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março 26, 2017
A casa é sua por Julia Lima
A casa é sua
Ana Elisa Egreja - Jacarezinho 92, Galeria Leme, São Paulo, SP - 31/03/2017 a 06/05/2017
A casa é um edifício para habitar. É a unidade básica da cidade, é referência de pertencimento espacial no mundo. É origem e é destino. É abrigo e é castelo. No caso da nova série de trabalhos de Ana Elisa Egreja, a casa é o personagem principal de uma nova etapa de sua pesquisa pictórica. Os ambientes domésticos e interiores sempre foram assunto da artista. Mesmo quando os animais pareciam ser os verdadeiros protagonistas, eram as texturas, padronagens e desenhos dos chãos e paredes os elementos recorrentes em todas as situações que criava. Os interiores eram o cenário escolhido para as pinturas que não privilegiavam apenas quartos e salas, mas retratavam também áreas de serviço, lavabos, escadas. Ora nos deparávamos com construções em decadência – com infiltrações, inundações e estragos –, ora com suntuosos recintos de vistas espetaculares.
O curioso é que, até aquele momento, nenhum dos aposentos pintados por Egreja existia. Sua prática envolvia criar e inventar cenas e arquiteturas a partir de infinitas referências imagéticas: a artista acumulava fotografias, ilustrações e reproduções que buscava na internet, como uma colecionadora que garimpa, armazena e recombina imagens e elementos incoerentes, disparatados, absurdos, resultando em espaços onde não havia figura humana, apenas vestígios de presença; animais selvagens ou antropomorfizados congelados no limiar de alguma ação; ou apenas móveis e decorações rebuscadas, revestimentos diversos e materiais estranhos.
Essas montagens digitais foram sucedidas por pequenas naturezas mortas, em um desdobramento consistente. Desde 2013 sua atenção se voltava cada vez mais às particularidades da arquitetura interna, especialmente às texturas e à matéria. Fortuitamente, na casa de uma amiga, encontrou na área de serviço uma janela com vidro martelado e, por detrás dele, uma bucha de limpeza; fotografou e reproduziu essa composição, inaugurando a série de “vidrinhos”.
Naquele momento, então, a obsessiva busca por imagens na internet deu lugar a arranjos de objetos reais que eram comprados, organizados, encenados e fotografados por trás de vidros fantasia – materiais de baixa qualidade usados em áreas menos prestigiadas das habitações. A dimensão das telas se apequenou, respeitando a escala diminuta das naturezas mortas e das montagens concretas que realizava.
Por alguns anos a realização dessas pequenas instalações esculturais se desdobrava nos cômodos e jardim de uma casa de arquitetura modernista que pertencia à avó da artista. O imóvel localizado na Rua Jacerezinho, 92, já não era habitado há muitos anos, não fruía de vida íntima, mas foi convertido em ateliê em 2008. Esta nova série de trabalhos aqui apresentada, então, se constitui um tanto como ápice da pesquisa que se iniciara nos vidrinhos. As pequenas naturezas mortas explodiram e tomaram conta da construção.
Egreja interviu na propriedade de maneira intensa e radical. Em uma proporção infinitamente maior, realizou o mesmo procedimento que havia desenvolvido com as naturezas mortas: concebeu um tema, escolheu todos elementos do contexto, buscou e arranjou os objetos desejados (verdadeiros ou artificiais) e fotografou a composição para, então, pintá-la. Entretanto, para este conjunto, preparou e produziu a tomada da casa como se fosse uma diretora de cinema em um set de filmagem orquestrando o cenário de uma narrativa do realismo fantástico. Cada aposento retratado nas pinturas foi palco de ações reais da artista, que construiu cenas extraordinárias antes concebidas e esboçadas em seu caderninho. Mobilizou dezenas de pessoas para instalar, fotografar e registrar cada um dos diferentes aposentos – espécies de episódios montados com diferentes móveis, animais, quadros e acessórios, transformados por grafites e papel de parede e iluminados cenograficamente – para, enfim, transferi-los para a tela.
