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outubro 26, 2016
Yuli Yamagata por Ana Luisa Lima
Que tecido é esse que forja paisagens?
ANA LUISA LIMA
Programa de Exposições 2016: Yuli Yamagata, CCSP, São Paulo, SP - 07/08/2016 a 30/10/2016
A artista Yuli Yamagata, a partir da ideia de construção de paisagem, traz em seus trabalhos um criticismo pungente, ainda que sutil. Quem ousar olhar para além das superfícies perceberá a embriaguez da ideologia do capital. Suas paisagens feitas de tecido me parecem ser uma das narrativas contemporâneas que mais relata, desvela, retoma a luta de classes há muito invisibilizada. Quantas paisagens têm sido forjadas pelas mãos de trabalhadores/as para uma classe ridiculamente minúscula? Desse tecido que nasce a arte também traz estampas que conduzem preceitos arbitrários do “bom gosto”. A indústria do significante. A manufatura do significado. O tecido que é vendido no centro de São Paulo pode vir a ter status de finesse, algo a ser celebrado no Morumbi ou em Higienópolis.
Uma das maiores enrascadas do capitalismo é a instituição de aparências do controle. Esse modo perverso de ser e estar no mundo – inicialmente concebido para ser a possibilidade de emancipação do indivíduo – cada vez mais se especializa em criar imagens de ilusão e naturalização de absurdos. A propriedade privada e o monopólio dos meios de produção seguem produzindo abismos econômicos, precariedades nos modos de viver, pobrezas extremas, ainda assim, poucos são os que não reiteram, no seu dia a dia, a ideia de mérito pessoal em detrimento do desejo de coesão social através, sobretudo, da redistribuição de renda, reforma agrária, educação gratuita e de qualidade, e tantas outras reparações históricas necessárias.Ou ainda, o que dizer da esquizofrenia que mora nas paisagens artificiais cada vez mais construídas como bolhas de ilusões para uns poucos, enquanto que, em escala global, produzir lucro significa envenenar mares, rios, oceanos, desmatar florestas, tornar extinta uma vida possível na Terra. Mas, quem sabe, será mérito de alguns um dia pagar para forjar um modo de vida artificial num planeta distante – algo que um dia, por aqui, já fora natural.
Tiago Mestre por Bruno Mendonça
No projeto La Californie o artista Tiago Mestre se apropria do nome da famosa vila construída em 1920, em Cannes, no Sul da França, onde Pablo Picasso habitou e que transformou em ateliê a partir de 1955. Neste projeto o artista toma o espaço do ateliê de artista como mote para discutir de maneira poética uma série de camadas associadas a este espaço, mas também de forma mais abrangente questões relacionadas ao sistema da arte contemporânea como um todo.
O espaço do ateliê de artista e seu viés romântico, enigmático/mágico e projetivo já foram analisados de diferentes maneiras por teóricos de diversas áreas, a fim de compreender como se deu essa construção aurática deste espaço ao longo da história, tornado o artista uma espécie de artífice e o inserindo em uma das tipologias mais complexas de trabalhador dentro da lógica de produção moderna, assim como para desconstruir e desmistificar este mesmo espaço a partir de uma visão pós-moderna ou contemporânea. Neste projeto Tiago Mestre obviamente está interessado nessas questões ao deslocar este espaço para dentro da instituição, como já foi feito por outros artistas no campo da arte contemporânea – sendo assim uma operação recorrente e que o artista tem consciência disso –, mas que, para o artista, este não é o eixo central de La Californie.
Neste projeto Tiago Mestre está mais interessado em desdobrar e tornar público um dos principais procedimentos de sua prática artística que é uma noção conceitual e expandida de edição e montagem, assim como seu interesse pelo espaço arquitetônico e suas possíveis configurações como ambiência. Apesar de uma materialização plástica de pesquisas temáticas, que poderíamos colocar como um primeiro momento no trabalho do artista, existe também um segundo e importante momento que é o desenvolvimento da exposição e sua construção espacial. É aqui que Tiago Mestre começa a operar procedimentos de edição e montagem e inicia uma reflexão do espaço para transformá-lo em um ambiente – isso se dá tanto na expografia projetada pelo artista, assim como pelos mobiliários e disposição das obras. Em La Californie, Tiago Mestre revela ao público este programa.
Para o artista, outro ponto fundamental em La Californie, e que é articulado conceitualmente a partir do deslocamento do ateliê para o espaço público da instituição, é discussão acerca do artista como trabalhador a partir de uma noção de labor, e isto dentro de um contexto neoliberal e de um atual sistema capitalista que tem, por consequência, modulado um mercado de arte cada vez mais complexo, que tem a capacidade de transformar quase todos os tipos de práticas e processos artísticos em “produto”. Essas ressonâncias sociopolíticas e econômicas que giram em torno do artista como talvez umas das figuras mais desafiadoras de análise neste sentido são investigadas pelo ensaísta argentino Reinaldo Laddaga em seu livro Estética de Laboratório, a partir de alguns objetos de estudo, como o artista Thomas Hirschhorn e seu projeto Museu Precário, por exemplo.
