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fevereiro 20, 2017
Espaços transitivos por Luana Hauptman
Espaços transitivos
LUANA HAUPTMAN
Marcadas pela sensação de descentramento que contamina a vida contemporânea, as obras presentes nessa exposição investem na relação com o cotidiano e privilegiam proposições que remetem tanto ao espaço concreto da cidade, quanto a um espaço alusivo. O habitual e o corriqueiro figuram como elementos essenciais na fruição artística e transitam entre as questões formais da arte e as especificidades da urbe. Essas associações evidenciam analogias que se constroem como novas configurações, tendo como ponto de partida relações fronteiriças que lidam com deslocamentos e permutas de um sistema artístico cada vez mais fundado em perspectivas móveis. Talvez ainda exista um lugar da arte, mas que lugar é esse?
A partir desse questionamento, propõe-se uma reflexão sobre os limites físicos e conceituais dos lugares da arte, não só através da simples incorporação de elementos usuais ao espaço expositivo, mas do urbano deslocado de seu lugar primário e ressignificado esteticamente. Um exercício que lança luz sobre o vigente e confere um repensar sobre relações triviais, sugerindo novas interações e apropriações. Deste modo, mesmo desvinculado de uma conceituação artística a priori, o espaço urbano, ao ser tomado como parte, intensifica esse debate. Entretanto, além de pensá-lo apenas como um recurso, é necessário uma reflexão sobre como este meio estimula ações de construção e desconstrução, e expõe os conflitos ou as aproximações entre urbe e arte.
É no embate entre naturezas tão distintas que se cria um sistema de retroalimentação, repleto de intervalos, um todo não unitário que se contamina e se revela mutuamente, seja na cidade, que “impõe ganhar tempo (...) reter apenas a informação útil no momento”, ou na arte, que propõe “retardar o fluxo, criando um espaço vazio no qual outra coisa pode se instalar” [1]. Entre-lugares que inauguram valores e práticas, oferecendo ao sujeito uma fruição desvinculada de correspondências tradicionais. Nesse processo não há mais o limite da referência, mas o urbano transformado em arte.
Destes espaços diluídos surgem infinitas possibilidades, onde fluxos ininterruptos perpassam as estruturas rígidas urbanas e artísticas tornando-se agenciadores de processos. O provisório, a impermanência e o vazio são assimilados e dão origem a formas cada vez mais densas e complexas, o que pode ser observado em cada obra desta exposição. Estes trabalhos propõem indagações que transitam entre o lugar da arte e da urbe, seja enquanto ambiente de partilha e convívio ou como questão estética; uma reflexão que busca perguntas sem uma solução objetiva, colocando-se como um problema em aberto.
Luana Hauptman
Técnica de atividades Sesc Paço da Liberdade
1 Peixoto, Nelson Brisac. Paisagens urbanas, 2004, p.213.
A arte não tem medo da infância por Evandro Salles
A arte não tem medo da infância
EVANDRO SALLES
Se tomarmos a arte como um campo aberto de construção de linguagem, e se considerarmos que nas crianças o aparato da linguagem apresenta-se ainda em formação, também aberto e flexível, poderemos supor que nelas se dará a primazia do usufruto da arte: é na infância que a arte terá chances de operar de forma mais radical, como resposta à proposição de um outro.
Desde as profundas transformações da arte que se processaram no século XX, a criança, ao lado dos loucos e dos ditos “povos primitivos”, tornou-se uma referência fundamental dessa potencialidade à ressignificação através do olhar do outro à qual a arte não cessa de nos convidar. O reconhecimento dessa potencialidade nos dá hoje a liberdade, por exemplo, de renovar emocionados nosso olhar sobre a arte criada nas cavernas pelo homem pré-histórico, perpassando seu sentido por toda a história humana até os dias atuais.
Em O nome do medo, Rivane Neuenschwander, operando nos interstícios da palavra e da imagem, disponibiliza seu instrumental poético para um mergulho na história e na experiência do outro – crianças reunidas em oficinas no Museu de Arte do Rio e na Escola de Artes Visuais. Tendo como elemento detonador o medo e a elaboração textual e visual de seus universos íntimos, essas crianças – com a reelaboração de todo o material pela artista – fazem emergir aos nossos olhos as funções renovadas e renovadoras da arte ao gerar meios individuais e coletivos de criação de aparatos de linguagem para a nomeação e reinvenção do mundo.
Reinventado, revivido e renomeado, trata-se do único mundo a que temos acesso – o mundo humano, aquele criado por nosso olhar. Outros existirão, mas, intocados ou inabarcados pela linguagem, permanecerão para sempre invisíveis.
O MAR sente-se agradecido por este projeto proposto por Lisette Lagnado e realizado em parceria com a Escola de Artes Visuais do Parque Lage e vê nele ressoarem alguns dos princípios importantes de sua trajetória e plataforma: aqui também não se tem medo da liberdade da infância, porque sabemos da arte o poder de nomear e refazer o mundo e seus medos.
Evandro Salles
Diretor cultural
Museu de Arte do Rio – MAR
Sobre o Vazio: Fotografias e Vídeos de Alberto Bitar por Marisa Mokarzel
Sobre o Vazio [1]: Fotografias e Vídeos de Alberto Bitar
MARISA MOKARZEL
A fotografia de Alberto Bitar vai muito além do que os olhos alcançam e elegem para ser fotografado. Na série Sobre o Vazio o visível é parte da cena retirada de um cenário mais amplo que se enquadrou na moldura do visor e assumiu a condição de imagem; e o invisível é a sensível tessitura daquele que capta a cena e lhe atribui valor estético, dota a imagem de enredos sutis, sujeitos às novas tramas tecidas pelo outro que vê a fotografia exposta na parede, impressa no papel ou em movimento no vídeo. Com delicadeza, Bitar entremeia vida e imagem, fazendo com que as frestas deixem passar o excesso de luz e o excesso de escuridão para revezarem-se entre marcas e inscrições quase imperceptíveis.
