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novembro 27, 2016

Novos mergulhos por Eduardo Veras e Luísa Kiefer

Novos mergulhos

EDUARDO VERAS e LUÍSA KIEFER

Gisela Waetge, Instituto Ling, Porto Alegre, RS - 30/11/2016 a 31/03/2017

Uma das questões que logo se colocam diante da morte de um artista diz respeito à continuidade de seu legado. Em seguida, outras indagações se desdobram a partir dessa primeira: como preservar o acervo? Como escolher o que mostrar? Que tipo de recortes fazer? Como decidir se já é chegada a hora de uma retrospectiva? Todas essas dúvidas pautaram nossas escolhas para a presente exposição, que é a primeira individual de Gisela Waetge após sua morte precoce, em agosto de 2015.

Entrar no universo íntimo da artista – seu ateliê, seus estudos, suas anotações – sem sua presença foi como descobrir um trajeto novo rumo a um endereço familiar; ou talvez como seguir em frente, seguros de nossa direção, mas ansiosos por já não termos ninguém para nos conduzir pelo caminho. Sem Gisela por perto, nos concedemos uma espécie de licença para abrir suas gavetas e seus armários, desembrulhar papeis, descobrir desenhos e redescobrir pinturas, reencontrando a artista graças à obra que ela deixou.

O que escolhemos apresentar no Instituto Ling, em Porto Alegre, é um primeiro mergulho em uma parte pequena de sua produção – sobretudo a parte mais recente, praticamente toda ela inédita. Entre pinturas e desenhos de grande, médio ou pequeno porte, estudos e cadernos de diferentes datas, encontramos questões centrais e persistentes em sua obra. Parte daquilo que constitui a força de sua poética – a geometria, a rigidez formal equilibrada com a delicadeza da composição, a racionalidade matemática em meio ao deleite visual e à sensibilidade de tudo aquilo que a rodeava – sempre esteve lá, fosse na tela ou no papel, no início de sua carreira ou em seus últimos trabalhos. Essa força funciona como uma linha de coerência que, naturalmente, nos conduz por sua trajetória e aponta direções na escolha dos trabalhos. Gisela pintava, de forma abstrata e rigorosa, seu universo íntimo e próximo, aquilo que a rodeava e lhe era próprio, mas, também, o mundo, a vida e a morte.

Parte do que há de tão comovente nesse legado tem a ver, justamente, com a maneira como suas pinturas e desenhos sabiam equilibrar essas tensões, trabalhando com certos contrapontos e ambiguidades. A mais notável delas talvez seja aquela que emergia do convívio entre uma disposição construtiva de matriz conceitual – a disposição matemática, rigorosa, bastante cerebral – e o apuro, digamos, mais formalista, que se norteava pela busca da beleza, pelo doce impacto retiniano. Não que não exista uma beleza muito íntima da matemática – Gisela parecia consciente dessa força, compreendia bem a energia própria dos arranjos lógicos e milimétricos. Em mais de uma ocasião, ela imaginou, e mesmo chegou a descrever, um plano minucioso, preciso, para que um desenho seu pudesse ser executado não por ela, mas por outra pessoa. As fórmulas matemáticas a encantavam e pautaram o ritmo de alguns de seus trabalhos, como as pinturas da série Base 12 – Base 9, de 2013. Ali, linhas e pontos jogavam com as medidas que delimitavam a malha ortogonal do fundo, embaralhando a percepção mais cartesiana. Ao mesmo tempo, a artista mantinha sempre como esteio suas impressões mais intuitivas, as harmonias inexplicáveis, as melodias visuais que levavam em conta e até desejavam a incorporação de acasos, silêncios, tropeços.

