cores neutras são preferencialmente as escolhidas para os desenhos (ou seriam pinturas sobre papel?) e acentuam essas características. Tanto nos desenhos quanto nas pinturas sobre moldura acrílica há, guardadas as suas devidas especificidades, diferentes condições de corporeidade, medida e gestualidade. No caso das pinturas, o fator de reflexividade que o acrílico emprega à cor nos faz, quando estamos diante delas, sermos incorporados pelo objeto. E mais do que esse fenômeno físico, ou ainda, por meio dessa particularidade, é que somos jogados a uma experiência de ordem ambígua e extremamente relevante: por um lado, experimentamos a capacidade de vivacidade e memória que as cores nos revelam – não é inadequado pensarmos que os campos pictóricos de Tassinari são paisagens, assim como por exemplo os grids de Mondrian revelavam também o ritmo intenso das metrópoles – e por outro, estamos diante de um painel recortado e frio.
Como afirmou o crítico Rodrigo Naves em ensaio sobre a artista, “nos esforçamos para unir dois fenômenos que, por ora, ainda parecem ter naturezas incompatíveis. Isso pode ser incômodo, mas lembra de maneira notável a vida que levamos” [1]. No caso dos desenhos, a gestualidade precisa na escolha da quantidade de tinta a ser empregada e a figura do quadrante que traça as fronteiras e a visualidade de campos cromáticos elaboram um estado particular: as cores parecem levitar, saindo levemente do plano e alçando um pequeno voo. Esse sobressalto faz com que a cor ganhe uma autonomia em relação ao papel e torne evidente a sua espessura. Ela não é mais pura ilustração do mundo mas passa a habitar o espaço. Fica evidente nesse instante o seu estatuto sensível e não uma função de composição. A cor não é mais parte de um desenho mas possui uma característica própria e autônoma ao estar habitando aquele espaço no plano. E essa condição – independente do suporte, deixo isso claro – cria uma nova relação temporal do espectador com a obra, já que suas obras tornam o olhar mais lento; somos levados a perceber a cor como “qualidade intrínseca, não em relação” [2], como acentua Mammì.
Gostaria de voltar a uma citação que fiz e que, imagino, não é muito usual quando se pensa no trabalho de Renata. É a obra de Ione Saldanha. Se Aluísio Carvão em Cubocor (1960) e Hélio Oiticica, ao longo dos anos 1960, com os Bólides e Parangolés levaram a cor a um estado de imanência nunca antes visto na arte brasileira, Saldanha revelaria a fisicalidade da cor em pequenas ripas. Eis o salto da cor para o espaço. Não acho que se trata de uma influência direta – a relação entre Saldanha e Tassinari – mas de poéticas que souberam articular pintura, lirismo, prazer estético e acima de tudo a autonomia da cor. As ripas, bambus e carretéis de Saldanha possuem um dado cru, uma “atenção para certos padrões da arte popular com sua decoratividade difundida no cotidiano” [3] e uma artesania que passam ao largo da obra de Tassinari, onde se percebe um acabamento mais limpo e sintético no uso dos materiais. Entretanto, a forma como cada uma dessas trajetórias foi pautada pelo rigor construtivo e por uma sensibilidade cromática me chamam a atenção. Há em ambas, à margem da espetacularização e da torrente de informações, uma mistura incomum de informalidade e despretensão.