O objeto fotografado nasce do universo íntimo, do labirinto que faz e refaz histórias. Diferentes tempos intercalam o silêncio. Se antes a infância era a matéria reveladora do afeto paterno, dos passeios ao Mosqueiro que resultaram em Efêmera Paisagem, agora são efêmeros instantes dos quais surgem os corpos ausentes, manifestos no quarto vazio, nos compartimentos desabitados, preenchidos por cheiros, objetos esquecidos, camas desarrumadas.
Casa de partida. Casa de chegada. Quarto de hotel. Qual lugar consegue reter a cena, os instáveis sentimentos? Todo Vazio, Qualquer Vazio, Breve Vazio invadem o espaço, permitem que o ar escape, atravesse a porta e perca-se no outro lado da janela, de onde se pode ouvir a voz do artista a afirmar que restam “distâncias, incômodos, algumas tristezas”...é a imagem que, de súbito, nos envolve e inclui na cena. A sensação de ser incluído é produto de uma série de procedimentos que atravessa memórias, narrativas, ficções e realidades em um processo que abarca diferentes linguagens.
Belém, a cidade em que Alberto Bitar nasceu e vive, é conhecida desde os anos 1980 como um dos polos da fotografia realizada no Brasil. Neste forte campo fotográfico, alguns artistas se destacam por uma produção diferenciada de vídeoarte, aquela que utiliza a fotografia em seu processo experimental, no qual as fronteiras se alargam, prevalecendo o trânsito das linguagens. Bitar encontra-se incluído entre os fotógrafos que trabalham a imagem em movimento com a sequência fotográfica, criando não exatamente histórias, mas uma possível narrativa que em vez de articular os enredos, os deixa livres para que as cerziduras aconteçam de acordo com o espectador/leitor. Obras como a série Sobre o Vazio situam-se no limiar do documento, da ficção, partem da memória afetiva, das condições subjetivas que percorrem sentimentos e sensações.
Em 31 de maio de 2009, numa entrevista concedida ao Diário do Pará, Bitar comenta sobre os recursos da fotografia no audiovisual, considera que o uso da imagem digital, acompanhado pela facilidade ao acesso de equipamentos de captação e edição, é responsável pelo surgimento dos inúmeros experimentos que vem sendo realizados nos últimos anos. [2] De fato, os avanços tecnológicos propiciaram condições para que novas experiências surgissem orientadas para diferentes segmentos. Referindo-se ao vídeo produzido no campo da arte, Christine Mello menciona a evocação ao mundo híbrido, do qual surge, no âmbito da cultura digital, uma nova forma de estranhamento, uma vez que se observa a dinâmica do vídeo “[...] como, uma dinâmica muito particular de produção de estranhamento, desvios e ruídos, refletida pela forma histórica na qual se constitui a sua ação estética”. [3]
Nos vídeos de Alberto Bitar pode-se perceber a produção de estranhamento advinda dessa dinâmica particular que introduz uma estética, proposta pelo próprio artista, quando o estranho passa a habitar um contexto de deslocamentos, de passagens, associado a percursos provenientes da memória e do imaginário. Na verdade, tanto as fotografias quanto os vídeos da série Sobre o Vazio são atravessados por uma memória afetiva e por processos narrativos livres em que o documental e o ficcional se tangenciam.
As narrativas no processo fotográfico, não são acompanhadas pela sucessão de fotos, acontecem de forma sucinta, se tornam presente em uma única imagem retirada de lugares onde o artista viveu, pretendia viver ou passou em breve instante. E são essas imagens fotográficas que, articuladas a uma lógica pessoal, vão constituir o vídeo. Na imagem em movimento a fotografia funciona como elemento fundamental, por isso pode migrar de uma obra à outra, ser disposta de forma diferente em outros espaços expositivos ao retornará condição de imagem fixa.
A mesma fotografia acolhida no vídeo e articulada na sucessão de outras imagens se situa em diferente tempo daquele adquirido enquanto imagem fixa, mas independente da condição assumida, o tempo que prevalece é o psicológico, que acompanha o artista na seleção do que vai ser fotografado e o espectador que vê o resultado da seleção, da estética escolhida. Benedito Nunes considera que “o primeiro traço do tempo psicológico é a sua permanente descoincidência com as medidas temporais objetivas”. [4] Esse tempo vivido, experimentado varia de indivíduo para indivíduo, o autor o classifica como um tempo subjetivo e qualitativo que é composto por momentos imprecisos.
As imagens retiradas de ambientes caros à memória trazem resíduos de histórias reais ali vividas que se misturam aos objetos e as lacunas do que ficou ausente, tornando-se, em potencial, matéria de ficção. Ao usar Anatol Rosenfeld como referência, Nunes comenta que o presente na ficção não tem caráter preferencial como tem na realidade. Trata-se de um tempo deslocável, assim como é o passado e o futuro; “[...] o tempo da ficção liga entre si momentos que o tempo real separa.” [5] Em sua complexidade pode inverter a ordem dos momentos, se dilatar ou contrair, figurar o intemporal e o eterno. Pode valer-se da memória para processar o jogo da ficção.
