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junho 29, 2016
Elogio à opacidade por Daniela Name
Elogio à opacidade
DANIELA NAME
Fernando Gonçalves - Ruídos para ver, CCJF, Rio de Janeiro, RJ - 29/06/2016 a 14/08/2016
A epidemia de “treva branca” imaginada por Saramago em Ensaio sobre a cegueira pode ser um bom ponto de partida para percorrer a exposição de Fernando Gonçalves. Vitrines, espelhos d´água, janelas e outras situações geralmente encaradas como superfícies reflexivas, são recorrentes nesse conjunto de trabalhos. No entanto, mais do que se apresentarem como elementos de duplicação e transparência, elas são capturadas pelo olhar do artista como uma espécie de neblina que envolve a imagem, mergulhando-a na opacidade e na indeterminação.
O véu opaco com que Gonçalves cobre todas as coisas traz à tona uma discussão sobre a fotografia. Nascida do escuro, como de resto quase tudo o que existe, a escrita da luz ultrapassou seus dispositivos como experiências científicas e se inventou como linguagem a partir de seu poder de coagulação dos mortos. Houve tempos em que os espelhos eram cobertos em períodos de luto, porque se acreditava em sua capacidade de trazer de volta aqueles que haviam partido; houve e há culturas que acreditam que a fotografia é uma forma de roubar a alma dos viventes. Ambas as crenças abrigam a impressão de que a imagem é, a um só tempo, morto e mortalha. Uma múmia, vestígio semicorpóreo daquilo que foi visto por quem criou a imagem.
É curioso que muitas vezes o artista opte ou sugira a água nas imagens que escolha criar. Ela pode ter existido de fato, no momento em que a foto foi feita, ou apenas conferir uma atmosfera submarina – fluida, indeterminada – àquilo que ficcionamos ver. Sim, dos despojos dessa múmia-mortalha podemos fazer a gênese de quantos universos forem sugeridos pela memória e pela imaginação,reconheçamos ou não alguns dos elementos presentes naquilo que foi fotografado.
É assim, por exemplo, com o “grampo” vermelho do Masp. Marca fortíssima da arquitetura de Lina Bo Bardi e da paisagem paulistana, ele aparece embaralhado e fora de contexto: deixa de flutuar no ar, força bailarina, para lamber o chão, quase pincelada no labirinto estilhaçado proposto por esses trabalhos. Ocorre algo semelhante nas três imagens que mostram um o manto monumental que protege uma área pública em reforma. Suspeitamos a localização das ruas do Rio pelas pedras portuguesas que se insinuam em um canto da imagem, mas elas são irrelevantes diante daquilo que não se vê. A cobertura translúcida transforma o volume que esta embaixo dela em uma espécie de rocha. Simultaneamente, a maleabilidade e o brilho desta tela metálica erodem e esfarelam a rocha, como a água da chuva que vai destruindo vagarosamente as montanhas, lavando-as, infiltrando-as.
“Vagarosamente”. Usei esse advérbio e alguns outros antes dele. E, se estou aqui a escrever, é preciso que eu esteja atenta às palavras escritas. O vagar e o processo implícito no sufixo “mente” são de fato importantes para compreender essa conversa com outro mundo proposta por Gonçalves. Um mundo que é lá e cá, assombroso e assombrado. Acima de tudo um mundo de vir-a-ser, que não nasce pronto.
Uma das virtudes em friccionar as imagens em sua opacidade reside no fato de que o que opaco não se entrega e não se enxerga fácil. Optar pela opacidade é abraçar a metáfora, abrir veredas, trilhas marginais. Opção mais do que necessária em um meio de arte que apresenta obras que se transformaram em soluções. Elas são transparentes e prêt-à-porter, perseguem a aderência a modelos repetidos à exaustão.
“Só num mundo de cegos as coisas serão o que realmente são”, escreve Saramago no mesmo Ensaio sobre a cegueira. Gonçalves escolhe navegar pelo mar infinito de imagens, sempre revirado pela luz de holofotes e telas eletrônicas, pelo lado mais fundo. De seu olhar submerso vêm mensagens do que é entrevisto ou invisível, e ainda assim não deixa de estar à vista.
junho 17, 2016
Aquilo que nos une por Isabel Sanson Portella
Aquilo que nos une
ISABEL SANSON PORTELLA
Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel. (...)
porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina, (...)
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.
João Cabral de Melo Neto, Uma faca só lâmina (1955)
Abra bem os olhos para reconstruir uma imagem só possível a partir de um olhar que nos olha. Se tudo lhe parecer estranhamente familiar, desconfie. Se a delicadeza, o singelo e os jogos de palavras esconderem a verdade de cada obra, questione-se.Procure o que está embutido, abrindo possibilidades para maiores diálogos.