No banheiro de azulejos cor-de-rosa típicos dos anos 1950 e 60, polvos foram enrolados nas torneiras e registros e colocados na banheira, acompanhados por pérolas e conchas iluminados por pequenas velas dançantes. As paredes do corredor dos quartos (cujas portas estavam cobertas de adesivos holográficos como aqueles que colecionávamos na juventude), foram recobertas de revestimento listrado; o corredor foi tomado por ratos e luzes de natal. Um dos closets de armários de madeira teve seu interior pixado pela artista e seus assistentes, onde então soltaram pequenos canários coloridos. Galinhas gordas andavam e ciscavam no pé da escada de carpete velho e várias pinturas originais de artistas importantes da história da arte brasileira passaram a enfeitar o hall de entrada. Egreja, por fim, montou um grande lago em uma das salas, em frente a uma enorme janela, e o encheu de plantas aquáticas – um acúmulo de água muito similar ao da pintura Poça, de 2011 – criando uma espécie de pântano dentro da construção modernista localizada em pleno Jardim Europa.
Dessa laboriosa produção nasceu um vídeo que também é apresentado nesta exposição. Mídia incomum no vocabulário da artista, o filme meio documental, meio poético, dá destaque a elementos reais das instalações que podemos identificar nas pinturas, aos menores detalhes. Imagens muito aproximadas, em ângulos fechados, revelam texturas e minúcias dos objetos palpáveis, ao mesmo tempo que reforçam as questões seminais de sua produção pictórica. As cenas filmadas nos permitem acessar o movimento dos animais, o tremer da água, o flamejar das velas, instância do trabalho que não conseguimos alcançar plenamente nas pinturas.
Esses trabalhos que retratam as dependências da casa abandonam a escala do objeto e voltam a operar na escala da arquitetura – mantendo ainda uma relação muito próxima com o real. Ao visitarmos a exposição, estamos visitando a casa dos avós de Egreja, que tanto impactou seu trabalho. Ela agora nos convida a visitar os cômodos com os quais conviveu durante parte da sua infância e, principalmente, por quase toda sua carreira. A artista abre seu ateliê e, mais ainda, nos diz: entra, a casa é sua.
Julia Lima.
Julia Lima graduou-se pela PUC-SP em Arte: História, Crítica e Curadoria, e foi aluna do Courtauld Institute of Art, Londres, em 2009. Entre 2013 e 2016, atuou no Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake, coordenado por Paulo Miyada. Hoje atua como curadora independente, e como professora em cursos livres de história da arte e curadoria.
março 15, 2017
“Tristes trópicos?” por Daniela Bousso e Renato De Cara
“Tristes trópicos?”
DANIELA BOUSSO e RENATO DE CARA
Da arte plumária ao Instagram, “Tristes trópicos?” traz pinturas, gravuras, esculturas, fotografias, vídeos, performances, objetos, design, literatura, bordados e bandeiras. Organizada a partir de conjuntos de imagens e artistas e não em nichos que definem espaços individuais para cada um deles, múltiplos olhares estão associados e desdobrados, em leque aberto de narrativas. E aí revelam poéticas que saem à captura daquilo que está fora da ordem, das urgências que gritam, cada dia mais, ao nosso redor.
Estão elencados os imaginários de vivências artísticas – que não são exatamente flertes com a história da arte – mas embates, que colocam a arte em uma perspectiva histórica, política e social. Esta é uma exposição que valoriza imagens, discute e revê o seu papel no mundo contemporâneo.
Mas de qual contemporaneidade estamos falando? Em que medida somos contemporâneos no Brasil hoje? Em uma mirada Latino Americana, seriam os trópicos exóticos, ainda? Ou a sua obsolescência teria lhes subtraído o exotismo que lhe restou?
No Brasil são subtrações inestimáveis. Do inesperado o embate histórico de um estupro, denominado descobrimento, insistiu nos batismos forçados, que nunca salvaram ninguém mas espantaram para longe a alma dita original.
Por curiosidade, tesão, amor ou imoralidade, sangues se misturaram e a miscigenação confirmou que todos somos um. Ladainhas, rezas, xamanismos e ex-votos fora da ordem, criados para proteger e sustentar a fé no divino e sobrenatural. Transcultura multifacetada da antropofagia moderna. Mas estas conversas já comemoram séculos.
Ouro, diamantes, açúcar, café, extermínios indígenas. Aí trouxeram os negros escravizados, cheios de crenças e ritos e iniciaram-se os recordes, dos quais o Brasil deveria envergonhar-se: o número um em tráfico negreiro! Depois veio o abandono de igrejas, fortes, mansões, tudo em ruínas; tudo afogado num “matagal de edifícios que se confunde, aos poucos, com uma paisagem de subúrbio” dizia Lévi-Strauss sobre nós em 1955.
Tristes trópicos, no lugar da varíola e da tuberculose no início do Século XX – agora veio a Zika, a Chikungunya, a volta da febre amarela, a mortalidade infantil, a prostituição, a fome, o trabalho semi-escravo. Tudo atesta uma empreitada modernista que não cessa de sucumbir ao sistema secular, ilícito, de repartição dos lucros entre poder público e empresas.