De acordo com Laura González Flores “a memória se relaciona com a assimilação do vivido e com o processo de cognição. É um processo seletivo das experiências vitais e sensoriais mais importantes”. [6] Ao analisar o princípio da distância e a arte da memória, Philippe Dubois comenta sobre o que se estabelece entre a foto e aquele que a vê; o autor se detém na relação contínua entre passado e presente, concluindo que na imagem se torna presente o efeito de ausência. Em algum lugar, em algum dia aquilo que estava no papel existiu, mas logo desapareceu e jamais se vai “poder tocar, pegar, abraçar, manipular essa própria coisa, definitivamente desvanecida, substituída para sempre por algo metonímico, um simples traço de papel que faz as vezes de única lembrança palpável.” [7]
Recorrente, a memória afetiva do artista costuma integrar seus trabalhos constituídos de narrativas que se produzem num contínuo fluxo, num indeterminado começo ou fim que pode prosseguir e se desdobrar em novas experiências. Na série Sobre o Vazio [8], iniciada em 2011, estão presentes os vídeos Todo o Vazio e Qualquer Vazio. Neles, Alberto Bitar novamente atravessa as margens da finitude pra prosseguir no desdobramento da obra. Em 2012, os dois vídeos juntos formam um terceiro: Vazios.
O artista utilizou aproximadamente quinze mil fotografias para a realização desses dois vídeos que foram programados para serem vistos em separado, mesmo que em um mesmo ambiente. Ambos encontram-se impregnados de ausência, partem da desocupação de dois lugares distintos. São resultantes do Prêmio Marc Ferrez de fotografia da Funarte e entre as mostras que participaram estão o Panorama da Arte Brasileira, Mostra Fotocine e Estação Videoarte.
Todo o Vazio recobre-se da difícil despedida do apartamento em que Bitar viveu com a família por mais de 20 anos. O vídeo inicia com uma intensa luz que invade a sala sem que se possa enxergar a mobília ausente ou as linhas arquitetônicas que delineiam o ambiente e o tornam ainda mais vazio. O excesso de luz cega.A memória e o esquecimento se formam no vácuo e através da lembrança devolvem sentimentos e imagens agora intermitentes, traduzidos em escuridão e luz.
Sempre presente, a recorrente janela demarca o dentro e o fora que não permite esquecer que a cidade não para. O contraste do vazio de dentro com os outros prédios habitado por tantas histórias redimensionam os detalhes perdidos e agigantam interruptores, cortinas enroladas, fios elétricos que serpenteiam o chão. No estático da fotografia apenas as nuvens se movimentam.
A tela presa à sacada do apartamento ainda traz o cuidado com o filho, no chão da cozinha a cicatriz do azulejo que falta e do sabão esquecido na pia. “A teoria indicial da fotografia como pele descolada das coisas apenas confere a carne da fantasia à poética romântica do tudo fala, da verdade gravada no próprio corpo das coisas.” [9] No acorde binário do som repetitivo do vídeo, a voz de cada coisa, e nela própria o toque de cada ausente, a presença invisível gravada na imaterialidade dos corpos que ali viveram. O adeus, as novas vidas que ocuparão o lugar apenas acrescentarão mais uma camada no que se encontra impregnado na casa, advindo dos resíduos dos que não mais ali residem.
Em Qualquer Vazio mantém-se a intervalar luz e as camadas de histórias, desta vez desconhecidas, anônimas. Realizado no mesmo ano de Todo o Vazio, em 2011, os dois vídeos não se complementam, mas estabelecem conversas, recursos próximos, temáticas distintas. O título é revelador de uma aproximação, em ambos o “vazio” demarca aquilo que se aloja na tela, remetendo-nos ao nada deixado pelo que se foi. O nome é precedido por pronomes indefinidos; “qualquer” e “todo” ocupam o campo da imprecisão. Mas, enquanto o “todo” refere-se a um conjunto de coisas, “qualquer” é desprovido de totalidade, além de não especificar se dilui na indeterminação.
Para realizar Qualquer Vazio Alberto Bitar fotografou diferentes quartos de hotéis logo após a saída do hóspede e antes de outro entrar. Na imagem, predomina o desarrumar dos lençóis, os traços de quem ali dormiu e deixou uma pequena parte de sua vida. Nesse labirinto íntimo de histórias desconhecidas o artista “[...] convoca a existência de um mundo que, se não fosse ali convocado, não existiria. Tudo existe dentro do universo fechado da ficção” [10], inclusive as cenas ausentes que se movimentam na imaginação daquele que as recortou e daquele que as vê.
Diferentes tempos intercalam o som que sempre retorna. Nos compartimentos desabitados, preenchidos por cheiros, vagam sentimentos e secretas emoções que entre paredes aguardam o sobrepor do que estar por vir. Incessantes partidas e chegadas avolumam a cadeia de sensações, de histórias em trânsito, sem tempo de fixar-se em um quarto de hotel. Resta o ar que escapa e atravesse a porta, permanece o enigma.
Em 1981, Sophie Calle [11], durante três semanas confina-se em um hotel de Veneza e experimenta o papel de camareira, ficando responsável pela arrumação de doze quartos. Além da ação performática, a intenção era fotografar e fazer anotações sobre os hóspedes, como uma espécie de detetive. Apesar de não se encontrar com eles, diferente de Bitar, acompanhou os seus movimentos, esteve sempre atenta aos indiciais deixados durante o período em que estiveram hospedados: as roupas dependuradas, as leituras de revistas e jornais, o pijama sobre a cama e outros vestígios ali espalhados. As fotografias e anotações depois formaram uma instalação e foram expostos.