Outra ambiguidade frequente nas obras dessa artista dizia respeito à escala. O mais comum é que a delicadeza tão característica de suas composições, a suavidade com que os materiais pousavam sobre a tela ou sobre o papel – uma gota de lilás ou azul deslizando surdamente sobre a superfície – tratasse de conviver, meio como contraponto, com dimensões bastante largas. As telas, não raro, se faziam imensas, às vezes com dois ou três metros quadrados de área; vez ou outra alcançavam até mais do que isso. Um projeto seu, infelizmente nunca executado, previa a construção de um extenso painel de azulejos, que, se possível, poderia se desdobrar até o infinito. Em tais trabalhos fica ainda mais evidente a relação presente em sua obra entre o programado e o acaso.

Nos desenhos que Gisela fez em seus dois últimos anos de vida, esse paradoxo da escala desapareceu. Com as limitações físicas impostas, fosse pela doença em si, fosse pelo tratamento, ela não parou de trabalhar, mas decidiu reduzir o tamanho das imagens que orquestrava. Limitou as medidas e trocou os materiais, privilegiando pequenos cadernos, blocos, folhas e papeizinhos avulsos, grafites, lápis de cor, canetas nanquim e réguas.

Há duas consequências diretas dessa opção pelo pequeno. De um lado, uma maior concentração – seja de fôlego, de meios ou de resultados. Aquilo que se desenrolava em um plano largo, generoso, passou a se reacomodar em espaços escassos, econômicos. A base tornou-se limitada, mas uma quantidade vasta de gestos e procedimentos se afunilaram ali: pontos, círculos, linhas, grades, partituras, paralelismos, sobreposições, traços, carimbos. Daí o segundo ponto que gostaríamos de elencar, quase um desdobramento do primeiro: talvez porque houvesse uma combinação de urgência do trabalho e do fazer, um desejo imperioso de construção de imagens, uma ética do fazer, os desenhos em escala concentrada incentivaram a experimentação. Gisela sempre teve gosto pela experimentação: a sorte de tentar diferentes caminhos e possibilidades a partir de um trajeto comum. Muito seguidamente, o que acontecia em uma tela era herança do que ocorrera na anterior, e assim por diante, de tela em tela. No caso dos desenhos pequenos, porém, os intervalos se abreviaram, e, ao olhá-los atentamente, podemos perceber que a variação de algo que acabara de se arquitetar tinha a sorte de continuar quase imediatamente. As sucessivas tentativas estimularam a vontade de experimentar.

No recorte proposto aqui, buscamos apresentar algumas dessas ambiguidades e características que acompanharam a produção de Gisela em diferentes fases. Peças um pouco mais remotas, da primeira década dos anos 2000, representadas por duas pinturas quadradas e pelos estudos de escorridos de tinta, fazem parte da série que vem na esteira daquilo que foi produzido e apresentado na 5a Bienal do Mercosul, em Porto Alegre (2005). Nos desenhos desdobráveis e nos “desenhos de arquitetura”, produzidos entre 2008 e 2011, muitos deles apresentados ao público pela primeira vez, aparecem novas regras de produção e despontam outras relações entre as formas. A série de desenhos horizontais, alguns sobre caderno de partitura, outros sobre quadriculados ou pautados, são parte de sua produção mais recente e até então inédita. Neles podemos verificar a mudança de escala e a experimentação que a instigou até o final.

Se Gisela não pode mais nos acompanhar na pesquisa sobre sua obra, é justamente seu legado que nos conduzirá, de diferentes formas e por distintos caminhos, em ações que permitam a continuidade e a atualização de sua sólida e delicada trajetória como artista. O rigor e a leveza de suas pinturas e desenhos estão vivos, deixando em aberto muitas outras possibilidades de mergulho, permitindo que novos olhares e pesquisas possam emergir desse universo.

Eduardo Veras e Luísa Kiefer, novembro de 2016.