Assim como Thomas Hirschhorn, Laddaga analisa também a produção do artista Pierre Huyghe, que, em um de seus textos analisando seu próprio processo de criação, levanta questões interessantes que se conectam de forma bastante poética com o projeto La Californie de Tiago Mestre. Huyghe escreve: “A construção torna imediatamente visível suas opções e os processos que a constituem. Os erros, as redundâncias, os esquecimentos, as bifurcações [...] não se trata de uma construção linear, mas de uma que tem múltiplas direções, aberta às possibilidades, às variações, cujos recursos de mudança e cuja acessibilidade são permanentes. É uma construção do potencial. Cada etapa revela índices de uma virtualidade. O visível está mais próximo do que é observado, não é uma finalidade, mas um esboço, um ponto de partida. É o necessário de hoje, completar e habitar. Aqui, o processo se inverteu, se inicia, se habita, e completar é um termo que fica por definir. Pôr fim ao acabamento, indeterminar. Viver com o transitório, no estado de edifício em permanente construção, interrompido, ou melhor, na espera. Como um estado de inacabamento pode se tornar uma maneira de fazer.”
Bruno Mendonça
O Ancestral de Luiz Roque por Diego Matos
Programa de Exposições 2016 - Convidados: Luiz Roque, CCSP, São Paulo, SP - 07/08/2016 a 30/10/2016
Ancestral é o nome que se dá ao que representa o anterior, o princípio gerador em um passado remoto, o que em biologia e na teoria da evolução ganha a qualidade de ancestral comum. Também, no contexto singular da arte de hoje, é a palavra substantivada que nomeia a obra chave desta mostra. No “tempo das catástrofes” da filósofa Isabelle Stengers, que permeia esse momento do “antropoceno”, nas outras cosmologias decifradas pela antropologia contemporânea, que desnorteiam as orientações culturais da tradição ocidental, ou no já vivenciado e nulo Junkspace urbano do arquiteto Rem Koolhaas, o campo da arte parece ser um dos poucos territórios em que o imponderável resiste, respondendo às incertezas dessas novas visões do contemporâneo.
É nesse território que as perspectivas fundadas pelo binômio gênero e corpo parecem construir ou pelo menos ruminar um novo propósito de vivência político-social, valendo-se de uma coragem investigativa que põe em suspensão símbolos e valores da modernidade brasileira forjada, repetidos em um discurso político oficialesco – que voltou à baila pela atual onda reacionária. Na contramão desse retorno ideológico, partindo desse ambiente esgotado da metrópole, Luiz Roque se desloca para captar imagens do sítio aparentemente incólume do Pantanal brasileiro e lá se defrontar com o movimento corporificado e soberano da natureza; protagonizado pela figura ímpar do animal tamanduá em sua relação íntima com a terra.
Na instalação solene de Ancestral (2015), o momento sublime de encontro com o animal nos é permeado pelo sentimento ambíguo de simpatia e temor perante aquela figura: ao mesmo tempo, estranha e diversa como natural e originária. As imagens de Roque nos colocam em uma experiência suprarreal, quase ficcional, encoraja-nos ao encontro das ancestralidades e, portanto, ao enfrentamento de uma tradição cultural pré-moderna de conhecimento indígena ou do folclore popular, para assim construirmos outras vivências, transversas e múltiplas.
Diego Matos
Bruno Faria por Clarissa Diniz
Programa de Exposições 2016 - Convidados: Bruno Faria, CCSP, São Paulo, SP - 07/08/2016 a 30/10/2016
Bruno Faria tem investigado a projeção, a construção, as transformações e os fracassos das cidades, abordando questões urbanísticas, arquitetônicas, paisagísticas, subjetivas. Suas abordagens observam implicações políticas, sociais e econômicas das cidades e seus devires em obras em torno da especulação imobiliária, dos museus, dos monumentos, dos moradores de rua, do turismo, do lazer. É o caso da intervenção Oásis (2009), realizada aqui no CCSP. Consistindo na instalação de uma praia artificial no jardim do prédio – construído às margens do que outrora foi o córrego Itororó, canalizado para dar passagem à Av. 23 de maio –, Oásis rendeu a Faria um prêmio de residência artística que o levou a Barcelona em 2010.
Na mais turística das cidades espanholas, Bruno se viu impactado pela constatação de estar residindo numa cidade radicalmente modificada em razão de um megaevento global, as Olimpíadas. Em deriva, deparou-se com bairros inteiramente reconstruídos nos anos que antecederam as Olimpíadas (1992). Locais dos quais foram expulsos seus moradores, que tiveram vias reconfiguradas, que viram ruir a arquitetura e a paisagem existentes em prol de “revitalizações”, que viram o comércio local falir diante da força da especulação financeira, que testemunharam a transfiguração de seus habitantes e visitantes. Intrigado pela dimensão ficcional daquela cidade tomada por artifícios que a tornaram uma “cidade olímpica”, Bruno Faria criou um conjunto de trabalhos em torno da força política, econômica, social e simbólica das Olimpíadas. Nelas, contrapõe monumentos e restos, índices antagônicos – e igualmente complementares – do processo de olimpização de uma cidade, como aquele que hoje vive o Rio de Janeiro.