Ainda Strauss, em 1955 escrevia: “aqui, o solo foi violentado e destruído. Uma agricultura de rapina apoderou-se de uma riqueza jacente e depois foi para outro sítio, após extrair algum lucro”.
O que mudou em mais de sessenta anos? Desordem, entropia, desagregação, defasagem da informação, desintegração dos núcleos sociais familiares, ambigüidade na justiça, operação Lava-Jato, lixo eletrônico, catástrofes ambientais, Mariana 2015, o que dizer?
Oportunamente, olhando para o nosso entorno, antagonicamente distante de nós, nossos repertórios imaginários carregam introspecção e melancolia, por detrás do homem gentil e exuberante. Aqui sempre coube mais um. Em uma pré América sem fronteiras, povos se cruzaram, entre lutas e festas, antes da Europa chegar, achando que haviam encontrado alguns índios. Da floresta surgiram mitos e lendas, porque no escuro se vive o medo da surpresa.
Um ir e vir sobrepõe vários mundos em “Tristes Trópicos?”. América Latina e Brasil, comprimidos. Ao mesmo tempo as imagens expandem ação e pensamento, dilatam progressivamente uma profusão de sentidos, tirados de olhares pasmados sobre um mundo de contradições e paradoxos.
A ação é unívoca: fazer para aplacar a falta de sentido, retomar o seu fio, escancarar, revelar. Agir em meio ao pranto surdo. Não às lágrimas. Na selva de pedra ou dentro da mata virgem, ruídos de uma fatura amorosa produzem imagens e discursos alterados, em muitas línguas criadas, faladas, escritas e encantadas. Crenças e superstições ficaram latentes pelos séculos e não se dissolveram afinal, na empreitada colonizadora. Uma cultura submersa agora emerge das águas turvas que a passagem do tempo maculou.
Na visão de uma vida periférica, na várzea ou no meio do furacão urbano, a fauna e a flora são sempre reinventadas. O desconhecido tenciona e aciona a curiosidade daquele que quer viver e se (re) encontrar como indivíduo no grupo.
As imagens aqui reunidas congregam trinta e seis pessoas que pouco ou em nada se conhecem. Na reunião, surge o percurso que segue uma mesma trilha, desígnio de um caminho que possa contestar anti-valores que ainda pairam entre humanos: a mais valia, a escravidão, a prevalência do capital sobre a liberdade, a soberania sobre o outro, ausência de alteridade, refugiados.
Enquanto isto, esbarramos em uma música sambada no choro da cuíca e do berimbau, no canto das maritacas, num pica-pau perdido, num musgo que nasce do asfalto. A dança aos deuses encontra a ginga danada da molecada na pelada. Nos folguedos sincréticos e nos afazeres diários, cores, gêneros, alegria e solidão, do batuque primitivo às distorções tropicalistas.
Estereótipos, contrastes, burocracia, conflitos políticos, o paradoxo da segurança, da limpeza, das drogas, o embate entre natureza e cultura, as relações de produção e trabalho, comparecem nesta mostra com a diversidade de um fazer que vem do manufaturado ao digital. Entre obras e artistas reunidos, uma floresta de símbolos evoca diversas camadas de leituras. As imagens em convívio e confronto, em cada conjunto, atestam e dizem muito mais que palavras, não às lágrimas! E ao remixarmos tudo seguimos, em eterna transformação e batalha.
março 10, 2017
Vera Chaves Barcellos: Fotografias, manipulações e apropriações por Claudia Gianetti
A exposição monográfica de Vera Chaves Barcellos exibe, por primeira vez no Rio de Janeiro, um amplo panorama da obra da artista gaúcha com e em fotografia. Vinte trabalhos, desde 1975, cobrem quatro décadas de criação, nos quais convivem dois tipos de produção: obras híbridas (fotografias manipuladas e imagens apropriadas de registros da mídia) e fotografias autorais. A linguagem serial, amplamente explorada, desencadeia múltiplas associações imagéticas e narrativas.
