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setembro 22, 2016
Orixás por Marcelo Campos
Orixás
MARCELO CAMPOS
Orixás, Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, RJ - 25/09/2016 a 23/10/2016
Em setembro de 1990, a Casa França-Brasil, recém-inaugurada como centro cultural, realizou a exposição “Retratos da Bahia” com fotografias de Pierre Verger, desenhos de Carybé e esculturas de arte africana das coleções particulares dos dois artistas. Ao investigar o modo como a afro-brasilidade se manifesta na arte e na religião, “Orixás” pretende ser um exercício de revisão histórica daquela exposição, promovendo releituras entre a produção moderna e a contemporânea.
O tema da afro-brasilidade é explorado a partir de diversas perspectivas no contexto artístico brasileiro. Aspectos da ancestralidade e da religiosidade africanas muitas vezes aparecem aliados a questões como identidade, representação e condições socioculturais. O fascínio moderno pela cultura afrodescendente produziu debates importantes sobre patrimonialização e reconhecimento das religiões não ocidentais, embora a relação com sua cultura material estivesse frequentemente ancorada em premissas colonizadoras.
No Brasil, a influência do candomblé na produção artística produziu obras como os romances Jubiabá e Bahia de Todos os Santos, de Jorge Amado, o longa Barravento, de Glauber Rocha, o Teatro Experimental do Negro, encabeçado por Abdias Nascimento, o álbum Afro-sambas, de Baden Powell e Vinícius de Morais e as obras de Pierre Verger, Carybé, Rubem Valentim e Mestre Didi, apenas como exemplos. Mestre Didi, concomitantemente artista e sacerdote, tornou indefiníveis as fronteiras entre arte contemporânea e arte popular. Paralelamente a isso, o candomblé seguia enfrentando sua condição de ilegalidade, sofrendo perseguição política e social, inclusive por parte do Estado por meio de seus aparelhos repressores e do uso da violência.
O século XXI trouxe novas abordagens. Embora a religião continue sendo alvo de ataques e intolerâncias, os terreiros e as casas religiosas de matriz africana vivem um processo de luta pela legalização, reconhecidos como detentores de cultura, identidade e fé. Artistas contemporâneos como Ayrson Heráclito, Arjan Martins, Tiago Sant’Ana, Dalton Paula e outros seguem reconfigurando heranças afro-brasileiras, assumindo hibridismos e contaminações. Com ampliadas recodificações, hoje, a afro-brasilidade nos faz ultrapassar a fronteira popular/erudito ao observarmos obras como as de Heitor dos Prazeres, Maria Auxiliadora, Louco e Chico Tabibuia.
Nessa rede, “Orixás” vai além do contexto baiano, aproximando trabalhos de temporalidades distintas, pretendendo provocar novas leituras sobre aspectos da cultura afro-brasileira. Candomblé, sincretismo e arte popular são abordados a partir do universo dos orixás, com peças de instituições e coleções particulares de Salvador, Fortaleza e Rio de Janeiro.
“Orixás” marca, para a Casa França-Brasil, a possibilidade de adensar-se em um debate, no qual a ancestralidade sobrevivente de tantas diásporas, resultantes da escravidão (a violência, a desigualdade), possa ser transformada em clamor, cânticos e palavras de fé, proteção e bons presságios. Os brasileiros são renomeados, ganham amuletos, mantêm intensa relação com a África, reconhecem pais ancestrais, adornam-se, ficam odara e trazem a beleza não como uma condição colonialista a ser alcançada em modelos inacessíveis, mas como uma dádiva a ser partilhada, um “axé”. O candomblé configura na arte e na sociedade brasileiras um dos mais importantes momentos de reconfiguração simbólica, em que formas, cores e elementos são lançados, jogados, festejados, experimentados. E a força desse “emi”, do ar emitido pelo corpo, nos faz tecer elos que atravessam oceanos para reafirmar uma simples e, talvez, primeira condição humana: saber que não estamos sós.
setembro 19, 2016
Carta à Regina Silveira sobre Insolitus por Marcio Doctors
Carta à Regina Silveira sobre Insolitus
MARCIO DOCTORS
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Rio, 5 de agosto de 2016.
Querida Regina,
Há exatamente dez anos, em 2006, fiz uma entrevista comentada com você para a exposição "Luz zul", que fizemos no Centro Cultural Telemar, hoje Oi Futuro, em que faço a seguinte observação em referência à sua resposta para a pergunta de como você via a questão do insólito e do maravilhamento, que eu identificava na sua obra:
O insólito, o maravilhamento e a perplexidade são dimensões que o tempo fragmentado da contemporaneidade tem engolido de forma tão avassaladora que ainda talvez não tenhamos avaliado as consequências nefastas que isso representará no futuro. Esses elementos são a fonte do poético, do filosófico e da imaginação criadora da ciência. É uma dimensão sem a qual é duro viver.
Passados dez anos, sou surpreendido pelo título que você deu à sua intervenção na 21ª edição do Respiração: Insolitus. Você me fez perceber que aquela exposição de 2006 mantém um elo com esta intervenção, que foi subterraneamente se infiltrando ao longo do tempo, e manifestou-se através das conversas que tivemos e que, de alguma maneira, conduziu sua intuição / determinação primeira de transformar a mesa e as cadeiras da sala de jantar em um objeto peludo preto; um objeto insólito ao criar a obra Mutante l. Essa ideia foi tomando corpo e permitiu que eu percebesse com mais contundência o lado negro presente no conjunto de sua obra; lembro aqui dos trabalhos com sombras como contraponto poético metafórico aos trabalhos que lidam com a luz, e como identificação da ausência que todo corpo projeta para além de si.
No texto do catálogo de 2006, fiz referência a uma parábola judaica que fala dos dois fogos que escreveram as pedras da lei: o fogo negro, que desenhou as letras tal como as lemos, e o fogo branco, que criou o espaço entre as letras que nos permite lê-las. E afirmava, então, que hoje lemos o fogo negro e que chegaria o dia em que conseguiríamos ler o fogo branco e que nossa percepção da realidade mudaria integralmente. Da mesma forma penso que a sombra, no conjunto de sua obra, pode ser percebida como uma presença imaterial que se projeta para além do corpo material, como também uma presença que projeta o vazio subterrâneo desse mesmo corpo.
Para mim Insolitus pode ser lido de duas maneiras, como um paradoxo que nos desafia, tal como os fogos e a sombra: como explicitação do vazio subterrâneo de nossa sociedade atual, sem rumo, que faz aflorar as pulsões negativas de um mundo incerto e inseguro, e como um alento de esperança - um chamamento - que nos diz: surpreendam-se com o insólito! A estranheza e a perplexidade que ele desencadeia são uma chamada à esperança. Fiquem atentos e tomem cuidado com as forças insidiosas que nossas opções estão nos levando e teremos de encontrar saídas porque o incômodo e o desconforto atuais são grandes.
Longe de mim querer dar uma roupagem político-panfletária à sua intervenção, sei que essa não é e nunca foi sua intenção, ao contrário, vejo nela uma dimensão espiritual. Generosa. Mundus admirabilis é uma infestação de insetos gigantes que tomam conta da fachada da casa-museu Eva Klabin, assim como Dark swamp (nest), na Sala Renascença, em que um ovo negro de 180 cm de altura brota de um pântano de crocodilos, produzindo uma percepção de maravilhamento insólito que nos deixa perplexos e reflexivos sobre o que será gerado dali. Tudo isso tendo como fundo o som de helicópteros e mosquitos, vindo da obra Fábula ll, no alto da escada do hall principal, como referência perturbadora ao mundo dos insetos e ao filme de Francis Ford Coppola (Apocalypse now), cujas últimas palavras são: "O Horror. O Horror. O Horror". Você cria, dessa maneira, uma paisagem sonora que imanta o espaço da residência dando coerência poética à sua intervenção.
Poder conservar a reflexão neste momento de incertezas que o mundo atravessa, perdidos que estamos entre um território conhecido, mas que sabemos sem futuro, e um desejo de algo novo, mas inseguros pelo desconhecido; permitir-nos interromper o fluxo do cotidiano e a partir de sua intervenção refletir sobre nossos descaminhos é, para mim, esperança.
Esperança no sentido de que estamos numa travessia entre dois mundos, entre duas escritas, entre dois fogos e teremos de optar sem medo: apegamo-nos ao conhecido e repetimos os mesmos erros do passado ou apegamo-nos à esperança, mesmo sem saber ao certo para onde ela nos levará, e arriscamos na certeza de que não mais queremos o que aí está e que o desconhecido traçará um novo caminho. Ansiamos por uma mudança espiritual: Insolitus nos traz a crueza de uma realidade substantiva, que sua obra é capaz, ao explicitar, materializando-se na superfície do mundo, as angústias de nossa sociedade atual.
Só a arte e a filosofia são capazes de tal feito porque têm os meios espirituais para tal; não temem o desconhecido e não têm o receio de colocar o dedo na ferida. Espero que as pessoas que entrem em contato com mais essa intervenção no acervo da casa-museu Eva Klabin percebam que o que está sendo proposto desde o início pelo projeto curatorial e que você, Regina, soube expressar com tanta propriedade, ao radicalizar a ideia de intervenção da proposta original do Respiração, é a necessidade de desestabilizar para encontrar novo equilíbrio. Ao desestabilizar os códigos de uma residência, em que a tranquilidade doméstica é perturbada pelo seu imaginário, você cria uma metáfora contundente dos tempos atuais.
Querida Regina, só os artistas são capazes de antever o futuro, não que isso seja um mérito em si, já que o futuro chegará independentemente do que quer que seja, mas ao trazerem consigo essa potência conservam a única certeza possível que é a clareza da constatação. O que quero dizer com isso? É que o corpo do artista é uma espécie de veículo dos tempos se metamorfoseando, que se expressa por meio das obras de arte. A obra é mais importante do que o artista; ela é um raio X do tempo de sua atualidade; é capaz de criar pelas sensações de identificação/empatia (Worringer) uma percepção de evidência, que é um bloco de sensações (Deleuze), deixando o mistério de cada época mais transparente.
A obra Mutante II, que você criou especialmente para o Respiração, explicita o processo da arte como metamorfose do tempo, a qual estou me referindo. Através dessa obra podemos surpreender de maneira cristalina como se dá a metamorfose da forma: um carrinho de chá comum é apresentado em processo de transformação para um carrinho de chá peludo, explicitando de maneira quase animada esse processo.
A obra de arte é evidência de seu próprio tempo e cria a transparência necessária para entendermos o diagrama que compõe a sua contemporaneidade. Estou convicto de que foi isso que você conseguiu realizar. Por isso Regina, admiro a intervenção Insolitus e sua linguagem substantiva, e sou grato ao feliz encontro que tivemos em reunir trabalhos novos e outros já existentes, que reforçaram o sentido maior da sua obra e da proposta originária do Projeto Respiração, que é a de criar reflexão sobre aquilo que está estabelecido, imobilizado pelo tempo, que a própria condição de uma casa-museu impõe aos objetos e à coleção que abriga.
Com meu afeto,
Marcio
Rio, August 5, 2016
Dear Regina,
Exactly ten years ago, in 2006, I did an annotated interview with you for the "Luz Zul" exhibition we did at Centro Cultural Telemar, now Oi Futuro. In it, I made the following observation about your reply to my question about how you saw the issue of the unexpected ["insólito" in Portuguese] and wonderment I had identified in your work:
The unexpected, wonderment, and perplexity are dimensions that the fragmented time of contemporaneity has eaten up so completely that perhaps we haven't yet assessed the harmful consequences it will represent in the future. These elements are the font of poetry, philosophy, and the creative imagination of science. It's a dimension that it's hard to live without.
Ten years on, I am surprised by the title you have given to your intervention for the 21st edition of the Breathing project: Insolitus. You have made me realize that that 2006 exhibition is in some way connected to this intervention, that it has been permeating under the surface for years and has been manifested in our conversations and has in some way led to your primary insight / decision to turn the table and chairs in the dining room into a black furry object - an unexpected object - in Mutant l. This idea gradually took shape and helped me to realize more clearly the black side of your body of work. I am thinking here of the works with shadows as poetically and metaphorically offsetting the works that deal with light, identifying the void that all bodies project outside themselves.
In the text for the catalogue in 2006, I referred to a Jewish parable that speaks of the two fires that wrote the tables of the law: black fire, which drew the letters that we read, and white fire, which created the space between the letters, necessary for us to read them. And I went on to say that today we read the black fire, but that one day we would manage to read the white fire and our perception of reality would change completely. Similarly, I think that shadow in your body of work could be seen as an intangible presence that is projected beyond the material body, and also a presence that projects the subterranean void of this very body.
For me, Insolitus can be interpreted in two different ways: as a paradox that challenges us, like the fires and shadow, an expression of the subterranean void in society today, directionless, which brings forth the negative drives of an uncertain, insecure world; and as a spark of hope, a calling, which says to us: be surprised by the unexpected! The sense of uncanny and perplexity it triggers are a cry for hope. Beware and be mindful of the insidious forces that our choices are leading us to; we will have to find ways out because the feeling of unease and disquiet today is intense.
Far be it for me to give your intervention a political or pamphleteering overtone - I know it is not and has never been your intention; in fact, I see a spiritual dimension in it. A generous dimension. Mundus admirabilis is an infestation of giant insects that take over the façade of the Eva Klabin house museum like Dark Swamp (nest), in the Renaissance Room, where a black egg 180cm in height sprouts from a crocodile swamp, conjuring up a sense of unexpected wonderment that baffles us and makes us ponder what might emerge from it. All of this with the sound of helicopters and mosquitoes in the background, issuing from Fable ll, at the top of the stairs in the main hall, like a disconcerting reference to the world of insects and Francis Ford Coppola's film Apocalypse Now, and its last words, "the horror, the horror, the horror." In this way, you create a soundscape that permeates the whole house, lending your intervention poetic coherence.
