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maio 30, 2017
Primeiro estudo: sobre a terra por Bernardo Mosqueira
primeiro estudo: sobre a terra
(ao meu amor)
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Análises de fósseis e vestígios materiais indicam que a geofagia era praticada entre os Homo habilis há 2 milhões de anos e entre os primeiros Homo sapiens há mais de 150 mil anos. Nos últimos 5 milênios, a ingestão de terra esteve presente na cultura de povos das mais diversas origens e, hoje em dia, é hábito comum no interior do Brasil, no Sul dos Estados Unidos, no Haiti e em diversas regiões em todos os continentes. A geofagia é utilizada como forma de disfarçar a fome, com propósitos medicinais, como parte de preceitos ritualísticos ou simplesmente por gosto ou cultura alimentar. Nesse último caso, a terra é utilizada como ingrediente em receitas, como acompanhamento de outros alimentos, na forma de bolos e biscoitos, in natura ou simplesmente temperada com especiarias. Muitas crianças e principalmente mulheres grávidas são acometidas pela alotriofagia (popularmente conhecido como “pica”) e sentem vontade incontrolável de comer terra, barro, tijolo e outros elementos que não são convencionalmente alimentos.
No Brasil, que tem mais de 50% de sua população afrodescendente, a geofagia era comum entre os negros escravizados entre os séculos XVI e XIX, e sua prática era castigada com violência física e com o uso da Máscara de Flandres, cuja imagem sobre o rosto de Anastácia ainda assombra o imaginário brasileiro. O banzo (espécie de saudade profunda do passado africano, limite do sujeito diante da exploração e da desumanização no novo continente) levava muitos negros à morte por desnutrição ou pelo suicídio. Desterritorializados, à distância irremediável de sua terra natal, muitas vezes os negros escravizados se matavam por meio da geofagia excessiva, ou seja, tiravam a própria vida comendo muita terra.
A partir do entendimento da força simbólica desse gesto íntimo de preencher a própria luz digestiva ou própria sombra existencial com terra é que se iniciou uma pesquisa sobre os procedimentos criados pelos artistas para se relacionarem com esse elemento. Dada a amplitude e potência desse tema, essa exposição é necessariamente incompleta – como um punhado de terra diante de todos os solos do planeta. Movimentando-se entre sobre a terra e o subterrâneo (“underground é difícil demais pro brasileiro”), essa mostra reúne uma primeira e contida experiência curatorial sobre a relação material, conceitual, política e simbólica entre o humano e a terra.
Da terra viemos, da terra vivemos, para a terra voltaremos. Está na terra o curso do destino. Se a epistemologia hegemônica confunde terra com território (e, portanto, ser com ter), devemos recorrer a outras epistemologias para compreender que só é possível algum futuro se entendermos ser terra. Ser da terra. É da terra a grande força ancestral, a alimentação, os ciclos naturais, a abundância e a cura. Somente reconhecendo seu poder e relevância, seremos capazes estar com ela num pacto de saúde e prosperidade. Onilé Mojuba! Salubá! Arroboboi! Atotô! Demarcação já! Demarcação já!
Bernardo Mosqueira, Maio de 2017
first study: from the ground
(to my love)
Trace fossil analysis provide evidence that the Homo habilis practiced geophagy 2 million years ago and Homo sapiens more than 150 thousand years ago. On the past 5 millennia, soil ingestion has been present culturally on peoples from different origins, and still today is common on the countryside of Brazil, in the south of the United States, on Haiti and many regions in all of the continents. Geophagy is used as a way to trick starvation, with medicinal purposes, as part of ritualistic precepts or simply due to personal taste and food culture. In the latter mentioned aspect, soil is used as an ingredient in recipes, as a garnish, in the dishes like cakes and cookies, in natura or just seasoned with spices. Many children and mostly pregnant women are affected with alotriophagy and have a yearning for eating soil, clay, mud, brick and other similar components unusual to menus.
On Brazil, a country in which more than 50% of the population descends from African people, geophagy was common among slaves between the XVI and XIX century, and the practice was punished with physical violence and the usage of “mascara de Flandres”*, whose image over Anastácia’s face still haunts the Brazilian imaginary. The “banzo” (a sort of deep longing for a past life in Africa, limit of the individual in face of the exploitation and dehumanization of the new continent) lead many black people to die of malnutrition or suicide. Deterritorialized, from an irretrievable distance from their land, much often the black slaves killed themselves through excessive geophagy, that is, took their own lives by eating too much soil.
Regarding the symbolic power of this intimate gesture of filling one’s “digestive light” or even an existential shadow with ground, this research started to relate the procedures developed by artists to this element. Given the extent and the strength of the subject, this exhibition is inevitably incomplete – like a handful of soil before all the land in the planet. Shifting between levels above ground and underground (“underground is too hard for Brazil”), this show assembles a first and temperate curatorial experience on the material, conceptual, political and symbolical relations between human and the soil.
For we are ground, of ground we live and unto the ground we’ll return. The future is grounded in this same soil we live in. As the hegemonic epistemology mistakes ground for territory (and therefore being for having), we must turn to other epistemologies in order to comprehend that a future is only possible if we master being ground. Being from the ground. It belongs to the ground the great ancestral strenght, the nourishment, the nature cycles, the abundance and the healing. Only acknowledging its power and relevance we can provide a pact of health and prosperity. Onilé Mojuba! Salubá! Arroboboi! Atotô! Demarcação já! Demarcação já!
Bernardo Mosqueira, May 2017
* iron mask used to stop slaves from practicing geophagy, consuming alcohol and stealing food or diamonds.
maio 26, 2017
Om Mani Padme Hum, obra de Regina Vater
Instalação/escultura datada de 2009 apresentada pela primeira vez na individual da artista na Gallery 32 na mostra Memory Of Light - City of London, Reino Unido.
Molde, Anita Schwartz Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ - 01/06/2017 a 01/07/2017
O significado literal do mantra OM MANI PADME HUM seria: “Oh! A joia do Lótus”, ou “da lama nasce a flor de lótus”.
OM MANI PADME HUM é constituída por um fio de nylon totalmente enfiado em diferentes contas de cristais pendendo desde o teto de uma altura de sete metros toca direto no centro de uma mandala formada por pequenos espelhos ovais e redondos superpostos sem nenhuma cola.
Como esta mandala é sempre montada com espelhos soltos dando a chance de diversas composições e como os diferentes feitios de contas de cristais podem estar em arranjos sempre novos dado que a artista ao enfiar as pedras usa o método de John Cage de “operação de chance” a instalação/escultura mesmo que múltipla será sempre uma obra original
No Tibete utiliza-se os mantras como meios de alcançar elevação da consciência. Um Mantra muito antigo e o mais utilizado na tradição tibetana e associado ao Avalokiteshvara, o Bodhisattva da Compaixão, é o:
Om Mani Padme Hum
OM representa a presença de todos os Buddhas, o começo de todos os mantras, a própria consciência ou a luz. te ajuda a atingir a perfeição na pratica da generosidade e a libertar tudo o que precisa ser libertado dentro de nós, afastar o ego, orgulho e o apego. Esse mantra também protege criando vibrações benéficas.
MA ajuda na pratica da pura ética
NI ajuda na pratica da tolerância e da paciência
PAD ajuda a purificar nos dos preconceitos e das nossas estupidezes e na perfeição da perseverança
ME ajuda a purificar nos de sermos possessivos e na pratica da concentração
HUM ajuda a nos limpar dos nossos ódios e das nossas agressões e a conseguir perfeição na pratica da sabedoria
maio 25, 2017
Jaildo Marinho por Fernando Cocchiarale
Jaildo Marinho
FERNANDO COCCHIARALE
Jaildo Marinho - Cristalização, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - 28/05/2017 a 02/07/2017
O trabalho de Jaildo Marinho tem um pano de fundo histórico, formado pelo construtivismo russo da segunda década do século XX, pelo neoplasticismo (Mondrian), pelo concretismo (Theo van Doesburg e Max Bill) e por seus desdobramentos na Argentina e no Brasil, a partir das décadas de 1940 e 1950. Tal panorama resultou da expansão do campo da pintura para além de suas fronteiras figurativas quando, a partir de 1910, Wassily Kandinsky produziu a primeira obra deliberadamente abstrata de que se tem notícia. Em 1915, Kasimir Malevich pintou a primeira versão de Quadrado preto sobre fundo branco, tela emblemática do Suprematismo. Assim, Kandinsky foi o propositor de um abstracionismo mais livre e Malevich, o fundador da vertente geométrica.
Entre estas duas correntes seguidas pelos artistas, podemos encontrar parte das poéticas abstrato-geométricas ainda hoje em processo. As afinidades não-figurativas explícitas que compartilhavam não foram suficientes, porém, para evitar algumas de suas divergências fundamentais que afloraram em campos discursivos, práticos e teóricos, opostos, cuja separação foi muito bem sintetizada em carta (1937) de Kandinsky ao crítico André Dezarrois, diretor da Revue de L’Art ancien et moderne: os construtivistas vêem geralmente sua origem no cubismo que empurraram até a exclusão do sentimento ou da intuição e que tentam chegar à arte exclusivamente pelo caminho da razão, do cálculo (matemático...exemplo do ponto de vista: Malevich tinha como ideal a possibilidade de ditar sua nona pintura por telefone ao pintor de paredes – medidas exatas, cores numeradas.
Concebido durante a Revolução Soviética por artistas como Tatlin, Rodchenko, Gabo e Pevsner, o conceito de construtivismo fundamentava-se na compre¬ensão de que a nova arte tridimensional, em oposição à tradição da es¬cultura (baseada na moldagem ou no desbaste de um bloco único), de¬veria ser substituída por técnicas de montagem e articulação de partes, tal como a então atual engenharia passou a adotar como tecnologia de cons¬trução. A ideia de se compor um todo a partir de módulos tornou-se vital não só para a arquitetura como para as manifestações artísticas agrupa¬das sob o conceito de construtivismo.
Hoje é evidente que as questões que os abstracionismos vieram responder há mais de cem anos não fazem mais sentido: propostas como as de uma arte abstrata, geométrico-construtiva ou de uma abstração sem uma geometria rigorosa, então rejeitadas pela maioria, precisavam ser aceitas como arte e reconhecidas institucionalmente. Esse reconhecimento foi implantado com sucesso, graças, em parte, ao rigor teórico dos construtivistas que abriu caminho para a sua longa e profícua história.
A atualidade e a consolidação de poéticas não-figurativas, evidenciadas, por exemplo, na produção geométrica de Jaildo Marinho (e de muitos outros artistas contemporâneos), prescindem da aplicação rigorosa dos princípios inicialmente indispensáveis para tal consolidação. A pureza postulada por Tatlin, Malevich, Mondrian, Theo van Doesburg, Albers Max Bill e Waldemar Cordeiro, por exemplo, deixou de ser parâmetro para a valoração das vertentes geométricas da arte abstrata. A sobrevivência de tais tendências determinou (contrariamente à “busca da pureza” pregada por Van Doesburg) a hibridização da sintaxe autorreferente do construtivismo histórico, com as expectativas fundamentalmente semânticas da produção contemporânea.
É possível, portanto, pensar nas Cristalizações de Jaildo como uma repactuação pessoal e híbrida entre a sintaxe geométrica (legada pelas vanguardas da primeira metade do século XX) e a tradição pré-construtivista da escultura. O foco aqui dado à escultura supõe o papel essencial deste meio, na hibridização que atualiza (“semantiza”) os repertórios geométricos com os quais Jaildo constrói sua linguagem.
Afora os grandes formatos de suas pinturas (incomuns no construtivismo histórico), o teor geométrico e planar dessas telas referenda o papel fundamental do construtivismo (e também da geometria sensível presente na visualidade popular nordestina de sua infância, vivida em Pernambuco) tanto para a formação do olhar do artista quanto para a fundação de sua poética.
As cinco esculturas de Jaildo agora mostradas – Palette Rio-rouge, Rio-jaune, Rio-bleu, Rio-rose e Brazil rose-zen – sugerem a síntese entre a racionalidade construtiva da forma geométrica e os métodos de produção clássicos da escultura greco-romano-renascentista. Seu título comum, Palette, nos evoca sua inscrição institucional (por meio da palette de Carrara que aqui não opera mais como veículo para o transporte da obra, e sim como parte inseparável das esculturas, fixando-as em seu lugar de exposição). Mas é bom não perdermos de vista que tais obras resultam do desbaste de blocos de mármore de Carrara. Ou seja, resultam de ações escultóricas sobre um material intrinsecamente associado à tradição dessa arte ancestral e não à construção industrial com materiais industriais, como se tornou praxe no modernismo (montagem da obra no próprio espaço).
Finalmente, no contexto poético (histórico e pessoal) que informa a produção do artista, Cristalização pode ser tomada como noção equivalente àquela de síntese. Ao reunir, em uma única escultura, evidências clássicas e elementos formais construtivistas, Jaildo Marinho os ressignifica no universo híbrido da produção contemporânea.
Jaildo Marinho no MAM Rio de Janeiro: poder da repetição por Jacques Leenhardt
Jaildo Marinho no MAM Rio de Janeiro: poder da repetição
JACQUES LEENHARDT
Jaildo Marinho - Cristalização, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - 28/05/2017 a 02/07/2017
A exposição do MAM Rio sobre a obra de Jaildo Marinho está organizada em torno de uma instalação central: “Cristalização” (2017). Em um ambiente impregnado pelas cores da ametista, essa peça é construída em redor de um vácuo: essa é, em geologia, a condição para que o tempo infinito dos processos minerais venha a formar cristais que, ao se desenvolverem livremente, acabam constituindo um geodo.
Essa estrutura central é, mais amplamente, o emblema da exposição inteira, a qual funciona em seu conjunto à maneira de uma estrutura cristalina, reproduzindo na escala do Museu o longo processo através do qual se elabora o mundo mineral, mediante reduplicações e simetria. Em sua forma perfeita, o processo de cristalização produz cristais de rocha: é essa fabricação silenciosa e milenar que está configurada em “Cristalização”.