Seis eixos temáticos principais estabelecem diálogos temporais e nexos conceptuais e formais entre as obras. Gestos: “Do aberto e do fechado”, “O grito”, “L' Intervallo Perduto” e “The Birds”. Expressões faciais e gesticulações comunicam emoções e estados ricos em significados, que, descontextualizados, podem transitar da eloquência para o silêncio. Heróis anónimos: “Os Nadadores”, “Menexéne” e “O Peito do Héroi”. Os desportistas, os prisioneiros e os mitos personificam condições e valores socioculturais e políticos. As intervenções nas imagens reais, apropriadas da mídia, apagam suas identidades, como também acontece com nossas histórias e memória. Despojos: “Manequins de Düsseldorf” e “Caixotes em três tempos”. Os motivos insólitos das fotografias, encontrados por acaso, vinculam a noção de despojamento com a alusão irónica à nossa cultura do consumo e da uniformização. (Des)construções: “Fata Morgana”, “Letrados” e “Casasubu”. Nas sequências fotográficas, a primeira explora superposições gradativas de suas partes e as outras documentam insólitas fachadas frontais de edificações, sendo que na última as manipulações criam simulacros inexistentes na realidade. Retratos: “Meus pés”, “Auto-retrato”, “A filha de Godiva”, “Cão veneziano” e “Retrato”. Para a construção de figuras identitárias, sejam estas as de um carro, uma pessoa ou um animal, a artista recorre a ópticas singulares. Arte sobre arte: “As you like”, “Jogo de damas” e “Zócalo”. As reflexões acerca da arte, características do seu trabalho, ironizam sobre a arbitrariedade dos critérios de valor na arte e questionam os esteticismos de certos tipos de pintura.
Ao entender o ato fotográfico como processo e a fotografia como um campo de possibilidades e uma linguagem a transgredir, Vera Chaves Barcellos avançou no tempo e levou à prática as noções hoje tão em voga de pós-fotografia e meta-fotografia.
Claudia Gianetti é pesquisadora em arte contemporânea, estética, mídia-arte, e relações entre arte, ciência e tecnologia. Teórica e curadora, com formação interdisciplinar, é doutora em História da Arte pela Universidade de Barcelona. Nasceu em Belo Horizante.
Elegia por Gonçalo Ivo
Elegia
GONÇALO IVO
Poucos acontecimentos nos tornam tão tangíveis quanto a morte. Oculta em tudo que existe, engastada no passar das horas ou no lento arrastar do verme que fecunda e marca a terra, surge repentinamente como um vertiginoso voo de pássaro anunciando mistérios. Raramente, desejamos sua presença de aparência múltipla, sólida e fria como pedra.
Na manhã azul, um besouro é levado pelo vento incerto. E ondas do mar repetem-se de forma incessante. Precipitam-se sobre as agudas rochas do litoral. Tudo passa. Na solidão do ateliê, a mão do pintor ganha movimento e induz o pincel a macular a alvura do linho. E o que antes era matéria e espessura, transmuta-se e oscila entre o inefável e o perene.
Aprendemos muito com a morte. E aprendemos a entendê-la melhor, quando estamos diante de obras como a de Gianguido Bonfanti. Espécie de guia que se manifesta em nossa realidade física, material e psíquica, esta arte inquieta nos conduz a sendas estreitas, passagens escuras, sensações incômodas. Vivenciamos a degradação moral e física dos corpos e almas. Suas pinturas são como espelhos. Contemplamos o que em nós é inacabado e imperfeito.
Na noite escura, percebemos o ruído do jato que, em sua passagem, afasta o brilho dos astros. Tudo nos cativa e distrai. O prenúncio da aurora nos seduz. Há um sentimento frenético no movimento das coisas do mundo, e o cotidiano com sua nova luz volta a conferir cadência às nossas vidas.
Mas a arte de Gianguido Bonfanti, como maré vazante, viaja em sentido contrário numa via sem volta. Causa espanto e nos desperta do estado de inércia, torpor e letargia, como a lembrança da fúria de uma tempestade de verão. Arrasta-nos para sonhos desconexos.
Fazer do corpo e seu sofrimento a razão central de uma obra não me parece casual ou aleatório. Este assunto recorrente se evidencia e floresce desde trabalhos de meados dos anos 1970. Deparamo-nos com a crueza das imagens rudes criadas por Gianguido Bonfanti nas terríveis Doenças Tropicais.
Em seu trabalho, o corpo humano é o motivo gerador de quase todas as imagens e indagações. São figuras que estão a nos mirar impiedosamente, a nos inquerir como testemunhas da dor, da degradação, do envelhecimento e da ruína final.
O autorretrato é outra obsessão do artista. Há centenas deles: ora desenhos a bico de pena, ora pinturas a óleo em variadas palhetas – ocres, terras, negros, esverdeados, todas em misturas entrópicas – ou sua mais recente produção escultórica em argila e bronze. E mesmo quando representa o rosto de outros personagens, Gianguido Bonfanti parece retratar a si mesmo. O artista está sempre reivindicando sua singularidade e lugar neste mundo.