Aquilo que nos une expõe obras de autores que falam de desejo, de entendimento, de perdas e danos, e de dor. A dor do corte, da perfuração,por agulhas, giletes e anzóis. De tecido e de carne furados. Cada artista expõe cicatrizes daquilo que foi costurado e a diversidade dos fios mostra as muitas possibilidades de nomear a dor, a solidão e as feridas.
As linhas da mão espalmada cindidas pela linha imaginária do Equador, dividindo, separando em dois o que sempre será um. A forma cartográfica impressa em linho, a fotografia de família, os lenços, os bordados em entretela, tecido e seda e até na dureza da pedra falam desse alinhavar de emoções que se quer costurar na alma para que não se percam. São como páginas de um diário íntimo, onde os autores inscrevem suas experiências. Às vezes é a própria pele que serve de suporte e, como no tecido, a agulha vai puxando a linha, penetrando a carne, indo mais fundo a cada ponto. Às vezes é uma veste que corta e faz sangrar a pele.
A dor é uma exigência do corpo para tomarmos consciência. Ela nos obriga a encarar a realidade, a redescobri-la na sua crueza e assim criar. É diante da dor sem remédio, do problema sem solução, que surge a necessidade de algo mais elevado, gerador da arte.
Segundo Platão, o conhecimento nasce do espanto. A arte também. E funciona como expressão da urgência de fugir das contingências da vida.
Prazer e dor, eis o binômio que permite ao homem, seduzido pela ilusão da vida individual, ver apenas as coisas que o tocam pessoalmente. Aquele que percebe a essência de tudo encara com tranquilidade o desejo e o querer. A vida e acultura são linhas tecidas que se entrecruzam. A dor da perda de um filho, de um irmão, as cicatrizes no corpo e na alma pedem um olhar mais agudo, que penetre as diversas camadas indo fundo até encontrar aquele lugar onde se alcança a compreensão. E então o sublime emerge questionando, abrindo a possibilidade de pensar nossas feridas e as imagens que temos de nós mesmos. O que causa a dor? O que é daninho? Homens e plantas que nascem onde indesejados são invasores daninhos, causam danos e devem ser arrancados pela raiz para que cessem de espalhar suas sementes. Estão fora do lugar.A questão do deslocamento, a eterna procura de um local/casa para depositar as ansiedades é também objeto sedutor de investigações.A relação arte/vida é uma opção, mas esse exercício é, certamente, uma via crucis, dolorosa. Atacar as causas é preciso, assim como tecer um discurso crítico.
Aquilo que nos uneé também a linguagem, força unificadora e identidade cultural de um povo. Por vezes dói tanto que se faznecessário reescreverà exaustão, até que a vista tudo embaralhe, até que o texto original seja apenas uma mancha. Outras vezes é apenas uma palavra desfiada aos poucos até que reste apenas um fio. E, nas palavras do artista,“a linguagem e a fome: é o que nos une”.
É hora de levantar bandeiras, de inscrever em seus panos toda a experiência estética, pois esta será sempre uma experiência fictícia. Existe um fio atávico que realinha e fixa os tormentos internos promovendo a calmaria e produzindo novos significantes. É hora de levantar a bandeira branca, pedindo a paz.
Dimensões por Agnaldo Farias
Dimensões
AGNALDO FARIAS
As fotografias de Masao Yamamoto têm pequenas dimensões, a maioria delas, como declara o artista, cabe na palma da mão, como um pequeno objeto que recolhemos e olhamos com cuidado, como um pássaro que agarramos com surpresa e ternura, desejando acalmar o ritmo frenético do seu coração, aplacar seu medo e ânsia de fugir da prisão momentânea dos nossos dedos cingidos sobre seu corpo, como se lhe fosse possível entender a curiosidade e o amor que nos impele reter sua beleza delicada. Yamamoto acerta no alvo realizando fotos de escala reduzida, algumas delas frágeis, com as bordas rasgadas, a maior parte passível de ser apanhada pelas pontas dos dedos ou depositada na mão, relembrando-nos que dedos e palmas são a mesa de contemplação das coisas pequenas, dos objetos trazidos para perto dos olhos, para serem melhor vistos, apalpados e cheirados. Haverá possibilidade maior de contato entre nós e tudo aquilo que a mão traz para o nível do olhar? É difícil, ao menos do ponto de vista onde o afeto funde-se à vontade de conhecer. Contemplamos o mundo à distância, desde o alto de nossas cabeças, encastelados num corpo que, em geral, não cessa de se movimentar. Quase nunca paramos e mesmo quando paramos nunca estamos. Há em cada um de nós uma nostalgia da permanência, do simples exercício de ficar e olhar em volta. Olhar calmamente atento ao que está acontecendo ao redor do nosso corpo.