Seis anos depois, as obras elaboradas em Barcelona ganham corpo. Corporeidade rarefeita, atravessada por gestos de extração e perfuração, imagens de desmontes, arranjos precários ou índices imprecisos de uma cidade que, por ser pujantemente turística em sua urbanidade olimpicamente reelaborada, é, ao mesmo tempo, inevitavelmente fantasmática.
Clarissa Diniz
Repouso Laura Gorski por Ricardo Resende
Repouso Laura Gorski
RICARDO RESENDE
Laura Gorski - Repouso, Centro Cultural São Paulo - CCSP, São Paulo, SP - 07/08/2016 a 30/10/2016
É repouso, o fundo do mar.
Na Antiguidade, as coisas eram arremessadas ao mar para serem esquecidas. Também o capitão de uma embarcação que naufragasse, para ser esquecido, tinha, por obrigação – e era honroso fazê-lo –, deixar-se afundar com o navio. Curiosidades dessa relação do homem com o mar.
O mar de Laura Gorski é negro e pertence ao mundo do interior, do invisível e do oculto, e esse mundo do subjetivo não é nada fácil de ser compreendido. Mas, por outra via, não é necessário discorrer sobre a história da arte e suas teorias para compreender a instalação Repouso,que provoca sensações, emoções e questionamentos apenas com a contemplação.
É pelas emoções e sensações, portanto, que vamos buscar as “chaves” dadas pela artista para adentrar sua instalação.
Em um primeiro olhar,é apenas uma sala com o chão coberto por forração escura e paredes pintadas de preto em três alturas, onde aparecem alguns elementos bastante reconhecíveis. São três: as pedras, os troncos secos de árvores e um barco pousado nesse chão preto. Estão distribuídos em três salas, em três situações distintas e que se conformam em uma só paisagem. A artista constrói um desenho tridimensional em que se pode entrar e caminhar de um lugar a outro.
Predomina o fundo preto para as linhas que contornam a paisagem. A artista cria um ambiente para nos falar daquilo que é visível e daquilo que não o é, abrigando o público em seu interior.O invisível e o oculto estão ali, juntos.O invisível é o visível que está encoberto, pintado de preto. O oculto, sabemos que está ali, mas não se deixa ver; ele é subjacente a tudo e a todas as coisas do mundo. Está relacionado à existência. É o que não tocamos, o que não sentimos e o que não vemos.É o mistério que rege a vida.
Temos uma necessidade humana de querer entender essas coisas que nos são postas eque são misteriosas. Sem conseguir nos inteirar do todo, somos atraídos por aquilo que vemos e não vemos, pelo palpável e não palpável.
A instalação Repouso, apresentada no Centro Cultural São Paulo, lá está como quando nos colocamos de frente para o mar, que nos atrai misteriosamente para suas “profundezas”. Parece nos chamar, como as sereias que,quando cantam,levam os marinheiros seduzidos por suas vozes para o fundo do mar. Da mesma maneira, quando nos deparamos com a entrada da instalação, ela nos seduz de imediato, e nos convida a fazer o percurso proposto pela artista. Parece nos puxar para o fundo da sala que, por sua vez, nos leva para a segunda e,depois,para a terceira, e é assim que nos dá a sensação de afundarmos no abismo proposto por Laura Gorski.
Abismo é palavra com sentido assustador para um acidente geográfico majestoso e insondável.Pode ser tenebroso, em certas situações. Pode ser sugerido na opacidade da cor preta. Não se conhece o fundo; ou mesmo, se tem fundo, o abismo do preto.
É arriscado usá-lo como metáfora para descrever um mundo escuro, o caminho derradeiro para o inferno, na descrição de Dante na Divina comédia, sobre o abismo.
O risco é irmos muito além do que nos propõe Laura Gorski, com a instalação Repouso, pois a palavra pode dar sentido também ao mar negro abissal desenhado na instalação, onde nenhuma luz atravessa sua escuridão.
Afundar, silenciar, submergir, entrar em contato com o oculto, morrer. A instalação faz lembrar algumas mortes causadas por afogamento, que se tornaram célebres ao buscara proteção, o silêncio e o repouso das profundezas das águas.
A morte de Ofélia, imortalizada na tela do inglês John Everett Millais (1829-1896), de 1852, que se encontra na Tate Britain, em Londres, é clássica, e uma das mais lindas retratadas. A jovem Ofélia morreu ao cair em um riacho, depois de ter colhido flores. A jovem dependurou-se, sobre o riacho, em um galho de árvore que cedeu. Caiu n’água e afogou-se, aparentemente sem se debater, é assim que nos conta Shakespeare, em Hamlet. As flores se espalharam ao seu redor enquanto a morta, já serena, era levada lentamente pelas águas.