Há um raro vigor e até mesmo um sentimento irracional e narcisista em toda sua produção. E essa característica esquecida, deixada de lado pela prática e fabricação usual de uma arte que quer ser tutelada, igual, ansiosa em falar a linguagem da tribo e se submeter aos dogmas e normas vigentes na contemporaneidade, unicamente para ser aceita e institucionalizada, nos faz perceber quão livre e autêntico o artista Gianguido Bonfanti é em seu processo criativo. Interessa-me a repetição obsidente com que trata as figuras, seus rostos violentos, barrocos, patéticos, carcomidos por um tempo implacável.
Em uma dessas pinturas – um suposto autorretrato datado de 2011 – como num sonho desconexo, o torso de um homem emerge de uma espécie de pântano. Sua expressão imantada de força me faz pensar em uma figura mitológica, sem que eu saiba precisar a que mitologia pertenceria. Seu olhar se perde em algum ponto borrado no futuro. Em segundo plano, há uma sequência de árvores sumárias, secas e retorcidas. Em uma delas, vê-se um personagem recostado à espera da incerteza. Ao cabo, toda cena se vinca de melancolia e incômodo. Interrogo-me sobre a razão de tanta tristeza.
Em nosso último encontro, em seu ateliê arraigado entre as enseadas do Flamengo e de Botafogo, a manhã azul e limpa de fins de maio contrastava com a gravidade da pintura. Nessa ocasião, Gianguido Bonfanti me confidencia que seu foco, seu único interesse agora é por uma pintura “pura, expressiva, potente e essencial”. A meu ver, o artista passa a perseguir a simplicidade. Em seus mais recentes óleos, há um frescor semelhante às garatujas de nossa infância, quando, ainda meninos, brincávamos e rabiscávamos para imprimir no tempo sem tempo ou medida a nossa felicidade. E esta nova “caixa de lápis de cor” a sujar novamente a superfície branca da tela desvela a eterna usina da criação em seus dias de redescobertas e liberdade adormecidas.
Gonçalo Ivo
Madrid/Teresópolis,
outubro, 2016
A condição coletiva por Juliana Gontijo
A condição coletiva
JULIANA GONTIJO
Tão turva é a época que vivemos que somos, involuntariamente, pulverizados por uma engenharia de subjetividades que alimenta uma lógica do desejo individual e competitivo. Frente a essas circunstâncias, a consciência coletiva ganha potência política. O agenciamento livre comunal, fruto da ação consciente de um grupo e guiado por um propósito compartido, pode se opor à atomização das relações sociais —e, no sentido filosófico, romper o princípio de individualidade que Arthur Schopenhauer sugeria constituir nosso véu de Maia. A consciência coletiva é, portanto, uma força disruptiva e uma resistência na dialética capitalista, mas também um desafio poético.
A indagação sobre sua própria condição de coletividade é, portanto, o ponto central desse conjunto de trabalhos do Filé de Peixe, coletivo artístico formado por Alex Topini, Fabrício Cavalcanti e Fernanda Antoun, atuante desde 2006. Essa condição se expressa em sua relação de tensão criativa com a autoria, a identidade e a instituição numa série de propostas auto-referenciais, críticas e quase insolentes. Agenciamentos coletivos e apropriações de obras já clássicas da arte conceitual conferem uma tonalidade irônica a uma tradição estética orientada pela expressividade poética do artista enquanto sujeito individual e por uma aura que gira em torno da autoria e da originalidade de um objeto-fetiche.
Nesse sistema de reiteração temática, a potência do coletivo não se opõe ao indivíduo; ou seja, as características particulares de cada membro não desaparecem, mas encontram-se presentes a cada vez em corpo, imagem ou voz, num jogo quase narcísico de ego coletivo. A autoria é, nesse jogo, um sistema dinâmico na articulação das assinaturas grupais — fatorial, expandida e tensa.Mas, assim mesmo, o “impulso coletivo” — título homônimo de uma lúdica obra da exposição — gera distorção das formas, ironiza com a própria idealização do coletivo, tornando-o commodity — em A merda do coletivo— e agencia outras coletividades — na coleção cm2.