Conserving our capacity to reflect at this time of uncertainty in the world, lost as we are between a familiar territory, but one which we know to be without future, and a desire for something new, yet apprehensive about the unknown; letting ourselves interrupt the flow of daily life and through your intervention reflect upon our wayward paths: this, for me, is what hope is.
Hope in the sense that we are at a crossroads between two worlds, between two writings, between two fires, and we must make our choices fearlessly: cling onto what we know and repeat the same mistakes of the past, or cling onto hope, even though we do not rightly know where it will lead us, and take a chance on the certainty that we no longer want what we have and that the unknown will open up new paths. We long for some spiritual change. Insolitus brings us the rawness of a substantive reality, which your work has the power to do, by laying bare, by materializing on the surface of the world, the anguish of our society today.
Only art and philosophy are capable of such a feat because they have the spiritual means to do so; they do not fear the unknown, nor are they afraid of pointing out issues that bother us. I hope that the people who experience this new intervention in the Eva Klabin house museum collection realize that what this curatorial project has proposed from the outset, which you, Regina, have managed to express so aptly by taking the idea of intervention contained in the original Breathing project proposition to the extreme, is the need to destabilize in order to find a new balance. Your destabilization of the codes of a residence, upsetting its domestic peace and quiet with your imaginary, creates a striking metaphor for contemporary times.
Dearest Regina, only artists are capable of seeing into the future, not that this has any merit of itself, since the future will come one way or another. But as bearers of this potential, they conserve the only certainty possible, which is clarity of perception. What do I mean by this? It is that the artist's body is a kind of vehicle for times in metamorphosis expressed through artworks. The work is more important than the artist; it is an x-ray of its time; it is capable of creating a perception of evidence, a block of sensations (Deleuze), through the senses of identification/empathy (Worringer), making the mystery of each epoch transparent.
Mutant II, which you have created especially for the Breathing project, lays bare the process of art as a metamorphosis of time, which is what I am talking about. Through this work we are surprised with crystal clarity at how the metamorphosis of form comes about: a commonplace tea trolley is presented in mid-transformation into a furry tea trolley, revealing the process in an almost cartoon-like way.
The artwork bears testament to its own time and provides the transparency we need to understand the diagram that constitutes its contemporary nature. I am convinced this is what you have managed to do. That is why, Regina, I so admire your intervention, Insolitus, and your substantive language, and I am grateful for the happy encounter we have had, putting new works alongside existing ones, reinforcing the greater meaning of your work and the original purpose of the Breathing project, which is to prompt reflections about what is established, frozen by time - precisely the state the house museum imposes on the objects and collection it harbors.
With my warmest regards,
Marcio
setembro 18, 2016
Imagens que pensam imagens por Eder Chiodetto
Imagens que pensam imagens
EDER CHIODETTO
Giselle Beiguelman - Cinema Lascado, Caixa Cultural, São Paulo, SP - 17/07/2016 a 25/09/2016
As obras criadas, provocadas, arruinadas por Giselle Beiguelman são como imagens flagradas em trânsito, a meio caminho entre uma representação acerca do mundo exterior e uma espécie de auto análise sobre a própria natureza das imagens. Num só movimento essas ruidosas imagens expressam uma possível visibilidade da paisagem agenciada entre diferentes aparatos e também se auto interrogam sobre sua capacidade em tornar efetiva tal operação.
Dessa forma, o conjunto formado pelas obras de "Cinema Lascado" não deve ser visto como imagens totalizantes que aspiram clarear os contornos de um projeto estético acabado. São imagens que, entre a possibilidade de enunciarem um referente, adulando-o por meio de uma representação enfática, ou de renunciarem a um lugar no mundo, renegando e abstraindo aquilo que a artista confrontou com o aparato de captação de imagens, optam por nos questionar: o que é, afinal, uma imagem?
Essas imagens que pensam imagens, formadas por superfícies rugosas, quebradiças e por vezes com cores inesperadas provenientes de relações binárias conflituosas, levam a percepção ocular a procurar a origem da sua instabilidade. Território resultante de forças distintas e contrárias que,a partir de movimentos tectônicos provocados pela artista em seu interior,resultam em superfícies que se esforçam por harmonizar e criar uma estética errática a partir dos escombros formados por essas forças antagônicas.
Por meio do diálogo forçado entre aparatos que não falam a mesma língua - um aplicativo de edição de vídeo para imagens de baixa resolução que a artista o obriga a processar imagens estáticas de alta resolução, por exemplo - ocorre um esgarçamento da imagem, uma série de fraturas que corrompem o arquivo original e geram, no núcleo da imagem, um novo tempo. O tempo do olhar alongado, desacelerado. Esse tempo que interroga a nossa percepção visual anuncia o que podemos denominar de uma "imagem pensante" que deambula entre transparências e opacidades.
Segundo o pesquisador Emmanuel Alloa "através da superexposição do grão, a materialidade da imagem introduz areia nas engrenagens do visual e cria um tempo, o do olhar" [1]. Como nos lembra Roland Barthes, esse é o instante preciso em que a fotografia se faz subversiva, "não quando se assusta, repele, ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa" [2].
Essa espécie de estética dos escombros resultantes de operações de choque entre imagens e aparatos tecnológicos trazem à tona a fragilidade das imagens binárias e voláteis, que geramos quase espontaneamente no dia a dia, ao mesmo tempo em que potencializa sua anatomia instável que, reconfigurada, oferece aos artistas um vasto território para a criação de originais abordagens sobre a percepção no mundo contemporâneo.
O teórico Vilém Flusser em seu incontornável texto "Filosofia da Caixa Preta", convocava artistas a desvendarem o interior da caixa preta das câmeras, com o intuito de desprogamarem o automatismo e a visão pasteurizada desses aparatos. Beiguelman, a partir de suas trincheiras, desarma a potência comunicativa unidirecional das imagens, revela suas fraturas e nos leva a conviver com a dialética. Operação extremamente saudável que investe contra o excesso de ideologização na comunicação, abrindo flancos para a reflexão acerca dos significados mais complexos e menos dogmáticos das imagens. Imagem e imaginação, nos lembram as obras de "Cinema Lascado", não devem jamais ser dissociados.
NOTAS
1 ALLOA, Emmanuel. Entre a transparência e a opacidade - o que a imagem dá a pensar. In: Pensar a imagem. Emmanuel Alloa (org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
2 BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
setembro 17, 2016
Dublê de Corpo por Ligia Canongia
Dublê de Corpo
LIGIA CANONGIA
Dublê de Corpo, Galeria Carbono, São Paulo, SP - 26/09/2016 a 18/11/2016
Desvinculadas do nu artístico, gênero da tradição clássica, as obras desta exposição apontam para os vários sentidos que a representação do corpo pode adquirir na arte contemporânea. Esse corpo, hoje, aciona cruzamentos entre diversos sistemas simbólicos e não está mais associado às condenações e tabus da história primitiva e das religiões monoteístas. Trata-se de um corpo já liberto dos interditos e da culpa judaico-cristã, que imperou no Ocidente até a modernidade. A partir daí, temos um novo corpo, que tanto pode indiciar erotismo e fetiche, quanto revelar a ideia trágica do “corpo despedaçado”, considerado por Marx o eixo nodal da cultura moderna.
Não mais submetido à relação de domínio da razão, como na visão mecanicista cartesiana, e deixando de ser considerado um ser inferior, o corpo assume, porém, nos primórdios modernos e em plena era industrial, a conotação de força de trabalho e entidade produtiva. Apenas na contemporaneidade, o corpo se libera finalmente das normas morais ou sociais, dos imperativos da beleza e do poder disciplinar do trabalho, para se reabilitar como expressão existencial e política.
Centrada na profanação da imagem do corpo idealizado ou estigmatizado, a poética contemporânea afirma sua reconstrução como corpo ativo, performático e sensorial, assim como sujeito a representações fantasmáticas e mentais. Uma corporeidade que passa a ser concebida como matéria de ações de ruptura e códigos libertadores, longe do pensamento que a ligava aos ideais do classicismo ou à anatomia realista.
setembro 15, 2016
Rochelle Costi por Bernardo Mosqueira
Rochelle Costi
BERNARDO MOSQUEIRA
(ao meu amor)
A produção da artista gaúcha Rochelle Costi teve início em meados dos anos 1980 e, desde então, a artista vem produzindo fotografias, vídeos, objetos e instalações que normalmente integram séries para as quais Rochelle se dedica de forma plena e intensa. Mesmo que grande parte de sua obra pertença ao campo da fotografia e que sua produção demonstre interesse sobre as questões da memória, seu trabalho está longe de se restringir à relação com fotografias de arquivo.
Apesar de ter participado de diversas mostras importantes como o Panorama da Arte Brasileira (1995), VI e VII Bienal de Havana (1997, 2000), II Bienal de Fotografia de Tókio (1997), XXIV e XIX Bienal de São Paulo (1998 e 2010), II Bienal do Mercosul (1999), Bienal de Pontevedra (2000) e Bienal de Cuenca (2009), e mesmo tendo realizado grandes individuais entre dezenas de outras exposições, Rochelle participou relativamente de poucas exposições no Rio de Janeiro.
Na exposição “Contabilidade”, sua primeira individual na Anita Schwartz Galeria de Arte, Rochelle Costi optou por retomar a instalação homônima elaborada no início de 2016 para a 20ª Bienal de Arte Paiz, na Cidade de Guatemala, além de reunir um conjunto de trabalhos inéditos formado por um tríptico fotográfico, um vídeo, um GIF e uma instalação de parede formada por mais de 200 corações de diversos materiais e origens, coletados pela artista nos últimos 23 anos.
De algum modo, a forma como Rochelle desenvolve seu trabalho está ligada a como uma criança se relaciona com objetos encontrados. Por constantemente construir e reconstruir uma ética própria, e por ser uma forma de relação encantada e mágica com a realidade, o brincar da criança é o experimentar de entendimentos sobre o mundo e está relacionado com a descoberta de como se construir e se expressar dentro dele. O brincar é uma importante via de subjetivação e de experimentação da ética, da liberdade e da construção de si em relação ao outro e ao entorno.
Os próprios temas de infância e identidade são recorrentes no trabalho de Rochelle. Na obra “Intimidades”, de 1984, a artista reuniu suas primeiras coleções da infância feitas de caquinhos e fitas numa caixa de madeira e vidro, dentro da qual podemos ver também a fotografia de duas meninas. Talhadas de forma amadora na madeira vemos a palavra “intimidades” e a expressão “a vesga sou eu”. Costi, aos dois anos de idade, acordou repentinamente estrábica, e os exercícios ópticos para corrigir o estrabismo são parte importante das memórias de seus primeiros anos. A relação com a imagem através daqueles aparelhos oftalmológicos, constituinte de seu interesse pelos exercícios do olhar, se transformou na relação com o mundo através do mecanismo da câmera.
Certamente, o tempo passa para os objetos e para as pessoas, sempre de maneiras distintas. A obra “Intimidades” continua dizendo “eu sou a vesga”, mesmo que a Rochelle de hoje possa não ser aquela menina estrábica. Os indivíduos envelhecem, e suas aparências e identidades se transformam. O vídeo inédito presente na exposição, intitulado “Dezesseis”, também trata de identidade, representação, infância e transformação: é uma animação a partir de centenas de fotos, que mostra o crescimento de Lola, filha de Rochelle, que completou 16 anos neste ano. Se na série “Contabilidade” as fotografias mostram a numeração sequencial de objetos no espaço, o vídeo “Dezesseis” conta o tempo, evidenciado no acompanhamento do crescimento da criança.
Ao investigar seu trabalho desenvolvido durante as últimas três décadas e meia, é possível perceber a constância de um interesse pelo ambiente doméstico, pela intimidade, pelas pequenas narrativas e pelas situações e objetos do cotidiano. A obra de Rochelle Costi nos aponta maneiras alternativas de perceber a realidade: opera transformações em nossas capacidades de atenção e interpretação com uma afirmação irrefutável: a banalidade não existe.
Numa sociedade em que as relações ainda estão cada vez mais costuradas pelas lógicas do mercado e do capital, aquilo que não aparenta ser útil e eficaz é comumente entendido como desinteressante, se torna invisível. A percepção, mais do que uma forma de receber a realidade, é uma atividade de criação do mundo e das formas que escolhemos para estar nele. O trabalho de Rochelle nos oferece a capacidade de nos relacionarmos com o mundo de uma maneira mais poética, encontrando ou construindo rimas e dissonâncias.
Tudo o que o humano produz se origina de necessidades básicas (alimentar-se, abrigar-se, relacionar-se, compreender-se etc.) e é criado a partir de uma configuração específica de habilidades e possibilidades. Isso, que é entendido por Técnica, acontece sempre dentro do que chamamos de Cultura. Nos trabalhos de Rochelle vemos um fascínio por aquilo que escolhemos para nos cercar, e é a partir desses fragmentos materiais do mundo, ou da cultura, que Rochelle complexifica leituras e investiga o humano. Não apenas os objetos que guardamos ou descartamos, mas também as fotografias de arquivo ou encontradas, quando usadas, inspiram interesse em Rochelle dessa mesma maneira. E é por isso que algumas vezes seus trabalhos podem ser vistos através de um prisma antropológico ou sociológico.