Mais ainda, faz lembrar uma outra, em especial. E é uma das cenas de morte mais “sublimes” que o cinema nos proporcionou. A da escritora Virginia Woolf, para quem a morte seria a única experiência que ela própria jamais poderia descrever. No filme As horas, a atriz australiana Nicole Kidman, que faz o papel da escritora, sai de sua casa em direção a um riacho nos fundos de sua propriedade. Ao caminhar entre os arbustos, enche os bolsos de pedras à margem do rio. Segue firme e ereta, sem expressar nenhuma emoção. Nem medo, nem tristeza, nem choro, nem felicidade pela decisão corajosa tomada: a do suicídio. Nada, nenhuma expressão, a não ser a tenacidade em procurar o melhor caminho para se afogar. Caminha apenas em direção ao rio, levemente encurvada, como se carregasse um peso enorme sobre as costas.
Os primeiros a submergir foram seus sapatos; depois suas pernas, o vestido com a água batendo à cintura, depois o peito, o pescoço, a cabeça e, por fim, rapidamente, os cabelos presos atrás da cabeça a desaparecer no brilho da luz do dia, refletidos na água que corre rapidamente no leito do rio.
Aqui,novamente, outra passagem, agora literária. A instalação faz lembrar a descrição de Sidarta no livro homônimo de Herman Hesse, quando o personagem contempla um rio a partir de uma de suas margens. O rio segue seu curso (sua alma) para sempre, pensa Sidarta.
As correntes marítimas também fazem cursos à deriva nos oceanos. No vaivém, levam, para suas profundezas, o que era visível. O que era luz, na superfície, vira sombra, no fundo do oceano. A claridade transforma-se em escuridão.
O transparente da água vira preto e opaco, nessa mimetização do mar, na instalação de Laura Gorski. Esse negrume questiona a ambiguidade do mundo:vivemos entre o preto e o branco, entre a luz e as trevas, entre a vida e a morte. “Há uma dúvida que pertence à claridade” [1]. Há outra dúvida que pertence à escuridão. O que não vemos na claridade e o que vemos na escuridão.
É essa dicotomia que a artista propõe unir nas salas de exposição do Centro Cultural São Paulo.
Busco, ainda, outra obra literária para descrever mais uma emoção (paisagem) diante daquilo que expõe Laura Gorski. Fala de submergir, em uma paisagem, e retornar depois à superfície,para se deparar com a desolação do mundo.
Passa das sete horas da manhã quando se ouvem crianças que caminham e brincam em uma estrada.
“O sol brilha. Eles escondem suas coisas embaixo de uma canforeira imponente; precisam tomar banho nus para chegarem secos à escola, e depois é sempre mais divertido. Chegaram às 7h20, a aula é às 8h30. Mergulham na bacia de água clara e sobem sem se cansar… Kinoko acaba de voltar para a areia já quente. Corre para a canforeira para se vestir; Akira mergulha, pela última vez. Kinoko levanta maquinalmente a cabeça: o sol bate na colina ao pé da qual eles se encontram; o pequeno caminho serpenteia, a alguns metros acima da enseada e, desviando-se dele, seriamente alcatroada e gravemente retilínea, encontra-se a estrada principal. Akira volta à superfície a 3 metros da margem, voltando-se para a irmã como sempre, e, enquanto Kinoko se abaixa para calçar a segunda meia, a silhueta tristemente familiar da diretora se delineia na estrada… São 8h13… a diretora os viu… Akira tem uma ideia ainda mais absurda: mergulha novamente. Devem ser 8h14. Ele sabe que pode ficar no fundo durante longos minutos; segura-se em pedras musgosas e frias, em algas ásperas; a água está gélida…
É precisamente neste momento que o clarão nada habitual, de um azul muito bonito, bate na areia do fundo. Akira não se mexe mais. Depois sufoca. Um estrondo surdo, como que vindo das profundezas da Terra, varre toda a superfície da água. Akira sobe e fica de pé. Não entende. Nem percebe, de início que Kinoko não está mais lá. Toda a paisagem mudou, como num sonho.” [2]
“A nuvem de Hiroshima é uma nuvem muito particular, uma nuvem que poucos homens viram antes, lá longe, numa zona militar do Novo México, uma nuvem prolongada até o chão, com o pedúnculo esguio, uma nuvem assentada sobre uma base, como um cogumelo grotesco. Akira parou sobre a colina. Lentamente, a nuvem nova começa a perder sua base, derivando lentamente como um dirigível alemão sem piloto. Depois, a nuvem se tornou negra, de uma negritude como nunca mais se viu, perfeita, profunda como um abismo, a nuvem de Hiroshima fechou progressivamente todo o horizonte, faz quase noite em Hiroshima por volta do meio-dia, enquanto, se dermos as costas para a cidade, brilha um verdadeiro sol de verão. A nuvem ainda se estendeu até o ponto em que pareceu não mais se manter, e começou a chover; no entanto, a chuva era preta, inteiramente preta, e devolve a poeira dos corpos à terra. Choverá assim todas as noites, durante semanas.” [3] Cobrindo tudo de preto. A água, inclusive, dos rios e do mar. Tão preta que deu a tudo a aparência de um mangue afundado no óleo viscoso de fósseis. Como se o tempo tivesse acelerado milhões de anos. Milhões de anos em uma fração de segundos. Tudo se tornou uma só paisagem silenciosa e assustadora,naquele dia, para os olhos do menino.