O tempo infinitamente profundo da geologia é precisamente o inverso daquele que dá o ritmo de nossa existência. A temporalidade dos minerais, comparada à nossa, parece infinita. Seu fluxo bastante lento – às vezes, pontuado por um episódio eruptivo – está submetido a uma lógica linear que contrasta com o perpétuo recomeço vivenciado pelas plantas, pelos animais e, por conseguinte, também pelos seres humanos. O tempo da natureza viva é um ciclo, em que a morte da semente engendra o crescimento da espiga que, por sua vez, produzirá a semente da próxima germinação. Em vez disso, o mundo mineral é unidirecional, entrópico, forçado pela lei da degradação constante de suas organizações a tender para o caos; ela é que transforma as montanhas em areia e os cristais em pó de sílica.
Duas famílias de artistas assenhorearam-se dessas temporalidades marcadas por um simbolismo oposto: por um lado, aquela de que faz parte Piet Mondrian, o qual persegue na pintura a ideia de um mundo inteiramente construído em que viesse a predominar a pureza das formas geométricas de modo que uma forma haveria de se organizar em relação à outra – um mundo de perfeição, um mundo ideal, cuja causa seria o demiurgo humano. Por outro lado, um artista fascinado pela erosão que destrói os Himalaias, tal como Robert Smithson, que dá continuidade, apaixonadamente, ao trabalho da entropia fatal.
Trata-se não apenas de propensões estéticas: essas duas atitudes constituem visões do mundo, escolhas éticas e simbólicas. Poderíamos atribuir-lhes um qualificativo: “construtivista” para uma e, para a outra, “desconstrucionista”. Ambas irrigaram o pensamento e o campo visual do séc. XX, após o advento do cubismo analítico. Jaildo Marinho situa-se resolutamente na linha construtivista, oriunda de Malevitch e Mondrian, a qual se alforriou do mundo concreto com a vontade de se tornar a matriz de uma linguagem universal, sem relação com o mundo material do cotidiano tão constantemente representado na pintura da Antiguidade.
Sem evocar o retorno de Malevitch à figuração – cujas circunstâncias são múltiplas e complexas –, convém admitir que o projeto extremo de Mondrian, alardeando o firme propósito de superar a ilusão espacial mediante a produção de uma superfície plana ideal, acabou sendo um fracasso. Seus quadrados coloridos não aboliram a linha que, aliás, constitui a aresta deles; e, contra a sua vontade, o pintor foi forçado a aceitar que a interseção dessas linhas produzia, por sua vez, na tela uma ilusão espacial, precisamente aquela que ele tinha pretendido abolir.
Não é certo, no entanto, que se imponha, atualmente e em retrospectiva, posicionar-se simplesmente na lógica que esse artista tinha desejado privilegiar e, por conseguinte, tirar a conclusão de seu fiasco. Em vez disso, e reconhecendo toda a importância das últimas telas do holandês – tais como “Brooklyn Boogie Woogie” (1942) ou “New York City II” (1942-1944) –, é possível enxergar, nesse momento derradeiro de sua obra, a abertura de um verdadeiro novo campo da arte, em que as incertezas da sensação plástica ganham um novo espaço de jogo, renovando a própria questão da inovação. É nessa perspectiva que se deve abordar a exposição de Jaildo Marinho.
O que acontece quando fixamos nosso olhar em uma de suas obras, revestindo as paredes exteriores dessa instalação complexa? Aparece uma moldura enquadrando uma moldura enquadrando uma moldura. Há mudança de cores, mas não de estrutura. A moldura intermediária induz um desligamento. Nosso olho, pensativo e aturdido, afunda-se nessa armadilha óptica que enfatiza um vácuo central. Uma ausência de imagem, mas não de pensamento: o que enxergamos é o limite extremo das superfícies coloridas, reduzido a quase nada antes do desaparecimento destas.
Resta apenas o enquadramento das superfícies coloridas. Essa tela acaba fixando, sob a forma de linhas, a realidade palpável, nominável e pensável das superfícies coloridas. Ela dá uma forma às ambivalências do olho, órgão submetido às linhas e cores, as quais – tal como havia compreendido perfeitamente Mondrian – constroem incessantemente profundidades e volumes, até mesmo quando o artista tivesse a pretensão de incluir tudo na única dimensão da superfície plana de sua tela.
Seria possível afirmar que a produção de Mondrian, em termos de imagem, será teorizada na geração seguinte através das pesquisas sistemáticas de Jesús Soto: este leva a sério a questão do poder ilusionista da linha confrontada com a superfície geométrica. Ao construir a sua obra a partir dos efeitos ópticos das linhas – linhas pintadas, linhas materializadas e, até mesmo, sombras projetadas – e da respectiva interferência com superfícies coloridas, Soto abriu para a pintura um mundo novo que irá cultivar (em vez de destruir) os efeitos ilusionistas peculiares, engendrados espontaneamente por nosso sistema visual. Ao propulsionar tal busca até a produção dos “penetráveis”, ele consegue restabelecer o vínculo, quebrado pela aplicação sistemática da perspectiva desde a Renascença, entre o mundo enquanto ordem geometricamente estruturada e a experiência sensível dos espaços construídos pela luz.
Na longa e complexa história dessa reapropriação sensível da ordem geométrica, Joseph Albers grudara-se à forma do quadrado porque este representava, para ele, a forma a-simbólica por excelência, aquela a partir da qual, desligado de qualquer representação, era possível para o artista fazer experimentos nas condições perfeitas. Com o quadrado, as relações entre as cores encontravam-se em situação experimental, tornava-se possível aplicar-lhes um protocolo de laboratório. Com Albers e alguns outros, as pesquisas desenvolvidas no âmbito da Bauhaus e da estética industrial, nas décadas de 1920 e 30, haviam transposto o Atlântico para abrir novos territórios em todo o continente americano.
Jaildo Marinho inscreve-se na filial brasileira dessa tradição que, nas décadas de 1950 e 60, ganhou uma importância tanto mais dominante na medida em que ela encontrou, no país, um contexto favorável no aspecto tanto industrial, quanto político. Já, em 1939, no momento da exposição organizada por Flávio de Carvalho para o III Salão de Maio, este declara em um Manifesto: “A arte abstrata, safando-se do inconsciente ancestral, libertando-se do narcisismo da representação figurada, da sujeira e da selvageria do homem, introduz no mundo plástico um aspecto higiênico: a linha livre e a cor pura, quantidades pertencentes ao mundo de raciocínio puro, a um mundo não subjetivo que tende ao neutro”. Em seguida, cita Mondrian: “O tempo é um processo de intensificação, uma evolução do indivíduo para o universal, do subjetivo para o objetivo”¹.
Deve-se, portanto, considerar a exposição proposta por Jaildo Marinho como o resultado de uma dupla reflexão a partir de uma releitura da tradição inaugurada pela obra de Mondrian – desenvolvida por Jesús Soto, de um lado, e, do outro, estabelecida solidamente na linhagem do concretismo e, em seguida, do neoconcretismo brasileiro, que vai de Flávio de Carvalho até Hélio Oiticica, passando por Waldemar Cordeiro e muitos outros a quem a Bienal de São Paulo ofereceu uma importante vitrine.
A geração de artistas da qual Jaildo faz parte pensa imediatamente – poderíamos dizer, a priori – em termos de espaço perceptivo e, portanto, também de espaço de museu. A obra deixa de ser considerada em sua autonomia de objeto confinado em si mesmo porque ele “representa” um mundo existente em outro lugar: ela pertence de imediato, assim como é evidenciado por esta mostra, a um conjunto em que cada parte traz a sua contribuição e no contexto do qual ela reage a todas as outras. É portanto, em primeiro lugar, no plano global da exposição que cada obra singular adquire seu sentido, na exata medida em que ela constitui, como TODO, a moldura em que cada fragmento adquire seu valor.
Com certeza, nada há de absolutamente novo nesse reconhecimento da função de quadro ligada ao espaço da exposição; um construtivista, tal como El Lissitzky, já havia feito essa demonstração. Em um espírito um tanto diferente, Constantin Brancusi tinha feito de seu ateliê o primeiro espaço de exposição para as suas obras: aí, é que ele dispunha, umas em relação às outras, as suas esculturas; que ele as deslocava, servindo-se de uma e, em seguida, de outra como base para determinada escultura, a fim de avaliar os efeitos ópticos de tais mudanças. Essa busca era empreendida com tal rigor que Brancusi tinha acabado por instalar sistemas de cortinas, permitindo-lhe fazer variar a luz que iluminava – e, por conseguinte, transformava – as suas peças. Para fixar essas infindáveis variações é que Brancusi, com a ajuda de Man Ray, dedicou-se à fotografia a fim de guardar esses instantes de graça na permanência de um clichê fotográfico. Era assim que ele colocava em ação o pensamento das relações espaciais, das proporções de valor e das oposições de formas. Essa preocupação pode ser encontrada na série de esculturas de Jaildo Marinho que ostentam o título “Palette”. A relação habitual entre a escultura e a sua base, concebida como elemento adventício destinado simplesmente a situar a escultura no espaço, é questionada aqui pelo uso do mármore na fabricação do mais comum dos suportes: uma paleta de transporte. A nobreza do mármore contradiz a trivialidade do objeto emblemático do mundo da logística. A relação da escultura com a sua base cria uma tensão que torna mais complexa a dimensão simbólica do objeto.
Na exposição “Cristalização”, esse valor do quadro e o seu poder de significação encontram-se fortalecidos pela presença redundante – como se tratasse de uma repetição abismal – da forma “moldura” que aparece em cada uma das pinturas que circundam as outras peças. Jaildo Marinho dá assim ao conjunto um emblema que é repetido ao infinito nas paredes, revelando o esquema geral a partir do qual toda a exposição é construída.
Nesse dispositivo, há manifestamente uma reivindicação asseverada da repetição, do efeito de espelho e de uma estrutura abismal enquanto princípios composicionais. Mesmo que estejamos acostumados, na música, aos procedimentos repetitivos da arte da fuga de João Sebastião Bach, o desnudamento do processo repetitivo esbarra, no entanto, quase sempre, em certa resistência espontânea por parte de nossa sensibilidade. Nosso gosto instintivo parece ter sido condicionado pelo privilégio do único, pelo que poderia inclusive ser designado como a ideologia do único, construída pela tradição romântica da afirmação do ego. Essa tendência em limitar-se a reter da produção artística apenas o que afirma a expressão de uma singularidade tinha sido, na época, uma resposta ao mundo desencantado, oriundo da física de Newton; daí, essa prevenção contra os processos repetitivos, além da sensação de sermos agredidos por seu aspecto mecânico.
Já saímos, no entanto, da era da reação contra o antimaquinismo; mesmo que tenhamos consciência de que a música funciona constitutivamente a partir de processos repetitivos e redundantes, mesmo que estejamos cientes de que o seu ciclo acaba muitas vezes por um retorno “da capo”, ainda assim escapamos dificilmente dessa desconfiança no que se refere à repetição. Quando, na década de 1960, criações musicais “com estruturas repetitivas”, tais como as obras de Terry Riley ou de Philip Glass, investiram nossos ouvidos, muitos tiveram a sensação de serem vítimas de uma agressão. No mesmo momento, uma reação comparável apareceu no campo das artes quando Andy Warhol, sistematizando o uso da fotocópia na pintura, deu à colagem uma nova dimensão simbólica: ele irá conectá-la não à representação, mas ao poder da repetição.
Ora, ao colocar a sua exposição sob o emblema da cristalização, Jaildo Marinho impõe-se a si mesmo – e impõe a seu espectador – a evidência dinâmica da repetição. Cada uma das superfícies que se encontram no centro das telas expostas funciona como um espelho que reflete o lugar da exposição como pura estrutura repetitiva. Ao retomar a terminologia específica dos cristalógrafos, seria possível afirmar que a exposição funciona como uma macla¹, um conglomerado de vários cristais que constroem uma riqueza de simetrias infinitamente complexa, segundo os planos, os eixos e os centros em torno dos quais se organizam esses jogos de espelho e essas simetrias. Por mínimas que elas possam ser, as superfícies, as linhas e os volumes produzem efeitos de estrutura potencialmente infinitos.
Ao conferir uma importância particular à luz e às suas variações em “Cristalização”, Jaildo Marinho reposiciona o espectador e a sua sensibilidade no âmago do processo artístico. A pulsação da luz no geodo assinala o face a face entre o tempo da visita, sensível e movente, que ritma a existência do observador, por um lado, e, por outro, o tempo mineral secular que arbitra a fabricação do cristal. A tensão entre essas duas temporalidades arromba aqui as portas misteriosas do incomensurável. Ela oferece uma experiência estética às séries harmônicas infinitas. A vida – a pequena diferença que nos faz existir em sua fragilidade buliçosa simbolizada pelo fluxo colorido da luz – é confrontada com o rigor cristalino das telas, dos volumes e das maclas. O poder enigmático desse dispositivo submerge o espectador no âmago de uma experiência sensível em que se misturam e colidem os jogos incertos da memória que enfrentam a insuperável fixidez do tempo mineral. Eis uma estética única que enfatiza o valor inestimável da exposição de Jaildo Marinho.
maio 24, 2017
Franklin Cassaro – As dobras no espaço-tempo por Fernando Cocchiarale e Fernanda Lopes
Franklin Cassaro – As dobras no espaço-tempo
FERNANDO COCCHIARALE E FERNANDA LOPES
Esta exposição resume a trajetória poética de Franklin Cassaro. À primeira vista as dezenas de obras que a integram nos chamam a atenção para sua diversidade material e morfológica e não para as suas semelhanças – infláveis; recicloides; desenhos mordidos; vulvas e performances, por exemplo, não apontam para um imaginário dispersivo ou para a falta de “unidade de estilo” tão temida por alguns colecionadores e críticos
Tal diversidade, inversamente, caracteriza a produtiva inquietação que move o processo do artista, mas é importante lembrar que essas dobras do espaço-tempo processuais de Cassaro estão apresentadas com base em conceitos cosmológico-ficcionais que as tornam, durante a exposição, um único trabalho. Merece, também, destaque a relação do trabalho do artista com a tradição da escultura clássica. Moldado em barro, fundido em bronze, fruto do desbaste do mármore ou da madeira, o bloco escultórico sustenta seu volume e massa próprios, no espaço, a partir de base em que eram fixados os pés das figuras esculpidas. A densidade e resistência dos próprios materiais de que eram feitas não eram suficientes para mantê-las de pé.
Escultores modernos como Wladimir Tatlin (contrarrelevos) ou Alexander Calder (móbiles) puderam revolucionar a escultura tradicional liberando-a do peso do bloco. Amarrados por cabos em ângulos de paredes, ou flutuantes, graças ao efeito do vento sobre sua estrutura (montada em função de sua suspensão a partir de um único ponto fixo no teto), esses trabalhos lograram separar volume e massa.