A instalação “Contabilidade”, que é composta por um vídeo, cinco fotografias em grande formato e dezenas de bolas de borracha feitas artesanalmente, nasce exatamente da fascinação da artista pela cultura popular. Nesse caso, a instalação foi desenvolvida a partir de uma vivência na Cidade de Guatemala para a 20ª Bienal de Arte Paiz. Nos trabalhos de Rochelle podemos perceber um interesse recorrente sobre a diversidade das “formas de mostrar” da cultura popular. Muitas vezes, suas obras são a transposição para o contexto institucional da arte contemporânea das soluções expositivas do repertório popular. No caso de “Contabilidade”, não apenas a diversidade dos objetos da cultura tradicional local pode estar fadada ao fim ou à adequação ao gosto dos turistas consumidores diante da globalização, mas também a forma singular de expor os objetos pode ser transfigurada. Mais uma vez, está presente a pesquisa da artista sobre a relação entre a representação e a ação do tempo sobre as identidades, mas essa série de fotos nos faz lembrar, também, que o trabalho de Costi é muito ligado ao interesse na experimentação das formas de expor e de ocupar o espaço.
Em momentos do passado, a artista fotografou quartos de dormir de pessoas de São Paulo, registrou pratos de comida de indivíduos de origens diversas, retratou imóveis cujas portas e/ou janelas haviam sido muradas, espalhou variadas casas de cachorro pelas ruas do México, criou toalhas de mesa impressas com imagens de cinzeiros sujos, plantas mortas, frutas podres e pés de galinhas, fotografou objetos no interior de uma casinha de bonecas, organizou peças esquecidas dentro de um antigo hospital e registrou os encontros incomuns entre objetos e plantas encontrados pelos caminhos e cantos da cidade. Em todas essas séries, são as rimas e dissonâncias, diferenças e semelhanças entre cada um dos trabalhos, que tornam sensível o invisível; são obras que nos apontam para o que está além das bordas do trabalho. A representação é necessariamente uma não-presença, e o fato de o homem estar quase sempre obscenamente ausente das fotografias de Rochelle acaba por evidenciá-lo como o principal, (quase sempre) oculto e incontornável objeto de investigação da artista.
O interesse de Rochelle Costi pelo humano, e por aquilo que ele escolhe para lhe cercar, se manifesta não apenas nos resultados de seus trabalhos, mas, também, na importância do colecionismo para a dinâmica de seu processo criativo. A artista, desde a infância, coleta objetos do mundo, organizados em conjuntos definidos por complexidades das mais variadas, e permite que eles a cerquem até o dia em que se transformam em outras coisas, outros grupos, ou em trabalhos. Foi assim que nasceu a coleção de corações presente na exposição “Contabilidade”, nomeada “Coleção de artista”, em construção há mais de 23 anos. Há algo muito singular sobre este trabalho: o coração, que todo humano carrega dentro de si, é provavelmente o símbolo mais prolífica e diversamente representado. A força dessa coleção está no fato de que, ao mesmo tempo em que cada um deles pode representar a unidade humana, pode representar também aquilo que nos une uns aos outros.
O colecionar se relaciona com a ação de contar, procedimento principal da maior parte dos trabalhos dessa mostra, mas também com a forma pela qual Rochelle organiza suas séries. As fotografias em “Contabilidade” apresentam elementos organizados em um mesmo conjunto e que, por isso, apresentam uma mesma semelhança-critério e algumas diferenças. É dessa mesma forma, por exemplo, que foi organizada a série de fotos “Quartos”, que Rochelle apresentou na Bienal de São Paulo, em 1998, a Bienal da Antropofagia: um conjunto de fotografias que tinham em comum o fato de retratarem quartos de dormir na cidade de São Paulo (semelhança-critério), mas de pessoas completamente diversas (diferenças).
Manipulando e/ou assinalando frações da cultura com a intenção de compartilhar sua forma de percepção, Rochelle parece lutar contra o desencanto do mundo e querer alterar a durabilidade de suas experiências de percepção poética. Há, no interesse de Costi pelos fragmentos do mundo, um certo elogio à diversidade e uma angústia pela manutenção da coexistência com o diverso. Rochelle Costi, inconformada, parece entender que tudo pode se transformar, mas nada precisa acabar.
Bernardo Mosqueira, setembro 2016.
Delicada equação por Marcus de Lontra Costa
Delicada equação
MARCUS DE LONTRA COSTA
A obra de arte é a interpretação do mundo através da sensibilidade e da inteligência do artista. Ela revela verdades escondidas, cria paradoxos e faz do olhar um jogo instigante de encontros, descobertas e revelações. Ao mesmo tempo, a obra de arte é também reflexo de seu tempo, de suas realidades conjunturais e de seu diálogo com a história que a precede e justifica. Por isso tanto mais relações e conversas uma ação artística provoca no seu espectador, maior será o seu valor e a sua potência. Essa é a estratégia do jogo da arte, esse é o seu desafio e o seu encantamento.
Gaia é um artista para o qual o passado recente é uma fonte de pesquisa e descoberta. Os seus trabalhos dialogam com a tradição modernista em especial com o suprematismo e as vanguardas russas e, neles, persiste esse embate entre contrários: o peso e a leveza, a opacidade e a transparência, a certeza e a tensão da composição artística, a forma e a matéria, a precariedade artesanal e a sofisticação do design e do objeto industrial. Toda essa sinfonia rege-se pela linha, pela idéia do desenho que conduz e determina o gesto e a ação da arte.
O mundo contemporâneo despreza as verdades absolutas, o corpo intocado e indivisível; ele prefere a velocidade e a dispersão, a capilaridade do rizoma e a multiplicidade das origens, das fontes e, mesmo, das verdades. Gaia insere-se na linguagem internacional pós-construtiva ao mesmo tempo em que cria delicados objetos, arapucas curiosas, talvez a mais adequada metáfora para a ação artística nos dias de hoje. “O Rio Tejo não é maior do que o rio da minha aldeia” nos ensinou Pessoa. Gaia carrega e revela a sofisticada beleza de nossa herança indígena, o cheiro, o sabor e o encanto da magia inigualável do estado do Pará e é a partir dessa bem sucedida relação entre o universal e o local que a obra do artista se insere com precisão no cenário da arte brasileira contemporânea, criando pontes e surpreendendo pela originalidade e valor.
Marcus de Lontra Costa
Rio, setembro 2016
setembro 13, 2016
Sem título por Gabriela Davies
Sem título
GABRIELA DAVIES
O objetivo de não ter um título é simples: não limitar a interpretação do objeto de arte em uma única linha de pensamento. Esse foi o propósito dessa exposição – deixar à mercê do expectador escolher o caminho que quer tomar para a interpretação das obras, e as conexões apresentadas pela seleção aqui proposta. Sem título reúne sete artistas com obras que se conectam através de suas técnicas e estéticas distintas; sua ideia de “curadoria simples” é uma tentativa de implicar que a curadoria em si não fará um esforço de criar conexões contextuais.
Com base no texto “Contra a Interpretação” de Susan Sontag, onde a autora enfatiza a problemática na tentativa de traduzir a intenção do artista ao fazer a obra de arte. Como solução, sugere que comecemos a interpretar sua natureza física, o que está exposto diante do expectador. Pois é isso o que essa exposição se atreve a fazer: interpretar o visível, que analisa as técnicas e materiais utilizados pelos artistas, e deixa a critério do público a maneira que vai explorar o contexto dos trabalhos.
Os pontilhados e pinceladas rítmicas de Elvis Almeida fazem um paralelo com a tinta comprimida que vaza pelas rendas da obra sem título de Marcia Thompson. Enquanto as obras de Thompson são sujeitas ao comportamento da tinta na maneira espontânea em que reage à passagem do tecido vazado, a composição de Almeida é estudada e comedida, mesmo que elaborada ao longo da criação.
Já os recortes feitos na série rodados de Enrica Bernardelli ressaltam as técnicas de colagem de Luiz d’Orey. Os dois artistas manipulam o material através de recortes e (re)colagens. Ao “rodar” parte da fotografia, Bernardelli apresenta uma nova imagem que brinca com o alinhamento original da imagem e atiça a percepção ocular. Por outro lado, d’Orey utiliza posters coletados de tapumes de obras civis, cujas composições misturadas com tinta spray, retratam os prédios em construção.
Essa maneira multi-mídia de produzir trabalhos é utilizada também nas obras de Antonio Bokel e Álvaro Seixas que utilizam a tinta spray. Os elementos geométricos na tela de Desconstrutivista Verde de Bokel contrastam com o movimento “solto” e expressivo do spray. Seixas exagera ainda mais esse movimento na Pintura Sem Título Troublesome 96), onde a tinta spray rosa sobrepassa a tinta preta nos cantos da tela, enquanto a rosa é riscada pela preta em outros momentos. Essa coexistência de cores de natureza abstrata é visível também no trabalho de Duda Moraes. A maneira que a tinta escorre, que as cores contrastam dentro do mesmo universo pictórico traz a tona mais uma vez o quase-duelo entre o estudo e planejamento e a espontaneidade que o material utilizado produz.
Monumento por Douglas de Freitas
Monumento
DOUGLAS DE FREITAS
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A ideia da perda de sentido na presença de monumentos no mundo contemporâneo, da falência dessa construção escultórica de representação histórica e cultural na paisagem da cidade, parece guiar a produção de Vanderlei Lopes em busca de um novo modelo possível. Deste modo, o artista opera na construção de monumentos às avessas, ou monumentos mínimos, onde transitoriedade e fixação – coincidência ou não, embate vivido também nas cidades contemporâneas – entram em choque. Os grandes heróis estão em queda, e dão lugar a fugacidade dos novos tempos.
O monumental no trabalho de Vanderlei extrapola o significado restrito à tradição escultórica e arquitetônica, engloba também os símbolos por nós eleitos como grandiosos na cultura, por valor cultural, religioso, monetário, e é claro, por valor especulativo. Seus monumentos elevam o banal, o acidente, a perda. Trazem à luz o que passa desapercebido, constroem buracos e tropeços, fazem desconfiar das certezas. É o milagre da conversão das pequenas coisas mundanas em grandiosas, onde não é mais a escala desses elementos que conferem à eles significância e sim as ações que eles contém, neles perpetuadas. Vincar, dobrar, queimar, derramar, marcar, cavar e tantos outros atos de caráter efêmeros são eternizados pelo artista, através da conversão da matéria e da sobreposição de espaços e tempos distintos. Um cavalo em tamanho real congelado no instante fotográfico entre tombar e reerguer, e a marca de suor de um copo transmutado em metal sólido sobre a mesa, carregam em si o mesmo milagre presentificado, pouco importa a escala.
O monumento apresentado é incerteza certeira, é a constante sensação de que algo está oculto, que tudo está velado, mesmo que ainda se faça presente. Os trabalhos são fantasmas carregados de matéria, são imagens efêmeras elevadas à objetos repletos de corpo. Prestes a inaugurar ou exibir, em Monumento nada é exibido a não ser seu próprio tecido sudário. O que deveria proteger esse objeto de grande importância de olhares prévios à sua inauguração, ou de algum possível dano causado por um espaço ainda em obras, agora está ali, ele próprio convertido em monumento, ocultando permanentemente o objeto que deveria proteger, se tornando ele mesmo o objeto. A preciosidade do que deveria estar por baixo, se deixa ver apenas por frestas laterais, por onde a luz dourada do avesso escapa, vestígio da importância do que está ali oculto. Resta apenas olhar a trivialidade com que o caimento e os vincos destes tecidos desenham, e que agora são perenes. Eles sim são a grandiosidade que se projeta delicadamente diante de nós.
Em Projeto a tentativa construtiva está falha, amassada, e é ela mesma a construção final. Está consolidada em milagre oculto, onde, diante dos olhos, papel marcado se torna marca dele mesmo, parece ter sido engolido por sua própria imagem e solidificado. E no impasse de estar certo ou errado, se eterniza em trânsito, entre geometria compulsiva de dobras, e ação destrutiva hesitante, paralisada antes do fim previsto.
A desconstrução total se torna o próprio projeto, e o desenho que deveria sustenta-lo, ou um dia já sustentou. Eles sim se consolidam como monumentais. Ode à falha como processo e objetivo final da construção, são refugos eternizados, são eles mesmos os monumentos erigidos por Vanderlei Lopes. Nenhuma certeza está revelada. Errância e engano importam mais que qualquer verdade absoluta.
Douglas de Freitas, setembro de 2016
Monument
DOUGLAS DE FREITAS
The idea of loss of meaning in the presence of monuments in the contemporary world, of the failure of this sculptural construction of historical and cultural representation in the city landscape, seems to guide Vanderlei Lopes’ production in search of a possible new model. And so the artist works at constructing monuments backwards, or minimal monuments, where transience and permanence—coincidence or not, a shock also experienced in contemporary cities—clash. The great heroes are falling, and give rise to the fugacity of modern times.
The monumental in Vanderlei’s work extrapolates the meaning restricted to sculptural and architectural tradition, and also embraces the symbols we have deemed great in culture, for their cultural, religious, monetary value, and of course, their speculative value. His monuments elevate the banal, accidents, loss. They bring to light what goes unnoticed, construct holes and stumbling, and make us suspicious of certainties. It’s the miracle of the transformation of small mundane things into grand ones, where it is no longer the size of these elements that give them significance, but the actions they contain that are perpetuated in them. Creasing, folding, burning, spilling, marking, digging and many other ephemeral acts are immortalized by the artist by transforming matter and the overlapping of spaces and separate times. A life-size horse frozen in a photographic moment between falling and getting up again, and the mark of perspiration on a glass transmuted into solid metal on a table, carry within them the same miracle in the present, no matter what the size.