A paisagem proposta na instalação Repouso é silenciosa. O preto é silencioso, e cobre os pés e os tornozelos quando adentramos a primeira sala. É uma redução das coisas do mundo.
O preto é fechado em si, não se expande, não se mexe. O preto apaga e esconde tudo o que está abaixo de sua linha. As pedras sobressaem dessa água negra como ilhas minúsculas, se as imaginarmos assim, ao adentrar a primeira sala, como se nos tornássemos parte dessa paisagem. Seremos aos poucos engolidos por ela, se nos deixarmos levar pelo caminho proposto pela artista.
Depois avistamos troncos de árvores levemente retorcidos. Cena vista em áreas de pesca. Servem para delimitar uma área circular no mar, na lagoa ou na margem de um rio. É instrumento de pesca, mas poderia também servir como medida de profundidade. Parece um cercado “arcaico” construído por pescadores em outras épocas. Nessa sala, a água negra já bate na altura da cintura.
Seguimos adiante e nos deparamos com um barco afundado a sobressair-se da escuridão; é a cena final dessa narrativa. Nessa sala, a paisagem torna-se mais abissal. O negro é ainda mais profundo, estamos quase submersos. A paisagem se reduz ao silêncio, e a linha delineada pelo mar negro é o horizonte.
O gesto da artista, ao construir essa instalação, vem de um desejo de apagamento das coisas, para aguçar outras que se tem dificuldade de enxergar. Indica caminhos para lidar com o todo, fazer a conexão entre o claro e o escuro. A luz e a sombra. Uma descobre; a outra encobre, nessa grande paisagem sem fim que é o mundo. A artista cria dois tempos nessa instalação: o tempo suspenso, parado, e o tempo que é submerso e retrocede, o tempo da memória.
Por fim, aqui ainda cabe a citação a um outro filme. Trata-se de um documentário sobre a cineasta belga Agnès Varda, As praias de Agnès [4].
Agnès Varda começa o filme em uma praia, onde organiza espelhos. É uma instalação onde tudo se reflete para a filmagem daquilo que seria um documentário sobre sua trajetória, dizendo, diante das câmeras, que, se as pessoas fossem literalmente abertas, o que se encontraria dentro delas seriam paisagens. E as paisagens encontradas dentro dela seriam as de praias.
Bela descrição desse corpo formado não por pele, carne, ossos e entranhas, mas por paisagens vivenciadas, inventadas ou não. Aquelas que guardamos na memória. Seriam as paisagens que, quando abertas nossas barrigas e peitos, sairiam para povoar o mundo. Seria um mundo feito com essas visões. Esses deslumbres.
Parece ter sido esse o exercício de Laura Gorski: nos oferecer uma das muitas de suas paisagens internas.
Ricardo Resende
Curador
Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
NOTAS
1 Navas, Adolfo Montejo. Pedras pensadas – Inscrições (1980-2002). Tradução Sérgio Alcides. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002, p. 77. Aforismo de Waltercio Caldas.
2 Audeguy, Stéphane. A teoria das nuvens. Editora Record: Rio de Janeiro, 2009.
3 Idem.
4 Les Plages d’Agnès, 110 min. França, 2008. Direção:AgnèsVarda; roteiro: AgnèsVarda.
outubro 24, 2016
Collapsible Structures por Allegra Sallé
Collapsible Structures
ALEGRA SALLÉ
A série de telas, colagens sobre papel e esculturas apresentadas por Julio Villani, mostram sua exploração de um campo de ação intermediário, oscilando continuamente entre o plano e o espaço, entre o móvel e o estável.
Nas esculturas da série Collapsible, tubos metálicos atravessados por um fio formam as arestas de um sólido de faces transparentes. Os ângulos não são fixos, permitindo a escultura adotar quantidade de formas diferentes: “desenho rígido transformado em objeto maleável”, diz o artista. Seu estado não é indefinido, é indefinitivo : um entre-dois consubstancial à obra de Villani.
A linha que estrutura as esculturas é, nas pinturas e colagens, traçada com grafite ou carvão; orgânica, ela nunca é completamente reta nem totalmente retesada, e muito deve à geometria sensível dos neoconcretos. Sobretudo nota-se que ela se estende bem além do quadro – que é meramente a porção de um todo que Villani nos dá a ver, situado entre um começo invisível e um fim imaginário.