Primeiramente nos infláveis e depois em toda sua obra subsequente, Cassaro investiga diferentes possibilidades de autossustentação da escultura sem quaisquer outros recursos que não os de sua materialidade. Entretanto, os materiais escolhidos para fazê-lo são de natureza diametralmente oposta àquela da solidez da pedra ou do metal.
Nessas esculturas, portanto, entranhas/superfície, esqueleto/pele são feitos da mesma matéria; feitas só de ar, só de latas de refrigerante, de papéis de alumínio ou de mordidas em papel, elas criam um solo poético comum que ancora essa real e positiva pluralidade. Franklin nunca desvincula a invenção de seus trabalhos, dos métodos, técnicas e materiais utilizados para produzi-los.
Fernando Cocchiarale e Fernanda Lopes
Curadoria
maio 21, 2017
Luiz Zerbini por Marcelo Campos
Luiz Zerbini
MARCELO CAMPOS
A observação sobre a paisagem ativou, na arte, distintas vinculações que resultaram tanto em questões relativas ao sublime, ao mítico, ao erótico, quanto em reflexões mais ambientais ou, até, que reverberaram em narrativas culturais, políticas, denunciatórias. A paisagem, da pintura de Poussin ao videogame, como nos informa Anne Cauquelin, pode nos oferecer espaços mentais, literários, mundos virtuais, visões do futuro que nada mais são do que nosso “aprendizado da realidade do mundo”. [1]
Na pintura de Luiz Zerbini, a paisagem adquire conotações variadas. Ora nos deparamos com ambientes mais desérticos, onde a presença humana parece rarefeita, ora observamos restos e vestígios da passagem de um acontecimento inapreensível, pois só nos restaram pistas espalhadas pelas areias das praias.
A paisagem na obra de Zerbini nos coloca, também, em direção a prazeres de todo tipo. Nos remetemos, assim, à Alegria de viver, célebre pintura de Matisse, de 1905, onde a paisagem se modificara com cores inusitadas e, ao centro, exibe-se uma cena de dança, em roda, referência ao primitivismo em curso na época. De modo intensificado, menos com a situação selvagem e primitiva, Luiz Zerbini se direciona mais aos momentos seguintes da passagem humana por uma natureza idílica. Assim, os usos e excessos dos prazeres da civilização, as festas, os encontros, não deixam de ecoar sentidos de gozo, visões paradisíacas, ainda que não tenhamos acesso ao acontecimento em seu momento pleno. Ao contrário, vemos imagens escaparem da acepção histórica e épica da representação. Nos perguntamos, então, sobre o que acontecera no espaço em um tempo que nos foi sequestrado. Com isso, vestígios de possíveis construções improvisadas, madeirites, bancadas de azulejos como as encontradas em açougues são testemunhos de prováveis apresentações musicais ou barracas de comercialização. Em tudo, o sentido da gambiarra, do contra-uso, dos modos desestruturantes presentes nas arquiteturas espontâneas e, de certo modo, ingênuas. Vemos caixas de som, fiações, restos de alimentos, tudo hibridizado. Também vemos hibridizações naturais, bromélias que se misturam com outras espécies de vegetação, cores que se superpõem em camadas e combinações inusitadas.
Justamente o choque e o encontro com o inusitado, porém possível, a partir de determinadas incidências luminosas, trazem para a recente pintura de Zerbini o lugar daquilo que Didi-Huberman chamou de “rasgadura”. [2] Um cano grafitado nas margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, por exemplo, incita o início de um processo experimental, em que a adição de elementos configurará um ambiente quase fabular, porém forjado no presente. A rasgadura, dirá Didi-Huberman, é “debater-se nas malhas que todo conhecimento impõe”. [3] Para isso, Zerbini busca, na imagem, sua contraposição. Também se interessa por malhas, tramas ortogonais, trazidas pela cultura de detalhamentos arquitetônicos, das empenas de prédios, de ondas sonoras, de venezianas. Diante da plácida cena de uma paisagem, uma praia, por exemplo, vemos o sentido de oposição quando a cena (rasgada) se transforma pela destruição causada por uma onda. Assim, o artista insiste, força a imagem, repete padrões modificando-os e encontrando falhas.
A condição do gesto em contracepção encontra, em Zerbini, o rompimento da “caixa refletora” da representação. Didi-Huberman nos explica que a representação é um “dispositivo de encerramento”, uma caixa de reflexão e reflexos, que nos incita a saber e ver, pensar e espelhar. “É preciso tentar romper essa zona refletora na qual especular e especulativo concorrem para inventar o objeto do saber como a simples imagem do discurso que o pronuncia e que o julga.” [4] A pintura, com isso, se imbui de uma dupla tarefa, “tornar visível”, como nos diria Paul Klee, e fazer-se consciente e sabedor do que se coloca diante do ver através de fabulações, onde signos são também enigmas. Com isso, esses gestos de representar e escapar, apresentar e desfazer produzem um sujeito atormentado que “recusa a miséria do prisioneiro” e o “triunfo do maníaco”. Ou seja, ao se quebrar a “caixa da representação” propondo para a imagem o seu algoz, Zerbini se aproxima da tormentosa tarefa de desfazer-se do olho como dispositivo para a “figura figurada”, advinda das experiências empíricas do mundo. Antes, ao contrário, Zerbini se interessa pela “figura figurante”, aquela que resulta de um processo experimental, fixando, na superfície pintada, o que pode “vir a ser visível” e, com isso, conferindo-se sentidos outros ao que o olho vivenciou.
Há, na produção de Luiz Zerbini, outros aspectos. Não se percebe, no uso e apropriação de elementos do mundo, a energia da perda, do nostálgico de um tempo pretérito. O que vemos se configura, muito mais, como um capote, um jump, uma viagem, de certo modo, lisérgica, que se revela em transformações. A vegetação cresce selvagem, em superposições que nos ampliam o sentido de ruína, do não domesticado, mais natureza do que paisagem. A apropriação de padrões e módulos arquitetônicos, cobogós, muxarabis planifica a visão, bidimensionaliza o desenho. Mas, concomitantemente, a mesma superposição traz, para o ambiente, um lugar impossível, a seu modo onírico. Nos sonhos, dirá Didi-Huberman, “rompe-se a caixa da representação... onde a semelhança trabalha, joga, se inverte e se dessemelha... onde figurar equivale a desfigurar”. [5] Pensa-se, assim, o tecido da representação e sua rasgadura, a função e seu desfuncionamento.
A aplicação de planos e geometrias coloca a produção de Luiz Zerbini em consonância com as questões do ornamento. Fruto de objetivos antifuncionais da sociedade, o ornamento guarda potências desestruturantes e eróticas. Para além da edificação de colunas de sustentação, as culturas se dedicam a volutas, excessos, apêndices, “dispêndios”, nos termos de Georges Bataille. Em Zerbini, o excesso de ornamentos, que já nasce do excesso de gestos repetidos, ativa, a partir da intensidade do uso, vinculações ampliadas na cultura e na sociedade: pinturas corporais indígenas, rendas, grades, redes. Porém, a mesma intensidade de uso nos incapacita, ao olharmos a produção do artista, o reconhecimento literal e concatenado das mensagens. Não estamos diante de uma aldeia, nem tampouco reconhecemos casas modernistas. Ao contrário, os signos se adensam em pedaços de varandas, sacadas, que, de modo enigmático e metamorfoseado, não nos deixam adentrar a casa. Uma onda do mar vira cobogó que se transforma no oco de uma caixa de som. A onda se desfaz, como fenômeno natural, em padrões ornamentais de circunferências ritmadas que poderiam gerar gravuras de Hokusai ou composições de Sérgio Camargo. Partidos e padrões de várias épocas fazem do uso do ornamento, em Zerbini, uma lição. De início, são as vicissitudes do olhar que coleta informações de um caminhante, um turista. Tudo é possível de acontecer. Porém, a mixagem de tantas informações nos transporta a uma espécie de sonho em que as coisas, no instante em que se formam, nos escapam, evanescentes. A mixagem advém de um mundo pós-produzido, onde produção e consumo se aliam, nos termos de Nicolas Bourriaud, atribuindo “valor positivo ao remake”, articulando usos, relacionado formas, “em lugar da heróica busca do inédito”. [6] Por outro viés, Zerbini atenta ao gesto espontâneo e irrefletido dos que não se rendem ao simples mecanismo da revolução industrial e midiática (ou das normas construtivas), mas que são prenhes da consciência desse mundo. E, com isso, não há contentamento em olhar de frente o mundo pré-codificado pelo anúncio, nas cores dos reclames ou nos supostos paraísos artificiais da pop art. Antes, vemos a irregularidade das manufaturas, madeiras amarradas com cipós, como no banco para portão, obra-prima de Lina Bo Bardi.
Na produção de Luiz Zerbini, percebemos frestas, fissuras, rachaduras que ao aparecerem possibilitam profundidades e rasgaduras no quadro. Em vez de pontos de fuga explicitados, Zerbini, como Pancetti, prefere as vagas e quase monocromáticas divisões horizontais. O ornamento, justamente aí, servirá como anteparo, localizando-se em planos diversos. É nas frestas que se capacita a observação da profundidade dos trabalhos. A fresta deixada pela ausência de um slide, pela rachadura de uma parede de azulejos, pelo despregado de um vidrotil, pela falta de um falante em uma caixa de som.
Na produção recente das gravuras, Zerbini encontra outras possibilidades de lidar com a natureza e com a paisagem. As embaúbas e os abricós-de-macaco, recorrentes em suas pinturas, agora se presentificam, pois o artista os usa não como representação, mas diretamente, para sensibilizar a superfície dos papéis. Zerbini aplica a própria folha das plantas para gravar o papel em jogos de cheios e vazios, pretos e brancos, que parecem, de outro modo, deixar vestígios reais, nódoas, seivas, entrecascas explodindo em cores e substâncias. A gravura, assim, também configura uma condição de rasgar o mundo em pedaços, gesto recorrente na produção do artista, pois explora-se a incompletude da representação, o deslocamento para as bordas da página, como se angulássemos a câmera fotográfica apontando-a para os intervalos.
O ateliê, outro lugar de fixação e coleta de referências na produção do artista, pode se metaforizar em mesas, armários e bases, como em um amplo gabinete de curiosidades. Desde Observação e reflexão, obra participante da exposição O Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli (2008), Luiz Zerbini ativa um procedimento que transforma a ideia de gabinete científico, onde vemos espécies de plantas, ossos, pedras em grandes mesas repletas de vidros como tubos de ensaio. O sentido de coleta e pesquisa, o interesse em destacar a beleza do detalhamento das plantas, a estranheza de perceber o desenho de uma ossatura se tornam protagonistas nas estruturas expositoras. De modo análogo, Zerbini usa óleos que expandem a visão. A mesa-gabinete-ateliê se ampliara, incorporando, em 2012, muitos elementos. Para além de componentes naturais, o artista adensou características pictóricas que se expandiram em padrões, areias, vidros que geravam reflexos, alterando as cores de planos superpostos. Com isso, a condição da pintura se faz ainda mais presente, como se a observássemos desde cima.
Para esta exposição no Santander Cultural, o artista nos propõe uma ampliação desta mesa. Luiz Zerbini, agora, condensa Observação e reflexão (2008), Amor (2012), Onda (2014) e Paisagemnaturezamortaretrato (as colunas caíram do céu) (2008). Esta última obra configurou um momento de experimentação, no qual o artista ocupara o Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, pintando de cores fluorescentes as colunas da sala e realizando três pinturas com tintas que espelhavam, pelo alto brilho, quem estivesse diante da obra. Nos formatos, Zerbini trabalhou com a escala do retrato, da paisagem e da natureza-morta. Na mesa apresentada nesta exposição, o artista parte dos efeitos imagéticos da pintura Onda para, agora, recortá-la de modo tridimensional. As bordas das estruturas da mesa são coloridas, como no site specific do Maria Antonia.
Nos colocamos a imaginar, frente ao exposto, que rasgar a pintura é tarefa seminal na produção de Luiz Zerbini. Mais do que isso, percebemos que, diante da imagem, a evanescência resulta de visões de mundo que aliam o estado de espírito da alegria de viver à busca por lapsos de memória, em que não se condicionam os contornos precisos das coisas e dos acontecimentos, num jogo entre observar a paisagem e seus diversos anteparos. Assim, os sintomas do mundo vêm “se aninhar em nossos próprios olhos, nos desnudam, nos rasgam, nos colocam em questão, interroga nossa própria capacidade de esquecimento”. [7]
1 Cauquelin, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 15.
2 Didi-Huberman, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013.
3 Idem, p. 185.
4 Ibidem.
5 Idem, p. 190.
6 Bourriaud, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 45.
7 Didi-Huberman, op. cit., p. 208.
Zerbini, Barrão, Albano no Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 24/05/2017 a 16/07/2017:
Luiz Zerbini, curadoria Marcelo Campos
Albano Afonso, curadoria Douglas de Freitas
Barrão, curadoria Felipe Scovino
Barrão por Felipe Scovino
Barrão
FELIPE SCOVINO
O trabalho de Barrão nasce em meio a uma nova conjuntura política do país. No início dos anos 1980, o Brasil estava imerso numa atmosfera de expectativa e esperança com a redemocratização. Nesse ínterim, a cultura assiste à chegada do rock, da new wave, dos grandes festivais de rock, da poesia marginal fruto da geração mimeógrafo e em especial, no Rio de Janeiro, à criação do Circo Voador e do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, duas importantes referências para o trabalho de Barrão, assim como de Luiz Zerbini. Eram duas oportunidades de trocas com artistas de todos os segmentos (teatro, música, artes plásticas, design) que criaram uma pulsão viva e marcante na cidade. Todos esses campos estéticos fizeram parte da formação de Barrão, um artista autodidata que chegou a frequentar algumas aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no final dos anos 1970. Aliás, este espaço sediou uma das mais icônicas exposições daquela década, Como Vai Você, Geração 80?, da qual Barrão também participou. Observando de forma retrospectiva, a participação do artista nesta exposição é importante para desmistificarmos a ideia de que foi uma mostra puramente de pintura, já que a obra que exibiu era formada por duas televisões que, colocadas uma defronte à outra, como o artista mesmo diz, “conversavam” tendo as suas telas pintadas em algumas partes para que uma determinada área ficasse “livre” de tinta e o público pudesse visualizar a ação que ali se realizava. Esta obra é índice de algo que o acompanhará ao longo de sua trajetória: o interesse por separar áreas, unir partes de diferentes fontes e elaborar uma obra composta por fragmentos.