The monument presented is certain uncertainty, the constant feeling that something is hidden, that everything is veiled, although still present. The works are ghosts laden with matter, ephemeral images elevated to objects full of body. Ready for inauguration or exhibition, in Monument nothing is exhibited but the fabric of its own shroud. What should protect this highly important object from viewing prior to its inauguration, or from any possible damage caused by a space still under construction, is now there, itself transformed into a monument, permanently hiding the object it should protect, itself becoming the object. The preciousness of what should be underneath, can be seen only through the side openings, through which the golden light from the reverse side escapes, a vestige of the importance of what is hidden there. All that remains is simply to view the triviality that the draping and folds of these fabrics delineate, which are now perennial. Indeed they are the grandeur that projects itself gently before us.
In Project, the constructive attempt is a failure, crumpled, and is itself the final construction. It is consolidated in a hidden miracle, in which, before our eyes, marred paper becomes its own brand, seeming to have been swallowed by its own image and solidified. And in the impasse of being right or wrong, it is eternalized in transit between the compulsive geometry of folds and hesitant destructive action, paralyzed before its expected end.
Total deconstruction becomes the project itself, and the design that should sustain it, or already sustained it at one time. Indeed they are consolidated as monuments. An ode to failure as a process and the ultimate goal of construction, they are eternalized refuse, and are themselves the monuments erected by Vanderlei Lopes. No certainty is revealed. Aimlessness and deception are more important than any absolute truth.
Douglas de Freitas, September 2016
setembro 11, 2016
Mão erudita, olho selvagem por Emilia Philippot
Mão erudita, olho selvagem
EMILIA PHILIPPOT
“Afinal, uma obra de arte não se realiza com as ideias, mas com as mãos.” [1]
“Braque sempre dizia que em pintura só a intenção conta. E é verdade. O que conta é o que se quer fazer, e não o que se faz.” [2]
Picasso nunca escreveu textos teóricos sobre seu trabalho. Mas expressou-se, por meio de fragmentos, sem lógica aparente, passando de uma ideia a outra. Todo o seu método criativo se coaduna com essa imagem, feita de rupturas e retornos, fulgurações e lentas progressões, caminhos que se cruzam e se sucedem. Em seu ateliê, que ele compara a uma “espécie de laboratório”, suas obras estão de fato vivas, [3] investidas de uma presença e de uma força singulares.
As obras da coleção do Musée national Picasso-Paris são peças que Picasso decidiu conservar por toda a vida, a maioria das quais “conviveu” com ele; por isso, elas possibilitam penetrar no âmago do processo criativo do artista. Maior coleção de obras do mestre no mundo, esses “Picassos de Picasso”, diretamente saídos de seus ateliês, são um testemunho excepcional e, ao mesmo tempo, uma fonte de reavivados questionamentos em torno do gênio picassiano. Desde os primeiríssimos anos de formação, durante os quais o jovem prodígio molda com habilidade cópias em gesso de mármores antigos, até as últimas etapas de sua vida, marcadas por intensa prática da gravura – entre reinvenção de técnicas e transgressão do motivo –, a coleção do museu parisiense constitui um corpus único que possibilita abordar o homem e sua obra em toda a sua complexidade.
Por isso, decidimos tirar proveito do caráter específico dessa coleção para esboçar um retrato plural do artista que questiona sua relação com a criação, entre fabricação e concepção, execução e idealização, mão e olho. Nossa abordagem, cronológica e multidisciplinar, valendo-se de uma seleção de obras importantes, de estudos e experimentações às vezes realizados colaborativamente, tem em vista fazer um apanhado da extensão do universo picassiano e recompor, por meio de fragmentos, as diferentes facetas de um dos maiores mestres da arte do século XX.
O propósito da exposição se insere, portanto, numa perspectiva singular: a do elo especial que o artista mantém com suas próprias obras. Esse elo íntimo, pessoal, que irriga o conjunto da produção picassiana, transparece de modos diferentes, a depender dos períodos: retratos íntimos da mãe do artista ou do primeiro filho, Paul, celebrações passionais da sensualidade feminina de Marie-Thérèse Walter, denúncias sem concessão dos sofrimentos provocados pelos conflitos contemporâneos, da Guerra Civil Espanhola ou da Ocupação da França pelas tropas alemãs. Seja qual for o motivo abordado, sempre aflora, para além das formas, a vivência de Picasso. O ímpeto amoroso do amante, as dúvidas do ser humano, as alegrias do pai de família, os engajamentos do cidadão: tudo se introduz em sua arte.
Esse elo íntimo, que sela indissoluvelmente vida e obra, manifesta-se não só nos objetos que Picasso escolheu para legar à posteridade, mas também nos raros textos e declarações que o artista emitiu ao longo da vida. Assim, postas em perspectiva, essas manifestações às vezes contraditórias desenham um personagem múltiplo cujo gênio se expressa por meio da conjunção de um domínio técnico excepcional, que põe as próprias mãos a serviço de projetos extremamente ambiciosos, e de uma inspiração renascente, visionária, que cultiva a selvageria de seu olhar. Já muito jovem, Picasso não se deixava reduzir àquele famoso dom de desenhar “como Rafael”, que remete tanto a uma habilidade inusitada quanto a uma profunda compreensão da pintura e da arte da representação. Fortalecido por esse legado, que ele considera de aquisição quase imediata, ele amplia seu campo de referências formais e estilísticas e inspira-se, alternadamente, na arte de seu tempo (vanguarda barcelonesa, simbolismo, pós-impressionismo, pintura de Paul Cézanne), no Mediterrâneo (antiguidade clássica, grande pintura barroca, estatuária ibérica, pintura pompeana, cerâmica de Vallauris), no mundo contemporâneo próximo (jornais, teatro, touradas, poesia, circo e saltimbancos) e distante (escultura africana, arte da Oceania, gravuras japonesas).
Assim como se apodera de tudo o que o cerca para plasmar sua obra, Picasso não se fecha numa técnica única – por mais virtuoso que ele seja em pintura –, mas passa constantemente, com facilidade e naturalidade evidentes, da pintura à escultura, do desenho à gravura, da fotografia à cerâmica, quando não está colaborando com o teatro ou o cinema! Essa aptidão para se expressar em todos os meios e transpor ensinamentos extraídos de um para outro é outra das características do gênio picassiano. Ela demonstra grande compreensão dos materiais e um gosto pela experimentação que abandona deliberadamente as categorias tradicionais dos gêneros. Verdadeiro pilar do método criativo de Picasso, esse casamento destoante entre a excelência de um know-how instruído, culto, respeitado, e a liberdade sem precedentes de um olhar que absorve tudo, sem distinção de classe ou categoria, é sem dúvida a base das grandes revoluções da história da arte no século XX. Mão erudita e olho selvagem: Picasso é, profundamente, uma coisa e outra, não hesitando, desde os anos 1930, em afirmar com galhardia sua independência artística.
Ponho em meus quadros tudo aquilo de que gosto. Azar das coisas, elas que se arranjem entre si. [4]
No entanto, essa declaração vívida, que soa como um manifesto confiante e assumido, esconde outro desafio, que Picasso exporá alguns anos depois a Roland Penrose: o de apresentar suas obras ao público. Identificando sua pintura com uma extensão de si mesmo, Picasso confidencia a seu biógrafo a violência do gesto representado pela exposição pública de seu trabalho, a dificuldade que, em certa medida, o desnudamento de sua obra implica: “Cada quadro é um frasco cheio de meu sangue. Com isso ele foi feito”. [5] Assim, seríamos tentados a entender melhor como e por que Picasso se cercava de suas obras, constituindo em vida o museu que possibilitará às futuras gerações estudar seu trabalho. Também nisso paradoxal, Picasso, mesmo dando a entender o temor ou pelo menos a apreensão do desvendamento de sua obra para o grande público, participou durante toda a vida da divulgação de seu trabalho, em especial em sua primeira retrospectiva na galeria Georges Petit, em 1932. Envolvendo-se na organização de numerosas exposições que lhe foram dedicadas por marchands e diretores de museus do mundo inteiro, ele contribuiu amplamente para a expansão de sua pintura, pondo à disposição as obras de sua coleção pessoal que hoje constituem o núcleo da coleção do Musée national Picasso-Paris.
Ademais, ele estipulou as próprias condições para a boa compreensão de sua produção e demonstrou, já em 1964, toda a atenção que dedicava à boa documentação de sua obra. É assim que Brassaï relata, em suas famosas conversas com Picasso (Conversations avec Picasso) publicadas pela Gallimard, como o artista se preocupava em preservar ao máximo a natureza e o contexto que haviam prevalecido na elaboração de suas formas:
Mudo ligeiramente de lugar os chinelos que estão pouco visíveis e me preparo para tirar a foto de meu “companheiro” quando Picasso volta. Ele dá uma olhada no que estou fazendo. “Vai ser uma foto divertida, mas não será um ‘documento’… E sabe por quê? É que você mudou meus chinelos de lugar… Eu nunca os deixo arrumados desse jeito… Essa é sua arrumação, não a minha. Ora, a maneira como um artista dispõe os objetos em torno de si é tão reveladora quanto suas obras. Gosto das suas fotos exatamente porque são verídicas… As que você fez na rua La Boétie eram como uma coleta de sangue com a qual se pode fazer a análise e o diagnóstico daquilo que eu fui naqueles instantes… Por que acha que eu dato tudo o que faço? Porque não basta conhecer as obras de um artista. É preciso saber também quando ele as fazia, por quê, como, em que circunstâncias. Quem sabe um dia existirá uma ciência que talvez venha a ser chamada ‘ciência do homem’, que procurará penetrar mais o homem através do homem-criador… Penso com frequência nessa ciência e faço questão de deixar para a posteridade a documentação mais completa possível… Por isso é que dato tudo o que faço.”
De fato, Picasso datava tudo o que fazia, e com muita precisão. Se considerarmos que a coleção de artes gráficas do museu tem a particularidade de conservar obras que são ao mesmo tempo objetos cujas funções variadas lançam novas luzes sobre a prática de Picasso e o modus operandi de sua arte, notaremos o cuidado do artista em colocar desenhos e gravuras em sequências verídicas. Não há a menor dúvida nem acasos na sucessão das folhas. Quando todas estão datadas do mesmo dia, Picasso acrescenta um número romano à data, de tal maneira que estabelece a ordem real em que apareceram e é possível reconstituir sem ambiguidade a genealogia exata de uma figura ou de um movimento. O mesmo era feito com as gravuras, cujos estados intermediários Picasso conservava com esmero, testemunhando o avanço irreversível do trabalho realizado na prancha.
Nesse aspecto, os desenhos feitos com tinta colorida sobre papel transparente para Mystère Picasso [6] – filme realizado em 1955 por Henri-Georges Clouzot – constituem um documento único do método de trabalho do mestre. Esclarecidos pelo cinema, do qual são protagonistas, eles revelam uma “progressão simultânea do desenho” que, desenvolvendo-se em todas as partes (em cima, embaixo, à direita, à esquerda), procede por destruições sucessivas de equilíbrios, por superposição e transformação de composições latentes. E podemos compreender aqui, nas palavras de Werner Spies, o papel essencial desempenhado pelo desenho em Picasso:
Se nessa obra, em que é escassa a possibilidade de se obter uma visão globalizadora, podemos discernir alguma lei que possibilite interligar os períodos mais diferentes, essa lei reside na mobilidade que Picasso impõe a seu motivo. O fundamental é “esgotar” uma forma. Quando há repetição, ela produz imperceptivelmente uma solução formal nova. Quase todas as amplificações inventadas por Picasso no âmbito da forma nasceram dessa maneira cinematograficamente “decomposta”. As obras que observamos, uma a uma, são “stills”, excertos recortados num encadeamento móvel de variações. [7]
Em outras palavras, as obras de Picasso nada mais seriam que uma pausa no continuum de um processo criativo em marcha perpétua, uma parada na imagem que demonstra toda a maestria com a qual sua mão soube encarnar as visões de seu olho ávido e indomável.
NOTAS
1 Roland Penrose, Picasso, Paris: Flammarion, 1982, p.469.
2 Hélène Parmelin, Picasso dit…, Paris: Gonthier, 1966, p.148.
3 “Ele sonhava com exposições em que as telas fossem mostradas como no ateliê. ― É lá que elas estão vivas.” Hélène Parmelin, Voyage en Picasso, Robert Laffont, 1980; Christian Bourgois, 1994, p.49.
4 Palavras de Picasso transcritas por Christian Zervos em “Conversation avec Picasso”, Cahiers d'art “Picasso: 1930-1935”, Paris, 1935, p.37.
5 Palavras de Picasso transcritas por Roland Penrose em Picasso, Paris: Flammarion, 1982, p.472.
6 O museu conserva 38 desenhos realizados durante a filmagem: números MP1983-8 a MP1983-45, com uso de canetas de feltro sobre papel jornal velino virgem, antes montados em chassis, verão 1955.
7 Werner Spies, Picasso, pastels, dessins, aquarelles, cat. exp. Kunsthalle de Tübingen, Nordrhein-Westfalen de Düsseldorf, Herscher, 1986, p.47-48.
O mundo físico por Daniela Vicentini
O mundo físico
DANIELA VICENTINI
O mundo físico, sabemos, não é estático. Nem uma rocha está mesmo parada. Ainda que tenhamos a sensação de que muita coisa não se mova, sequer este planeta em nossa percepção cotidiana. Assim, Gabriele Gomes, Fernando Burjato e Cleverson Oliveira ativam em objetos, pinturas e desenhos – que querem se afirmar como presenças físicas no mundo –, cada um a seu modo, percepções temporais distintas: coisas que trazem latente o vir a ser do processo de suas configurações.
Dos três, Gabriele é quem lança mão dos artefatos que estão ao alcance de todas as pessoas – um pirex, um paninho rosa de limpeza, garrafas de vidro vazias. Isso tem na casa de toda gente. Há também objetos afetivos do universo da artista – como livros e bibelôs – ou que parecem ter sido coletados em viagens e passeios – como pedras e conchas. E tudo remete ao ambiente das centenas de artigos que rodeiam a sua vida doméstica, mas poderia também ser a de outra pessoa. Então, um tanto de tinta, um volume de cor, se acomoda dentro ou sobre os objetos. E o processo corriqueiro do objeto comum para, adquire outra temporalidade: as garrafas não serão mais descartadas.