A estabilidade que confere a moldura ao quadro é igualmente relativa: os diversos chassis que compõem as obras admitem regularmente ser intervertidos, a composição transformar-se. As telas deslizam de uma posição à outra durante sua elaboração pelo artista, que embaralha e reembaralha as cartas enquanto avança. Uma montagem especifica é favorecida no final, mas as obras portam frequentemente, de maneira intrínseca, a possibilidade da variação.
Nas colagens, a aposição dos recortes embebidos em tinta a óleo sobre o suporte deveria marcar o começo da vida da obra enquanto composição fixa, imutável. Deveria, mas não o faz: o suporte (papel Ingres ou antigos manuscritos em papel chiffon) foi selecionado para permitir que o médium continue operando mudanças na obra bem depois de ela ter sido assinada. Composição viva, contendo intrinsicamente a possibilidade da evolução.
A obra de Julio Villani como um todo parece assim se elaborar segundo um sistema de construção (mental) em torno da relatividade da fixidade. Como suas esculturas de contorno instável, também as composições pictóricas são atravessadas por um subtítulo genérico: collapsible architectures. O anglicismo se impõe, já que os vocábulos “dobrável” e “desmontável” não comportam a dimensão imprevisível do adjetivo inglês: aquele que contém o colapso, que pode desmoronar à qualquer momento. Esta instabilidade potencial é o nó do projeto de Villani.
Pela interrupção contínua do movimento, através do deslizamento que reside entre o entre o “fixo” e o “vivo”, o artista busca um estado lhe permitindo manter-se em suspenso, o maior tempo possível, em um entre-dois: neste eterno vaivém, vetor de permuta incessante, em cujo âmago tudo se dá.
Allegra Sallé
outubro 17, 2016
Irremediavelmente por Mario Gioia
Irremediavelmente*
MARIO GIOIA
Adentrar uma sala de espelhos pode ser a sensação que se evidencia para o público quando visita And listen to the wind blow, de Diana Motta, no projeto Zip’ Up. A primeira exposição individual da artista paulistana em galerias conduz a alguns vetores poéticos da sua produção, muito particular no cenário da pintura do nosso circuito. Talvez o mais destacado seja a potência do projeto pictórico empreendido por ela. Mesmo que por meio de outras linguagens, a pintura marca vídeos, desenhos e colagens, entre outros suportes, realizados por Diana.
Outra vertente clara dentro do recorte apresentado é a autorrepresentação, que navega numa tênue linha entre o intimismo quase obsessivo do ateliê, que a faz produzir muitos trabalhos nessa linha, e um sedutor traço de exibição deles. E isso tudo criado, visto, experienciado e veiculado em tempos de overdose de selfies e outros procedimentos de narcisismo ostensivo. Nesse campo, também vêm fecundas discussões sobre o feminino hoje, em narrativas mínimas que cruzam o confessional, o intuitivo e o ativista, por exemplo.
Um dado também bastante frisado em And listen to the wind blow (verso da canção The Wind, da britânica PJ Harvey, de 1998) é o trânsito fluido da artista por uma figuração de marcante apuro e uma abstração construída com habilidade – nesta, as transparências, a sobreposição de camadas e o uso irrestrito de materiais atestam com vigor a pertinência do seu programa.
A tela Espelho é uma obra-chave na mostra, em especial por sua proximidade com o vídeo Queda. A pintura, em uma escala discreta, coloca atualmente um fértil elemento de discussão já trazido por pincéis, paletas, enquadramentos de outrora e hoje (ainda mais) por cliques, stills e frames. É visível a fonte do fotográfico como base da pintura, que retrata uma paisagem menor, banal, com uma figura feminina, árvores e um carro numa rua algo tranquila, tudo envolto por uma opacidade e uma indefinição que dá ao trabalho uma envolvente atmosfera. “A tela pintada, como enunciado e como significação, se produz e se lê a partir de um espaço que não é o da ficção, mas um espaço discursivo, um fora-de-quadro”1, escreve Jacques Aumont. “(…) Fazer uma imagem é, portanto, sempre apresentar o equivalente de um certo campo – campo visual e campo fantasmático, e os dois a um só tempo, indivisivelmente.”2
Pois bem. Espelho, então, se aproveita desses polos do ver/não ver e migra nessa condição movediça para Queda, outra peça que habilmente se liga a procedimentos audiovisuais usualmente empregados. A água que corre com fluência e ritmadamente, na perspectiva de uma câmera fixa, sintetiza com ferramentas simples o indissociável, o intrincadamente ligado. E a perspectiva algo rígida da tela caminha para uma imagem móvel, na mesma toada do pigmento a tingir a água.