Alberto Bitar e Sophie Calle produzem seu trabalho em um hotel, têm os hóspedes como foco, mas se distanciam em suas concepções e resultados. Se no caso de Bitar o que se destaca é o vídeo-fotografia, no caso de Calle a ênfase recai sobre a ação performática e a instalação. Vale notar que a fotografia os une e os separa. Ambos fotografam os vestígios dos hóspedes, contudo a Alberto Bitar não interessa os detalhes, tampouco inferir narrativas a partir dos objetos. Pouco lhe importa saber de qual romance escapou a persona que se aparta provisoriamente de seus pertences. O que lhe atrai, em especial, é o hóspede já ausente, o vazio advindo do estado transitório e do entre que delineia intervalos, deixa em aberto o possível abismo que o separa do desconhecido. Não é à toa que em um terceiro vídeo reúna os Vazios, seja ele todo ou qualquer.
Em outro momento surge o ensaio fotográfico Completude proveniente da vontade de Alberto Bitar em aprofundar a série Sobre o Vazio. O tema permanece, mas a abordagem é diferente. Trata-se agora de uma casa do início do século XX, repleta de histórias desconhecidas que não podem ser reconstituídas, contudo estão presentes, mesmo que invisíveis no espaço. Para Bitar, “seria um lugar onde o futuro teria maior importância, pois seria onde eu habitaria e preencheria o novo ambiente com novas memórias.” [12]
Novamente emergem as cicatrizes, peles soltas de tinta que deixam exposta a epiderme da parede, a suja demarcação dos móveis, retirados do compartimento agora vazio. Da mobília não se tem notícia, não se sabe o destino. A luz fantasmagórica que invade o chão não ilumina o piso, apenas convive com o desenho que se repete, deixando ausente o andar de quem o pisou. Restam frestas de luz, as portas e janelas entreabertas que convivem com as sombras. Todavia é nesse lugar quase abandonado que reside a possibilidade de novas memórias.
Duas instalações também fazem parte da série Sobre o Vazio: uma que não foi nomeada e a outra intitulada de Breve Vazio. A primeira, sem título, criada em 2011, foi Prêmio Aquisição no Arte Pará de 2012 e integra o acervo do Museu de Arte do Rio – MAR. Considero que este conjunto de fotografias apresenta a sua tessitura diferenciada dos demais ensaios que compõem a série. Constituída por um painel, também estabelece a relação dentro-fora, mas o que predomina é a cidade e não o interior da casa, do apartamento ou do hotel.
No painel, encontra-se a mesma paisagem, permanece o mesmo ponto de vista. Trata-se do olhar fotográfico que vem da janela e se deixa trair pela cortina transparente que se incrusta entre as outras imagens, fazendo lembrar que o dentro permanece e a qualquer momento pode torna-se um Breve Vazio.Repetida inúmeras vezes a paisagem-imagem sofre a ação da luz, ganha nova cor, apresenta diferentes tonalidades conforme a hora e o tempo. O convívio com a luz caminha para a sua própria ausência. O anoitecer se aloja ao lado da janela travestida de puro branco que se duplica ao se refletir no espelho. O excesso de luz, desta vez, não ultrapassa o limite da esquadria, o estado íntimo se protege no invisível da sombra.
A segunda instalação, Breve Vazio,criada em 2012 e produzida em Goiânia,é formada por duas imagens e um políptico. Como o vídeo Qualquer Vazio se passa em um quarto de hotel. Sobre esse lugar de passagem, Bitar se pergunta: “Que diferente significado a paisagem da janela ou do quarto teriam se ELA não tivesse deixado de viajar? De me acompanhar? Que diferentes memórias aquele espaço guardaria se tivéssemos ficado juntos? E se...” [13] A condicional prevalece sem que a certeza se ajuste ao lugar, às instáveis sensações.
Trata-se agora do frugal tempo e do espaço que se move na síntese narrativa igualmente impregnada de ausência.No quarto, as marcas do tecido que envolve a cama, os travesseiros. O dentro e o fora estão prestes a ultrapassar a janela que os divide e os conecta. Não fosse a cortina transparente a cidade invadiria a intimidade do quarto, da mesma forma a cama flutuaria entre os prédios, subvertendo a realidade e instalando a dúvida.
Todo, Qualquer ou Breve Vazio, assim como Completude e a instalação sem título, ocorrem num estado de ficção em que memória e imagens permeiam o instável processo fotográfico e se deixam tomar pelo movimento, transformando linguagens, articulando e desestabilizando elementos constitutivos de uma estética que se revela na ausência, no vazio.
NOTAS
1 Este texto traz trechos do artigo Vídeo – Fotografia: um lugar fora de si, de minha autoria, que se encontra no livro Pará+Vídeo+Arte – Notas preliminares a uma historiografia da videoarte no Pará, editado pela UFPA/PPGARTES, 2015 e organizado por Orlando Maneschy e Danilo Barauna.
2 O depoimento de Alberto Bitar foi retirado da matéria intitulada Exposição: Tempo e Memória inspiram Alberto Bitar. In: Diário do Pará, Belém, 31/05/2009.
3 MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008, p. 124.
4 NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988, p. 18.
5 Idem, p.25.
6 GONZALEZ FLORES, Laura. Fotografia e Pintura: Dois meios diferentes? São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, 124.
7 DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e outros ensaios. Campinas, SP: Papirus, 1993, p. 313.
8 Resultado do XI Prêmio Marc Ferrez de Fotografia foi exposta pela primeira vez, em Belém, na Fotoativa. Ainda em 2011, integra o 32º Panorama da Arte Brasileira, com curadoria de Cauê Alves e Cristiana Tejo.