Tudo que nos rodeia se apresenta com um excesso de luz – cores fortes, letreiros, telas, as luzes estão bem acesas – e Gabriele as ilumina mais ainda: usa purpurina, espreme o tubo de tinta com cores industriais, elege cores saturadas. Embalagens e recipientes ganham outro tanto de cor chapada, sem escala de tonalidades. A tinta esparramada seca em sua liquidez, torna-se também coisa que se agarra a outra mas mantém uma aparência mole. Cristaliza-se no processo de estar conformando algo: borbulhando de dentro da garrafa, sobrepondo-se às superfícies.
Luz sobre luz, desfaz-se o contorno das coisas. Como que outra imagem de realidade se conforma, algo que traz um quê de uma atmosfera de sonho. A ação de Gabriele nos dá ferramentas para observar os objetos ao nosso redor como se pudéssemos olhá-los como que pela primeira vez. Raramente paramos para pensar em como as coisas vieram a ser o que são. Toda a complexidade do pensamento e fazer humanos que envolvem a existência de muitos itens. Eles estão aí, são úteis, descartáveis (ainda que não exista um fora) – tornam-se até mesmo invisíveis. Uma caneta esferográfica, um caderno quadriculado, como vieram a ser o que são? Gabriele os enlaça em pequenos arranjos jocosos – cor, forma, função. O pensamento e o olhar podem se deter, inclusive na individualidade de cada elemento.
Assim cria-se “Oba” na escala de uma mesa, tomando cerveja ou café, lembrando daquele passeio na praia com as conchinhas colhidas, depois deve-se limpar – nunca mais irei lidar com aquele paninho do mesmo jeito. É necessário reinventar – e por que não fazê-lo com instantes de um olhar generoso para o que está bem aqui? Conchinha sobre conchinha, o desejo é o de alcançar o céu, como a coluna sem fim de Brancusi. Ainda que no ato de erigir a tinta consiga apenas deitar-se.
Fernando Burjato tem na repetição de faixas um vocabulário desde muito tempo, já nas camisetas de seus autorretratos de quando começou enfurecidamente a desenhar, pintar e refazer. E repetidamente, todos os dias em seu ateliê, desde então, o fazer de Fernando se transforma por meio do excesso de sempre reconstruir. São muitos exemplares de um mesmo até que as transformações se insinuem – podem ser acidentes, desvios do fazer que são aceitos e tomam corpo. A arte é referência explícita: a grade moderna, a pintura como matéria, colagem, pinceladas, tinta escorrida, dripping, veladura, impasto, claro e escuro, qualidades de linhas e muito mais. Embebe-se de obras, experiência concreta da arte, essa é a realidade do artista. O sistema, portanto, não é algo para se adequar. É o ponto de partida para inventar excessos.
São pinturas a óleo em que aparecem faixas organizadas uma ao lado da outra, mais ou menos com a mesma largura e quantidade de tinta equivalente, cada cor num espaço definido. Diante de algumas, nos deparamos com o transbordamento da tinta para fora dos limites do quadro. Outras têm como suporte um paralelepípedo protuberante, com tinta escorrida nas laterais. Definem-se imediatamente dois lugares – um tanto do que é dentro está fora. Nas bordas, a tinta aparece efetivamente como coisa e o suporte inusitado é caixa: temos certeza de que se trata do mundo físico, com objetos tridimensionais que produzem sombras. Pode-se ver isso claramente no desenho em pastel que retrata as próprias pinturas – ou é estudo que as antecede?
Desse contraste evidente outros tantos vão surgindo. Há um todo ritmado, uma coisa depois da outra, mas a predileção é por cores dissonantes e o tratamento de pintura de cada parte cria acontecimentos específicos – numa vemos uma sequência de cores em degradê, noutra não identificamos nenhuma pincelada ou há brilhos ou vestígios de rastos do pincel ou um aglomerado de tinta. Como se o espaço de dentro fosse feito por citações de procedimentos pictóricos. O todo se organiza tanto como colagem de formas geométricas, por assim dizer, quanto como colagem de maneiras, já tradicionais, de se ativar uma superfície de pintura. Evidencia-se a convivência de coisas muito diferentes num lugar que de início parece um todo organizado. E quando nos demoramos em algo, a pintura parece dizer: “Ei, veja isso aqui agora, poderia funcionar assim também, não é? Olhe para esse esfumaçado, veja esse volume, viu a cor aqui em cima?”, e assim por diante. Nem tudo é muito sério, as curvas e as dobras e rasgos parecem querer brincar, a caixa é um treco na parede. Sorrimos.
As luzes também estão bem acesas, algumas cores são estridentes até. A potência de produzir é circunscrita a uma força de vontade individual, o fazer construtivo convive com sua impossibilidade – as bordas realmente caem.
Cleverson Oliveira apresenta desenhos feitos com pó de grafite e caneta permanente sobre tela; portanto, em escalas de cinzas e preto e branco. Eles parecem querer configurar uma paisagem, mas ela não se mostra totalmente. É apenas aventada por manchas nas quais reconhecemos as sinuosidades do mundo vegetal. Há também o desenho de ícones que querem representar gotas de água em escala real – se olharmos de perto vemos uma forma ovalada preenchida na metade de cima de preto e na de baixo de branco. Com pequenas diferenças de tamanho, esses desenhos são repetidos em toda a superfície da tela. Desse modo, vemos o desenho de gotas e o de silhuetas de plantas. E essas duas coisas nos fazem ver uma terceira que na verdade não existe: uma placa de vidro. O jogo do desenho é transformar a superfície da tela em vidro. Vemos aquilo que não existe como coisa – mundo físico. Não há desenho do vidro e é isso o que vemos o tempo todo. Temos então uma paisagem intuída através de um vidro embaçado sobre o qual há gotas – vidro, gotas e manchas.
Cleverson realiza trabalhos em diversas mídias. Entre elas, a fotografia e o vídeo. Há certa narrativa, um aparente descompromisso, muito humor. Interessa atentar como o artista lida com a imagem nesses veículos de reprodução. Sabemos que ela é constituída por pequenos pontos. E ele toma partido por evidenciá-los; portanto, as figuras aparecem granuladas, com contornos incertos. As cenas se dão com imagens que estão sempre prestes a ser desconfiguradas. As superfícies da impressão e do vídeo são porosas, ele constrói por indefinições, utiliza silhuetas – como também nesses desenhos de paisagem.
Bem, estamos abrigados da chuva quando contemplamos essas imagens. Seria de dentro de uma casa? Ficaríamos assim tanto tempo observando as vidraças? A paisagem está bem perto. Em suas fabulações, o artista introduz a experiência da viagem como assunto poético. E esses desenhos me remetem ao tempo em que passamos a olhar a paisagem quando estamos num ônibus, num trem, carro de passeio, vendo a chuva e o mundo cambiante e embaçado, impossibilitados de fato de estar lá. Apesar de que a dimensão da tela pode contradizer essa imagem. Afinal, um desenho tem a liberdade de ser apenas aquilo que é, em preto e branco.
O mundo físico de Gabriele Gomes, Fernando Burjato e Cleverson Oliveira é feito por coisas moles, cortinas que caem e vapores. Objetos do mundo comum reconfigurados, pinturas de faixas e desenho de paisagem – não alardeiam novidades. A potência dos trabalhos é reavivar sempre a vontade de arte – o processo de vir a ser é assunto.
Daniela Vicentini
Setembro 2016
setembro 7, 2016
Volta ao Mundo: O apanhador de grãos por Ricardo Resende
Volta ao Mundo – O apanhador de grãos
RICARDO RESENDE*
Os trabalhos de Luiz Hermano são espaços do encantamento, não há material pobre ou desinteressante, tudo pode se tornar parte da cosmologia de sua obra. Imagens detalhadas de esferoides macios, urdidos por linhas de espessuras variáveis em cujos interiores adivinham-se brinquedos de plástico coloridos, bonecos, soldados, rinocerontes, bicicletas, aranhas, escorpiões, exemplares dessa infinidade de miudezas que os camelôs e as lojas de R$ 1,99 oferecem às crianças em geral, em particular as desfavorecidas, facultando-lhes o acesso ao mundo dos sonhos, um plano em que, graças ao trabalho da imaginação, todos os objetos, incluindo os confeccionados por um material tão comum quanto o plástico, têm um poder insuspeitado.
Estes componentes oníricos que aparecem em suas engenhocas excêntricas, inéditas e engraçadas fazem parte de um mundo encantado em que habita Luiz Hermano. É essa cosmologia de tudo que o cerca e que trás em sua memória vivida no interior do Ceará, que transborda em suas esculturas e instalações.
E são estas memórias a sua matéria artística mais preciosa que, pelas mãos do artista, transformam-se em espaços escultórico-cósmicos, ou melhor, em uma espécie de “poeira cósmica” que se espalha pelo universo infinito. É o que nos faz pensar quando observamos a série de relevos feitos de capacitores e arame. Cria constelações. A poeira cósmica de cores e formas infinitas.
Diria que são os espaços, os objetos, as esculturas e as instalações, os resultados da “meditação” diária. Uma maneira de contemplar o mundo. Do silêncio ao redor é de onde vem sua imaginação.
* Texto curatorial para a individual "Volta ao Mundo: O apanhador de grãos", realizada na Funarte MG, em Belo Horizonte, de 15 de maio a 28 de junho de 2015.
setembro 4, 2016
Novas Aquisições - MAPA: Um acervo em construção por Paulo Henrique Silva
Um acervo em construção
PAULO HENRIQUE SILVA
Texto sobre os artistas e as obras extraído do catálogo da mostra Novas Aquisições - MAPA
Humberto Espíndola, com a poética da bovinocultura, foi o primeiro artista do Planalto Central a se destacar no cenário da arte contemporânea brasileira. Com quase 50 anos de carreira, se reinventou por diversas vezes, vivendo várias fases: a do boi que dialogava com questões sociais do índio, como a do boi enquanto símbolo da riqueza do estado de Mato Grosso do Sul - em alguns trabalhos retratados de forma sarcástica, como ícone de poder -; a do boi naturalista, representado de forma realista, entre tantas outras. Humberto, certamente, será lembrado na História da Arte brasileira como o artista que, durante toda uma vida, pintou boi. Nos trabalhos de Espíndola, tem-se a impressão de estar diante de uma tentativa de humanização do boi. Humberto participa da mostra com o trabalho “Taurus e Europa Devastada”, realizado em 1995, que marca o período em que o artista substitui a tinta a óleo pela acrílica. A obra, inspirada em narrativas mitológicas, nos apresenta uma cena de terror e pânico, em que a princesa fenícia é estuprada pelo general Taurus. No lado direito superior do trabalho, observa-se uma figura feminina que deixa o observador cheio de dúvidas e indagações: estaria ela dando as costas para uma situação de barbárie como aquela ou estaria indo em busca de socorro? Apesar de datar de meados dos anos 90, a obra se mantém atual e é possível associar as imagens contidas nela ao terrorismo hoje presente no continente europeu.
Artista emergente do final da década de 1970, Adir Sodré tem seu trabalho pautado por uma temática regionalista, provocando discussões sobre questões relacionadas aos indígenas e à invasão da indústria do turismo em determinadas regiões do Brasil e ao consumismo desenfreado provocado por uma política capitalista. Com trabalhos que fazem a fusão de elementos da cultura regional com ícones da cena intelectual e do mundo fonográfico, Sodré, assim como seu contemporâneo Humberto Espíndola, rompeu fronteiras regionais, participando de mostras importantes no eixo Rio-São Paulo e fora do Brasil. Autodidata conhecido pela irreverência e erotismo, Adir pinta ambientes onde humanos habitam a natureza e esta, por sua vez, habita os humanos, criando uma situação de hibridismo entre habitante e habitado. Seus trabalhos celebram a vida e a natureza em uma verdadeira explosão de cores, com frutos e flores representados de forma vigorosa, cheios de vitalidade. Os elementos da fauna e da flora, em alguns trabalhos, ganham formas de órgãos reprodutores humanos, ora de forma explícita, ora subjetiva.
Para a exposição Novas Aquisições – MAPA, Adir se propôs revisitar a série “Gueixas”. O trabalho “Gueixas do Pantanal” apresenta três gueixas – ícone da cultura japonesa - em plena cena pantaneira, envolvidas por onze borboletas e uma paisagem floral que emoldura toda a extensão da obra. O artista faz referências às gravuras japonesas que influenciaram a escola impressionista e à obra “Almoço na relva”, pintada em 1863 pelo artista francês Édouard Manet.
Elder Rocha Lima Filho, goiano residente em Brasília desde 1972, frequentou entre 1978 e 1980 o ateliê do Cresça - Centro de Realização Criadora. Em 1985 ingressou na Universidade de Brasília (UnB) e licenciou-se em Artes Plásticas/Pintura. Em 1993, após ter feito mestrado na Inglaterra, tornou-se professor do Departamento de Artes Visuais da UnB, onde se tornou um dos principais referenciais da pintura produzida, e em Brasília fez escola como professor do Instituto de Arte da UnB, influenciando um número expressivo de artistas que, hoje, se apresentam no circuito institucional e comercial da arte contemporânea. Apesar de uma trajetória marcada por trabalhos que apresentam um hibridismo entre ações do território do desenho e da pintura, sempre pensou o seu trabalho como pintura, mesmo quando faz instalações, pois coloca em foco a discussão do plano, da pintura expandida. Para Elder, tudo que habita a superfície de uma tela é pintura, mesmo quando se relaciona de forma direta com aspectos técnicos e estéticos do desenho. Portanto, a denominação pintura é meramente uma questão geográfica.