O lado autorretrato de And listen… poderia se perder num exibicionismo superficial, mas o corpus da produção de Diana tem outras boas referências, como a versátil investigação sobre o feminino, entre a ostentação e a vulnerabilidade, da norte-americana Laurel Nakadate. Com vídeos, longas e fotografias, a jovem artista criada no Iowa, parte da América profunda, desestabiliza miradas mais conservadoras e fala, em especial, de identidade em relações e encontros que hoje podem ser encarados como anacrônicos. Aqui em São Paulo, Diana envereda por um tom que flerta com o naïf e o pop, por vezes obsessivamente construído, como transparece no desenho Festa na Árvore, em que Kurt Cobain convive com divindade hindu numa frondosa vegetação ao sul do Equador. “As confissões surgiram com a religiosidade individualista da Reforma cristã e os diários se firmaram no período romântico. A autoficção é apenas a forma atual de uma prática antiga”3, explica em entrevista a crítica literária Leyla Perrone-Moisés, acerca do recrudescimento desse formato e que reiteradas vezes esbarra numa raleza discursiva (o cinema também possui variados exemplos parecidos).
E, por fim, a incursão abstrata de Diana pode ter uma chave formativa, já que ela estudou nos EUA por anos, e as correntes pictóricas que circulam por lá talvez sejam menos rígidas que as vivenciadas por aqui. A nova fase da artista paulistana ecoa influências tão diversas como Joan Mitchell (1925-1992), Albert Oehlen, Dana Schutz e Eddie Peake, entre outros. A obra pouco reverente de Diana Motta, lançando mão de estratégias fragmentadas, exala frescor, como um escrito seu, Fresh, a explodir em pintura homônima recente. O cromatismo e a multiplicidade do seu olhar, portanto, têm muito a falar sobre a transitoriedade e a permanência, o desencanto e o fascínio, o parcial e o completo da visualidade contemporânea.
Mario Gioia, outubro de 2016
* O título do texto se inspira em livro homônimo, datado de 1919, de Alfonsina Storni (1892-1938), figura de proa das vanguardas literárias da Argentina
1. AUMONT, Jacques. O Olho Interminável (Cinema e Pintura). São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 114
2. AUMONT, Jacques. Op. cit., p. 114
3. GONÇALVES FILHO, Antonio. O futuro da obra literária. O Estado de S.Paulo, Caderno 2, 30.set.2016, p.C4
Identidade como recusa por Sabrina Moura
Identidade como recusa
SABRINA MOURA
Camille Kachani - Encyclopaedia Privata, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 21/10/2016 a 19/11/2016
Identidade é uma palavra ambígua que pode remeter tanto à ideia de pertencimento quanto à radicalização das suas expressões. Ao longo do século 20, muitos foram os autores que debateram seus sentidos, apontando para aquilo que ela carrega de subjetivo, de construído. Stuart Hall era um deles. Em The Question of Cultural Identity (1996), o autor discute a identidade como um processo em constante atualização. “Sempre há algo de ‘imaginário’ ou fantasiado sobre a sua unidade. Mas ela sempre permanece incompleta, sempre em ‘processo’, sempre ‘sendo formada’”, afirma Hall.
Com efeito, a visão de identidade como uma experiência em constante movimento é cara a muitos daqueles que têm suas vidas constituídas em meio ao trânsito por diferentes culturas e continentes. Entre referências, memórias e afetos que não cabem em um único idioma, a obra de Camille Kachani parece emergir de situações dessa natureza. Nascido no Líbano de pais sírios refugiados que migraram para o Brasil na década de 1970, Kachani tem sua vida atravessada pelos três grandes monoteísmos do mundo contemporâneo: islâmico, judaico e cristão. A proximidade do artista a crenças gestadas a partir de uma mesma matriz — que muitas vezes se opõem — se traduz na recusa de adesão a cada uma delas, permitindo-o citá-las como reminiscências em constante atualização. Paradoxalmente, é essa mesma recusa que leva o artista a abordar, ainda que de maneira involuntária, a noção de pertencimento em seus trabalhos.
À escrita — elemento primordial em muitas de suas composições — aderem raízes que se espraiam vertical e horizontalmente (nem sempre em busca do solo). Numa alusão à matéria orgânica que jamais será imóvel, elas apontam para a inevitável passagem do tempo, contrária a tudo que busca retraí-lo ou fixá-lo. Essa continuidade vital e muitas vezes imperceptível remete à forma como Kachani entende a sua própria prática artística. “Trata-se, antes, de uma obra-em-processo infindável”, afirma.
Portadoras de histórias, cada uma das imagens evocadas pelas obras apresentados nessa exposição nos convida a navegar por uma biografia. “São elementos de dentro e de fora”, explica Kachani ao apontar para as porcelanas e granadas armazenadas em um de seus gabinetes.
Mas o que seria esse “dentro e fora”?