9 RANCIÈRE, Jacques. O Destino das Imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p.24.
10 BRIZUELA, Natalia. Depois da Fotografia: uma literatura fora de si. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 193. Esta afirmativa refere-se à fotografia na obra de Mario Bellatin, mas é também possível de percebê-la na obra de Alberto Bitar.
11 Artista francesa que também transita no espaço hibrido da performance, da fotografia e da literatura. SOHIE CALLE. M’as–tu vue. Paris, France: Éditions du Centre Pompidou; Éditions Xavier Barral, 2003.
12 Depoimento de Alberto Bitar que consta de texto digitado cedido à autora em 2015.
13 Ibidem.
fevereiro 14, 2017
O que não pode ser dito ou… sobre apagamentos por Marília Panitz
O que não pode ser dito ou… sobre apagamentos
MARÍLIA PANITZ
Em um mundo tratado como legível, como abordar os hiatos de significação? No texto, na imagem e na letra… no indizível. Como lidar com o que não é lido? Cicatrizes indeléveis, estas marcas podem estar inscritas no fundo de nossos olhos, como filtros para se ver através, determinando toda a possibilidade de sentido. Haverá, então, informação (textual ou imagética) que seja, realmente, uma novidade para o humano?
Todo pensamento registrado é um recorte. Tudo aquilo que se pode dizer, mostrar… e esconder: esse é o sintoma, por excelência, das diferentes culturas. Assim, o ato de ver|ler é um ato de enquadrar e recortar o mundo?
Hêlo materializa essa ação como proposta poética e política. O lapso é o centro (excêntrico) da obra. O não ver determina a leitura, carregada de conteúdos flutuantes. Onde a imagem se retira, comparecemos com o que já sabemos dela? Preenchemos o vazio com nosso acervo de lembranças? Ainda somos capazes disso, quando tudo o que fazemos é perder-nos na selva figurativa em que vivemos?
Mas algo chama a atenção nos recortes: a figura retirada – como na série dos museus – produz janela; as palavras ausentes ali produzem uma renda, uma teia, um tecido. Vê-se através de uma e de outra, mas são olhares com molduras totalmente diferentes. Na primeira série, o enquadramento realça o que está do outro lado (sempre numa visão incompleta, claro). Na segunda, atenua, cria véu. São visões parciais de categorias diferentes, que criam uma bela parábola das relações entre as duas formas de comunicação, uma mais direta, sintética (e ilusória); a outra construção em torno do objeto.
Na série dos jornais, o foco parece se deslocar para a questão de um certo embate de narrativas que se anulam, na relação entre imagem e texto veiculados pela mídia (em especial, a impressa, física, aparentemente menos volátil… aparentemente). Aqui, as retiradas são parciais, o referente daquilo que foi recortado está presente (algumas vezes, repetido à exaustão, perde toda a potência informativa. E não é esse um recurso ao qual somos expostos cotidianamente?).
Nas grades produzidas pela superposição das páginas recortadas, Helô mantém os laços com sua matéria-prima (os jornais diários). Absolutamente reconhecível, o suporte de sua poética (e na sua ação política) faz-se como justaposição de intervalos, emula a abstração geométrica, onde o que se lê é a estrutura… sem título, sem uma proposta narrativa intrínseca. Boa leitura.
fevereiro 9, 2017
O olhar do poder e o poder do olhar por Frederico Dalton
O olhar do poder e o poder do olhar
FREDERICO DALTON
O secreto está aqui. Supostamente revelado. Por que não admitir que a arquitetura mencionada no título desta exposição pode ser também a arquitetura desta galeria? Desta forma, igualam-se o espaço retratado nas obras da artista e o ambiente onde estas fotos estão sendo compartilhadas. Motel e galeria de arte como momentos de contato como uma mesma energia que dá visibilidade a instintos e que alimenta o visual como revelação. O secreto desvendado nas fotos e o secreto guardado na cabeça do espectador colaboram na construção de uma arquitetura do olhar.
Da mesma forma que um quarto de motel é campo de reverberação de imagens, reflexos de desnudamentos e consagração do visual, uma galeria de arte celebra o que o olhar tem de cultural, predatório e instável. O quarto de motel parece nos dizer que o sexo não existirá se ele não for visto e multiplicado como informação visual o maior número de vezes no período em que se estiver ali. Afinal, o motel é um palco onde o visual é cobrado por horas. Os espelhos multiplicam os amantes, criam uma plateia de voyeurs feita deles mesmos: um público virtual dentro do privado.
Também o olhar dos espectadores na exposição resulta de rebatimentos entre as obras, entre os corpos e o lugar. É um olhar que, assim como no motel, já nasce com os momentos contados. Comparada com a experiência de quem ouve um concerto, numa fruição estendida no tempo e muito mais mental que física, numa exposição o espectador salta de trabalho em trabalho como se experimentasse pequenos orgasmos. Há uma ânsia na natureza do ver. Onde focar? Por quanto tempo?O todo ou a parte, o que priorizar? Há uma instabilidade. Ânsia e instabilidade caracterizam tanto o amor praticado nos quartos de motéis quanto o percurso de um espectador numa exposição de arte.
O mundo é feito de relações. E aquilo que a artista torna visível (objetos cortantes, situações eróticas, sadomasoquismo) é tão intenso e forte quanto o que os espectadores escondem. No fundo (e nas aparências), tudo é um jogo de poder. O visual exerce seu poder sobre o sexo, a artista exerce seu poder sobre a arquitetura e o público exerce seu poder sobre a artista, que dele é escrava, que para ele faz arte, se fragmenta, se expõe, trabalha. Vencedora nas artes marciais e nos jogos que se desenrolam nas imagens, a artista curva-se ao olhar do espectador: impassível, soberano. Parado por míseros segundos apenas diante de cada uma das fotos da exposição, o espectador se detém com compostura, como se tudo entendesse. Porém,sua ignorância e incompletude estão muito bem disfarçadas.