A obra doada por Rocha para ser incorporada ao acervo do MAPA é uma pintura da série “Justaposição Polar”, do ano de 2015. O trabalho, com apurada técnica, nos apresenta a figura de um homem de chapéu, que à primeira vista até lembra Santos Dumont, o que é normal quando se está diante de uma pintura do artista, pois Elder se apropria de imagens geralmente antigas, retiradas de livros literários, escolares e revistas, portanto, muitas vezes já vistas por nós. As imagens deformadas e justapostas nos polos opostos da tela funcionam como um dispositivo da memória coletiva, elementos condutores e facilitadores para um mergulho na intimidade da obra.
Marcelo Solá é o artista goiano da geração emergente do final dos anos 80 e início da década de 1990 cuja produção obteve maior projeção no cenário nacional. Nasceu em 1971, em Goiânia, cidade em que vive e trabalha atualmente. Com trabalhos intimistas, que utilizavam a escrita como processo de construção dos desenhos, Solá foi rapidamente absorvido pelo circuito institucional, pela crítica especializada e consequentemente pelo mercado comercial. Participou de exposições em importantes instituições e conquistou vários prêmios. Entre eles se destacam a Bolsa de Apoio à Pesquisa e Criação Artística, da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro e, por duas vezes consecutivas, o Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea da Funarte.
Em 2002, Marcelo participa da 25ª Bienal de São Paulo, fato que marca, definitivamente, sua ascensão ao patamar dos principais artistas contemporâneos do Brasil. Sua instalação, composta por um imenso avião, construído com carrinhos de metal e utilizado para realizar o transporte de caixões em cemitérios, e pelos painéis em preto e branco, criam um ambiente, carregado, sombrio e cheio de inquietações conceituais.
As obras exibidas na exposição mostram que elementos como palavras, frases, manchas, ora opacas, ora transparentes, que sempre estiveram nos trabalhos do artista, continuam presentes, porém agora grafadas com uma gama pictórica extensa. As cores, muitas delas fluorescentes, se contrapõem ou se alinham ao preto, abundantemente usado por Solá. Os trabalhos feitos com lápis, pastéis macios e tinta acrílica, criam narrativas poéticas entre ícones e alegorias que abordam questões sobre política, sexualidade, comportamento, arquitetura e história da arte.
Com carreira iniciada durante a década de 1980, Luiz Mauro estabeleceu-se como um expoente da pintura goiana. Artista pesquisador, após vários anos dedicados à pintura, Luiz começa, no início dos anos 2000, a fazer desenhos que retomavam a figura da cama - presente nas pinturas dos anos 80 –, associando-a a novos ícones impregnados de memórias de um mundo sombrio e, muitas vezes, de aspecto depressivo. O desenho sempre esteve presente nas anotações do processo de construção das pinturas, porém, só por volta do ano de 2007, passou a ser utilizado como a principal mídia trabalhada pelo artista. Em 2009, com dedicação exclusiva ao desenho, associa o uso do nanquim com a tinta óleo sobre papel. Os trabalhos mantêm aspectos muito próprios da pintura, como a densidade da matéria e da textura.
Luiz Mauro irá participar da exposição com trabalhos da série “Pinturas como Fotografias”, iniciada em 2012, que tem como tema o ateliê. São obras que representam os estúdios de produção de artistas importantes de vários períodos da História da Arte. Usando imagens de segunda geração, no caso, fotografias retiradas de sites, revistas, livros de arte e outras fontes, Luiz não busca fazer os trabalhos com a perspectiva documental, considerando que essa função já foi exercida pelas fotografias e gravuras que ele usou como referencial para produção das obras.
Os trabalhos apresentados na mostra são ateliês dos escultores - Georg Baselitz e Anish Kapoor, artistas de gerações diferentes, ambos ainda vivos. São desenhos carregados de sentimentos e poesia, feitos com várias camadas de nanquim e tinta óleo, levando até três meses de trabalho para serem concluídos. Os trabalhos conduzem o observador a visitar espaços nunca habitados por ele, proporcionando um mergulho em questões que relacionam arquivos imagéticos, arquitetura e fotografia.
Um dos artistas mais emblemáticos de Goiás, Pitágoras Lopes desenvolveu uma trajetória sólida e comprometida com o ideário neoexpressionista e romântico. Artista emergente do final da década de 1980 e início dos anos 90, participou de importantes exposições no Brasil e no exterior. Foi premiado em vários salões e participou da 29ª e 34ª edição do Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, um dos eventos mais representativos do circuito institucional do país.
Pitágoras é movido por uma força externa que o impulsiona a produzir de forma compulsiva e incessante. Sua produção é influenciada por todos os tipos de mídia: TV, gibis, revistas, jornais cinema, qualquer tipo de informação advinda do mundo contemporâneo. Seu processo criativo pautado na relação de tensão existente entre seu corpo e o material utilizado como suporte para produção das obras, telas, papelão, pedaços de madeira e encartes do mundo da moda, resultam em pinturas que trazem narrativas poéticas de um mundo visto de forma quase surreal, onde personagens em meio a um universo caótico dialogam com cenas banais do dia a dia.
Nesta mostra Pitágoras irá apresentar um trabalho de sua nova série, “Sem Título”, que, ao contrário de trabalhos em preto e branco, de desenhos e pinturas com imagens distorcidas e fantasiosas, de um artista contemporâneo que lida com as dores, frustrações e solidão do mundo atual, apresenta uma obra repleta de insetos coloridos. O trabalho surge do interesse do artista de se afastar e ver com certo distanciamento sua produção mais intensa e neoexpressionista. Com os mesmos traços fortes, gestos rápidos e fluidos de sempre, Lopes considera a obra doada ao acervo do MAPA um insight específico dentro de sua trajetória.
Divino Sobral é um dos artistas mais versáteis desta mostra. Além de artista visual, atua como curador e crítico de arte. Autodidata, teve sua formação de maneira solitária, valendo-se de suas pesquisas práticas em seu ateliê e suas investigações teóricas em sua biblioteca. Após ter sido absorvido enquanto artista pelo meio institucional, participando de importantes mostras e recebendo prêmios nas principais instituições do país, seu interesse pelas áreas da estética, história e crítica da arte o levou a assumir outras funções no circuito. Atualmente, Sobral está entre os principais teóricos e críticos de arte do Centro-Oeste, participa de comissões de seleção e premiação de importantes eventos do setor e escreve textos críticos para publicações de artistas renomados.
Sobral, ao longo de sua carreira como artista, vem pesquisando e investigando a relação da memória individual e coletiva com o tempo em que elas são moduladas. Para produção dos trabalhos lança mão de diversos materiais como papel, ferro, fios de cobre, cabelo humano, sabão artesanal, tecido, bordados, entre outros. O uso de todos esses materiais e suportes resultou, em mais de duas décadas, em desenhos, pinturas, objetos, esculturas, fotografias, instalações e intervenções na paisagem.
Os trabalhos escolhidos para participar da mostra são um recorte da obra intitulada “Recordações de uma paisagem não vista”. O trabalho parte da ideia de apresentar um lugar a partir de memórias e referências culturais de um lugar onde Sobral nunca estivera antes, no caso, o estado do Ceará. Serão apresentadas sete fronhas de um conjunto de quarenta fronhas oxidadas e bordadas digitalmente. Os desenhos feitos artesanalmente se relacionam de forma quase sempre metafórica com textos de depoimentos, dados biográficos e nomes de pessoas, personagens importantes da história cearense. Divino imprime nas fronhas referências aos expedicionários, aos artistas viajantes, como no desenho que representa as malas de viagem do artista Leonilson. Os trabalhos, sempre expostos em pequenos ou grandes conjuntos, têm a intenção de proporcionar ao público a sensação de estar diante de um grande livro.
O goiano Elyeser Szturm, nascido em Goiânia em 1958, há mais de duas décadas residindo em Brasília, fez doutorado em Artes Visuais na Université de Paris VIII, entre 1989 e 1994. Está no circuito profissional desde 1974, participando de importantes exposições no Brasil e exterior. Entre os prêmios conquistados, se destacam Prêmio Funarte, em 1998; Salão da Bahia, em 2000; Bienal 50 Anos Brasília e Faxinal das Artes, em 2002. Szturm por ter consolidado sua carreira no Distrito Federal, assim como outros artistas goianos, tem o seu trabalho mais conhecido em outros centros do que em Goiás.
Transitando por diversas linguagens, Elyeser usa desde suportes tradicionais como o papel até instalações de alta complexidade. Suas pesquisas se estendem por temáticas que envolvem o espaço e a paisagem, tendo como foco a construção de narrativas poéticas contemporâneas da imagem.
Szturm participa da exposição com trabalhos feitos a partir de monotipias em silicone, técnica desenvolvida nos meados dos anos 90 que usa silicone para extrair ou subtrair das superfícies elementos que a compõem, criando uma espécie de pintura em que não se utiliza tinta e nem pincel. As obras intervêm, retiram ou se apropriam de elementos da natureza e da cultura do povo goiano, levando para o espaço institucional, galerias e museus, códigos pertencentes ao universo popular, que ganham novos significados ao serem fruídos pelos visitantes. As obras expostas foram extraídas da arquitetura colonial da histórica Pirenópolis, no Beco do Mulungu, local da cidade que liga duas ruas importantes, a dos Pirineus e Aurora.
Gê Orthof, natural de Petrópolis, Rio de janeiro, mudou-se para Brasília no início da primeira infância, onde vive até hoje. Gê é professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, pós-doutor pela School of the Museum of Fine Arts, Boston, doutor e mestre em Artes Visuais pela Columbia University, Nova Iorque, e Fulbright Scholar na School of Visual Arts, Nova Iorque. Artista multimídia, transita livremente entre instalação, performance, desenho, fotografia e vídeo, muitas vezes realizando fusões entre essas modalidades. Sua produção é o resultado de manobras que operam conceitos contemporâneos, verdadeiros códigos abertos que permitem ao público ler seus trabalhos a partir de suas vivências pessoais. Atualmente é uma das principais referências para a jovem arte brasiliense.
Ao olhar para os desenhos expostos nessa mostra, o espectador tem a sensação de estar diante de uma pequena instalação, algo natural se tratando de um trabalho de Gê. Ao contrário de muitos artistas que lançam mão de suportes convencionais para produção de desenho, ele abusa dos desdobramentos conceituais do desenho expandido. A delicadeza dos suportes e dos materiais utilizados na produção dos trabalhos resulta em desenhos extremamente leves, frágeis, mas carregados de conceitos.
Artista mais jovem da mostra, Rodrigo Godá iniciou sua trajetória em meados da década de 1990, trabalhando com manobras e códigos oriundos da pintura oitentista. Já nos anos 2000, Godá insere em sua pesquisa pictórica linhas que, sistematizadas por uma sequência repetitiva, delimitam formas como templos, aquedutos e pontes. Paralelamente às experiências pictóricas, inicia uma série de desenhos, onde as superfícies dos papéis são tomadas por formas surreais, com aspectos lúdicos.
Influenciado na infância e na juventude pelas histórias em quadrinhos, desenhos animados, grafite e, mais recentemente, pela cultura popular, explora ao limite a representação e apresentação iconográfica em seus trabalhos.
Podemos observar nos trabalhos da Série “Sem Título”, exibidos na exposição, a recorrente pesquisa do artista sobre a relação de um mundo fantasioso com um mundo humano, real, cheio de imperfeições. Com traços delicados e precisos, Godá apresenta uma pintura que, à primeira vista, nos leva por alguns instantes a voltar a nosso tempo de infância, reativando em nossas memórias o cheiro, o gosto e o som de nossas histórias mais tenras. Porém, ao colocar em meio à fauna e a flora engenhocas futuristas, marinettianas, cria uma relação que vai além da acomodação estética, instigando o observador a perceber questões críticas e políticas em suas obras.
O artista Carlos Sena Passos, natural de Mairi, cidade do interior da Bahia, mudou-se para Goiânia no ano de 1973, onde viveu e trabalhou até seu falecimento em 16 de maio de 2015. Construiu uma trajetória sólida como artista, professor universitário, articulador e gestor cultural, incentivador e orientador de jovens artistas. Com certeza, foi responsável pela formação de algumas gerações de artistas, tanto pela sua produção quanto pela generosidade que tinha em ensinar. Não poderia deixar de registrar que ele, com seu jeito frágil e educado, mas sempre muito firme em seus posicionamentos, foi extremamente importante na minha formação, no que penso e principalmente na minha escolha em ser um profissional da arte contemporânea.
O trabalho doado ao acervo do Museu pertence ao período iniciado no final dos anos 90, momento em que o artista começou a utilizar latinhas de alumínio, de refrigerante e de cerveja. O uso desses materiais tornou-se, ao longo da década seguinte, objeto de sua pesquisa, se desdobrando em esculturas, objetos, instalações e até mesmo em pinturas. O trabalho intitulado “Metal Sculpture” é uma instalação composta por 11 peças, em que as latinhas são acopladas umas sobre as outras, e com algumas delas atingindo até dois metros de altura. Os objetos são dispostos um ao lado do outro, de forma alternada, em cima de um praticável, inclinados sobre a parede. As imagens de diversos rótulos e marcas são transfiguradas por uma trama feita de fitas de latinhas, gerando objetos híbridos de uma semântica que remete a uma sociedade consumista e capitalista.