Posted by Patricia Canetti at 12:56 PM

novembro 22, 2016

Luz Tardia por Wagner Malta Tavares

Luz Tardia

WAGNER MALTA TAVARES

… porque na tensão da pergunta a alma
é levada à graça da sua verdade, que
a mando do conhecimento, a mando da pergunta, a mando da
configuração,
distendida entre a certeza do saber e a capacidade do conhecimento
procura a realidade…
Hermann Broch

Sempre ouvi e li, e pensei justamente por ter ouvido e lido, que a única coisa que há é o presente, que o passado, por ser passado, houve; e o futuro, por estar por vir, não há. Mas algo acontece quando decido pensar: “PRESENTE”, comecei no passado já projetado o futuro enquanto o momento vai me escapando como líquido. Tão inapreensível quanto passado e futuro, o presente não se apreende nem como ideia que se sente, parece ser o território mais próximo do fim de cada um, já que é sempre no presente que se morre. É como uma bolha de ar numa mangueira esticada e levemente inclinada que não para nunca de seguir seu percurso até chegar ao fim da trilha e ser devolvida para o seu lugar de origem. E me faz pensar que o presente é movimento, é apenas um instante e, como tal, como detê-lo? Finitos e breves, ancorados no passado e com a isca lá na frente lançada, ficamos nesse lugar de onde se veio, se passa e se vai.

Pensando nessa presentificação das três instâncias do tempo, vejo uma espécie de luz tardia emanando das Paisagens que Felipe Cohen fez ao longo de 2016. Um momento diante delas, e alguma luz do passado se nos apresenta, uma sensação de familiaridade – sem falar da herança evidente de artistas da tradição recente brasileira como Volpi, Barsotti, Willys de Castro e Oiticica –, uma familiaridade de tempo vivido, uma sensação de algum modo comum a todos. Quanto dessa luz parece ser um eco que vem lá de trás e se projeta para o futuro? Uma luz cálida, a mesma que escapava de mim nos fins de tarde da minha infância e que nos últimos tempos tem voltado ao quintal de casa: aquela luz que quer permanecer e que bate e rebate entre as paredes, vidraças e folhas mais claras de árvores, a mesma que ricocheteia entre os cortes dos triângulos dessas paisagens, cria eixos e planos improváveis, se agarra aos nossos olhos e ao nosso espírito e, mesmo ausente, deixa marcas e saudades. A luz, toda entrecortada pelos módulos de madeira, dá mais à experiência sensível: fragmenta, esquadrinha e constrói, como parte da tradição de Paris do século XIX que ainda reverbera e provavelmente continuará reverberando por muito tempo.

Inacreditável fenômeno natural, mágico, prosaico, que a todos fascina, que de saída tem a velocidade que sempre terá, que não acelera nem desacelera, a luz, que atualiza o olhar, atualiza a obra e não tem tempo, está nessas paisagens, mas aqui com uma luminescência tardia – fenômeno impossível em termos da física e que a arte nos possibilita na obra de Felipe –, devolve o tempo do passado para o presente e flerta com alguma possível iluminação de um futuro que parece, no mínimo, e para ser otimista, melancólico.

O mesmo tempo deslocado está nos furinhos provocados pelos confetes que afundam no piso, que mantêm sua cor apesar de parecer terem erodido o chão com o peso de sua existência fugaz. Pode ser também uma prospectação da luz futura que um dia atingirá aquela camada da pedra e imprimirá o que ainda está por vir. Mais uma vez as instâncias do tempo perdem suas margens e apresentam-se simultaneamente. Mas é apenas um instante, como detê-lo?

O Ocidente – lugar do sol poente, lugar da morte para os povos antigos, dos monstros para os europeus pré-descobrimento do novo continente, ponto limite onde tudo termina e prenuncia outro começo, linha por onde passa o carro do sol e onde se desenvolveu grande parte da tradição da arte que interessa a Felipe Cohen – é o título da mostra. Esse lugar escatológico, final, extremo, é por excelência o lugar da solidão e do silêncio, o silêncio do disco de feltro que prolonga sua luz na superfície do vidro a refletir e completar-se em um possível alvorecer no outro lado do horizonte. Sintético como um poema, como sentia Elliot na sucessão das esferas, na opacidade de cada camada e na dificuldade de algum vislumbre da transparência de cada coisa. Fenômeno que ocorre no relevo Lago, em que a sintaxe clara e generosa tem o mistério das coisas simples, não deixa dúvidas nem pensamentos esquivos, mas guarda seus segredos nos materiais que conservam suas características e revelam em sua relação.