As apropriações —dentro das quais estão incluídas a performance de Paulo Bruscky, as cadeiras de Joseph Kosuth, the boring art de John Baldessari, as latas de Piero Manzoni e os cartazes de Barbara Kruger — criam sistemas de relações e uma transitoriedade entre discursos. Isto é, a apropriação de obras existentes na história da arte, um dos dispositivos artísticos mais frequentes dos últimos anos, não é apenas uma negação da originalidade —como poderia ser o ready-made duchampiano—, mas uma forma de indagar estruturas de significado. A obra de arte, neste contexto, seria apenas um estado intermediário, uma terminação temporária incluída numa rede de elementos interligados, através da qual é possível perceber as marcas dos relatos anteriores.A obra, enquanto texto passível de tradução e conversão, ao ser apropriada, se impregna de historicidade. Pois, segundo Walter Benjamin —também “apropriado” pelo grupo, não experimentamos a história quando estamos engajados no presente dos acontecimentos, mas sim quando nos deparamos com os dejetos da cultura sendo reutilizados. Afinal, como o Filé de Peixe nos demonstra na prática de suas propostas, na era da intensa reprodutibilidade técnica e da propagação infinita de imagens, mundo só existe em função do remake e das micro-piratarias, enquanto a condição coletiva se dá na vivência do sentido da história.
Evany Cardoso por George Kornis
Evany Cardoso, Paço Imperial, Rio de Janeiro, RJ - 17/03/2017 a 21/05/2017
O traço de união tanto une quanto separa. Ele expressa coesão e simultaneamente distingue elementos. Nessa perspectiva, o trabalho de Evany Cardoso no campo da arte pode ser entendido como um traço de união. Como traço ele tem caráter, traça um caminho muito singular e deixa claro seu rastro. E isso não é pouca coisa.
Dionísio foi, sem dúvida alguma, o founding father no Brasil da criação artística com base na técnica milenar da serigrafia. Evany, por seu turno, foi a discípula dileta que, unida ao seu mestre, contribuiu de modo decisivo para o desenvolvimento da linguagem gráfica pela incorporação contínua de inovações no âmbito dessa técnica. Está claro: a união entre Dionísio Del Santo/Evany Cardoso produziu, ainda que muito tardiamente, a consolidação da serigrafia como mais uma possibilidade de expressão artística lastreada na linguagem gráfica.
A biografia de Evany Cardoso, na qualidade de artista, encontra na união com Dionísio Del Santo um momento singular de criação plástica e possui seu locus na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Foi no passado e é no presente dessa instituição nuclear do ensino de arte no Rio de Janeiro que Evany uniu e ainda hoje une, de modo criativo e plural, um conjunto de artistas em torno de uma agenda de pesquisa e inovação. O desenvolvimento dessa agenda pressupõe fôlego e consistência no pensamento e na ação. E isso não é uma banalidade.
A presente exposição nasce de um paradoxo: Evany Cardoso é uma artista experiente, mas agora enfrenta o desafio de apresentar seu trabalho para um público mais ampliado e diversificado em uma exposição no Paço Imperial do Rio de Janeiro, uma sólida instituição do circuito de arte do Rio de Janeiro. O desafio não é pequeno, uma vez que ele implica apresentar a um só tempo e espaço a unicidade e a diversidade de um trabalho construído, muito discretamente, ao longo de décadas. O desafio é ainda maior se considerarmos que esta mostra se propõe a apresentar, de modo muito sintético, tanto a unidade e a coesão quanto a envergadura de sua obra. E a obra em pauta está em pleno curso de construção.
Desafios à parte, estamos diante de um momento de grande alegria: apresentar uma artista madura com ânimo e tensão de estreante como Evany Cardoso é, sem dúvida, um prazer cada vez mais especial na era do estrelato. Trata-se, portanto, de algo muito especial.
George Kornis
curador
março 3, 2017
Do Abismo e Outras Distâncias por Bruna Fetter
Do Abismo e Outras Distâncias
BRUNA FETTER
Em um cenário social e político no qual parece cada vez mais difícil a convivência entre opiniões e crenças distintas, a internet e as redes sociais têm sido um fórum que - mais do que permitir a exposição, a difusão e o amplo debate de ideias - vêm aprofundando as distâncias entre diferentes pontos de vista. Ao invés de ampliar suas visões de mundo através do acesso praticamente irrestrito à informação, as pessoas tendem a viver cada vez mais dentro de seus universos pessoais, ou bolhas, como chamamos comumente. À facilidade de um mero clique, laços virtuais e reais são desfeitos. Familiares deixam de se falar. Colegas de trabalho cortam relações para além das estritamente necessárias. Vizinhos passam a implicar (ainda mais) entre si. Amizades de infância são desfeitas. Com alguns outros cliques fornecemos informações sobre preferências ideológicas à grande matriz que, se valendo de algoritmos, traça nosso perfil e passa a oferecer aquilo que nos é confortável e corrobora nossas verdades. A opinião subjetiva e individual passa a ser a verdade disponível, e não aceitamos nada além dela.