Paulo Henrique Silva, curador da mostra
setembro 1, 2016
Ascânio MMM: As medidas dos corpos por Paulo Myiada
Ascânio MMM: As medidas dos corpos
PAULO MYIADA
Ascânio MMM, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 05/09/2016 a 08/10/2016
1. Medidas de harmonia
Existe um déficit da crítica e da história da arte brasileira com a obra de Ascânio MMM, algo já parcialmente reparado graças ao extraordinário esforço de Paulo Herkenhoff em sua recente publicação “Ascânio MMM: Poética da Razão” [1]. Em suas mais de 400 páginas, esse ensaio sublinha as passagens fundamentais na formação do artista e no desenvolvimento de sua obra e ainda tece uma notável reflexão centrífuga, que abrange inúmeros artistas, movimentos e conceitos. Tendo crescido em uma pequena vila no litoral norte português, estudado arte na Escola Nacional de Belas Artes e arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro [2], tendo ademais integrado o metiê reunido no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro na década de 1960 e convivido com parte substancial dos artistas cariocas, Ascânio traça uma trajetória repleta de pistas que o crítico anota enquanto monta um texto expansivo, que articula a reflexão sobre sua obra com inúmeros tópicos da história da arte contemporânea no Brasil. Em sua abertura, o texto acaba por complementar a tendência centrípeta dos processos criativos de Ascânio, por natureza convergentes, centrípetos, sintéticos.
Nessa escrita, portanto, além da patente relação do artista com as vanguardas concretas e neoconcretas, em sua primeira e segunda geração, a discussão dos seus processos se expande para os fundamentos da arquitetura e da matemática. Para isso, Herkenhoff mobiliza aproximações com arquitetos como Affonso Eduardo Reidy e Mies van der Rohe, pensadores como Gottlob Frege, Martin Heiddeger e Alain Badiou e muitos outros, incluindo Fernando Pessoa (Álvaro Campos): “O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo / O que há é pouca gente para dar por isso. / óóóó – óóóóóóóóó – óóóóóóóóóóóóóóó / (o vento lá fora)” [3]. Apenas este poema já seria suficiente para guiar uma nova visita crítica à obra de Ascânio, mas há outra referência no ensaio que deve antes ser retomada e expandida, por sua extrema fertilidade: o livro Modulor, obra de maturidade do arquiteto franco-suíço Le Corbusier. O primeiro volume desse estudo publicado em duas partes, em 1948 e 1955, tinha como subtítulo: “Uma medida harmônica à escala humana universalmente aplicável à arquitetura e à mecânica” [4] – donde se pode imaginar que seja uma ótima referência para discutir o sofisticado jogo de escalas e espacialidades da produção de Ascânio MMM. Não obstante, para poder refletir a partir do Modulor, são necessárias algumas ressalvas, já que esse talvez seja, entre os documentos mais citados da arquitetura moderna, um dos menos lidos e mais incompreendidos.
Nos discursos contemporâneos, o mote mais recorrente de quem menciona o tratado corbusiano é corroborar a crítica ao esquematismo dogmático do chamado “Estilo Internacional” e sua indiferença à diversidade dos povos, culturas e corpos. Para esse argumento, a escala humana estilizada que aparece na capa da publicação é uma evidência de que o desejo de forma, razão e cálculo funcional e puro do modernismo arquitetônico leva invariavelmente à substituição das idiossincrasias de pessoas reais por autoritários modelos idealizados, coloniais e pré-fabricados. Mais ainda, a altura arbitrada como referência de escala do Modulor costuma ser tratada como signo de um elitismo étnico e ideológico. Todas essas críticas, que podem ser pertinentes no contexto geral de instrumentalização da arquitetura moderna no período pós-guerra, parecem ignorar o efetivo conteúdo desse livro e suas sutilezas.
De linhagem humanista, o texto do Modulor lida prioritariamente com um problema prático e uma ambição poética. O problema prático, que poderia ser resolvido de várias maneiras, é a incompatibilidade entre o sistema métrico e as medidas de pé-polegada; além de criarem problemas de conversão, as duas lógicas mostram-se incompletas, pois a primeira, arbitrária e abstrata, perde qualquer relação com a escala do corpo humano, e a segunda, historicamente ligada ao homem e seu corpo, oferece inúmeros desafios práticos ao cálculo. A solução de Corbusier passa por criar uma escala nova, compatível com os dois sistemas e de ágil manuseio e sentido antropocêntrico.
Até aí, poderiam se tratar de considerações de um ambicioso engenheiro ou matemático [5]. O sentido maior do trabalho, no entanto, está em sua ambição poética.
Le Corbusier admira o desenvolvimento humano da notação dos sons em escalas musicais. Entende que elas não apenas administram a impossibilidade de registrar de forma estática o fenômeno temporal e contínuo do som, mas o fazem tendo em conta o espectro sensível da acústica humana e organizando uma série de relações de proporção que se provaram, ao longo dos séculos, tão flexíveis quanto harmônicas. Segundo parâmetros de proporção geométrica dentro do campo sonoro, a notação escalonada carrega em si mesma certa consistência matemática, correlações com fenômenos naturais concretos e, ainda, princípios de harmonia compositiva de fácil cognição e aplicação. O arquiteto admira esse sistema construído pelo homem, aplicável à natureza, racional, flexível e, ainda, poeticamente afinado. Ele sonha, então, com a possibilidade de criar um equivalente para a medição do espaço: uma escala harmônica adequada à escala do homem. Para isso, estuda modos de aplicar a secular razão áurea às medidas e espaços, criando patamares de medidas encadeadas segundo uma proporção comum, historicamente associada ao equilíbrio de formas da natureza e do homem.
Se tal advento fosse possível, a compatibilidade entre peças, espaços e materiais da arquitetura seria universal e diminuiria desperdícios. Mais ainda, mesmo o mais inexperiente dos arquitetos partiria sempre de medidas proporcionais e harmônicas – da mesma forma que todo compositor conta com os fundamentos da composição na própria escala musical. Ainda assim, como Le Corbusier dedicou-se longamente a demonstrar, o espaço para o improviso e invenção se manteria, pois infinitas possibilidades de composição criativa seriam possíveis. Não se tratava de impor uma medida única para o corpo humano, nem sequer de padronizar a forma e o estilo arquitetônico, mas sim de estabelecer princípios lógicos e esteticamente coerentes para um novo estágio de difusão da linguagem arquitetônica.
Pois bem, como esses princípios quase soterrados pela apropriação crítica da ferramenta do arquiteto franco-suíço podem nos ajudar a criar intimidade com a obra do artista luso-brasileiro Ascânio MMM?
Uma das características que primeiramente se apresentam ao observador mais atento das obras de Ascânio é que, embora sua aparência seja facilmente compreendida em contiguidade com o legado das vanguardas concreta e neoconcreta, existe uma enorme discrepância em sua relação com a ordem e a razão matemática.
Ainda que os discursos pioneiros do concretismo brasileiro venham muitas vezes embebidos do elogio à cristalina lógica do cálculo da matemática e da engenharia, são raríssimos os exemplos dessa vanguarda que tenham efetivamente se atido à tal clareza e à precisão. É bom lembrar que nem toda geometria é coesa e precisa em sua tradução numérica: há retângulos e ortogonalidades que estão mais próximos do intuitivo trato compositivo do que de qualquer sistema ordenado e reconstituível. A razão da engenharia comparece nas abstrações geométricas da década de 1950 mais como alegoria do que como práxis [6].
Para Ascânio MMM, as coisas são diferentes. Ele efetivamente pratica o cálculo de progressões aritméticas e geométricas, planeja deslocamentos angulares, lida com trigonometrias e encontra linhas tangentes. Praticamente todas as suas obras desde meados da década de 1960 podem ser reconstituídas como fórmulas matemáticas enxutas e cristalinas. Fenômenos concretos, suas esculturas e relevos possuem correspondentes no território da lógica abstrata. Por mais sinuosas as curvas que desenhem no ar, por mais surpreendentes suas topologias, mantém sempre a legibilidade das razões numéricas que fundamentam a invenção e a construção efetiva de cada peça.
Não se trata da tensão limítrofe entre número e traço-livre, invenção e modelo, forma e cálculo. Em Ascânio – como no Modulor corbusiano – esses binômios possuem relação de parentesco, não de antinomia. Podemos tomar como exemplo os relevos Triângulo Projetado (1968) e Múltiplo 24 (1976), duas das peças que recebem o público que adentra esta exposição; o que é que as constitui? São ripas de madeira dispostas segundo padrões rítmicos calculáveis. Na primeira, ripas perpendiculares ao plano da parede são fixadas duas a duas em ângulo reto e, então, posicionadas em intervalos progressivamente maiores em razões diferentes no eixo vertical e horizontal, delineando uma curvatura tênue no cerne de uma malha ortogonal. Na segunda, as ripas de madeira, paralelas à parede, posicionam-se em leque em torno de um único ponto de torção, segundo uma razão angular constante, e são interrompidas por diagonais losangulares agudas que definem uma linha de corte que dá contorno verticalizado a uma forma de princípio nuclear.
Decifradas em palavras ou equações, as peças podem soar abstratas ou frias, justamente o contrário do que são: presentes e concretas. Essa paralaxe é equivalente ao que se experimenta lendo sobre composição musical, quando a precisão das palavras e das razões harmônicas ajuda a traduzir o fenômeno, mas não substitui o maravilhamento do ouvinte. Não seria esse o horizonte de Corbusier? Uma composição espacial exuberante como criação e experiência, que carregasse razões matemáticas em seu cerne, sem reduzir-se a elas? O manuseio do número que extravasa sua abstração e demonstra – como faz a natureza e o matemático avançado – as infinitas possibilidades de forma, ordem, estrutura e movimento guardadas em seu interior.
Nas Esculturas brancas, verticais e espiraladas de Ascânio MMM, como Escultura 2 (1976) e Escultura 2.6 (1978-1997), o empilhamento de ripas gradativamente torcidas em ângulos calculados em torno de eixos verticais leva esse raciocínio ao limite da surpresa e da sensorialidade (e da sensualidade). Nelas, transpiram associações possíveis a razões harmônicas consagradas como a ondulação das ondas sonoras, a razão áurea representada no Modulor e a voluta associada à atitude barroca. Tais associações atestam o quão longe vai a poesia do cálculo em Ascânio, que alcança tamanha exuberância na sugestão de movimento espacial que fica a um passo de sublimar sua simplicidade lógica.
Não obstante, a maior prova da integridade do cerne matemático de sua obra está em sua presença mais singela: nas intrigantes Caixas (1968-9), aqui reunidas logo à entrada da exposição. Obras abertas à participação, as Caixas são recipientes modulares em que uma mesma geometria se repete em escalas sucessivamente reduzidas, uma dentro da outra. Como bonecas russas reveladas, elas se abrem ao olhar e, também, ao manuseio do público, que aproveita as diferenças intervaladas de escala entre os módulos para redefinir alinhamentos e distâncias. No jogar lúdico com as peças, muitas jogadas e arranjos são possíveis, com um sem-fim de pequenos desvios e desalinhamentos à disposição do público. Ainda assim, a abertura das peças não pode ser confundida com passividade. Elas possuem estrutura e caráter, de tal modo que, não importa o que o participador faça, a conformação final sempre mantem certa integridade. Isso, a parcela íntegra no jogo de variações, decorre justamente da razão entre as espessuras e tamanhos das peças que garante o ritmo da composição a todo momento.
As caixas são, portanto, como “medidas harmônicas à escala humana aplicáveis à composição”. Não à toa, foram usadas pelo próprio artista como modelo para a criação de uma parcela de seus relevos brancos. Além do público, Ascânio brincou com as caixas, e nelas encontrou ritmos e dinamismos visuais que consolidou em peças como Triângulos 1 (1968-2009), que cristaliza um dos arranjos possíveis da Caixa 3 (1969). Seria impreciso presumir que a lógica matemática funciona como molde restrito: ela na verdade é a estrutura consistente de um jogo aberto a inúmeras possibilidades que o artista tem depurado ao longo de suas décadas de produção.
2. Estrutura, construção e saber fazer
Estrutura, pois. Mesmo quando sua topologia visível se torce em volutas sinuosas, a escultura de Ascânio MMM reflete uma mesma precisão estrutural que, claro, começa pela lógica matemática, abrangendo também sua materialidade concreta. Seja como legado de seus estudos arquitetônicos no Rio de Janeiro, seja como rememoração da fabricação de navios em sua cidade natal, ou ainda como manifestação física dos princípios da geometria, o fato é que transparece o apego a algumas lógicas construtivas recorrentes.
Na arte brasileira, convencionou-se ampliar o termo “construtivo” até abarcar todo desejo de estruturação abstrato-geométrica das formas. Por ser um dos pilares da historiografia local, o termo tende a ser aplicado com um ou outro ajuste a todo artista direta ou indiretamente ligado às vanguardas concretas e neoconcretas no país e, como se trata de conjunto muito diverso, acaba alargando em demasia o seu significado. Em Ascânio, portanto, cabe precisar em que sentido o conceito se aplica.
Podemos então falar de construção da mesma maneira como falam os arquitetos modernos: sintaxe em que cada forma decorre diretamente, sem ornamentos ou disfarces, de um modo de medir os materiais e estruturá-los entre si, vencendo a gravidade como corpo autoportante no espaço físico vivenciado pelo homem. De fato, nada sobra na escultura ascaniana que não esteja “trabalhando”: são formas em suspensão, materiais em equilíbrio, pontos de apoio e estruturas – mais especificamente, os recursos fundamentais de toda a poética (construtiva) de Ascânio são o eixo e o módulo arquitetônico.