Gosto de exposições que ambicionam o olhar de um homem, na medida em que isso é possível, já que a natureza humana precisa de exemplos para ser algo próximo de individual. Inclusive por isso, creio, o artista trabalhe na atualização da tradição – já que há que se olhar para um lugar para se reconhecer, a escolha foi precisa naquilo que para ele seria exemplar.

Confuso e emocionante, o lusco-fusco do cair da tarde, aquela luz que
desaparecia
(e se dissolvia na
matéria escura da noite.
Quando criança, brincando na rua.)
Posted by Patricia Canetti at 1:55 PM

novembro 19, 2016

Liuba no Rio de Janeiro por Maria Alice Milliet

Liuba no Rio de Janeiro

MARIA ALICE MILLIET

Liuba, Galeria Marcelo Guarnieri, Rio de Janeiro, RJ - 21/11/2016 a 21/01/2017

1965. Nesse ano foi inaugurado o parque do Flamengo no contexto das comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro. Construído sobre aterros sucessivos na baía de Guanabara, abrigando pistas de alta velocidade, passarelas elegantes e equipamentos desportivos e culturais abertos à população, o parque, com a implantação do projeto paisagístico de Burle Marx, se tornou referência internacional pela beleza e exuberância de sua vegetação. Seu traçado urbanístico foi concebido pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy, também responsável pelo desenho de alguns dos monumentos situados ao longo da orla marítima. Dentre eles, um se tornou emblemático da arquitetura racionalista de meados do século XX: o Museu de Arte Moderna. Localizado numa das extremidades do aterro, o edifício em concreto armado funciona como pórtico de acesso à imensa área ajardinada.

Foi nesse cenário grandioso que as esculturas de Liuba vieram se instalar quando de sua exposição individual no MAM-RJ, há cinquenta anos. As obras, dispostas em bases e muros baixos formados por blocos de cimento, foram locadas no pavimento térreo, sob a cobertura e ao longo da lateral externa do prédio de modo a dialogar tanto com a arquitetura do museu como com a área verde ao seu redor. O registro fotográfico da mostra, publicado no livro Liuba: At the Edge of Abstraction [1], revela a intensidade das relações formais estabelecidas entre o conjunto escultórico e o entorno, seja natural, seja construído. A sinergia entre os modos de expressão – arquitetura, paisagismo e escultura – advém da afinidade de propósitos dos autores envolvidos, todos empenhados em participar ativamente do espaço urbano no âmbito da modernidade.

“Tenho estado particularmente interessada na ligação entre escultura e arquitetura” [2], declarou Liuba, no mesmo ano da mostra no Rio de Janeiro. Como se pode ver nas fotografias de época, a concisão formal de sua obra escultórica encontra eco no rigor construtivo da arquitetura de Reidy. Mais que isso, é notável a correspondência entre as formas angulosas, até mesmo agressivas, dos bronzes, e a estrutura do museu, composta por 14 pilares em V alinhados como se fossem as vértebras de um esqueleto gigantesco: na arquitetura assim como na escultura, a tensão gerada pela dinâmica das formas permanece sob controle.

O biomorfismo severo, quase abstrato do repertório escultórico de Liuba provém da transfiguração dos mundos animal e vegetal. “Minha expressão pessoal se inspira em toda sorte de formas naturais.” [3] A relação com a natureza se torna mais evidente quando as esculturas são instaladas ao ar livre. Foi o que aconteceu na área ajardinada junto ao MAM, cujos canteiros preenchidos por seixos gigantes e plantas exóticas, como queria Burle Marx, tão bem acolheram aquelas criaturas em bronze. Nenhum estranhamento. Ao contrário, as esculturas parecem ter encontrado seu hábitat.