Barrão claramente faz uso de objetos da cultura de massa (televisões, rádios, lavadoras, geladeiras, fogões, entre outros utensílios da vida moderna), especialmente nos primeiros vinte anos de sua trajetória, mas, ao contrário dos artistas da Pop Art, ele não tem interesse em explorar um acento dramático ou político desse contexto. Não interessa ao artista explorar uma crítica ao consumo ou ao mercado, mas demarcar um campo muito próprio, o da irreverência e do humor.
Sua carreira artística se dividiu em projetos colaborativos seja com outros artistas plásticos (é o caso do extinto Seis Mãos – em parceria com Alexandre Dacosta e Ricardo Basbaum, cujas atividades se deram ao longo dos anos 1980 – e, desde 1995, o grupo musical e performático Chelpa Ferro, encaminhando-se em 2017 para o sétimo disco), seja em trabalhos como designer, desenvolvendo capas de disco e livro (Barrão desenhou capas para discos dos Paralamas do Sucesso, Lenine, Herbert Vianna, entre outros, e realizou projeto gráfico para livros, como foi o caso de Letra elétrika, publicado em 1994 por Chacal, um dos expoentes da geração mimeógrafo). Já a sua produção artística foi marcada até o final da década de 1990 por um uso bastante acentuado de aparelhos tecnológicos e objetos domésticos e, no começo dos anos 2000, pela série de obras tendo a louça como material e meio de produção. Percebam que, em todas essas etapas, o artista sempre fez uso de uma colagem, seja na colaboração com outros artistas; na concepção estética de seus projetos voltados para o design nos quais a união de fragmentos dispersos ou encontros (aparentemente) aleatórios de imagens se fundiam, realizando um trabalho coeso e direto para aquele projeto musical ou literário; ou, sobretudo, a colagem ou hibridismo que se acentuam em seu trabalho com os objetos tridimensionais.
Há em todo esse universo de Barrão uma exposição do excesso, do cômico, mas também de um equilíbrio precário ou uma instabilidade provisória. É o caso de Árvore do viajante (2017), um dos novos projetos apresentados nesta mostra. Um pequeno tronco sustenta, em todas as suas ramificações, recipientes, com exceção de um desses galhos, onde se encontra uma penca de gorilas presos uns aos outros. É de se destacar que a cerâmica nessa exposição deu lugar ao molde em gesso para se chegar à resina epóxi, material que tem sido utilizado pelo artista há cerca de três anos, e eventualmente ao esmalte sintético. A forma como distribui o peso nessa obra nos leva a acreditar que tudo está por desmoronar. Esperamos por um desastre iminente. E é esse contraste – entre uma coesão dessas formas múltiplas, advindas das mais diversas origens, histórias, materiais e culturas, e um estilhaçamento a qualquer minuto por meio de uma queda ou partilha dessa imbricada construção – a maior força do trabalho. Em Mesa (2017), o empilhamento de um pequeno barril, um vaso, a figura de um anão, um galho, uma luminária, entre outros materiais em resina, colocados sobre uma mesa, da qual um dos pés também é “substituído” pelo calço feito por uma caixa de som que se apoia em um elefante ornamental, observamos a continuidade dessa pesquisa cuidadosa e atenta do artista. A obra não é simplesmente um acúmulo de partes fraturadas provenientes dos mais distintos objetos. Barrão, como um arqueólogo, frequenta feiras, antiquários, lojas especializadas, bazares, sempre à procura daquela peça que falta, a que se encaixará perfeitamente na composição que está criando. Vemos, portanto, esse interesse de Barrão muito próximo ao do escultor, que tem o volume, a escala e o espaço como meios de elaboração e experimenta os mais diversos materiais em busca de uma linguagem precisa que emita os regimes de discursividade que procura, ou do pintor, preocupado com questões como cor, plano, perspectiva e textura.
Para além da camada cômica, da exposição de uma estrutura formada por falhas e com a sensação de desabar, há um método e tempo próprios para a elaboração de suas obras. Em muitos casos, a obra nasce por meio de desenhos que ordenam o tipo de material, o seu formato, a maneira como cada peça se conectará a outra e as dimensões. Contudo, é no fazer que esse projeto ganha outra visibilidade, pois muitas vezes o arremate final da peça dependerá de uma louça ainda a ser encontrada. Aparecem desvios e caminhos próprios que não foram elaborados previamente pelo artista. A intuição e o improviso se fazem com muito mais força do que a decisão antecipada. Outro ponto que me chama a atenção no seu trabalho é uma completa falta de hierarquia quanto à origem dessas peças. Lado a lado, coladas umas às outras, estão origens das mais diversas fontes econômicas e culturais. Uma caneca de cerveja encontrada em um mercado popular passa a fazer parte do mesmo corpo que já contém parte de um elefante encontrado em alguma loja fora do país, que tem um preço relativamente maior. Passam a viver juntos, convivendo com suas diferenças, até porque agora já se tornaram outra coisa.
Em Coluna de pneus (1990/2017), Barrão concebe um empreendimento escultórico ao dispor de forma verticalizada três pneus de trator em resina. Tem-se uma imagem que se assemelha ao estado de atenção de um castelo de cartas, pois os nossos sentidos são colocados em alerta devido à qualidade transitória ou impermanente de sustentação para essa estrutura. Ademais, essa obra se transforma em impedimento ao corpo, mas não ao olhar. Ela incomoda, não permite que o espectador atravesse o espaço confortavelmente, pois um elemento de tensão é colocado diante de nós. É preciso circundá-la atentamente. Percebam que o elemento vazado dos pneus expõe o “esqueleto” da escultura. O seu volume passa a ser o ar ou o entorno que é capturado para dentro da sua estrutura. Esta obra expõe uma particularidade. Numa entrevista, Tunga pergunta a Barrão sobre a questão do avesso em sua obra, a estrutura interna e não visível, o “momento quando a forma se fecha, ou do momento em que ela deve ficar aberta para você ver dentro”. E Barrão responde que “no interior da escultura tem uma estrutura de metal que ajuda na sustentação dela e várias sobras das peças de louça que acabam ficando para dentro (...) [A estrutura] se forma de maneira acidental (...). É como se fosse a alma do trabalho. Uma vez eu levei algumas esculturas para serem radiografadas. Fiquei curioso pelo que tinha sido construído lá dentro”. [1] Coluna de pneus traz essa circunstância de uma maneira bem pontual e revela no tempo presente esse interesse tardio do artista em revelar a parte interna ou o organismo de suas obras.
Rádio território e Urca (ambos de 2016), entre outros objetos recentemente produzidos pelo artista, estão dispostos pelo espaço do Santander.
Este conjunto de obras realça o caráter especial de Barrão em classificar e reclassificar as ordens, usos e visões de um mundo cartesiano. O caráter de improviso, mesmo laboratorial, no encaixe dos objetos que comporão a obra, nas partes que são descartadas para que o corpo escolhido seja anexado, colado, justaposto a outro, tem um dado substancial de sadismo e ludismo. Os cortes, quebras e rupturas dos quais lança mão se assemelham às pesquisas sobre som, música e ruído que o Chelpa Ferro produz. Ao sobrepor faixas de diferentes músicas, fazer uso de ruídos de objetos domésticos nas músicas que criam e ter um caráter totalmente de improviso nas suas apresentações ao vivo, sem perder a linha conceitual de trabalho, Chelpa e o trabalho solo de Barrão se misturam indefinidamente. Rádio território é um exemplo claro dessa presença. Mesmo “desligado”, o aparelho transmissor de sons que dá título à obra continua emitindo imagens associativas, constituindo territórios, ou melhor, um rizoma, isto é, uma raiz com crescimento diferenciado, horizontalizado, polimorfo. Uma rede de sentidos que não possui direção clara ou definida. Suas linhas de fuga escapam da tentativa totalizadora e fazem contato com outras raízes, seguem outras direções. Não é uma forma fechada, não há ligação definitiva. São apenas linhas de intensidade.
Aqui (2016) continua exaltando essa atmosfera extrovertida do trabalho. A obra é composta por engradados, recipientes, vasos e outros suportes empilhados tendo no cume uma bandeira perfurada. Eis o território de Barrão. Um lugar ficcional, construído por detalhes, minúcias, partes que compõem um todo. A experiência de adentrar esse mundo se dá de forma vagarosa, pois é preciso ver, analisar, sentir, esmiuçar um pensamento que demanda concentração e tempo. Não é possível perceber as obras numa olhadela rápida, mas compreender no seu próprio ritmo, na construção, portanto, de um tempo-duração subjetivo, o que está diante de nossos olhos. Esse tempo nos leva a decodificar os fragmentos, acessar as nossas memórias de modo a criar estratégias de compreensão e identificar e reconhecer nossas próprias percepções em relação a essas obras.
Barrão subverte a função de sua coleção de objetos. Não se tem mais o uso que fazíamos daquele objeto; agora, ele pertence ao mundo da fabricação de utopias, fabulações e devaneios. A atmosfera kitsch do anão de jardim ou da caneca decorada de um time de futebol ganha uma nova escala, dimensão e sentido na obra de Barrão. Culturas, memórias e histórias são criadas e mixadas a partir da junção e colagem de objetos que possuem as mais diversas origens. As funções utilitárias e de decoração desses objetos são apagadas em detrimento de uma atmosfera que reverbera contradições, fraturas e incentiva uma constante transformação do nosso olhar frente a um mundo ordenado e cada vez menos afeito às diferenças.
1 BARRÃO (org.). Barrão. Rio de Janeiro: Automatica, 2015. p. 107.
Zerbini, Barrão, Albano no Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 24/05/2017 a 16/07/2017:
Barrão, curadoria Felipe Scovino
Albano Afonso, curadoria Douglas de Freitas
Luiz Zerbini, curadoria Marcelo Campos
Luz encarnada em corpo / corpo evanescido em luz por Douglas de Freitas
Luz encarnada em corpo / corpo evanescido em luz
DOUGLAS DE FREITAS
O chiaroscuro, que nasce na pintura renascentista do século XV, é uma estratégia para a representação dos contornos. Com ela, os objetos e figuras das pinturas deixam de ter contornos lineares, passando a ser definidos por imersão em luz ou sombra.
Albano Afonso produz em suas obras uma reflexão sobre a tradição da história da arte. Seus trabalhos partem dos gêneros e temáticas provenientes principalmente da história da pintura, em que, não por coincidência, a questão “luz e sombra” se apresenta como elemento central. São luz e sombra, ou o chiaroscuro, que conferem volumetria às pinturas de natureza-morta, dramaticidade às pinturas históricas, mistério e melancolia às pinturas de paisagem, poder e força aos retratos e autorretratos. O princípio primário de fidelidade na captura do real aos poucos passou a dar lugar a estratégias de expressão; trazer à luz ou deixar-se esvair na escuridão passa a ser ferramenta compositiva conceitual na pintura.
Junta-se, a esse princípio, a fotografia como técnica, meio e pensamento. Com a invenção da fotografia, o real pode ser captado pela imagem fotográfica, e a pintura se liberta de sua função primeira, que era representar, imortalizar uma situação ou pessoa, podendo, e precisando, se reinventar. Vale lembrar que o processo fotográfico se faz por luz. É a luz rebatida nos objetos que, através da lente, marca o filme; e, posteriormente, é também a luz que atravessa o filme e grava a imagem no papel.
Essa conversão de luz em imagem é o que confere certa fantasmagoria às fotografias. A ideia de reprodução fiel feita por uma máquina capaz de conferir materialidade a uma imagem, que captura um momento específico, aprisiona um instante para que ele permaneça ali como memória daquela existência, é assombrosa se olharmos além da naturalidade com a qual encaramos as imagens hoje, em um mundo convertido e mediado por elas. A fotografia é a possibilidade de reviver um momento passado, mesmo que parcialmente; de trazer à luz memórias que estavam imersas na escuridão do tempo; de, até certo ponto, presentificar alguém ou algo que já não está mais presente.
A ideia de binômio se apresenta; afinal, luz e sombra, apesar de opostas, andam sempre ligadas e são inseparáveis. A existência de uma depende da ausência da outra, ou de uma constante batalha de existência compartilhada. Para além desse princípio físico, a ideia de oposição e dependência entre luz e sombra se amplia como metáfora estabelecida, também pela tradição, para diversos outros binômios como bem e mal, esclarecido e misterioso, sagrado e profano, vida e morte, entre tantos outros.
As imagens, instalações e objetos de Albano Afonso estão irradiados por essas ideias. Os trabalhos produzidos pelo artista constantemente fazem menção a pinturas consagradas pela história da arte; ou, se não mencionam diretamente, são compostos a partir de elementos que deixam claro a referência a elas.
Suas esculturas são naturezas-mortas de luz. Em Natureza-morta de 2017, ossadas, frutas e jarros revestidos de espelhos perdem a definição clara que duas matérias lhes conferem para refletir luz. Perdem também identidade, viram apenas formas ausentes de alma. A matéria viva suscetível às ações do tempo está cristalizada e agora é perene. Enclausurados em uma caixa de vidro, esses objetos estão ao alcance da luz e da visão, mas indisponíveis ao toque. Residem ali, eternizados, porém mortos.
Em O lobo e os pássaros, as peças que formam a escultura são mãos em diferentes posições. Fundidas em bronze, negam a luminescência das peças espelhadas; são opacas e densas. Banhadas por luz, projetam-se no espaço encenando a presença de pássaros e um lobo. Constroem a mágica de um teatro de sombras, onde uma forma é convertida em outra, e a matéria se desconstrói para revelar uma cena onírica.
Esse cenário onírico de luz – que parece viver entre momentos reais, o universo dos sonhos e as próprias referências históricas da arte – se amplifica ou se reduz em escala, mas é uma constante no trabalho.