“Arquitetura do Secreto” de Monica Barki é uma exposição sobre relações, sobre o olhar do poder e opoder do olhar. São muitos os atores aqui. E no drama destas relações se destacam o dizível e o indizível, o que pensamos saber sobre nós mesmos e os enormes esforços que empreendemos para de alguma forma existir.É um evento sobre o olhar do poder, sobre como o poder se veste, se configura e se organiza para melhor nos enquadrar; e sobre o poder do olhar, sobre como o poderoso olhar do espectador é capaz de nos desnudar.
Frederico Dalton, janeiro de 2017
Medida de um gesto por Felipe Scovino
Medida de um gesto
FELIPE SCOVINO
Pequenos Formatos: Dimensão e Escala, A2 + Mul.ti.plo, Petrópolis, RJ - 12/02/2017 a 09/04/2017
A reunião das obras nessa exposição não se dá, a princípio embora isso possa ocorrer ocasionalmente, por um diálogo formalista mas pelo que poderíamos chamar de afinidades eletivas. E estas afinidades se fazem presentes basicamente por dois motivos que estão conectados a ideia de pequeno formato: o primeiro é que as obras possuem a medida de um gesto, a proximidade real e incisiva da mão do artista, e são precisas exatamente porque fazem um uso sensível, inteligente e total do espaço em que se tornam visíveis para o mundo; e o segundo motivo é que apesar do formato diminuto, essas obras exploram uma escala que excede o plano, como se houvesse significativamente uma vontade de explorar uma continuidade de suas respectivas pesquisas e formas para além do espaço delimitado do plano. O tamanho das obras é desproporcional à escala que engendram no âmbito de uma especulação imaginativa. São formas sintéticas e organizadas de raciocínios apurados que exploram os mais diversos meios, e fundam um vocabulário plástico de alta intensidade.
Não confundam esses pequenos formatos com estudos, desenhos, projetos ou rascunhos para a realização de “obras maiores” ou mais “maduras”. Pelo contrário, essas obras reúnem pensamentos condensados que criam um diálogo com as investigações desses artistas, assim como qualquer outra obra independente de sua escala, formato ou suporte. Essas produções fazem parte de um conjunto de trajetórias artísticas, em diferentes estágios, que primam pela coerência e diversificação de linguagens. A escala dessas obras revela e destaca um tom intimista, o que propicia, invariavelmente, uma proximidade maior com o espectador que se mantém, agora, ainda mais atento aos detalhes e circunstâncias específicas desse conjunto de trabalhos.
Em alguns casos, ver pela primeira vez obras que não necessariamente correspondem à escala que estamos acostumados a assistir daquele artista pode vir a causar uma surpresa. Mas por outro lado, mudar está na ordem na natureza, visto que a continuidade numa situação estabelecida gera a saciedade. Ademais, essas obras podem conter, dependendo do caso e da proposta, um sentido laboratorial. Fugindo à escala com a qual está habituado a operar, o artista pode entender essa proposta como um desafio total e testar possibilidades e quiçá linguagens que ainda não havia experimentado. Pôr-se em risco. Indagar os limites. Percorrer caminhos ainda não aventurados. Estes artistas, portanto, têm um compromisso com a invenção, em estabelecer regimes de visibilidade que permitam tornar os olhos do espectador mais sensíveis ao mundo que o cerca. E isto definitivamente não é pouco.
Essa exposição configura-se, visto a quantidade e qualidade de obras, num panorama visual de fôlego das artes visuais brasileiras e, portanto, num importante estudo sobre as produções multifacetadas desses artistas.
fevereiro 5, 2017
Anita Malfatti: 100 anos de arte moderna por Regina Teixeira de Barros
Anita Malfatti: 100 anos de arte moderna
REGINA TEIXEIRA DE BARROS
Há cem anos, São Paulo assistia à inauguração da Exposição de pintura moderna Anita Malfatti, evento que alteraria para sempre o curso da história da arte no Brasil. Do conjunto ali reunido, chamavam especial atenção as paisagens construídas por meio de manchas de cores fortes e contrastantes, e, nos retratos, os enquadramentos insólitos, as deformações anatômicas, o colorido não naturalista. As extravagâncias expressivas – aos olhos dos matutos que, até então, só haviam tido contato com pinturas acadêmicas ou muito próximas disso – sinalizavam o impacto que a arte de vanguarda tivera sobre a artista durante o período de aprendizado na Alemanha (1910-1913) e nos Estados Unidos (1914-1916).
Inicialmente, a mostra foi recebida com assombro e curiosidade: a visitação foi intensa, e Anita chegou a vender oito quadros. Mas a crítica de Monteiro Lobato “A propósito da exposição Malfatti” – posteriormente conhecida como “Paranoia ou mistificação?” – ecoou de forma negativa e, a partir de então, o nome de Anita ficou associado àquele do criador do Sítio do Pica-pau Amarelo. Cristalizou-se a ideia de que ela nunca se recuperaria desse incidente e que seu breve apogeu teria sido seguido de uma dolorosa e definitiva decadência.
Após um século deste marco, já é tempo de reexaminá-lo à luz de uma abordagem ampliada do modernismo, principalmente porque a contribuição de Anita para a história da arte moderna brasileira não se resumiu às inovações formais que apresentou em 1917. Em vista disso, Anita Malfatti: 100 anos de arte moderna inclui pinturas e desenhos que pontuam diversos momentos da produção desta artista, sempre sensível às tendências artísticas a sua volta. Para além do belíssimo conjunto expressionista que a consagrou como estopim do modernismo brasileiro, a exposição apresenta paisagens e retratos de períodos posteriores, como as refinadas pinturas naturalistas das décadas de 1920 e 1930, e aquelas mais próximas à cultura popular, presente nos trabalhos dos anos 1940 e 1950.