A ampla interação que acabamos de descrever ilustra o momento de maturidade bem-sucedida a que chegou o modernismo brasileiro em meados do século XX. A obra de Liuba teve no Rio a oportunidade de integrar, ainda que momentaneamente, um dos mais ousados projetos urbanísticos do pós-guerra. Ali, a artista pôde dar sua contribuição, ali se sentiu em casa.

Para Liuba, esse sentimento de pertencimento foi sempre uma questão em aberto. Nascida em Sofia, na Bulgária, em 1923, se tornou cidadã brasileira três décadas depois. Na juventude, vivendo num meio culto e burguês, pôde se dedicar a estudos de literatura e música. Porém, no começo da Segunda Guerra, a ocupação do seu país pelos soviéticos determinou a mudança da família para Genebra. Na Suíça, Liubaencontrou sua vocação. Conheceu GermaineRichier, renomada escultora da Escola de Paris, com quem trabalhou de 1943 a 1949 nos estúdios de Zurique e Paris. Com ela aprendeu tudo sobre a técnica tradicional de escultura em bronze: modelagem do original em argila, contramolde em gesso, fundição em cera perdida, pátinas. A década de 1950 foi para Liuba um período de afirmação. Estabeleceu seu próprio ateliê em Paris e fez inúmeras viagens pela Europa, Estados Unidos, norte da África e América do Sul. Finalmente, montou um estúdio em São Paulo, onde seus pais já residiam. Seu processo de emancipação chegara ao fim. Desde 1957 estava em busca de uma linguagem própria. Nesse ano, realizou um Nu de grande porte, prenúncio de uma linguagem pessoal, inconfundível. Em 1958, conheceu o empresário Ernesto Wolf, com quem se casou.

O casal passaria a residir parte do ano em Paris, o que lhes permitiu um permanente contato com a arte internacional. Ao mesmo tempo, o interesse por civilizações desparecidas e pela arte tribal levou-os a visitar locais onde os vestígios de culturas ancestrais ainda podiam ser apreciados. Acabaram por reunir requintadacoleção de arte africana. A década de 1960 foi de grande atividade para ela. A artista participou de importantes coletivas, tais como a Bienal de São Paulo (1963, 1965 e 1967), o Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1962-1963) e o Salon de laJeuneSculpture de Paris (1964-1979). Assim, a mostra individual no MAM-RJ ocorreu na esteira de um crescente reconhecimento da artista.

Sua plástica, ancorada na tradição da escultura moderna na linha de Brancusi e Giacometti, se alimenta, simultaneamente, da simplificação formal introduzida pelo cubismo e da arte de culturas exóticas. Como se sabe, essas duas vertentes estiveram associadas às vanguardas artísticas que no início do século romperam com as convenções da academia. A produção escultórica de Liuba bebeu nessas fontes, chegando à maturidade durante o alto modernismo, período em que a estética moderna ganhou alcance internacional.

Apesar de usufruir da aceitação que a linguagem moderna havia alcançado, a obra de Liuba não deixa de ser inquietante. Em muitas de suas criações – um bestiário de seres híbridos, alguns semelhantes a pássaros –, os membros retesados, as torsões vigorosas e a boca escancarada dos animais são indícios de violência. Expressões de terror e agressividade semelhantes aparecem na cabeça de cavalo, figura central da tragédia deGuernica (1937) pintada por Pablo Picasso, ou nas Irínias (fúrias vingativas), três estudos que Francis Bacon pintou para a base do painel da Crucificação (1945). O sentido trágico dessas representações nos remete à angústia do mundo contemporâneo.

Maria Alice Milliet

[1]HUNTER, Sam. Liuba: at the edge of abstraction. Nova York: Rizzoli, 2001.
[2] Entrevista com Liuba. Chefs d’oeuvre de l’art, n. 105, 1965.
[3] Idem.