Nesse contexto, no qual ‘pós-verdade’ foi escolhida a palavra do ano de 2016 pelo dicionário Oxford, falta tolerância para com a diferença. Segundo a definição apresentada pelo dicionário, o adjetivo faz referência a ‘circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência na formação de opinião pública do que apelos emocionais e opiniões pessoais’. Os editores esclarecem: no termo, o prefixo ‘pós’ não é utilizado como referência a um acontecimento passado (como em pós-guerra), mas sim para salientar a rejeição ou irrelevância do conceito precedido. Como no caso em que notícias falaciosas são compartilhadas milhares de vezes mesmo que seus disseminadores estejam cientes de sua carga de inverdade. Para quem viraliza as supostas notícias, não importa que dados concretos e informações comprovadas atestem a não veracidade de tais declarações, apenas que sua reverberação reifique suas próprias crenças. Uma versão de Maquiavel 3.0 [1] para justificar os meios em função dos fins.
Para além da falta de respeito, há uma escassez generalizada de empatia. Em um mundo no qual as minorias estão cada vez mais cientes da relevância de reforçar seu lugar de fala e de garantir que suas vozes sejam amplificadas, irônica e paradoxalmente há uma surdez coletiva para a diferença se aprofundando. Tal surdez possui uma estética própria: a estética dos muros de separação, das barreiras de contenção, das fronteiras que, aos poucos, se convertem em abismos.
Refletindo a respeito dessas questões e do papel da arte em tempos tão conturbados, Do Abismo e outras distâncias celebra os cinco anos de vida, projetos e proposições da galeria Mamute. A partir de uma seleção de trabalhos - em sua grande maioria inéditos -, a mostra se propõe a lidar com a diferença, com o ruído, e a nos fazer olhar para as distâncias existentes, sejam elas realidades ínfimas, ou metáforas abissais. Trazendo obras de todos os artistas representados pela galeria, a mostra questiona os gritos e os silêncios, as tensões e os embates da vida contemporânea, propondo aproximações dialógicas entre obras de poéticas bastante distintas.
Essas aproximações aparecem na mostra calibrando as ‘outras distâncias’ presentes no título, em encontros ora delicados, ora tensos. Como uma corda que, por proximidade física, vibra junto com outra mesmo sem ter sido tocada, a ideia aqui é acionar tensões poéticas que nos permitam fazer conexões simbólicas para além do dito e do desdito. Talvez seja utópico pensar que a arte tenha capacidade para derrubar barreiras e permitir nos aproximarmos uns dos outros com menos defesas. Mas talvez ela possa, pela via do sensível, nos ajudar a reconhecer e experienciar aquilo que mal cabe em palavras, tornando o diferente menos distante.
Bruna Fetter
Curadora da mostra
[1] Em irônica alusão à Web 3.0 que, anunciada como a terceira onda da internet, projeta estruturar todo o conteúdo disponível na rede mundial de computadores dentro do conceito de ‘semântica das redes’, ou seja, conteúdos online estariam organizados de forma semântica, personalizados para cada internauta de acordo com as informações geradas a partir do seu próprio uso.