A celebração de cem anos de arte moderna no Brasil é uma excelente ocasião para rever o legado de Malfatti como artista pioneira – inspiradora da Semana de Arte Moderna de 1922 –, cuja atualidade se prolongou tanto no radicalismo com que se lançou ao retorno à ordem, na década de 1920, quanto na ousadia com que se apropriou da “maneira popular”, nos últimos anos de vida. Trata-se, sem dúvida, de uma artista ímpar, sintonizada com seu tempo e com diferentes aspectos de um modernismo que ajudou a construir.
Regina Teixeira de Barros
Curadora
Lugares do Delírio por Tania Rivera
Lugares do Delírio
TANIA RIVERA
Lugares do Delírio, Museu de Arte do Rio - MAR, Rio de Janeiro, RJ - 08/02/2017 a 16/07/2017
“A única arte que presta é a arte anormal”, dizia Flávio de Carvalho ao expor obras de pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juqueri em 1933. Mas existiria arte “normal”? A arte parece querer sempre fugir da “norma”, ou seja, do hábito e das regras que delimitam nossa realidade compartilhada. Ela abre janelas na vida cotidiana e nos convida a construir novos mundos.
O sofrimento psíquico intenso nos leva também, às vezes, a abrir janelas na realidade e delirar, ou seja, sair dos trilhos, dos sulcos do pensamento compartilhado e tomado como “correto”. Isso mostra que a realidade não é única e evidente, ela é construída por nós e pode ser alterada de diversos modos. Sua transformação no delírio, para o psicanalista Freud, é uma tentativa de “cura”, ou seja, tenta abrigar e conter nossa dor, reinventando o mundo para que nele possamos encontrar um lugar.
Mas essa atividade – humana, demasiado humana – não está restrita a situações de sofrimento extremo. Podemos dizer “que delírio!” ao falar de momentos intensos e que podem envolver prazer, alegria, invenção. O delírio pode aparecer na festa, na brincadeira, mas também na rebelião, na revolta contra uma sociedade injusta e violenta. Ele surge no Carnaval, por exemplo, suspendendo o lugar social e o gênero de cada um. Ou na gíria, que retorce a língua e a faz dizer outra coisa. Talvez a poesia seja sempre delirante, e a arte seja o campo no qual o delírio mais se põe em jogo – e nunca se esgota.
Tomando seu impulso no projeto original de Paulo Herkenhoff, esta exposição afirma que os lugares do delírio são muitos e variados, e tenta assim explorar e questionar as fronteiras entre normal e patológico, entre arte e vida, entre o museu e o mundo. As obras apresentadas vêm de lugares diversos – do circuito artístico tradicional ou de instituições psiquiátricas, do campo de interseção entre terapia e arte ou de propostas diversas de interação e construção poética entre sujeitos “fora dos trilhos”. Elas formam aqui um campo de suspensão no qual cada um de nós é convidado a se deslocar de seu lugar habitual para inventar novos modos de viver com os outros.
Lugares do delírio convida a um passeio pela louca poesia da arte – aquela que já está, de alguma maneira, na vida, entre nós. Seu desejo secreto é de fazer com que ela escorra pelas frestas, pelas janelas, que ela fure essas paredes e ganhe o mundo.
Tania Rivera
Curadora
fevereiro 4, 2017
Vânia Mignone por Felipe Scovino
Vânia Mignone, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 07/02/2017 a 25/03/2017
Duas circunstâncias chamaram-me a atenção na recente produção de Vânia Mignone. Talvez elas sempre estivessem presentes mas somente agora se manifestaram de forma clarividente para mim. Uma é a atmosfera musical que percorre suas pinturas, e a outra é uma dimensão cênica, a constituição de uma história por meio de uma sequência de frames, assim mesmo, como uma linguagem fílmica. Esta última anotação, por assim dizer, não é exatamente uma novidade no seu trabalho mas penso que ela se acentuou nos últimos anos. É o caso, por exemplo, de um conjunto de pinturas que constitui claramente uma linha narrativa ao relatar, ao seu modo, o cotidiano e imediatamente o incêndio de um circo. Ou ainda polípticos que assim como quebra-cabeças congregam peças que se unem para celebrar uma história, como é o caso de uma obra sem título, de 2016, dividida em 8 partes iguais de 60 x 60 cm. Nesta, uma mulher está deitada, provavelmente desacordada, no meio de um jardim, e ao fundo um semi-arco colorido com a frase “a tempestade começa aqui” estampada logo abaixo.
Aqui está o que considero um dos pontos chaves da sua poética, isto é, a forma como um conceito narrativo é trazido à tona. Ele é tornado aparente por meio de intervalos, sombras, pistas que não elaboram claramente a imagem do que está diante de nós, vestígios que nos transformam em detetives tentando elucubrar a cena do crime. São situações rápidas, flashes de um instante, uma ação especulativa e simultaneamente concisa.