Ambientes imersos numa atmosfera construída por projeção e refração, onde cristais replicam ou refratam a luz se atravessam as obras. Em Anatomia da luz nº 3, galhos de árvores se juntam a cristais e ossos espelhados. As formas se misturam e se complementam, gerando outras formas. Suspensas, essas peças se movem delicadamente, rebatendo a luz nelas projetada. Surge então um espaço em constante movimento, de embate entre formas definitivas e provisórias. As peças que compõem a obra permanecem as mesmas, mas a movimentação delas rebate luzes inconstantes, que dançam pelo espaço.
Brilho, reflexo e refração se tornam objeto de estudo e assunto das obras. Na série Cristalização da paisagem, fotografias de paisagens, entre parques, matas fechadas e imagens históricas, se cristalizam. São imagens trabalhadas digitalmente pelo artista para se converterem em geometria e cor. É como se a luz rebatida pela natureza ganhasse corpo e se concretizasse em massas de cristais coloridos, que por vezes se apresentam sutilmente; mas, em Jardim Botânico, Rio de Janeiro, essa massa cresce continuamente até que toma toda a imagem, como um nevoeiro intenso, ou uma cegueira cromática. Não há mais perspectiva possível ou ilusão de acesso. A paisagem antes permeável agora é matéria sólida.
Imagens de luzes e de brilhos e a própria paleta luminosa característica do dia e da noite, novamente binômios, são acompanhadas de composições de naturezas-mortas de objetos espelhados nessa série de quatro fotografias produzidas entre 2006 e 2007. Natureza-morta com floresta e Natureza-morta com céu se apresentam diurnas, com tons ensolarados. Natureza-morta com estrelas e Natureza-morta com luzes são a escuridão e as luzes que ela aceita, ou que inevitavelmente carrega com ela. Aqui, assim como em algumas esculturas, se vê parcialmente o artista. Se, nas esculturas, a presença do artista está convertida em partes do corpo fundidas em bronze, ausentes de vida, mas moldadas a partir do artista, nessas imagens surgem traços fantasmagóricos de suas mãos manipulando esses objetos espelhados. É essa a alquimia que Albano opera: luz e corpo se convertem em matéria sólida e opaca, e matéria sólida e opaca se converte em imaterialidade e luz.
Zerbini, Barrão, Albano no Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 24/05/2017 a 16/07/2017:
Albano Afonso, curadoria Douglas de Freitas
Barrão, curadoria Felipe Scovino
Luiz Zerbini, curadoria Marcelo Campos
maio 17, 2017
Dirnei Prates - Até onde vai o extenso por Paula Ramos
Dirnei Prates - Até onde vai o extenso
PAULA RAMOS
Como elaborar o luto pelo falecimento de um ente querido? A pergunta não tem pretensões retóricas, e todos nós sabemos que, mais cedo ou mais tarde, seremos chamados a fazê-lo. Processo de reconstrução e reorganização diante da morte, o luto constitui um desafio emocional e cognitivo, com o qual o enlutado precisa lidar. Em Até onde vai o extenso, Dirnei Prates nos oferece imagens que, em grande medida, representam a sua forma de purgar a perda. Silenciosas, elas condensam percepções sobre a fluidez, a passagem do tempo, os ciclos da vida, a transitoriedade.
A bem da verdade, esses temas o acompanham há vários anos, manifestando-se, inclusive, nos procedimentos artísticos adotados. Sua poética, fruto de uma admirável pesquisa em vídeo e fotografia, geralmente tem como base a apropriação de imagens veiculadas em jornais, exibidas em filmes, coletadas em sites ou mesmo subtraídas de fotografias de terceiros. Explorando cenários e narrativas submersas e operando com fragmentos e recursos de montagem, Dirnei submete a imagem a várias etapas – reprodução, ampliação, impressão e nova reprodução –, dilatando-a no espaço e, com frequência, também no tempo. Essas camadas de edição terminam por agir como filtros, que vão borrando os limites, o foco, a nitidez. Tensionada, a imagem pode chegar às raias da abstração e do apagamento, como se verifica em Zona de neutralidade (2011), Paisagens populares (2012) e Noite barroca (2015), apenas para citar séries mais recentes e emblemáticas em sua trajetória.
Nos trabalhos atuais, não obstante identifiquemos questões análogas, o desenvolvimento foi distinto, calcado na deambulação de Dirnei e em seu contato com a natureza e seus fluxos. Percorrendo a região da Barra da Lagoa, no litoral de Santa Catarina, ele foi registrando paisagens, horizontes, a luz incidindo nas árvores. Nesse processo, se não houve apropriação ou investimento maior em edição, manteve-se, por outro lado, a negociação entre o olho do artista e o dispositivo da máquina. Observemos.
As fotografias em preto e branco da série Invisível, por exemplo, resultam do uso de um filtro infravermelho, que escurece o que se vê pela lente e amortece os contrastes. Assim, embora tivesse consciência do que estava fotografando, Dirnei não dispunha de controle de foco, luminosidade ou mesmo enquadramento. Enodoadas e difusas, na paleta plúmbea e distante, suas paisagens afloram etéreas, fantasmagóricas, quase lunares. Diante delas, apresentadas em média e grande dimensão, nosso encantamento tende a repousar nos cenários oníricos e na textura aveludada e tácita. Entretanto, sempre há mais. Se observarmos com diligência, veremos que muitas dessas imagens aglutinam, pelo menos, dois tempos: o dos morros, ao longe, remetendo ao que é sólido e perene, e o da vegetação, no primeiro plano, com seus ciclos de crescimento, floração e morte.
Reflexão similar ecoa em Vento, conjunto de fotografias instantâneas do tipo “Polaroid”, marcado pela presença de dunas, plantas, vistas e, claro, pelo intervalo entre as imagens, “moldura branca” que paradoxalmente aproxima, distancia e testemunha, senão os lugares, os tempos diversos. Justapondo registros da natureza orientados pelos mesmos interesses, Dirnei propõe paisagens possíveis, contando com aquilo que o historiador da arte Ernst Gombrich chamou de “a parte do espectador”, ou seja, a combinação entre “reconhecimento” e “rememoração”, a partir da qual construímos uma visão coerente da imagem, de acordo com nossas experiências visuais. A série, uma vez mais, é atravessada por uma negociação com o substrato tecnológico: o filme utilizado nesse ensaio (Impossible 600 PB) vem de um lote que, por defeito de fábrica, oferece revelação e fixação instáveis, fazendo com que a imagem externe uma lenta, porém explícita, evanescência. Ora, não é difícil imaginar que virá o momento em que restarão, quando muito, vestígios, lembrando que nem a fotografia é capaz de reter o tempo, mesmo que de modo metafórico. Novo desdobramento.
O jogo de montagem presente em Vento é a tônica de Silente, livro que articula imagens de pedras e pássaros, terra e céu, peso e leveza. De formato diferenciado, o volume oferece páginas encadeadas num “horizonte vivo” e cambiante ao espectador, à medida que é manuseado. O decurso, portanto, é contínuo, e é essa compreensão que também dá título aos dois vídeos: Assim por diante I e II, ambos registrados em fita VHS, entre 2005 e 2006, e depois transpostos e editados para o meio digital, em 2016. O primeiro nos revela um morro coberto de vegetação, cuja grandiosidade vai se dissipando devido ao desfile de nuvens e à fina garoa – o efêmero, destarte, afetando nossa percepção do constante. Já o segundo exibe o frágil (mas perseverante) equilíbrio de um pássaro no alto de um galho, exposto à ação impiedosa do vento: sua resistência é testada sem trégua, até o momento em que sai de cena, dando lugar a outro pássaro, que recomeça o ciclo.
Variação a partir de Guimarães Rosa, o título da mostra sugere algo afirmativo, seguro, categórico. Ledo engano. Como as imagens atestam, em seus paradoxos, tensões e desassossegos, o extenso se dilata, irrompe, surpreende. Tal como na vida.
Paula Ramos
Historiadora e crítica de arte, professora do Instituto de Artes da UFRGS
Dirnei Prates - Até onde vai o extenso, Galeria Gestual, Porto Alegre, RS - 22/05/2017 a 23/06/2017
maio 16, 2017
Sombras imaginárias Elas vêm pelo caminho imaginário por Felipe Mujica
Sombras imaginárias
Elas vêm pelo caminho imaginário
I-
O título da exposição foi inspirado no poema "O Homem Imaginário", de Nicanor Parra (1914), físico e matemático chileno, que se considerava um "antipoeta". A exposição é composta por seis Cortinas, uma instalação de impressões em serigrafia na parede, um livro do artista, um vídeo de um caderno de desenhos e, talvez, algo mais.
II-
Eu chamo minhas peças de tecido de Cortinas porque quero direcionar a conversa para a domesticidade da sua produção. É fácil chamá-las de bandeiras ou banners, mas para mim essas categorizações são muito carregadas de uma mentalidade política específica e de expectativas políticas. Estou interessado em como estas peças são feitas: tecido cortado, dobrado, costurado, alinhavado, e às vezes bordado à mão, usando técnicas mais caseiras. É um nome que as define como humildes atos de resistência.
Seus desenhos estão relacionados ao meu interesse pela abstração geométrica, história e transformação, da Rússia à Europa e Américas, e também pelo desenvolvimento da dicotomia - em toda essa história - entre suas possibilidades formais, sociais e políticas. Gostaria mesmo de ir além e também considerar as artes baseadas em geometria e os desenhos dos povos indígenas das Américas, que adicionam uma outra possível camada à obra. Os materiais escolhidos - tecidos e linhas - e nesta exposição em particular também os bordados feitos à mão pelas Bordadeiras do Jardim Conceição, fazem da obra um painel bidimensional, assim como uma pintura, mas preparado para receber e projetar informações que uma pintura "normal" não consegue. As cortinas ficam suspensas no espaço, flutuam, e se movem às vezes... são "não pinturas" que, por vezes, são quase arquitetura. O tecido tem um peso, uma textura, uma sensação... O desenho bordado contém horas de energia das mãos – e dos corpos – das Bordadeiras, com um ponto em particular, que é um desenho em si, decidido e executado por elas. Estes pequenos detalhes são os elementos pitorescos das Cortinas. Eles são ao mesmo tempo específicos e abertos.
III-
Cortinas como sombras: Elas podem receber sombras e criá-las.
Elas contêm menos informações possíveis, mas estão abertas a receber todas as informações possíveis, das pessoais até as sociopolíticas.
Cortinas como sombras > às vezes o sol as toca, atingindo sua superfície, transformando suas cores em algo vivo, algo que projeta energia.
Cortinas como sombras ||||| Elas podem ser movimentadas pelo visitante da exposição, dinamizando-as em relação a outras cortinas e outros espaços. Elas também podem ser fixadas em apenas um ponto, e neste caso, elas se movimentam sozinhas, ou melhor, com a ajuda da corrente de ar, das pessoas que circulam ou de uma brisa externa.
Cortinas como sombras = da arquitetura temporária, de desenhos, da decoração, da pintura monocromática, da abstração geométrica, da participação.
Cortinas como sombras <<< da produção coletiva e aberta, da máquina que costura e da mão que alinhava.
Cortinas como sombras... colocados dentro ou fora, limitadas pelo espaço e, ao mesmo tempo, criando espaço.
Elas são intrinsecamente flexíveis, ambíguas, mas generosas.
Cortinas como sombras – de ideias utópicas, as suas ou de outras pessoas.
IV-
As impressões em serigrafia são todas de imagens apropriadas. Eu reutilizo, modifico, reorganizo e imprimo novamente desenhos e gravuras anteriores, principalmente das décadas de 1960 e 1970, de fontes como cartazes políticos latino-americanos, imagens psicodélicas, desenhos gráficos japoneses, desenhos sem direitos autorais, além de capas de livros variados, de ficção científica a matemática e literatura. Desafiando as noções de localidade, estas imagens se sobrepõem e, às vezes, emprestam ou simplesmente roubam umas às outras: imagens psicodélicas ou desenhos de arte óptica podem ser vistos em cartazes políticos chilenos, anúncios japoneses e simultaneamente encontrados em bancos de imagens livres de direitos autorais, na capa de um romance ou ensaio sobre teorias econômicas. Há uma mobilidade e transmutação, entre o alto e o baixo, entre diferentes geografias e contextos. As imagens são unidas por uma linguagem visual formal e universal que está ligada aos sistemas de produção dos tempos; daí sua natureza gráfica. Elas também compartilham o contexto histórico das décadas de 1960 e 1970, quando surgiram os movimentos comunais, coletivos, feministas e de luta pelos direitos civis, de liberação sexual, pedagogias experimentais e contracultura. Minhas impressões em serigrafia apresentam novas leituras - e conexões - destas referências historicamente carregadas, mas de certa forma desarmadas e confusas, criando imagens em estado congelado, novo, mas de alguma forma suspensas. Instaladas em grandes grupos não enquadrados diretamente na parede, este sistema de apresentação pretende fazer com que a obra seja lida em relação ao cartaz, como uma ferramenta de comunicação, com todas as suas implicações políticas, sociais, comerciais, decorativas, propagandísticas, etc. De certa forma, esta é uma maneira de manter o trabalho fiel à "origem".
V-
O terceiro componente da exposição é um livro do artista intitulado Linea de hormigas (Linha de Formigas), uma coleção de imagens de uma série de esculturas produzidas entre 2007 e 2015. Algumas destas esculturas foram feitas por mim, mas a maioria foi produzida com a colaboração de outros artistas, ou seguindo as instruções de outros artistas, ou ainda por outros artistas que participaram de uma oficina. Utilizando sempre os mesmos dois materiais (vigas de madeira finas e fita isolante), as peças modernistas frágeis e efêmeras se tornaram uma outra forma de interação, dentro e fora do circuito da arte, onde a obra transita para trás e para frente, para cima e para baixo, desde o trabalho individual até o uso pedagógico da mesma ideia (como um caleidoscópio). Como um complemento e expansão do livro e da exposição, uma peça gráfica contendo um diálogo/conversa/jogo com a curadora e educadora Sofia Olascoaga será incluída nesta publicação. O livro faz parte de um projeto de edição "caseiro" - sem nome ou título - em que tenho trabalhado desde 2009 com a colaboração de Johanna Unzueta, também artista e minha parceira. Seguindo um modelo de economia afetuosa, os livros que editamos, projetados e imprimimos são uma forma de distribuir ideias e histórias, tanto as nossas quanto as de outros artistas e pessoas que respeitamos e admiramos. Com foco principal na arte contemporânea, nossos livros também trataram de temas como música, colaboração, educação, poesia e arquitetura experimental.