Seis variações de Paulo Pasta por Jacopo Crivelli Visconti
Seis variações de Paulo Pasta
JACOPO CRIVELLI VISCONTI
Paulo Pasta - Seis Variações, Galeria Carbono, São Paulo, SP -08/03/2017 a 13/05/2017
No ateliê de Paulo Pasta, pinturas de momentos distintos de sua carreira convivem lado a lado, numa disposição aparentemente casual, que dificilmente encontraremos em suas exposições ou na composição de cada obra, já que em geral o trabalho dele transmite, pelo contrário, uma impressão de equilíbrio e ordem. Nessa montagem, pode acontecer que estudos com cores vibrantes fiquem juntos de pinturas noturnas, ou uma paisagem ao lado de uma abstração, e essas fricções acabam sugerindo uma leitura, talvez parcial ou excessivamente pessoal, mas não por isso menos instigante, da sua obra como sutilmente autobiográfica. Com algumas exceções do começo da carreira, as paisagens pintadas por Pasta são vistas dos campos do interior do estado de São Paulo onde ele nasceu: é a única paisagem que me interessa, ele diz. Para além do dado autobiográfico, é do ponto de vista formal, isto é, de sua estrutura e cor, que essa paisagem pode ser considerada efetivamente central na poética do artista: as divisões netas e definidas entre céu, terra e campos lavrados, a alternância de azul, verde e terra, as linhas retas e estreitas das estradas que surcam essas planícies de cores puras e extremamente uniformes, por vezes encontrando avenidas maiores, mais para frente, em ângulos retos.... A descrição não é muito diferente da que poderia fazer-se de uma de suas pinturas abstratas, o que torna ainda mais fascinante ouvir o artista dizer que sua cor é atmosférica, ou seja, inspirada mais nas continuas e quase imperceptíveis variações da luz ao longo do dia (e da noite) do que na obra de outros artistas. Significativamente, quando Pasta aponta para referências diretas da história da arte, elas são de composição, e não cromáticas, como no caso da divisão física, geralmente condensada num elemento arquitetônico, que separa a cena das Anunciações renascentistas em dois espaços ontologicamente distintos (de um lado o divino, representado pelo anjo, e do outro a virgem, com sua evidente humanidade), e que ele reinterpreta e sublima em algumas das suas composições.
A série de gravuras produzidas para a exposição na Carbono pode ser entendida como um conjunto de variações sobre cinco matrizes básicas, rigidamente geométricas, que constituem seu ponto de partida. Essas matrizes provêm de óleos sobre tela pintados anteriormente, selecionados, digitalizados e depois trabalhados no computador modificando as cores. Finalmente, as variações assim obtidas são impressas em Fine ArtPrinting, utilizando pigmentos minerais. Apesar das matrizes permanecerem exatamente iguais, as mudanças que Pasta obtém, através apenas dessas variações cromáticas, são profundas, fazendo com que as composições lembrem ora cenas noturnas, ora abstrações mais próximas às construções concretistas, ora ainda uma montagem quase mecânica ou automatizada. Considerações de ordem práticas sobre o processo de trabalho poderiam parecer superficiais, principalmente após ter argumentado que a obra de Pasta, desde seus inícios e apesar de ser em larga medida dedicada à abstração, é intensamente poética e pessoal. Mas vale a pena ressaltar esse aspecto porque, no que diz respeito especificamente à produção de gravuras, a maneira como elas são concebidas é intrinsecamente ligado aos aspectos técnicos da sua realização. Ao realizar uma série de monotipias no ateliê de gravura da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, alguns anos atrás, por exemplo, o artista produziu algumas impressões extremamente livres, aproveitando exatamente a dinamicidade do processo de preparação da chapa, e outras em que, antecipando de certa maneira o que vemos aqui, distintas combinações de cores eram obtidas a partir de uma mesma matriz geométrica.
De certa forma, porém, e diferentemente do que acontece na nova série de variações, o controle sobre o resultado final, naquele caso, era ainda parcialmente incontrolável, e em última instância surpreendente até para o próprio artista. Ao trabalhar com o meio digital, por outro lado, Pasta adquire um controle praticamente total, nesse sentido mais próximo do que acontece com as pinturas, onde as cores e formas são frequentemente retocadas e revistas, por vezes com variações mínimas na tonalidade de uma cor ou na espessura de uma linha, até chegar à forma final. Na maioria dos trabalhos, é possível ver uma faixa de tela não pintada em baixo, em cima ou ao redor da área pintada. Essa faixa, que significativamente aparece também nas gravuras, é obtido cobrindo a área com uma fita que, durante todo o processo de trabalho, é pintada exatamente como o resto da tela. Só quando o artista está convencido que a obra pode ser considerada concluída (não raramente ao término de um período de “convivência” no ateliê, isto é, dias ou semanas após ter dado a última pincelada), ele finalmente retira a fita, o que faz aparecer, muitas vezes, pequenos rastos de camadas de outras cores debaixo da última. Essas memórias, apesar de quase imperceptíveis, conferem uma qualidade única à composição, transformando uma organização rigidamente geométrica em algo profundamente humano, e ajudando a atingir o equilíbrio mencionado no começo deste texto. Um equilíbrio, cabe acrescentar, que não é sempre convencional, principalmente no que diz respeito às justaposições de cores que, ao longo dos anos e ao passo que o artista se tornava mais seguro do seu fazer, têm se tornado cada vez mais ousadas, o que pode também ser apreciado em algumas das novas gravuras. Um equilíbrio, enfim, que nunca deixa de ser dinâmico e em constante variação.