Gosto de enaltecer outra ambiguidade na sua poética que só faz aumentar a sua potencialidade: ela traz irmanado um repertório econômico, preciso e mínimo de recursos materiais e um máximo de meios expressivos e líricos. Em tempos de uma desatenção acelerada, as obras da artista nos levam a nos determos sobre os detalhes, as minúcias e as singularidades de um gesto sobre o papel, a espessura do óleo ou a fresta branca (o “pulmão da obra”, o risco por onde corre o ar) que percorre os limites da pintura sobre a superfície de material acrílico transparente. As experimentações no papel e na tela sempre aconteceram de forma concomitante no seu trabalho. No início da sua trajetória, ainda nos anos 1980, a aparição de madeiras cortadas e lixa já nos mostram essa qualidade de pulsação do material, dele partir do plano para o espaço, como se a tela não desse mais conta da quantidade de relações estabelecidas (com a cor, a forma e a sua própria estrutura), inchasse e passasse a vibrar. Nas obras em papel essa relação continua, mas é a cor quem estimula essa vibração. É uma cor-luz, que vibra de forma tão intensa que o suporte em que ela se encontra logo revela-se limitado, não contem essa experiência dentro dos seus limites, e a cor acaba por se expandir para além do suporte. É mais uma característica dessa operação de transmitir espessura à cor. A tinta, matéria que confere corporeidade à cor, fenomenologicamente se transmuta em pele. Uma leve bruma que percorre a superfície e especialmente nos desenhos confere rugosidade ao papel. Nos permitir que vejamos textura, sensações, corpos, peles na pintura é tornar os nossos olhos mais sensíveis para o mundo. É diminuir a dureza e a incompreensão que nos cercam e nos fazem ficar, mesmo que involuntariamente, cegos às atrocidades do cotidiano.
Como escrevi anteriormente sobre o seu trabalho [4], a tela e o papel, pouco a pouco, mas de forma consistente e precisa deixam de ser simplesmente suporte para a ação da tinta e passam a ser partes constituintes da própria obra. A colagem, o uso de recortes da madeira e posteriormente o acrílico sendo oculto pela tinta para atingir o trompe l’oeil ou uma imagem que engana os nossos olhos, sustentam a ideia de que é ali, no próprio espaço sacralizado da pintura, usando os elementos que dão forma a ela, que ela própria - pintura - se faz. Talvez o seu trabalho não seja uma pintura que dialoga com a poética construtiva mas que a desconstrói.
Se nos últimos anos, sua produção atentou para a materialidade da pintura, com pinceladas espessas - uma textura muitas vezes propiciada pela encáustica -, na fase atual o que parece interessar, com mais força, é o que venho chamando de espessura da cor. A massa de gestos e tons em certa medida é substituída por uma precisão e apuro, especialmente nas pinturas em que faz uso do acrílico.
Suas pinturas mais recentes se relacionam com o espaço através da fratura ou da falta. São como limites indefinidos, bordas abertas, molduras arrebentadas. Confundem-se definitivamente com o espaço, pois o plano já é algo conquistado. São formas que se traduzem como fios de luz. Nesse momento, notem os limites das pinturas sobre moldura acrílica, pois não são exatamente limites mas superfícies imantadas que suavemente se apropriam do espaço. Mas ao contrário de boa parte dos antecedentes concretos e neoconcretos, esse salto para o espaço se dá pela cor e não exatamente pela forma. Mais uma vez aqui transparecem as poéticas de Carvão e Oiticica, mas deixo claro que as especificidades de cada um desses artistas são bem distintas das de Tassinari. Por exemplo, Oiticica pensa a cor como um corpo (metafórico) que inclusive se confunde e é atravessado por outro (real). Pensem na exploração pelo espectador dos Penetráveis e como aqueles labirintos, ninhos, portas e feixes monocromáticos são atravessados, tocados, cheirados, apropriados sensorialmente sob as mais diversas formas. Mas no caso de Renata a cor não quer se confundir em ser corpo, ao menos nessa perspectiva de Oiticica, mas buscar um lugar próprio, que reflita sobre as suas propriedades de forma autônoma. Estão lá a sua independência em relação ao plano, a sua falsa condição de aparição, pois é a cor se transformando em luz, uma espécie de campo cromático que avança para além daquela zona em que graficamente se encontra. É o fio branco dos limites do acrílico que a artista deixa transparecer que produz uma ligeira volumetria à superfície da pintura. E esse estado promove a ilusão para os olhos do espectador, provocando uma alternância de posições entre figura e fundo. A pintura revela esse constante estado transitório.