A escala das fotos de Masao Yamamoto, por si só, convida a esse modo de estar no mundo. Gatos, cachorros, pássaros, árvores, galhos, pedras, montanhas, praias, água, neve, grama, vasos, flores, pessoas, nus, a maioria dos assuntos parece resultar de seus passeios munido de câmera e atenção.
E a atenção, ensina o artista, nunca é passiva. Em um determinado momento do vídeo intitulado O espaço entre flores, vemo-lo fotografando um grupo de pombas. Câmara na mão esquerda, comida sendo jogada aos punhados aos pássaros pela outra, abruptamente um grupo de crianças espanta-as com seu alarido. Elas voam desorganizadas enquanto ele as vai fotografando como um caçador abatendo a esmo um bando em revoada. Em seguida, de volta ao chão, os pássaros vão comendo os grãos, enquanto alguns, mais ousados, bicam dentro da concha da mão. A mão da câmara acelera seu trabalho, coordenando-o com o da direita. Esta, com um único pássaro nela empoleirado, vai se elevando, prossegue com o artista se erguendo, até colocar o pombo no alto, contra o fundo claro do céu. Na sequência o vídeo dá-nos algumas imagens obtidas da confusão branca e cinza de asas e corpos.
Como é comum em suas fotos, o objeto da atenção do fotógrafo reage aos seus gestos, as suas ações no espaço. Neste caso em particular, como em alguns outros casos, o objeto da atenção do fotógrafo está ao alcance e pousado em sua mão. Como as dimensões da foto que ele realizará a partir de situações como essa.
O que se olha, revela cada uma das imagens produzidas por Masao Yamamoto, e que ele expõe diretamente sobre a parede, como um enxame esgarçado de imagens, ou flutuando no centro de um grande quadrilátero de papel, depende de como se olha, tanto quanto depende da luz que, banhando-o, inventa-o.
Luz
“A captura da luz é a essência da fotografia. Estou mais do que nunca convencido de que a fotografia foi criada quando os humanos desejaram capturar a luz”. Essa declaração de Masao Yamamoto explica a predominância do preto e branco em suas fotografias, conquanto um exame atencioso delas, um impulso natural decorrente de suas pequenas dimensões, algumas delas efetivamente minúsculas, revelará que a polaridade entre essas duas cores é na verdade calibrada pela adição calculada de cores esmaecidas, como os planos claros realizados em tonalidades rebaixadas de creme e amarelo, turvados aqui e ali por pontos escuros, como papéis envelhecidos ou fotos descoradas pela ação do tempo em associação com a luz; como os planos tingidos de preto profundo, aveludado, insaciável ao sorver a luz mais próxima.
O trabalho iniciado nas caminhadas pela natureza observando as minúcias de cenas e objetos que passam despercebidos, ou os acurados estudos efetuados dentro do estúdio, expressos em naturezas mortas e sucessões de ângulos de um mesmo objeto, prolonga-se nos processos de impressão e ampliação, no controle paciente e obsessivo da luz que se irradia do alto da lâmpada da ampliadora até o chão do papel fotossensível. A fotografia, segundo Masao Yamamoto, não se resolve no simples registro do visível, mas na produção de uma imagem que, como tal, nasce do equilíbrio tenso entre o fotógrafo e o fragmento do mundo; um fragmento do visível que ele torna seu, que, por apropriação, só pode ser seu, um visível a sua maneira. E é sob esse prisma, pela consciência de que cabe a ele, através da luz, fazer com que as parcelas selecionadas do mundo floresçam como imagens, que ele a realça como instância fecundadora, capaz de resgatar as coisas do eclipsamento ao qual nossa desatenção condena.
Em suas imagens as regiões iluminadas opõem-se as tomadas pelas trevas, como acontece naquela dividida em dois planos empilhados, uma paisagem em que sobre o chão silencioso e obscuro, estende-se o céu claro ainda que suavemente ensombrecido. Entre ambos, funcionando simultaneamente como limite e invasão de um plano no outro, os pilares claros de uma trave de futebol fendem verticalmente o solo enquanto a terceira linha roliça parece retificar a do horizonte. Em outra imagem a luz vem do alto dos dois renques espessos de vegetação para escorrer pela fenda aberta entre elas, fazendo brilhar o caminho por onde transitam duas pequenas silhuetas humanas. O mesmo raciocínio vale para o portal irregular, inclinado, esculpido na pedra, por onde jorra a luz que desenha na tona d’água, em solução difusa, o desenho de suas bordas rígidas. E o quê dizer da lua, minguante? crescente? tornada imensa por ser o centro iridescente que se apoia sob o vértice sombrio da cobertura da casa, imantando a noite com seu halo?