São vestígios de um Líbano prestes a entrar em uma das mais longas guerras civis da história (1975-1990) nos lembrando que, assim como uma xícara de chá, armas e escombros também eram parte da rotina de seus habitantes. Referências íntimas de tempos difíceis, esses objetos se apresentam como elementos de composições que remetem à dimensão política inerente aos espaços públicos, mas também domésticos da sociedade. Como o cineasta Ziad Doueiri em seu filme West Beirut (1998), o artista sugere que ideologias, alianças e disputas não definem por inteiro o cotidiano de países em conflito. À despeito da guerra, continua-se amando, festejando, continuam, enfim, as atividades mais prosaicas da vida.
Parte de uma pesquisa recente, a série fotográfica exibida aqui também se inscreve nesse contexto. Galhos, folhas, cipós evocam situações que traduzem o confronto da natureza com a condição humana. A floresta, assim como uma árvore, fornece o modelo de capilaridade circular que ocorre na vida de um indivíduo: raízes que desembocam em galhos e frutos que criarão, consequentemente, as suas próprias raízes. Mais uma vez, o (des)enraizamento e sua infindável simbologia se oferecem como chave para a expansão dos significados da obra de Kachani.
Em meio a dualidades que não se excluem nem se opõem, o artista nos coloca face a uma série de conexões improváveis. Talvez essa seja uma maneira de lembrar que nossa própria narrativa também carrega filiações identitárias com as quais nos relacionamos, mas sequer sabíamos recusar. (Sabrina Moura)
outubro 11, 2016
Pelos dias que se aproximam... por José Bernardo de Souza
Pelos dias que se aproximam...
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Caetano Veloso
Buscava escapar de um mal maior, fugir ao destino que se avizinhava sombrio, inclemente. Açodado como marinheiro de primeira viagem em águas turbulentas, ganhei o mundo sem saber ao certo onde a correnteza ladina iria me levar. Embarquei em uma viagem sem volta, disso eu sabia, movido por um ímpeto juvenil que, inexoravelmente, lançaria minha sorte em rota de colisão com a trajetória apaixonadamente urdida ao longo dos anos de sonho e juventude, resultado de minha inabalável convicção na benevolência alheia, bem como na graça divina.
Por mais que buscasse na memória o plano original que embalara meus dias vividos irresponsavelmente, resultava inócua minha batalha contra as armadilhas pouco alvissareiras que o futuro e a natureza se me impunham nesta jornada fadada ao assombro. Restava a mim correr contra o tempo, encontrar expedientes paliativos à certeza de que haveria um fim.
Ao meu redor, vestígios de uma obra inacabada, tão errática quanto ambiciosa, compunham um cenário cubista, achatado e sem perspectiva. Como se estivesse em um palco operístico, a tal realidade - com a qual tive de conviver desde o primeiro dia - ganhava contornos macabros à medida em que o som tridimensional se impunha violento, em compasso de ódio e fúria. Daí meu desejo constante de voltar a dormir, nem que fosse por um átimo, a fim de sonhar outra vez, de ganhar fôlego nas nuances de uma ficção qualquer, tão irreal quanto alvissareira.
Assim passava os dias, entre a ignorância absoluta e o trabalho duro. Com as mãos magoadas pelo combate diário contra as forças da ciência e das máquinas, sentia o formigamento de quem está prestes a desvanecer, perder a alma e a vida.
A mim, sentido algum fazia conservar os olhos abertos, beliscar-me ou molestar-me para segurar o feixe de contato com o mundo real. Mas ele se investia de uma força maior e, por fim, lograva despertar-me do sonho, da vida. O sol se levantava e punha-se a brilhar - um brilho doentio, feroz, aterrador -, obrigando-me a abrir os olhos e enfrentar o deserto que se desenhava à minha frente. Já estava em terra, por certo; não era firme como o solo do sertão - mais parecia um terreno movediço -, onde mil léguas equivalem a uma passada humana. O horizonte sempre se afastava, dando a impressão inequívoca de estar logo ali.
Miragens diurnas e trevas noturnas alternavam-se em uma batalha inglória, na qual eu mediava um confronto sem balizas ou freios capazes de contornar enseadas paradisíacas ou mesmo salinas infernais. Estava só, abandonado ao sabor do vento quente e agourento que sopra de há muito tempo nestas bandas isoladas do meu mundo que é mundo, embora apenas para mim. Onde estariam os outros? - perguntava-me, renovadamente, a cada amanhecer violento que me abraçava como um padrasto.
Foi quando dei-me conta de que estava a rondar em círculos, sempre retornando à estaca zero - mas eram tantas as distrações em meio ao percurso, que sempre parecia-me nova a paisagem a me envolver. Mas era a mesma, dei por concluir.
Flash-backs de um tempo imemorial irrompiam em meio aos sonhos, sinalizando memórias abandonadas e uma ancestralidade que perdera a conexão com este mundo - meu mundo, afinal de contas. Fechei os olhos e segui minha deriva, desconfiado de que sonhar talvez fosse melhor do que viver de costas para o futuro.
Bernardo José de Souza