Transmitir esse caráter expansivo à cor definitivamente não é pouca coisa. Transformar a cor em algo que magicamente avança em direção ao espaço e que em outros casos, dentro da sua obra, concretamente ganha uma espessura ou dobra, como é o caso das pinturas recentes que fabricam uma imagem, como escrevi há pouco, da fratura, são características notáveis no trabalho da artista.
Outra lógica interna de suas pinturas é a maneira como tornam visíveis espaços arquitetônicos ou objetos do cotidiano que são transpostos para uma linguagem abstrato-geométrica, como é o caso da série Lanternas. Os módulos em acrílico são dispostos na parede, lado a lado, verticalmente, com um intervalo curto entre eles, e a superfície pintada de acrílica e óleo em tons monocromáticos transmite a sensação de um bastão de luz aceso. A cor, nessa série, possui volume, densidade e espessura. O título nos induz também a pensar nessa relação muito própria entre luz e cor que o trabalho de Tassinari possui. A série sintetiza a pesquisa da artista, já que nela a cor é uma matéria vibrante que tende a ganhar o espaço.
Notas
1 NAVES, Rodrigo. Renata Tassinari: a cor e os dilemas da experiência. In: TASSINARI, Renata. Renata Tassinari. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2009, p. 13.
2 MAMMÌ, Lorenzo. [Sem título]. In: TASSINARI, Renata, op. cit., p. 33. Publicado originalmente em Renata Tassinari, catálogo da exposição, Galeria Millan, São Paulo, 1989.
3 OSORIO, Luiz Camillo. Ione Saldanha: o tempo e a cor. Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2013, p. 23.
4 Cf. SCOVINO, Felipe. [Sem título]. In: TASSINARI, Renata. Renata Tassinari. Rio de Janeiro: Multiplo Espaço Arte, 2014. Catálogo de exposição, s/p.
fevereiro 15, 2018
Continuum por Henrique Menezes
Continuum
HENRIQUE MENEZES*
A Fundação Iberê Camargo apresenta a exposição temporária Continuum, composta por obras de videoarte de Ana Rito, Cezar Sperinde, Leonardo Remor e Denis Rodriguez. O terceiro andar da instituição recebe projeções que engendram imaginários utópicos, nos quais uma visualidade surreal contamina as obras e suas imagens — fluída transposição de um pensamento a outro, de sentimentos a sensações.
A expressão “continuum” descreve um todo que, mesmo afetado por possíveis fragmentações e limites, mantém-se uno. Partindo de operações efêmeras, as narrativas simulam ações sem fim, repetitivas e melancólicas em sua inocuidade. Alegorias meditativas sintetizam instantes, nos quais a concisão deriva em encantamento visual: a presença da ação artística contrasta com a substância material, diluindo-se, amalgamando-se e hipnotizando.
A obra Pleura (2005), da artista portuguesa Ana Rito (Lisboa, 1978), abre o percurso do visitante ditando o tom da mostra através de sua sutileza estética. A corrente de um rio passa tranquilamente por uma escultura clássica imóvel. A obra evidencia o fluxo do sensível, numa permanente evocação do tempo e da finitude. Nas palavras do crítico João Silvério, a poética de Ana Rito nos dá a sentir “a aura luminosa das imagens, as sombras, os sons e as palavras que se configuram numa corporalidade que resgata a matéria possuída pelo ânimo da imagem em movimento e pela sua operatividade enquanto referência ou memória”.
Continuum é conexão sem interrupção. A artificialidade presente em Pleura flerta com a obra “Pindorama - dancing palm trees” (2014), de Cezar Sperinde (Porto Alegre, 1981). A projeção em grande formato é o registro de uma performance do artista em Londres, onde imensas palmeiras infláveis agitam-se em frente a colunas de uma imponente construção neoclássica. Este oásis alegórico, inusitado e anacrônico, explora reflexões sobre identidades e arquiteturas, em análises sociais e históricas que tocam o choque das experiências culturais contemporâneas. A similitude das obras extrapola a harmonia visual: a construção poética do efêmero, perseguida também em “Cinema é Cachoeira” (2015), reitera um impulso ilusório. A obra de Leonardo Remor (Getúlio Vargas, 1987) e Denis Rodriguez (São Paulo, 1986) encerra o gesto artificial em uma miragem de ritmo constante e de eterno recomeço. É um paralelo entre o looping do filme e o fluxo contínuo da água que corre em uma escadaria — inspirado em uma citação de Humberto Mauro.