Linea de hormigas (Linha de Formigas), 2017
Edição de 50, 28 x 20 cm, vertical
Interior, 92 páginas, 84 páginas de impressão em risografia / 8 páginas de impressão digital colorida
Capa, capa impressa em serigrafia, encadernação perfeita com orelhas
Impresso por Keegan Cooke / Circadian Press, Brooklyn, NY
VI-
O vídeo projetado é intitulado Notebook #3 (Huecos) (Caderno nº 3 (Ecos)) e foi produzido em 2015. O vídeo mostra página por página de um caderno, com as imagens de uma série de cortinas menores feitas com desenhos e recortes. Mais tarde, elas se tornaram "janelas", que colocam os desenhos em sobreposição, parecendo mais do que realmente são. Vários destes desenhos foram usados como base para as cortinas menores - não pensando nesta exposição - que ficam pendurados na parede em uma exibição que está entre um banner e uma pintura móvel. O vídeo é tanto um documentário quanto uma obra por si só.
Felipe Mujica
maio 14, 2017
Porto Alegre, 14 de setembro de 2074 por Bernardo José de Souza
Porto Alegre, 14 de setembro de 2074.
Àquela altura do tempo, a triste notícia de que não mais poderíamos viver em direto contato com o mundo exterior nos havia pego a todos de surpresa, pulverizando na atmosfera nociva uma insuportável carga de pessimismo e derrota: a natureza passara a representar uma ameaça letal à nossa existência,. Parecia estar, por fim, decretado o definitivo apagar das luzes de nossa precária civilização.
Em compasso de desastre, era dada por perdida nossa inglória batalha contra o mundo tal qual nos havíamos acostumado a percebê-lo, povoado por homens que exercitavam com vigor e astúcia seus inafastáveis desejos de controlar toda e qualquer espécie de vida, de brincar de Deus, exercitando sem medidas uma onipotência que jamais lhe havia sido outorgada.
Experimentávamos um inexorável, embora inesperado, brutal revide das forças naturais e, assim sendo, não mais à espécie humana deveria ser atribuído o papel de inclemente algoz; a partir dali, estaríamos libertos deste fardo maior, o de havermos exaurido nossa fonte de vida e condenado à morte nossa própria mãe. Diante dos fatos imponderáveis, o exercício da crueldade aparentemente passara a ser obra da natureza, do destino, resultado de sua fúria antes jamais vista, a qual prometia varrer para sempre homens e mulheres da face da terra.
Foi por isso que decidimos nos refugiar, encontrar abrigo em um sistema artificial de subsistência, um espaço de isolamento, de pesquisa e mera contemplação - um ambiente altamente controlado, refratário a experiências reais, a um vivo contato com o mundo, com o acaso, enfim, com o erro.
Capturados naquele regime de exceção, passaram-se anos sem que pudéssemos nos banhar nas águas do rio que corria diante de nosso olhos, ora modorrento, ora turbulento, mas sempre marcando a correnteza do tempo, de nossas frágeis vidas, de nosso irrefreável envelhecimento. Enclausuradas neste museu que nos servia como bunker, as crianças foram se tornando adultas, os dias passando, e o horizonte se foi encurtando de forma a turvar nossa visão, a esgotar nossos mais caros dilemas econômicos, políticos ou metafísicos.
Num dado dia, em meio à rotina perversamente desalentadora, algo de novo sucedeu, ou melhor, algo que não havíamos previsto no curso de nossa embotada existência, sempre tão marcada por apostas definitivas, por cartadas irresponsáveis, por promessas de futuro jamais alcançadas. Ao cabo de um largo período em quarentena, nos era por fim devolvido um último suspiro, uma derradeira lufada de ar fresco naquela "arca de Noé" hermeticamente lacrada, em tese incólume ao perigo que nos rondava, diuturnamente, por detrás das escotilhas de onde antevíamos o desastre maior; de maneira intempestiva, uma porta foi aberta, escancarada, por uma das últimas crianças a brincar solitária no pátio interno de nossa fortaleza.
Sob o efeito da brisa que chegava da rua, um primeiro homem foi por ela abatido e depois um segundo e um terceiro e um quarto e um quinto, até que, como num passe de mágica, nenhum outro de nossa pequena comunidade passou a sofrer mal algum. Já éramos muitos reunidos no átrio. Inertes, porém vivos.
Então, aos poucos, estranhos começaram a ocupar nosso território, a invadir nosso espaço de reclusão e medido conforto. Vinham aos grupos, em comitivas, como quem chega a um novo planeta, estupefatos sem entender em qual armadilha se haviam aprisionado aqueles pobres seres que não mais possuíam coragem para dar um passo adiante, para imaginar um desvio para o futuro, uma passagem para fora, para um outro mundo, um novo mundo, quiçá um mundo melhor.
Bernardo José de Souza
Depois do fim, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS - 19/05/2017 a 12/08/2017
Depois do fim por Bernardo José de Souza
Depois do fim
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
Depois do fim, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS - 19/05/2017 a 12/08/2017
Em meio ao desastre político, econômico e ambiental a impactar a humanidade nesta quadra sombria do século XXI, a Fundação Iberê Camargo (FIC) retoma suas atividades preocupada com o futuro. A suposta plasticidade atribuída ao homem, à natureza e ao sistema capitalista parece se haver esgotado, esgarçado, encontrado um limite real, em que pese a virtualidade dos fatores a complexificar uma equação que sequer as ciências nos dão margem para resolver. Nesse conturbado contexto, a perspectiva do fim vem ganhando contornos diversos nos mais variados horizontes, quer remotos ou imediatos; e na esteira de uma série de especulações quanto aos rumos da própria FIC, do Brasil e do mundo, torna-se imperativo articular possíveis respostas ao conjunto de dilemas experimentados pela humanidade em face a um cenário de matizes obscurantistas e tintas apocalípticas.
Partindo de um universo ficcional, que lança o público em uma viagem no tempo, Depois do fim busca explorar a relação ambivalente que estabelecemos com o passado, o presente e o futuro. Ora, se a contemporaneidade está permanentemente a instar a revisão do passado (sobretudo política), ao passo em que nos demanda divisar possíveis futuros para humanidade (uma questão de sobrevivência), o que dizer de nossa relação com um presente de pós-verdade? Vivemos em um tempo que se apresenta fracionado, nebuloso, insondável - em meio ao que Giorgio Agamben chama de "escuridão do presente" (Giorgio Agamben) -, mas que, contudo, carrega em si a potência de um futuro possível, latente, ainda que disforme.
Nesse sentido, a ficção científica a inspirar esta mostra serve como plataforma plástica e discursiva para que uma série de debates e investigações estéticas, políticas e filosóficas ganhem corpo, problematizando nossa relação com o futuro e estimulando o uso da imaginação e da fantasia como antídotos ao estado de paralisia e conformidade que parece decretar o fim dos tempos e de toda forma de utopia - após a queda do muro de Berlim (1989), o consequente abandono de qualquer perspectiva de transformação do mundo acabou por ceder espaço à conformidade mórbida que hoje alimenta as correntes (e perversas) posturas fatalistas e apocalípticas.
Em Depois do fim, a Fundação Iberê Camargo transforma-se em um espaço ficcional, uma cápsula do tempo na qual são conservados diversos elementos constitutivos da memória afetiva, simbólica e material do homem - um edifício projetado para preservar a espécie humana dos riscos representados pela natureza num estágio avançado do Antropoceno. Nessa zona heterotópica, que obedece a uma lógica própria, interna e fechada - portanto descolada da realidade exterior -, uma seleção de objetos e obras de arte constituem um arco temporal que ora remete ao passado, ora sinaliza um futuro tão distópico quanto revelador dos dramas experimentados no presente.
O público da Fundação Iberê Camargo é convidado a desempenhar o papel de exploradores do futuro, seres de uma civilização vindoura que lá aportam e deparam com os vestígios e ruínas de nosso tempo. Nesse sentido, a obra de Álvaro Siza, refratária ao mundo exterior, é um elemento central nessa exposição, que deve seu nexo e razão de existir justamente à articulação entre natureza, homem e arquitetura.
Depois do fim é um projeto que responde, em caráter emergencial, ao senso de urgência que emana das sociedades contemporâneas diante da absoluta precariedade moral, afetiva, política e material a marcar nosso tempo e nossas vidas.
Bernardo José de Souza
Diretor Artístico
Fundação Iberê Camargo
Tudo te é falso e inútil por Bernardo José de Souza
Tudo te é falso e inútil
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
Iberê Camargo - No Drama, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS - 19/05/2017 a 12/08/2017
Ainda hoje, passados 21 anos da abertura da Fundação que leva seu nome, Iberê Camargo permanece relativo enigma a pesquisadores e admiradores de sua obra. Suas biografia e trajetória artística constituem uma zona cinzenta, cuja plasticidade de tintas indevassáveis nos permite intuir a carga dramática que banhou ambas esferas de sua brilhante passagem pelo século XX.
NO DRAMA, exposição pensada e desenhada pelo artista Eduardo Haesbaert, que com o mestre conviveu, como seu assistente, em sua última e mais penosa quadra de vida, expõe uma faceta do artista pouquíssimo conhecida pelo público comum, a qual raras vezes é trazida à luz do dia, permanecendo, assim, apenas na turva memória daqueles que gozaram de sua enérgica e sanguínea companhia.
Esta mostra não apenas apresenta elementos e trabalhos que sinalizam o próximo convívio mantido pelo artista com personagens caras às artes dramáticas, como também exibe obras cujo teor ora solar, ora soturno a caracterizar a produção do artista faz-se sentir de forma figurativa e contundente, e por vezes mesmo sonora, reboando pelas sólidas e implacáveis paredes da arquitetura projetada pelo arquiteto Álvaro Siza.
São telas, painéis, fotografias e estudos, e mesmo um vestido, os quais reverberam o dinamismo de um artista que, malgrado o semblante casmurro, fazia dos sábados em sua casa, e de suas sessões de pintura, momentos de ilustração, intimidade e diversão, reveladores de uma alma deveras curiosa, ruidosa, atenta e sofrida - Iberê, um ator sempre em performance no ato de sua pintura.
Como síntese da carga dramática presente na biografia e na trajetória artística de Iberê, temos a obra O Delírio, um guache que confronta o público com a face do sonho e do pesadelo que embalam nossas noites, mas também nossas vidas, em suas toadas imprevisíveis e sempre absurdas quando os dias chegam ao fim.
Bernardo José de Souza
Diretor Artístico da Fundação Iberê Camargo
maio 11, 2017
Angella Conte - Terra Nua por Agnaldo Farias
Terra Nua
AGNALDO FARIAS
Entre os vários planos em que a poética de Angella Conte vai se desdobrando, chama a atenção a amplitude de sua compreensão da rotina como prática que conduz ao entorpecimento dos sentidos e da memória, cegueira parasitada nos nossos gestos e que vai crescendo progressivamente, convidando ainda mais à indiferença, aumentando o silêncio dos ambientes e das coisas que os habitam. Pois estes, sabemos, se só são demandados pelo hábito, terminam por ir se calando, curvam-se para dentro de si embutindo aromas e ruídos, juntam-se aos outros no interior das casas compondo uma paisagem muda.
A diversidade de trabalhos produzidos a partir desse pensamento, ora apresentado em Terra Nua –desenhos, pinturas, esculturas, fotografias, objetos, instalações, vídeos, vídeos performances etc. –, é inusual até mesmo para os parâmetros de hoje. Mas é que Angella Conte incomoda-se com o que escapa, pode escapar ou escapou no curso dos dias, e o problema é que tudo flui, se esvai com o decorrer do tempo, o que converte seu projeto num fracasso previsto e premeditado, mais um empreendimento na esteira da condenação de Sísifo. Um límpido exemplo desse projeto estético é o Ir e Vir, que nesta mostra está ocupando toda uma sala, composto por 15 vídeos, cada um deles registrando fragmentos de um deslocamento entre distâncias e lugares variáveis, mudando quanto ao meio de transporte diferente,e também quanto aos ângulos,e até mesmo quanto ao responsável por colher as imagens, como acontece no Deslocamento XI, onde não se sabe se é a própria artista quem filma ou vai sendo filmada enquanto caminha sobre uma ponte.
Um simples trajeto nunca será o mesmo se percorrido a pé, de charrete, de carro,de avião etc. Corolário desse raciocínio, concomitante a essa série de vídeos, vêm, produzidos infatigavelmente, incontáveis diários, as intermináveis coletas de objetos e as estórias coladas ou associadas a eles - como o baú engaiolado e o avô despojado de seus pertences na chegada ao Brasil, outros filmes e a experiência de ambientes fechados e externos, vazios ou ocupados por pessoas, com a artista acompanhando seus passos ou refazendo os que julgou plausíveis.A matéria-prima da memória junta lembranças com objetos e espaços com os quais desenvolvemos nossas coreografias.
Que várias dessas obras sejam protagonizadas por ela mesma, deve-se a sua estratégia de colocar-se no lugar do outro, como também de imaginar o efeito do contato dos outros sobre as coisas com que ela trava contato, dado que os objetos ultrapassam-nos em tempo de vida, além de percorrerem caminhos surpreendentes. E, mesmo quando reflete sobre si, no caso da série Autorretrato (2009), ela evidencia o enigma das próprias imagens, nossas transformações como pátinas sucessivas e cujo rosto atual é apenas a camada mais recente.
Os antigos lançavam mão de ritos com o propósito de atualizar os mitos. As liturgias eram encenações que renovavam aquilo que estava sob o risco de se perder. Já nossas rotinas subtraem o que há de extraordinário no que fazemos. Um modo de combater essa exaustão, propõe a artista,será colando-nos às práticas dos outros ou reinventando os espaços e objetos, seja vendo-os sobre outro ângulo como também sobrepondo-os através de releituras e colagens. Daí as paisagens reconstruídas, as varandas iguais que, vistas com vagar, revelam-se diferentes - variações que ela acentua invadindo-as com elementos que não lhes pertencem ou com sua própria e enigmática presença.
maio 7, 2017
Rodrigo de Castro por Vanda Klabin
Rodrigo de Castro
VANDA KLABIN
Rodrigo de Castro, Um Galeria, Rio de Janeiro, RJ - 10/05/2017 a 24/06/2017
Rodrigo de Castro apresenta uma seleção de sua produção mais recente e totalmente inédita. A pintura é seu principal veículo expressivo, uma permanente determinação, e os elementos estruturantes do seu trabalho apontam para os seus fundamentos: o território da geometria e da cor. Ao longo de dezessete anos de atividade artística, a sua gramática pictórica se transformou em um campo fértil de pesquisa e inovações. O artista investiga a relação fluida dos campos cromáticos, contrapõe ritmos e problematiza o espaço interno aliado a um rigoroso jogo de derivações geométricas.