Posted by Patricia Canetti at 12:30 PM

novembro 6, 2016

Eduardo Berliner: Corpo em Muda por Priscyla Gomes e Felipe Kaizer

“Achei que a minha irmã podia brotar numa árvore de músculos, com ramos de ossos a deitar flores de unhas. Milhares de unhas que talvez seguissem o pouco sol. Talvez crescessem como garras afiadas”.
Valter Hugo Mãe

Eduardo Berliner - Corpo em Muda, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 07/11/2016 a 23/12/2016

Brotar, modificar, renovar são algumas das concepções associadas à muda. O termo designa também uma planta jovem, que anseia pela ação do tempo. Essas acepções trazem consigo, entre outras coisas, a expectativa de desenvolvimento, de mudança, de frutificação.

Em A desumanização, o escritor Valter Hugo Mãe narra a história de uma menina que, diante da morte da irmã gêmea, se questiona sobre o que fora feito do seu corpo. Aquilo que é sepultado vem a equivaler à imagem do corpo que se desagrega sob a ação dos bichos da terra e ao cerne de algo fecundo. Estabelece-se a condição dúbia da menina plantada, de um corpo que é ao mesmo tempo carcaça e semente. Algo que, na ingenuidade da imaginação infantil, faz com que a menina plantada dê ramos e frutos, bem como unhas e dentes, em um processo de crescimento desordenado. Um corpo em muda do qual brotam elementos díspares ou ambíguos; onde convivem partes desconexas.

Corpos em muda reaparecem na produção recente de Eduardo Berliner, em trabalhos que trazem à tona o meio pelo qual seu universo figurativo opera hibridizações. Ao adentrarmos na exposição vemos um flautista com focinho, um cachorro com cabeça de criança, uma boneca com braçoschifres. No mesmo universo circulam dispersos elementos autônomos, sem origem ou destino certos, como membros que se ligam a um balanço ou partes que confluem para formar rostos reconstruídos. Berliner realiza um exercício em que a observação de animais em um museu de história natural e figuras humanas desconcertantes convivem com natureza mortas e aparições que nos fitam. São imagens que apostam na potência das transmutações, recombinações e decepações no espaço entre o humano e o animalesco.

Essas operações, no entanto, não se justificam apenas em termos das origens das suas imagens; não basta identificar figuras provenientes ora do exercício de observação ora de imaginação. As obras novas suscitam um peso, uma espécie de incômodo, a medida que observamos situações em que a normalidade cotidiana, o onírico e o dilaceramento convivem sem muita distinção. Ao final não se sabe o que é real ou imaginário, o que é inocente ou perigoso, se há ou não um deslocamento do motivo explícito da pintura.

As imagens de Berliner, contudo, são matéricas. São pinturas, desenhos, gravuras e aquarelas de densidades e constituições próprias, que ganham complexidade pelo acúmulo de gestos e acasos na manipulação do meio. Cada obra se impõe como um corpo na presença dos observadores. No fim, Eduardo Berliner aposta na ambiguidade do ver: de que se reconhece e não se reconhece aquilo no suporte da tela, do papel, da madeira. Um jogo permanente entre abstracionismo e figurativismo subjaz às discussões sobre seu imaginário: trata-se também de pigmento, luz, tamanho e distância.

Entre o imaginário e o matérico, esses corpos em muda dão a ver algo que está em curso na obra de Eduardo Berliner. Uma inflexão parece ter ocorrido recentemente nos permitindo conferir outras conotações às suas imagens e pensar a intensificação do acaso e da destreza na sua pintura e no seu desenho. A menina plantada de Valter Hugo Mãe ecoa na produção de Berliner não por uma referência direta ao universo do autor: encontramos em ambos o instante em que o potencial para mudança congrega os mais distintos caminhos, por onde germinam o raquítico e o gracioso, o prosaico e o brutal.

Posted by Patricia Canetti at 6:04 PM