O efêmero se reconstitui em Continuum, colocando em jogo sua essência: flagrantes sucessivos daquilo que o tempo poderia turvar mas o gesto artístico captura, recitando a potência do instante.
*Pós-graduado em Arte Contemporânea e Curadoria pela Universidade de Lisboa, Henrique Menezes é Curador Assistente na Fundação Iberê Camargo e colunista da Contemporary Art Curator Magazine. Durante seu período na capital portuguesa, foi curador da exposição individual PARALLAX, do artista Aires de Gameiro (Portugal). Colaborou com a galerista alemã Alda Galsterer e trabalhou na The Switch Gallery - do francês Skoya Assémat-Tessandier. Produziu textos para exposições de artistas como Lorraine Mahot de La Querantonnais (França), Anzelika Ishkova (Rússia) e Lizzie Joyce Pearl (Suíça). Suas áreas de interesse circundam temas como pertencimento e identidade, geração Millennial (pós-1980) e o impacto da cultura digital no sistema\mercado das Artes.
fevereiro 6, 2018
Sob o Sol (negro) dos Trópicos por Bernardo José de Souza
Sob o Sol (negro) dos Trópicos
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
Daniel Frota - Sol Preto, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS - 04/02/2018 a 08/04/2018
Realidade e ficção constituem esferas análogas quando se lança uma mirada exógena sobre a história ou mesmo sobre a ciência; funcionam como dimensões superimpostas no processo de articulação semântica que nos permite produzir conhecimento a partir de informações trazidas à tona em contextos sociais e culturais tão específicos quanto diversos.
Distantes no espaço - e no tempo? -, as realidades europeia e sul americana em princípios do século XX guardavam rarefeita correspondência quando em análise o debate científico e filosófico a orientar os rumos da humanidade diante das modernas noções de avanço e progresso em voga nos círculos eurocêntricos. A bem da verdade, as capitais "terceiro-mundistas" rezavam pela mesma cartilha cartesiana que as metrópoles europeias, embora a história fosse outra quando investigado o comportamento e o sistema de crenças das pequenas aglomerações urbanas do interior do continente latino-americano.
No ano de 1919, ao passo em que cientistas, físicos e astrônomos europeus intentavam validar a teoria da relatividade postulada por Einstein, o povo de Sobral - então uma cidadela a ocupar diminuta porção meridional do globo terrestre - ainda ruminava noções de pecado e punição à luz da Igreja e das crenças religiosas. Em tal contexto histórico de brutal apartamento científico e cultural, a luz como elemento-chave à comprovação da teoria da relatividade haveria de produzir imensas zonas de sombra sobre a população do sertão brasileiro, uma terra castigada pela seca inclemente e pelo sol à pino, que alguns diriam turvar as ideias dos homens debaixo de tamanho e insuportável calor, enquanto outros, com maior lucidez, atribuiriam a "falta de luzes" daquele povo ao acachapante peso do obscurantismo religioso e da tutela do coronelismo e das oligarquias agrárias que historicamente submeteram o país ao atraso econômico e cultural.
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Situada entre a pesquisa histórica, a investigação plástica e a especulação filosófica, o projeto Sol Preto, de Daniel Frota, se debruça sobre a façanha científica de astrônomos britânicos em terras tropicais - a saber, na cidade de Sobral -, que resultou na validação do maior pulo do gato na história da física moderna, qual seja, a da unificação das noções de espaço-tempo. Mas o interesse do artista, para além das questões científicas específicas de tal teoria, reside na colisão de dois mundos em tese estanques, a qual acabou por resultar em um sem-fim de causos e anedotas reveladoras das perspectivas críticas - ou mesmo acríticas - de ambas civilizações. Não obstante, o conjunto de fatos e factóides a embalar a aventura de Frota, em seu retorno à terra natal de seus antepassados, constitui uma exploração antropológica eivada de referências ao plano político-filosófico maior, qual seja, aquele onde estão dispostos os peões de um tabuleiro de xadrez que ora se movem sob a égide da mitologia, ora sob os auspícios da ciência.