A formação do seu olhar tem referências culturais no ideário da tradição construtiva e na linguagem geométrica do neoplasticismo. Encontra ressonâncias nas obras de artistas que pontuaram a vanguarda da contemporaneidade, como Kazimir Malevich, Piet Mondrian, Josef Albers, Henri Matisse, Mark Rothko, entre outros. Rodrigo Castro manifesta sua profunda admiração por Claude Monet e Vincent van Gogh – pela intensidade da cor de um lado e a poesia da luz, de outro. Segundo o artista, ambos realizam a mesma coisa: acordes perfeitos de luz e cor.
Linhas, cores e formas são o centro gravitacional de sua produção. Rodrigo tensiona a planaridade da superfície da tela utilizando uma espécie de grade modular, que define pesos visuais diferentes para esses espaços. A constante presença das linhas negras ou coloridas, dispostas de forma horizontal ou vertical, não representa linhas de força, mas serve para acentuar as relações métricas proporcionais e amplificar as zonas cromáticas. Todos os elementos que compõem o quadro tendem a se contrair ou a se dilatar até encontrar o seu equilíbrio, formando uma superfície homogênea, um verdadeiro plano geométrico. O cruzamento de linhas em ângulos retos por meio de coordenadas verticais ou horizontais forma diversos compartimentos assimétricos, que são variações de quantidades de luz. Estamos diante de uma ordem real que consolida as suas conquistas no campo da pintura, uma meticulosa ordenação do espaço através de um repertório abstrato e extensos núcleos de cor, ancorado na sensibilidade do artista como uma geometria sensível.
Como componente essencial, a cor é tratada pelas suas qualidades visuais, seja para organizar a superfície da tela, seja para dinamizar o ritmo da construção e da geometria, com infinitas possibilidades de ordenação do espaço. Os núcleos de cores, distribuídos assimetricamente, reforçam a ideia de um movimento. Na busca de outra ordem pictórica, os elementos da composição apresentam linhas retas ou áreas retangulares, e o equilíbrio interno será dado pela forma estritamente retilínea e pela absoluta redução dos recursos da pintura. A linha é um elemento de sintaxe para a ordenação de uma estrutura potencial do plano da tela.A construção de extensas áreas cromáticas, indicativas de suas luminosidades e contrastes, traz a predominância das cores primárias – vermelho, azul e amarelo – ou as não cores, preto,cinza e branco.A sua pintura nos absorve, nos impõe uma lentidão perceptual. Demanda um tempo para ser absorvida. Incapaz de ter um foco, pois a respiração das unidades cromáticas são descentradas, o olhar se perde e mergulhamos nas profundezas da cor.
Os princípios fundamentais de Rodrigo de Castro são baseados na sua poética de valores estruturais da sua visão: a linha, o plano e a autonomia das cores. Aqui encontramos os acordes de seu campo de ação, que vão afirmara polaridade absoluta da cor e a neutralidade das linhas verticais e horizontais. São espaços atomizados, repletos de pulsações cromáticas, quase uma cromofonia. E é justamente nesse ousado fazer, de forma livre e original que Rodrigo de Castro apresenta sua obra na UM Galeria, evidenciando como consegue manter-se fiel a uma série de questões e, ao mesmo tempo, avançar em direção a novos desafios temáticos e formais. Alinhados pelas suas singularidades, esses desafios formam um complexo conjunto que pontua suas diferenças, suas nuances e uma pluralidade de questões estéticas que reafirmam o seu campo de força visual e fazem reverberar a atualidade da pintura. As possibilidades de leituras se abrem em múltiplas direções e trazem maior amplitude para a leitura artística contemporânea.
Vanda Klabin é cientista social, historiadora e curadora de arte. Nasceu, vive e trabalha no Rio de Janeiro.
Espelho no Espelho por Henrique Xavier
Espelho no Espelho
HENRIQUE XAVIER
Carlos Fajardo - Espelho no espelho, Instituto Ling, Porto Alegre, RS - 11/05/2017 a 05/08/2017
O que o espaço interno do espelho reflete em sua totalidade, depois de trincado, também é refletido por seus estilhaços. Assim, em cada um de seus pequenos cacos, um e o mesmo leão avançam. Saavedra Fajardo, o ilustre autor do barroco ibérico, escreveu tais palavras em 1640 para abrir o tratado que acompanha a imagem intitulada “Siempre el mismo”, ou seja, “Sempre o mesmo”. O autor tinha em vista a associação alegórica que o espelho, o teatro e a imagem possuíam com o comportamento e a identidade pessoal que vigorava nas cortes do universo barroco. O espelho barroco vem marcar a teatralidade e a duplicação da vida em imagens em que predominam não apenas a visão, mas também e principalmente a ilusão.
Saltemos quatro séculos até alcançar os dias de hoje e a exposição Espelho no espelho de outro Fajardo. Adentremos os novos jogos de espelhos e ilusões propostos pelo artista Carlos Fajardo para a Galeria do Instituto Ling e sentiremos uma experiência estética que nos remonta a uma invertida pergunta: “Sempre ser outro?”
Com tal pergunta em mente, descobriremos que a imagem humana, a sua identidade e o seu comportamento – no caso, tomados a partir do próprio espectador que se encontra diante das obras – serão o ponto central para a experiência estética proposta pelos atuais espelhos do artista. Comecemos pelo fundo da exposição e sigamos em direção às outras obras para tentar responder como tais labirintos de reflexos são capazes de produzir este deslocamento estético e subjetivo.
Você se depara com a obra que está na última parede da galeria e se pergunta: seria ela uma série de nove fotos em preto e branco com pouca nitidez, coladas sob nove placas de acrílico laranja ou a obra pode ser encarada como uma única grande imagem de um único grande corpo fragmentado, sob uma ampla superfície de acrílico? Nove fotos de setenta centímetros de altura por um metro de largura ou uma única imagem de dois metros e dez centímetros de altura por três metros de largura? Uma ou nove imagens alaranjadas pelo acrílico? A imagem ou as imagens estão no limite do reconhecimento, nada é claro. Evocam-se, talvez, fragmentos de virilhas, pernas, coxas, pescoços, pés entrelaçados, pele, muita pele e bem de perto, dobras, dobras sobre dobras, poros, um rosto, nádegas, ancas, seios, bicos, sexos dissolvidos? A falta de foco nos remete à experiência de abertura erótica de um corpo colado a outro: a proximidade ao ponto de fricção das peles, um em outro, um dentro de outro e sobre um leito entre lençóis. Corpos tão próximos que o olho não tem a distância mínima para formar o foco? Precisamos ver e sentir o corpo do outro através do nosso próprio corpo e vice-versa? Ao contemplar a obra você vê um terceiro corpo também com pouca nitidez: o seu próprio corpo refletido na fina pele reflexiva do acrílico laranja. Para que se tenha a experiência estética da obra é necessário que a imagem de nosso corpo se cole à pele dos corpos desfocados na fotografia?
Você continua a olhar para o seu reflexo na superfície cristalina do acrílico laranja e vê, junto ao seu corpo refletido, a obra espelhar toda a exposição atrás de você. Sequer é preciso virar-se para ver o resto da exposição; a imagem refletida apresenta um jogo de luz que, sem descanso, vai e volta, penetrando e multiplicando-se nos vidros, espelhos e superfícies semi-reflexivas, transparentes e coloridas que foram trazidas para o espaço da galeria pelo artista.
Você se vira e contempla a obra do artista como sendo estas grandes superfícies reflexivas apoiadas na parede da galeria. As obras não apenas refletem a si mesmas em um jogo de espelhos, mas também a própria arquitetura cujo espaço ilusoriamente torna-se outro. Os espelhos se apresentam como estranhas passagens, interagindo com o próprio ambiente, operando como uma grande e sutil instalação que virtualmente rearticula, dobra e, de forma ilusória, perfura o espaço da galeria.
Você caminha na exposição entre as superfícies reflexivas e percebe diferentes níveis de espelhamento e transparência. Há uma obra que apresenta desde uma vasta área de vidro transparente que permite ver a parede branca atrás de si, indo até uma placa de reflexo máximo de um espelho prateado, passando, também, por um vidro branco leitoso e por uma superfície semi-espelhada, em um tom cinza escuro, que tinge os reflexos do semi-espelho.
Uma obra composta de vidros coloridos chama a atenção por trabalhar com algo que recorda uma das mais tradicionais técnicas da pintura: a velatura. A velatura é uma técnica em que o pintor sobrepõe camadas de tinta semitransparente. Nessa técnica, espera-se que uma camada de cor se torne seca para em seguida aplicar sobre ela mais uma fina camada translucida ou quase transparente de tinta, aplicam-se camadas, uma sobre a outra, deixando ver, através das transparências os tênues “véus” de tinta que foram sobrepostos. A velatura é uma técnica da pintura realizada por um acúmulo de véus transparentes de tinta. A obra de Fajardo com vidros produz algo do gênero: a sua extensa superfície reflexiva de cor azul é acompanhada das cores amarelo, verde, laranja e roxo que não existem por si, mas são o resultado de camadas, ou melhor, “véus” de transparências de cores em vidro que, sobrepostas, alteram a profundidade do belo matiz das cores envolvidas.
Uma quarta obra chama a atenção pelo contraste entre, por um lado, uma superfície lisa, dura, transparente, fina e reflexiva e, por outro, uma outra superfície opaca, composta de fibras aglutinadas por meio de pressão, um feltro, algo que não é tramado como um tecido, mas composto por camadas sobre camadas de fibra pressionada, sua constituição é um aglomerado. Diante da obra você vê a densa superfície de feltro que se inclina, devido ao seu próprio peso, por detrás do vidro, e, no vidro, você contempla mais uma vez o seu próprio reflexo e no feltro vê algo inesperado: a sombra de uma transparência, a própria placa de vidro produz uma leve sombra de si mesma, sobre o anteparo opaco. Tomam a sua atenção não apenas a reflexão da luz sobre a superfície polida, mas a sombra de uma transparência que deveria passar despercebida a qual, contudo, persiste como um leve “fantasma” sobre a opacidade do feltro.
Neste instante, a sua opinião sobre o que constitui as obras da exposição é transformada, não são as placas de vidro, mas, sim, a luz entre elas, a luz que produz a visibilidade no espaço em que você se encontra. A luz que bate no espectador, no chão e nas paredes e volta para os olhos produzindo um mundo de visibilidade; é esta a matéria trabalhada pelo artista, os invisíveis raios de luz que dão a ver o mundo da visibilidade.
Você subitamente contempla não mais os vidros, mas este jogo de luz produzindo uma multiplicação das imagens nos espelhos de Fajardo, você vê que as obras refletem a si mesmas como espelhos frente a frente multiplicando suas imagens em um abismo infinito de reflexão. As imagens formadas pelos reflexos são jogadas umas sobre as outras. Você quase pode imaginar a impossível fricção entre infinitos raios de luz se esbarrando em trajetórias cruzadas em um perpétuo movimento de vai e vem, vêm e vão.
O invisível caminho de luz que garante a visibilidade é também o fundamento da estética de Fajardo, então você olha para a obra que se encontra sob a entrada de luz natural do teto da galeria, uma claraboia; e exatamente sob a claraboia e apoiada no chão temos uma caixa com a sua face superior espelhada. A caixa, quadrada, possui dois metros de lado, uma dimensão próxima da claraboia, e vinte centímetros de altura. A sua face superior produz um reflexo curioso ao espelhar a claraboia, pois o seu reflexo não é uno, se divide em três imagens sobrepostas. Uma espécie de velatura de reflexos nos é devolvida pela obra fazendo com que uma única e mesma imagem seja triplicada na sobreposição de diferentes densidades de reflexos e transparências.
A caixa está sobre o chão abaixo dos seus joelhos, você decide observá-la com mais cuidado, inclina levemente seu corpo sobre ela e se dá conta da engenhosidade do artista: a caixa possui três chapas de vidro, uma espelhada no fundo e outra transparente recobrindo a superfície superior, os dois vidros são paralelos entre si e entre os dois há um terceiro vidro colorido, semitransparente e semirreflexivo, inclinado cortando a caixa de ponta a ponta. A luz simultaneamente a atravessar e a se refletir nas três camadas distintas de vidro irá produzir a sobreposição e o deslocamento de três reflexos: são três imagens contempladas na superfície da caixa com leves diferenças de tamanho, de densidade e de deslocamentos entre si. A bela imagem, ou melhor, as imagens resultantes são quase monocromáticas (pois tingidas pela cor do vidro inclinado), apresentando a sobreposição pictórica de reflexos da imagem do mundo cujo centro foi literalmente deslocado sobre si.
Neste reflexo de um mundo triplicado, entre a luz da claraboia e a caixa, você encontra a si mesmo contemplando a obra, mais uma vez o seu reflexo é contido na superfície reflexiva, três vezes o seu rosto é sobreposto, três vezes o seu olhar é devolvido a você.
A luz enlaçada pelos jogos de espelhos captura a sua própria imagem, você, o público, encontra-se neste fogo cruzado entre luz e imagens refletidas, não apenas na caixa espelhada apoiada no chão, mas em todas as superfícies reflexivas que compõem a exposição. Então você percebe que a iluminação da galeria não está voltada para as obras, mas, sim, para o espaço vazio entre as obras, para o espaço de deslocamento do público.
Por fim, você tem a sutil consciência de que a imagem humana, a sua identidade e o seu comportamento – no caso, tomados a partir do próprio espectador que se encontra diante das obras – são o ponto central para a experiência estética proposta por Fajardo. E que duplicar-se nos reflexos de tais obras é, também, abrir-se para uma introspecção subjetiva, a partir de uma experiência estética onde a imagem mais superficial refletida produz a reflexão mais profunda da experiência de pensamento. A reflexão, na exposição, assume um duplo sentido: tanto o da reflexão ótica de uma imagem em uma superfície espelhada, como o da reflexão do questionamento subjetivo de si mesmo. A experiência do deslocamento produzida pela multiplicação de imagens, no peculiar jogo de vidros reflexivos que envolvem nossos corpos, simultaneamente, exige que nos debrucemos criticamente sobre nós, pois, ao nos depararmos com tais obras nos perguntamos se não apenas a nossa imagem foi deslocada, mas, principalmente, algo em nós mesmos?