Novamente, suas Esculturas brancas são paradigmáticas. Seus módulos são explícitos: ripas de madeira (ou de metal, em obras preparadas para espaços exteriores) que tendem a ter a mesma espessura e comprimento [7]. A relação entre esses módulos também é muito clara: empilhamento ou justaposição com deslocamentos sucessivos em torno de um eixo que em geral não é apenas virtual, mas também concreto. Os eixos verticais, horizontais ou diagonais são efetivamente estruturados por peças metálicas que “amarram” a peça de ponta a ponta [8]. O caráter direto e pragmático dessas soluções talvez fosse improvável por um raciocínio que partisse puramente da genealogia da escultura ocidental, mas é totalmente plausível em uma abordagem arquitetural do objeto escultórico/espacial.
Se existe, como diz Herkenhoff, um "inconsciente arquitetônico" que atravessa a obra de Ascânio e a liga subliminarmente ao humanismo do modernismo pós-guerras de Corbusier, de Candills & Josic e do brasileiro Affonso Eduardo Reidy, há também um consciente recurso à razão arquitetônica e seu "saber fazer" na lida constante e insistente com os materiais no interior do ateliê. E isso não se restringe às esculturas brancas, antes se fundamenta ali e se expande e confirma nas explorações de outros acabamentos e materiais.
Dessa maneira, o emprego da madeira nos seus Fitangulares decorre diretamente da exploração de faixas modulares justapostas e seccionadas em cortes angulares evidentes. Em Fitangular Ipê 1 (1985), por exemplo, o contraste entre linhas mais e menos claras torna mais explícitos os cortes e angulações decorrentes, que transformam o paralelismo horizontal em uma oscilação de diagonais dinâmicas.
Nas esculturas feitas em madeira aparente, a lógica modular se mantém, embora apoiada em concepções alternativas de empilhamento. Nas Piramidais e nas obras batizadas com nomes tupis das madeiras empregadas, a fatura opera por soma direta, empilhamento literal que enfatiza a diferença entre lateral e topo dos módulos em cada face das esculturas. Já nas Formações, o eixo vertical persiste, mas libera-se da solução retilínea para experimentar soluções que remetem a anéis ou portais. Assim, ambas as famílias escultóricas enfatizam a fisicalidade especifica de seus materiais e, ao driblarem a simetria que em geral decorre do eixo único centralizado, marcam diferenças a cada ponto de vista.
Nesta mostra, Formação 20 (1979) é um caso limite, que chega a confundir quem a conhece apenas por fotografias: é preciso considerável dose de imaginação espacial para perceber como aparências tão diversa de uma topologia supostamente simples podem decorrer da mesma forma observada de diferentes ângulos – a imagem se transforma conforme o espectador se desloca. Já Gramixinga 1 (1986), também incluída na exposição, subverte o sentido usual de justaposição das ripas, posicionadas lateralmente em ângulo próximo ao vertical – o ritmo das diagonais remete às angulações bidimensionais das Fitangulares, mas é o volume da peça resultante que permite que ela ganhe as proporções de um pilar e sustente o próprio peso sobre o solo, ademais criando um sutil desemparelhamento entre suas metades que sugere a iminência do movimento.
O sentido construtivo da trajetória de Ascânio se confirma nas peças em alumínio que começou a produzir em XXX. A família das Piramidais que, como já mencionado, inclui experimentos em madeira aparente, demonstra exatamente a importância do emprego estrutural dos materiais para sua pesquisa plástica. Embora nas Piramidais o princípio básico nas peças metálicas seja exatamente o mesmo empregado nas de madeira – a justaposição lateral de perfis ortogonais em sólidos angulosos –, as diferenças ultrapassam em muito as discrepâncias óbvias de cor e brilho. Com sua ótima relação entre massa e resistência, o perfil de alumínio permite às esculturas alcançarem escala monumental, além de possuírem especial durabilidade.
Tal durabilidade habilita essas peças a enfrentarem o desafio dos espaços públicos, como no caso de Piramidal 12.4 (1991-94), versão renovada da obra instalada em Fão, Portugal, aqui posicionada no espaço externo da galeria. Com seus 5,20 metros de altura e pouco mais de 400 quilos, a forma de verticalidade acentuada responde à altura da fachada e ao gabarito das construções do entorno, como pontuação que dialoga com as pré-existências do espaço urbano. Mesmo mais alta que os pedestres, a peça evita interromper a horizontalidade que a cerca. Apesar da escala arquitetônica, é surpreendentemente leve e de rápida montagem. A despeito da opacidade reflexiva do metal de suas peças, permite que os olhares a atravessem em sua desconcertante transparência. Assim, pelo uso sagaz dos materiais estruturados por um critério construtivo coerente, o artista realiza uma obra que é ao mesmo tempo marco e passagem, monólito e janela, corpo e espaço.
3. Um corpo, outro e ainda outro
Ainda que este ensaio trace um percurso lógico que se inicia pelas razões de proporção e avança pelo sentido construtivo e arquitetônico da estruturação material das esculturas de Ascânio, é preciso lembrar que o real desenvolvimento de sua obra muitas vezes burla a linearidade entre ideia, forma e realização. É que, a despeito de tanta familiaridade com o que é do número, do cálculo e da estrutura, sua obra evita a separação polarizada tão comum para os arquitetos, que colocam projeto e desenho de um lado e canteiro e objeto do outro, como dois campos segregados pela divisão do trabalho entre quem pensa e quem faz.
Aqui, vale citar todo um trecho do depoimento do artista: “Na minha obra há uma questão importante. Todos os trabalhos são executados no meu atelier, o percurso PROJETO / OBJETO é realizado no meu atelier. Eu projeto e construo a obra, determino o perfil do alumínio, que chega ao atelier em barras de 6 metros. O alumínio é um material usado na indústria, especialmente na construção civil. A manipulação do material, a descoberta de novas potencialidades do material – tanto na madeira quanto no alumínio, no cortar, no furar etc. – tem sido muito importante na pesquisa e descobertas de novos caminhos. Os Quasos, minha pesquisa de hoje, só foi possível no meu dia a dia no atelier. Com certeza eu não chegaria a eles sem esse embate diário” [9].
De fato, a precisão lógica de Ascânio e sua clareza estrutural apenas podem existir corporificadas pela lida direta com a matéria no fazer cotidiano. Assim, há um embate corporal que – mesmo em elipse no acabamento preciso das obras – é fundamental para seu fazer criativo. Como o próprio artista enfatiza, sua produção recente com segmentos estreitos de perfis metálicos articulados em superfícies e volumes diversos só foi possível pela insistência na observação de um material que já se acumulava no ateliê como resíduo do trabalho e que ganhou propriedades plásticas muito específicas com o emprego de distintas maneiras de amarração.
O mesmo amontoado de finos recortes de perfis metálicos (entre quadros e aros) pode virar diferentes superfícies se estes forem tomados como módulos de uma malha ortogonal não plana. Noutras palavras, os perfis de alumínio de 2" x 2" cortados em centenas de seções de 1 cm de largura podem ser fixados uns aos outros por furos em suas laterais, formando uma espécie de colcha; e se essa fixação não for simplesmente rígida e ortogonal (como é a aparafusagem das esculturas Piramidais e dos relevos Estrutura), então criam-se planos “moles” ou moldáveis.
Assim são as famílias dos Flexos e Qualas que Ascânio desenvolve desde 2003. Nos primeiros, as peças são associadas por pedaços de arame torcidos, como fazem os pedreiros com as “armaduras” metálicas no interior das vigas de concreto; na segunda, as mesmas peças são associadas com argolas pequenas, como aros das antigas cotas de malha medievais. Em ambos os casos, os requadros quadrados se somam em superfícies sinuosas e curvas, mas nos Flexos o movimento aparece congelado pela resistência elástica do arame que sustenta um certo arranjo, enquanto nas Qualas a gravidade (e eventualmente o público) atua continuamente moldando a forma em inúmeros arranjos possíveis que atuam tanto no plano visual quanto tátil.
Mais recentemente, o artista iniciou ainda outra família, dos Quasos (desde 2014), em que a ligação entre os módulos é feita por parafusos de cumprimentos diferentes, gerando complexas superfícies topológicas em um jogo de negociação do peso das peças com a gravidade. Veja-se, nesta exposição, a peça de transição Qualas 1 (2004), a delicada Qualas 13 (2010), a massiva Qualas 11 (2008) e a inédita Quasus 14 (2016). Em todo esse conjunto transparecem indícios do trabalho do corpo que corta, aparafusa, torce, amarra e joga com o peso e resistência dos materiais.
Este não é, porém, o único corpo em cena. Algo ainda pouco discutido na obra de Ascânio MMM é a qualidade corpórea de suas obras. Mesmo estritamente desprovidas de figuração, uma grande parcela delas – em especial suas esculturas – orbitam em torno da escala do corpo humano, espectador sempre considerado nas decisões do artista. A seleção de obras de diversos períodos e materiais reunidos na exposição Ascânio MMM: As medidas dos corpos responde a uma série de objetivos: demonstrar, por metonímia, a complexidade da trajetória do artista desde a década de 1960 até hoje; criar uma espacialidade complexa que escapa das associações lineares por série ou período em um conjunto de temporalidades transversais; e emplorar o caráter corpóreo, quase de personagem, de sua produção escultórica.
Percorrer o espaço da galeria será como caminhar entre obras que são também figuras de densidade e sinuosidade particular, com certa postura, porte e movimento únicos dentre a soma de volumes e, por que não, sugestivas de alguma atitude personabilíssima. Assim, reunidos, os volumes enfatizam seus estados e propriedades em um só espaço de encontro.
Mais ainda, nos extremos da exposição, evidencia-se que tudo isso propicia uma sequência de oportunidades ao corpo do espectador, que completa com a medida de sua escala e a espontaneidade de seu movimento da fisicalidade das obras decidida pelo artista. Ainda do lado de fora da galeria, a Piramidal 12.4 responde com opacidade ou transparência de acordo com a posição do visitante em movimento, em seguida, as Caixas pedem pelo toque e improviso de quem entra na sala, logo depois o emaranhado monumental de Qualas 11 se impõe como volume repleto de tilintar acústico e visual, com proporções arquitetônicas e graduais revelação da luz e objetos que recobre parcialmente, segue-se então uma série de esculturas de acentuada verticalidade, corpos eretos em repouso ou iminência de ação, e, então, na última parede, Qualas 14 conjuga uma forma protuberante agitada e vazada com o deslimite do espelho que traz para dentro de si o duplo da sala inteira e, consequentemente, o duplo do corpo do visitante que termina por se ver assimilado como parte das equações de medida e harmonia no espaço propostas pela obra do artista.
Assim, voltamos ao princípio, à confabulação sobre uma “medida harmônica à escala humana universalmente aplicável”. Nas sinfonias espaciais deste artista, essa possibilidade visionária estará sempre atrelada à poética dos corpos em movimento e da reciprocidade entre obra e espectador, mediada pelo saber medir e saber fazer concretizado em escultura.
O que o déficit de atenção para com Ascânio pode desperdiçar é precisamente a clareza dessa resolução que sabe convergir tantos dos anseios de três ou quatro gerações de artistas e arquitetos que atravessaram o século XX em busca de uma nova espacialidade generosa, provocativa e sensível aos anseios de uma humanidade crescentemente desapegada dos símbolos de dominação, segregação e diferença. Nos atuais tempos de recrudescimento de diferenças incomunicáveis, enfatizar esse legado tornou-se um ato de esperança.
Paulo Myiada
Julho de 2015
NOTAS
1 São Paulo: BEI Comunicação, 2012
2 Nascido em Fão, Portugal, em 1941, o artista mudou-se para o Rio de Janeiro em 1959. Estudou na ENBA nos anos de 1963 e 1964, tendo se graduado na FAU-UFRJ entre 1965 e 1969.
3 Essa introdução pelos argumentos e abordagens do texto de Paulo Herkenhoff faz-se necessária para referenciar um estudo que desde sua publicação abre novos horizontes de possibilidade de entendimento da obra desse artista no âmbito da história da arte brasileira.
4 Tradução livre do original "Une mesure harmonique à l'échelle humaine applicable universellement à l'architecture et à la mécanique”.
5 De fato, Le Corbusier produziu esse estudo visando aplicá-lo junto à Associação Nacional Francesa para Estandardização (AFNOR), acreditava estar atuando como arquiteto para endereçar um problema de escala global.
6 Os exemplos são inúmeros. Pode-se verificar enorme parcela de arbítrio intuitivo sem lastro geométrico na produção concreta de Waldemar Cordeiro, por exemplo, a despeito de seu discurso. Também Ivan Serpa, para tomar outro exemplo icônico, quase nunca é programático em suas abstrações geométricas. Em seu ensaio, Herkenhoff faz comentário similar sobre os relevos brancos de Sérgio Camargo. Dentre as exceções estão os escultores Amilcar de Castro e Franz Weissmann.
7 Em cada peça, os módulos têm sempre o mesmo perfil (altura por largura) e costumam ter o mesmo comprimento - com exceção das vezes em que um “corte” diagonal altera seus comprimentos, como no já mencionado Múltiplo 24, mas mesmo nesses casos a aparência é de que as ripas poderiam ter sido originalmente idênticas e apenas posteriormente alteradas. Outra exceção são as ripas que, além de módulo, são também “eixo” transversal entre duas colunas paralelas; nesses casos, a ripa assume comprimento dobrado.
8 “Nas esculturas brancas de madeira, eixos de aço polido com rosca nas dois extremos e porcas. Nas esculturas acima de 150 cm, a bitola é 1/2" (meia polegada), abaixo deste tamanho uso eixos de 3/16" 1/4" ou 3/8". Nos relevos brancos 3/8" ou 1/2". Nas esculturas em espaços públicos, uso o tubo de aço inoxidável de 1" a 3" (2,54 a 7,62 cm), com porca nos extremos. A bitola é determinada pelo tamanho da escultura”. Email enviado pelo artista.
9 Email enviado pelo artista.