Percebam que 3 obras, todas produzidas no ano passado, que fazem parte da exposição possuem essa mesma condição concomitante de autonomia e rede. São elas: Ali ficou, O efêmero e Pássaros. Possuem uma independência ao mesmo tempo em que constroem um fio condutor – que se dá pela proximidade estético-visual dos personagens que habitam aquelas obras e pelo texto - que constitui o dado narrativo entre elas. Ademais, são imagens entrecortadas, já que tanto os pássaros quanto a mulher que habita Ali ficou não se apresentam de forma inteiriça. Estão fora do quadro. Imagens laterais, periféricas, “tortas”. Lembram-me a vagueza e a força descomunal dos espargos de Manet [i]. Algo fora do comum, inadequado, porque não se espera isso de uma pintura. Os conservadores diriam que a pintura precisa revelar o mundo, ilustrar e refletir sobre aquilo que nos cerca, dar conta do que se coloca diante de nós.
Vãnia assim como Manet, Courbet, Toulouse-Lautrec, como tantos outros, seguem um caminho um pouco distinto desse. Eles se interessam pelo índice do que é verdadeiramente humano: a sua própria essência, aquilo com que convivemos boa parte do tempo, o que é da ordem do vago, do anti-espetáculo, do comum, da rotina estafante de ter que preencher o dia e nos vermos cercados por “insignificâncias”. Nada é mais significativo, prosaico e gracioso do que os olhares perdidos sejam da mulher ou do pássaro nas pinturas de Vânia.
Por outro lado, os cortes abruptos e fotográficos que aplica à imagem, a atmosfera urbana, caótica, em certa medida sensual e delirante que permeia os cenários que constrói e o protagonismo de uma personagem feminina levam-me a um referente para o seu trabalho: Wanda Pimentel. Definitivamente não acho que se tratam de obras panfletárias ou que aludem a qualquer tipo de ideologia, simplesmente pelo fato que a protagonista em ambos os casos é uma mulher (sem cabeça, no caso de Pimentel, pois o que costumava aparecer em sua icônica série Envolvimento, realizada nas décadas de 1960 e 70, eram basicamente as pernas e o tronco). Geralmente as telas dessa fase de trabalho de Pimentel tinham a casa como cenário e a aparição de peças de vestuário feminino, chaleira, mesas, isto é, o ambiente privado de um domicílio cercados por símbolos condicionadas a serem do universo feminino. Ainda que esteja cercada por eletrodomésticos ou exerça atividades que de forma preconceituosa são associadas à prática de vida da mulher, a personagem que habita suas telas exerce uma vontade própria e libertária. Aqui reside o cinismo da artista. Associando publicidade, fotonovela e um ligeiro erotismo, a mulher em Pimentel não se limita a contemplar a cena, pois ela é parte da mesma. A artista assume uma postura fortemente crítica em relação à mulher como presa indefesa do consumo fácil. E apesar de serem tempos distintos, gosto de pensar que a mulher, em especial, no trabalho de Vânia possui essas qualidades que estão presentes na obra de Wanda: autonomia, liberdade e força. É uma mulher frágil e intensa, enigmática e franca, vibrante e tímida, destemida e reflexiva. Enfim, impossível de ser definida pois ela mesma é produto desse fluxo de contradições e sentimentos.
Voltemos a série de trabalhos em que o circo é o tema. Tudo gira em torno do mistério, do estranhamente familiar. Apesar de não sabermos exatamente a origem e o destino daqueles personagens, eles não se constituem como elementos dispersos e autônomos. As pinturas criam um enlace, uma montagem não-linear onde passado, presente e futuro perdem suas orientações. Suas pinturas de certa forma sequestram o nosso olhar, pois somos seduzidos a desvendar cada trama da história. Percebam que geralmente são closes, aproximações, nada é oferecido ao acaso e mesmo assim aos poucos. Não há desperdício nessas imagens. São concisas, misteriosas, autoexplicativas e musicais. Muito já foi escrito sobre a proximidade entre a obra de Vânia e a estética dos cartazes, ou seja, como uma certa produção da indústria da imagem faz parte do universo de referências da artista. Não discordo, mas cada vez mais “ouço” rock ao assistir as suas obras. Em alguns momentos o próprio formato das obras faz menção a um cartaz ou capa de álbum [ii].
A linguagem direta das obras induz um peso e um incômodo ao cotidiano sereno assim como possui essa velocidade instantânea e crua que descrevi há pouco. São ingredientes típicos de uma canção com poucos acordes e que fala ao mundo, sem meias palavras, retratando a sua crueza sem perder a expectativa, mesmo que ligeira, pelo otimismo. Essa minha percepção de que o seu trabalho se confunde com as letras e o ambiente do rock coincide com uma paleta nova de cores que Vânia vem explorando recentemente. Duas situações que se colocam agora à prova. Mesmo que o fundo ainda se mantenha monocromático, há uma profusão maior e mais vibrante de cores convivendo no mesmo plano, como laranja, lilás, azul e marrom [iii].
Deixo-os nesse momento em contato com essa produção instigante que tem sua força precisamente por nos ofertar mais dúvidas do que certezas. A sua potência no meio da pintura – uma forma de pensar o mundo desgastada na última década por fórmulas fáceis e frágeis - se faz por ser um eterno enigma, por nos empurrar para uma zona difícil de ser localizada. Como escrevi em outro momento sobre a obra de Vânia, são situações imprecisas pois são imagens de todo e nenhum lugar ao mesmo tempo.
i Refiro-me ao óleo sobre tela L’Asperge, de 1880.
ii Um dado importante para essa discussão é o fato de Vânia ser a responsável pela capa do álbum Jardim/Pomar, de Nando Reis, lançado em 2016.
iii Refiro-me por exemplo a duas obras denominadas como Sem título e datadas de 2016. Apenas para referência, uma é a já destacada no texto (em que está escrita a frase “A tempestade começa aqui”) e a outra possui a expressão “Na floresta que escolhi” pintada sobre sua superfície.