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À sua chegada à cidade, seguiram-se encontros do artista com personagens locais e algumas visitas a espaços referenciais à história do eclipse solar que fez o mundo de Sobral escurecer por uma fração curtíssima de tempo, relativizando assim não apenas as leis da física formuladas até então, mas toda a dinâmica política e cultural daquele povoado. As superstições fomentadas pela imaginação dos nativos forjavam um cenário de tintas apocalípticas, as quais se viam adensadas pelo discurso da Igreja, via emprensa local, que jamais de todo desfazia a mística religiosa em torno do eclipse e da expedição de astrônomos, uma vez que optava por "traduzir" o discurso científico em textos "ïnformativos" que, em alguma medida, reiteravam o fundamentalismo catolicista. A orientação da Igreja era a de preservar Deus acima de qualquer prova em contrário trazida pelo acúmulo de conhecimento científico.
Dentre os expedientes a serem utilizados pelos sobralenses para driblar as forças virulentas do eclipse que se imporiam de maneira letal sobre a natureza - assim acreditava a população local -, alguns seriam, potencialmente, prejudiciais ao sucesso da experiência científica em jogo, qual seja, a de comprovar por meio da curvatura dos raios solares, obliterados pela lua que se antepunha ao astro rei, a famigerada lei da relatividade. Era nesta toada que nativos pretendiam bater panelas e fazer barulho no afã de impedir a morte dos animais que, segundo dizia a lenda, dormiriam um sono sem fim sob efeito da punitiva escuridão a envolver a cidade em seu manto sepulcral.
Ao transitar entre o simbolismo latente no embate entre as forças iluminadoras do ciência e as sombras do catolicismo e da superstição, recolhendo pistas ao longo de sua jornada rumo ao passado, Frota relativiza as perspectivas emancipatórias da ciência à medida em que investiga os traços de pueril humanismo a ecoarem desde um continente europeu que enxergava na miséria e aridez do agreste nordestino tão-somente a possibilidade e vislumbrar um fenômeno natural cujo capital científico jamais seria retornado a Sobral na forma de desenvolvimento econômico e cultural. Neste sentido, a seca da caatinga foi de enorme serventia aos propósito dos astrônomos, embora os frutos do avanço promovido pela descoberta tenham restado no passado daquela cidade como não mais que uma miragem, apenas um dado sui generis na história de Sobral.
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Segundo Giorgio Agamben, "vivemos em meio à escuridão do presente" **, diante de um tempo que jamais se revela de maneira absoluta, resultado de processos históricos que se deram em dimensões paralelas, carregados da latência de um futuro imprevisível, disforme em sua totalidade. Nas palavras de Frota, "A imagem da 'escuridão do presente', segundo Agamben, se dá através de uma luz que não nos alcança. Em um universo em expansão, onde as galáxias se afastam de nós em uma velocidade superior a da luz, as luzes emitidas por elas nunca chegam até aqui. Por isso vemos escuridão no céu. Essa analogia descrita por ele fala sobre nossa dificuldade com o descompasso que é viver e ter uma compreensão histórica do nosso próprio tempo. Como se nosso corpo fizesse sombra sobre o lugar onde pisamos. Mas também revela o lado positivo da sombra, como uma luz que está permanentemente viajando em nossa direção. Mas também sabemos que essa unidade que chamamos de “presente” não é construída homogeneamente. Uma pluralidade de descompassos coexistem, se sobrepõe e às vezes se chocam."
O que se dá no ano de 1919 na cidade Sobral poderia ser interpretado, por analogia, à luz da tese desenvolvida pelo geógrafo Milton Santos, segundo a qual o espaço é resultado da "acumulação de camadas desiguais de tempo"; em se tratando do episódio em pauta no projeto Sol Preto, o que vemos é o descompasso em que a humanidade logra levar à cabo sua nem sempre virtuosa aventura sobre a superfíce da terra. Enquanto a ciência ganhava contornos ficionais ao homem do nordeste brasileiro, as crenças religiosas eram percebidas de maneira recíproca pelos astrônomos europeus.