Letícia Lampert - Exercícios para perder de vista por Luísa Kiefer
Letícia Lampert - Exercícios para perder de vista
LUÍSA KIEFER
Galeria de Arte Mamute, Porto Alegre, RS - 11/05/2017 a 18/08/2017
A ideia de que ver é sempre algo à distância, é sempre uma experiência que não alcançamos plenamente, no sentido de não ser algo palpável, mas apenas sensível, é uma das coisas que move a poética de Letícia Lampert. Sua busca, enquanto artista centra-se, sobretudo, na relação do ver com a paisagem e com o outro. Como é possível estabelecer uma relação com as coisas que nos rodeiam? Com tudo aquilo que olhamos e guardamos em imagens?
Para o fotógrafo e crítico americano Robert Adams, uma das funções das imagens de paisagem seria permitir a redescoberta e a reavaliação de onde nós nos encontramos. “Acho que confiamos na fotografia de paisagem para tornar inteligível para nós aquilo que já sabemos” 1, escreve. No exercício constante de olhar e re-olhar, de procurar tons e nuances, de tornar visível e, talvez um pouco mais próximo, aquilo que está apenas ao alcance do olhar, Letícia coleciona cores e paisagens. Com sua câmera fotográfica, congela e retém tudo aquilo que lhe interessa, numa ânsia de compreender, através da imagem, o cenário complexo em que vivemos.
Em Exercícios para perder de vista, Letícia apresenta trabalhos produzidos entre 2015 e 2017, na China e no litoral do Rio Grande do Sul, que colocam em questão justamente a distância entre o ver e o sentir, entre o ver físico e o ver na imagem. Nas obras aqui apresentadas, a paleta de cores da artista se reduz, concentrando-se sobretudo nos tons de cinza, bege e branco de fotografias capturadas em paisagens urbanas e naturais recobertas ora por névoa, ora por poluição. Ao voltar-se para tons mínimos e ressaltar as diferenças sutis na passagem de um para o outro, procura as variações mais finas, sensíveis ao olho, revelando uma paisagem ao mesmo tempo complexa e sutil.
Intercalando blocos de cor e blocos de imagem, a artista brinca com a veracidade e a verossimilhança dos tons, daquilo que é possível ver em meio a quase nada, jogando com a percepção do público. Convidando o espectador à contemplação e à reflexão sobre o mundo que nos rodeia, Letícia aproxima-o da distância que está sempre envolvida no olhar, tornando-a sutilmente palpável por meio da sua gradação de cores mínimas e delicadas. Quase como se nos indicasse um caminho pelo qual poderíamos alcançar a paisagem. Os trabalhos que integram Exercícios para perder de vista criam, assim, um catálogo de matizes que compõem o mundo ao nosso redor e estruturam o nosso olhar. Nestas obras, pela composição e pelo silêncio das imagens, o matiz mais mínimo adquire o seu máximo. Em 1985, o fotógrafo Luigi Ghirri escreve que “é necessário encontrar um método para organizar o olhar nesse mundo sem fronteiras, fragmentado e veloz”, é preciso encontrar uma forma de reativar o olhar para que ele possa “não ser mais inerte diante de um mundo cada vez mais incompreensível e complexo” 2. Com sua tênue escala de cores, penso ser precisamente este exercício que Letícia nos propõe.
Se Ghirri, naquele momento, se referia às novas demandas do olhar trazidas pelo filme, pela televisão e pelo aumento do consumo de imagens eletrônicas, é preciso situar que de lá para cá, a quantidade de imagens que nos rodeiam multiplicou-se e segue crescendo em progressão geométrica. Nos acostumamos a produzir e consumir imagens em tempo quase integral. Vivemos imersos em uma sociedade baseada na imagem. Nesse contexto, pensar sobre a importância do olhar é uma tarefa necessária. As imagens construídas por Letícia são, assim, um convite sensível para passearmos sobre os tons que velam e desvelam as paisagens urbanas e naturais que nos rodeiam, se tornando, também, uma prazerosa brincadeira de medirmos a cor da paisagem.
Exercícios para perder de vista propõe ao espectador que ele tente afinar o seu olhar, resgatando a calma e a capacidade de encontrar no silêncio e no estático uma gama infinita de cores e movimentos. Ao se entregar a contemplação talvez seja possível diminuir a distância entre o olhar e o sentir, e a visão, assim, deixe de ser um exercício sempre à distância.
Luísa Kiefer
Curadora da Mostra
Notas
1 ADAMS, Robert. Beauty in Photography. New York: Aperture, 1981. p.16-20.
2 GHIRRI, Luigi. Complete Essays. London: Mack Books, 2016. p.91-92.
A construção de um paradigma: nas tramas do tempo por Daniela Bousso
A construção de um paradigma: nas tramas do tempo
DANIELA BOUSSO
“aqui tudo parece que ainda é construção mas já é ruína...” (1)
Regina Johas opera um viés transdisciplinar na exposição Tristes Trópicos_Bom Jardim, em que aborda a dura realidade brasileira e sua estagnação no tempo. A mostra é um desdobramento do trabalho de investigação que resultou nas séries fotográficas Remanências e Sendas, realizada em Natal no final do ano passado.
A artista partiu da captura de um monumento em ruínas – memória apagada de relatos e saberes da Fazenda Bom Jardim, situada no município de Goianinha (RN) – como se fossem frames de um antigo filme fotográfico, evocando o negativo da foto no rebatimento entre passado e presente. Se nos anos 1960 as seriações e repetições foram utilizadas por artistas como Andy Warhol para refratar ícones no vazio, em contraponto a uma sociedade de consumo, as repetições nas séries fotográficas de Johas funcionam agora como evocação poética do tempo, quase a querer revisar os procedimentos de conjugação entre movimento e tempo operada por Marey com a cronofotografia.
Tudo é tempo em sua obra e as fotos evoluem para a forma do vídeo nas três vídeo-projeções apresentadas em Tristes Trópicos _ Bom Jardim (Frestas, Chico Antônio e Ruínas Urbanas), acompanhadas da instalação sonora Quanto coco se dança. Esta última consiste num espaço sonoro gerado a partir da apropriação de um coco – forma poético-musical do folclore rural nordestino – espacializado e dilatado no tempo a ponto de a melodia do coco ficar irreconhecível.
Em Tristes Trópicos _ Bom Jardim os três vídeos são sobrepostos por outras imagens autônomas alocadas no espaço, operadas por projetor de slides e retroprojetor, que se somam aos computadores e projetores datashow, o que dota a mostra de mais uma camada de complexidade, dada pelo número de dispositivos com que lida.
O vídeo Frestas,diz Reg (2), “mostra a fazenda – eternizada nas memórias do livro “O Turista Aprendiz” (3) – que abriga hoje, em estado de quase desaparecimento, a casa em que o poeta se hospedou por ocasião de sua viagem ao Nordeste. Lá, ele coletou documentos musicais populares e conheceu a arte do cantador potiguar Chico Antônio”.
Já em Chico Antônio, a obra parte de uma única foto, a imagem de Chico Antonio já velho, e explora os defeitos da TV nas faixas de cor, como nos primórdios da videoarte. Em Ruínas Urbanas a artista registra esqueletos de edifícios abandonados na cidade de Natal. Imagens sem cor são projetadas em vídeo ao modo de um carrossel de slides, com sonoridade que outra vez evoca o passado: cada vez que a imagem muda ouve-se um “cleck”, como nos sons emitidos pelos antigos projetores Super 8.
Simulação é a chave, a porta de entrada para a compreensão da poética de Johas. A meio caminho entre foto, cinema, vídeo e pintura, a artista solicita o olhar do observador por meio de uma espacialidade específica,unidade de medida quase minimalista, a fenda, que permite à visão adentrar por camadas: foto, vídeo,fresta, cor, outra vez foto. Sobreposição e movimento, cor e ornamento, presenças que registram o excesso e o acúmulo, ressaltam o diálogo entre forma orgânica e forma geométrica simulada.
Nesse convívio entre ordem e caos, a totalidade não pode ser recomposta. A fachada da ruína colonial hoje é apenas uma casca: por trás dela tudo é mato. Em meio às frestas, um quase nada se vê. Da cor que restou na fachada, sobrevive um fragmento. A partir da sua memória, o vislumbre de uma paleta: toma-se um pixel e obtém-se a cor e seu código no fotoshop, criam-se as faixas verticais que compõem as camadas como a designar as fendas.
No conjunto das obras, o tempo em suspensão entre imagem matriz e imagem serial, “quase móvel”, juntamente com a variedade de dispositivos, produz a multiplicação de vetores, a complexidade da operação demarcada sobre as diferentes temporalidades da imagem, entre a fotografia, a pintura e a forma cinema. A condição ambígua emerge a meio caminho entre procedimentos do universo da pictorialidade e o da apreensão do referente.
Nesse intervalo surge a intersecção, lugar intermediário, um desvio da imagem que a princípio é digital, numérica. Imagem de síntese, que paradoxalmente nos permite o retorno à essência manufaturada da pintura. O digital aqui é adulterado; o desvio talvez queira evocar o olhar contemplativo, à moda antiga, característica das sociedades pré-moderna e moderna, que erigiram os referentes protagonistas, as construções; são elas que permeiam o sentido da mostra e contrapõem o rural ao urbano, a memória ao esquecimento, a temporalidade moderna à temporalidade atual do fazer artístico.
Um misto de cultura versus artifício impregna essas imagens, que reivindicam o pouso do olhar e a imersão. O procedimento híbrido constela-se no ato fotográfico via dispositivo, uma câmera Laica – e expande-se à pintura e ao vídeo, via digital. O acréscimo de camadas cromáticas à imagem original cria o embate com o tempo, com a arte, com a história da arte e com a arte contemporânea; as camadas finais sobrepostas à imagem de gênese entram em duelo com a temporalidade dos referentes.
Isso se torna mais e mais claro quando as imagens são deslocadas da sua condição inicial – foto pictórica – e passam a ser mostradas como vídeos. No vídeo as imagens em loop contínuo nos trazem o plus do movimento, mais uma demanda que convoca o olhar para dentro do espaço projetivo.
Ao produzir registros que ressaltam a precariedade que mina a nossa identidade cultural, Reg reflete sobre as relações entre capitalismo tardio, resquício do colonialismo e seus processos de apagamento da história. Pelas vias do paradoxo, criado na tensão entre imagem matriz e imagem em movimento, o tempo, soberano, é contido dentro das faixas de cor e promove o embate com a atualidade no ato de ver. Eis o paradigma poético criado por Reg Johas nesta mostra.
Daniela Bousso, 2017
Notas
(1) “Fora da Ordem” música do início dos anos 1990, de Caetano Veloso, que relembra a obra “Tristes Trópicos” de Claude Levy Strauss, de 1955.
(2) Reg é o apelido que a artista recebeu de seus colegas quando entrou na FAAP, onde cursou Artes Plásticas, entre a segunda metade dos anos 1970 e início dos anos 1980. Até hoje a chamamos assim.
(3) Mário de Andrade, “Turista Aprendiz”.Brasília DF: Iphan 2015.
Tristes Trópicos _ Bom Jardim por Regina Johas
Tristes Trópicos _ Bom Jardim
REGINA JOHAS
Tristes Trópicos _ Bom Jardim é uma instalação multimídia que aproxima ruínas contemporâneas às ruínas do passado. Matriz do projeto é o espaço rural e urbano do Rio Grande do Norte, tido como um complexo de narrativas e relações sedimentadas, e a busca por entendê-lo em articulação aos grupos sociais e contextos simbólicos relevantes para nossa história.
A partir de imagens e de relatos dos sujeitos envolvidos na memória que cerca a fazenda Bom Jardim, em Goianinha (RN), em contraponto ao registro urbano dos esqueletos de edifícios abandonados na cidade de Natal, são exploradas a maneira como funciona aí a engrenagem social e cultural e os agentes que a mantêm em movimento. Somam-se a uma ruína histórica – a casa situada em que Mário de Andrade se hospedou por ocasião de sua viagem ao Nordeste (Fazenda Bom Jardim), em 1928 – as incontáveis construções nos centros urbanos da região que se tornaram ruínas antes de serem concluídas, índice de um projeto de desenvolvimento urbano desordenado.
Tristes Trópicos _ Bom Jardim trata portanto as relações entre o capitalismo contemporâneo e os resquícios do colonialismo. Os desacertos nas políticas de ocupação do espaço e o abandono do patrimônio traduzem a forma como as ideologias desenvolvimentistas geraram o rastro infindável de ruínas que desenham nossa paisagem. Ao explorar relações entre espaços, textos, contextos e seus agenciamentos por diversos atores, este projeto busca identificar dispositivos que possam produzir novos momentos de percepção e de resistência.
Regina Johas – 2017
* Esta realização é resultante do Projeto de Extensão “Memórias de Bom Jardim” (CLAV - UFRN) da artista e pesquisadora Regina Johas e com a participação do grupo de Estudos Zeitgeist.
maio 3, 2017
Gais Ama por Vanda Klabin
Gais - Desculpe o transtorno, estamos trabalhando para sua melhor comodidade, Artur Fidalgo Galeria, Rio de Janeiro, RJ - 05/05/2017 a 05/06/2017
GAIS AMA nasceu no Rio de Janeiro em 1980. Sua atuação artística passa a encontrar ressonância na esfera da vida urbana através de suas constantes intervenções em muros, viadutos... Chegando, também, às ruas de Amsterdã e Roterdã.
A exposição na Artur Fidalgo galeria apresenta um conjunto de obras inéditas intituladas pelo próprio artista de fotomontagens e de pinturas. GAIS AMA criou um novo espaço para a sua arte transitar, ampliando o campo de sua poética: aqui o seu trabalho se constrói a partir do recolhimento dos restos de um passado, da apropriação de ícones jornalísticos, recortes de revistas como O Cruzeiro e Manchete, que remontam aos anos 1950 e 1960, que recebem também uma intervenção de tinta acrílica.
“...acordo pensando em arte, passo o dia pensando em arte e vou dormir com arte na cabeça”, diz o artista.
Vanda Klabin
Curadoria