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Ao longo de seu périplo por Sobral, o artista tropeçou em pistas tão reais quanto falsas, algumas das quais emblemáticas dos matizes ficionais da história escrita ou mesmo oral - esta última constituido a força maior da autoafirmação de povos que se moveram no curso da história apartados das letras acadêmicas e da frieza científica.
Lá pelas tantas, ao visitar um dos museus da cidade, Frota depara com duas pedras de quartzo iguais em sua forma, ainda que diversas em seus tamanhos. Em uma dessas coincidências que condimenta a investigação histórica de matizes ficcionais, segundo a memória oral do povo sobralense, as tais "esculturas" teriam sua origem atribuída ao povo Inca, e representariam a lua e o sol, justamente os dois astros em questão no evento que se tornou objeto da pesquisa quer dos astronautas ingleses, quer da de Frota em suas respectivas missões no sertão brasileiro.
O resultado da pesquisa dos cientistas em 1919 é conhecido pela porção ilustrada do mundo contemporâneo, embora ainda restem opacos para a maior parte da população do globo em princípios do século XXI; por outra banda, os frutos da missão do artista acabaram por ganhar contornos fictícios em sua teia de mistério científico e ironia política.
Na exposição apresentada na Fundação Iberê Camargo, o visitante pode tomar contato com frações de tempo e realidades romanceadas pelo artista em sua narrativa que ora privilegia a forma, ora o conteúdo, calando supostas verdades e tornando visíveis certas passagens da história que hoje amalgamam um mundo que jamais logrou equiparar no tempo e no espaço as trajetórias tão díspares quanto diversas dos povos europeus e americanos. Os descompassos do processo histórico que embalam a humanidade apenas se tornam ainda mais evidentes na obra de Daniel Frota.
Escultura, texto, imagem, mobiliário e luz articulam na exposição um campo de sentido que encontra-se aquém e além da História, impermeáveis em sua mudez estética, apesar de eloquentes em sua expressão ficcional. A austeridade com que a instalação foi montada é perturbada pelo dado de realidade que irrompe o espaço através da brecha temporal aberta pelo documentário exibido em uma TV no chão do espaço expositivo, a qual nos permite acessar, mais uma vez, pela via da história oral, um mundo que se constrói sempre diante da leis da visibilidade e da invisibilidade - ainda que a matéria visível seja da ordem do audível, isto é, conformada a partir de palavras - palavras essas que constroem, pervertem ou mesmo traem o sentido específico de seus termos.
Esclarecedora em seu mutismo aparente, Sol Preto nos lança em uma viagem no tempo e no espaço, numa dimensão que corre em paralelo a essa que chamamos presente. Pontos em uma rede infinita de possíveis articulações sinalizam múltiplos "buracos da minhoca", outra figura usada pela física para descrever as pontes que unem um espaço a outro, ou um buraco negro a um buraco branco. Enquanto margeamos o conhecimento sobre o universo, e sobre nossa própria história, aguardamos o fim dos tempos em épica expectativa, ou mesmo o eclipse que acabará nos cegando por completo ou, quem sabe, nos tornando clarividentes.
Bernardo José de Souza
* AGAMBEN, GIORGIO. “O que é o Contemporâneo?” In: O que é o Contemporâneo? e outros ensaios; [tradutor Vinícius Nicastro Honesko]. — Chapecó, SC: Argos, 2009.
** MACHADO, MILTON. "Pensando o Espaço do Homem." - São Paulo, SP; Edusp, 2012.
fevereiro 1, 2018
Hipervisão por Sergio Romagnolo
Hipervisão
SERGIO ROMAGNOLO
Não existe razão para os artistas não utilizarem toda a tecnologia à sua volta. Uma cena provavelmente deve ter ocorrido. Um pintor, em 1872, chegando a beira do rio com sua tela e suas tintas, prepara todo o material e depois de umas duas horas começa a pintar. Ao mesmo tempo chega um fotografo, com seu equipamento precário, tripés pesados e negativos de vidro e em 30 minutos capita a imagem com todos os detalhes e vai embora. O pintor ainda está no esboço. Nesse momento é bem provável que o pintor comece a questionar se essa fotografia é mesmo boa. Pensa em fazer uma pintura impossível de se fotografar, um sol nascendo, com pouca luz e muita cor. Pensa em fazer uma imagem como se fosse uma maquina fotográfica melhor do que a máquina fotográfica. Claude Monet fez a “Impressão, Nascer do Sol ”, 1872, de modo que nenhuma fotografia pudesse ser feita e se tentassem o sol se transformaria numa linha cinza no céu. Provavelmente Monet deve ter em algum momento usado alguma fotografia, mas também deve ter pensado em melhorar a fotografia.
Da mesma forma com a digitalização da imagem alguns artistas procuram fazer pinturas melhores do que os computadores e as máquinas digitais são capazes de produzir, mesmo fazendo uso de toda essa tecnologia se quiserem. Usam a tecnologia e questionam a tecnologia.
Esta exposição mostra quatro artistas que procuram enxergar mais longe do que as máquinas, querem pensar a imagem, analisar seus limites, olhar para o interior das formas. Querem trabalhar com uma visão melhorada, instrumentalizada, ampliada, como se fossem, eles mesmos, parte dessa engenharia da visão. Procuram ampliar o alcance ótico e retiniano, ao mesmo tempo que realizam analises conceituais da imagem. É uma pintura mediada por tecnologia tanto física como mental, tanto digital como sociológica.
Sandra Mazzini e Felipe Morelatto se valem de processos de desmembramento da visualidade. Por outro lado, Luisa Almeida e Lourdes Colombo analisam de uma certa forma social a figura da mulher do ponto de vista da sua subjetividade.
Pinturas coloridas, de certa forma até tradicionais, mas quando se olha melhor elas apresentam uma grade geométrica desencontrada, com falhas nas emendas, assim são as pinturas de Sandra Mazzini. Parecem recortadas e remontadas. São paisagens melancólicas, sem sol, sem extremos. Claramente a pintora quer analisar e entender a imagem, quer que a pintura seja um filtro racional sobre a visão. Do mesmo modo, Felipe Morelatto procura desmontar as suas formas urbanas com carros, pessoas e estações de metro. A diferença aqui é que essas figuras desmontadas não são remontadas, permanecem em pedaços caídos na tela, mas esse processo também é calculado e mediado pelas separação das cores, como se a pintura fosse uma serigrafia com muitas matrizes.
De outra forma a figura feminina aparece nas pinturas de Lourdes Colombo, sem filtros óticos, mas com olhar inquisitivo e questionador. As mulheres inicialmente sensuais se deformam com o olhar continuado do observador. Elas olham de volta com olhar medusante, como diz Hubert Damisch em seu livro A Origem da Perspectiva, esse olhar congelado quando se olha para os próprios olhos no espelho. Esses corpos esticados como bonecas de pano desafiam e atraem pelo mistério que eles contém. As mulheres também são fortes, podem ser soldados, podem usar armas e fazer revoluções. Assim são as xilogravuras de Luisa Almeida. Podem ser de grande formato, mas sem perder os detalhes, executadas incansavelmente, mostram força no tema da luta política e muita delicadeza nos detalhes das estampas geométricas e composição das cenas. São linhas limpas, nítidas, mostrando a precisão e a técnica do corte da madeira raramente vista nessa linguagem.
Cada inovação tecnológica parece estimular os artistas a ampliarem os limites da arte, indo mais além do que a tecnologia ou indo na direção oposta, virando as costas para ela, ou a visão ampliada ou a opacidade ampliada.
Sergio Romagnolo
Curador
Hipervisão, Galeria Marilia Razuk, São Paulo, SP - 08/02/2018 a 17/04/201