Masao Yamamoto parece dizer que cada homem define um círculo iluminado, uma região que lhe serve de abrigo em oposição aquilo que ele desconhece e que o desafia. Conhecer é, por sua vez, lançar luz sobre a escuridão, como a luz que redesenha o peito do gato, o olhar vítreo do cachorro, tornando enigmático, profundo e transcendente, o que se supunha familiar e doméstico. A dialética proposta por Yamamoto entre a luz e as coisas, por simples, familiares que estas sejam, vai ao encontro do belo aforismo de George Braque: “O mistério brilha à luz do dia; o misterioso se confunde com a obscuridade.
Pontos de vista
A imagem, já referida anteriormente,é de uma paisagem dotada de um horizonte retilíneo, dividindo o campo retangular da foto em dois planos empilhados, um escuro, o chão, o outro, um pouco maior e claro, o céu. Uma paisagem simples, despojada, sem acidentes, salvo uma trave de futebol situada bem no meio, cujo travessão coincide rigorosamente com a linha do horizonte. Essa informação é suficiente para que a identifiquemos como a vista parcial de um campo de futebol que, não se sabe, acontece para a direita ou para a esquerda. Detalhe de resto irrelevante, posto que o que atrai nossa atenção é a deformação imposta à moldura do gol. Apesar do paralelismo do travessão com o solo, certeza que se confirma pela coincidência com a borda reta da paisagem, as traves verticais são muito dessemelhantes, a da esquerda bem maior que a da direita. Uma deformação que não haveria se o fotógrafo tivesse limitado os ângulos de visão aos possíveis de serem obtidos de pé sobre o chão, mas explicável se imagina que ele subiu em algo, por exemplo uma escada, com a finalidade de criar uma coincidência.
Situado quase no centro, levemente deslocado para a esquerda da fotografia de formato vertical, com o tom sépia típico das que eram acondicionadas em velhos álbuns, efeito acentuado pela lateral levemente rasgada e pelo resguardo de uma espécie de fina moldura formada pelos limites do papel, um gato preto sentado. Sua silhueta escura e aveludada está circundada por florações vagas e esparsas e pelo dorso de uma pedra. Do seu corpo curvilíneo como uma pera, escapa, à direita, seu rabo preto. Entre as orelhas em riste, coroando sua impassível e silenciosa presença, luzem as lanternas amendoadas de seus olhinhos. Ele, o gato, está no chão, já o fotógrafo, aqui no alto. Aqui, isto é, onde nós que nesse momento contemplamos esta foto, estamos; o lugar que o fotógrafo nos obriga a estar. Visto de cima, pequeno, Yamamoto, graças ao ponto de vista escolhido, reitera: a majestade do gato reside em sua pose;e em seu porte, sua cor e suas luzes, todo o mistério.
O formato da foto é horizontal como uma paisagem mas, no entanto, ela traz, capturado à queima roupa, ocupando todo sua extremidade esquerda, contrastando com a claridade creme do resto através de gradações em direção ao preto, parte do perfil de um rosto com os olhos fechados, a boca entreaberta. A esfericidade das pálpebras trai a proveniência oriental da pessoa retratada, esfericidade enunciada pela luminosidade que suavemente vai se alastrando na pele sedosa, sem rugas ou comissuras, cinzelando, além dos olhos, a maçã da face, o lóbulo da narina, repercutindo na ínfima parcela visível da fileira superior de dentes, a curva abaixo do lábio inferior, a passagem do queixo para o pescoço. O desenho sinuoso do perfil, debuxado pela luz, interrompe-se no formato retangular da foto que recorta a figura. Um rosto escuro face a um plano cuja cor pálida, pintalgada por pequeninos pontos, o acaricia. A boca entreaberta estará expirando? aspirando? Como saber? O que é certo é que, sorvendo ou recebendo o impacto do claro, é a luminosidade que faz nascer um rosto do interior da sombra, que o puxa de dentro dela.
Corrigindo o escrito antes, Masao Yamamoto não se ocupa de situações objetos e seres familiares,apenas. Ocupa-se também da relação entre eles, da intrincada relação entre eles e a luz, entre eles e os formatos escolhidos para as fotos, entre eles e sua relação com seus pontos de vista inquietos, cambiantes, surpreendentes.
Agnaldo Farias, crítico e curador, professor da FAU-USP
junho 15, 2016
Young Male: Fotografias de Alair Gomes por Eder Chiodetto
Young Male: Fotografias de Alair Gomes
EDER CHIODETTO
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O desejo pelo corpo masculino jovem e belo pautou toda a obra fotográfica do artista carioca Alair Gomes [1921-1992], realizada ao longo de 20 anos. O olhar do artista, de viés homoerótico, tornou-se complexo e original ao longo de sua produção realizada entre os anos 1960 e 1980. Essa obra de caráter radical, que concilia compulsão pessoal com refinamento de estratégias da linguagem, começou nos últimos anos a ser melhor estudada e legitimada por instituições como o MoMA, que recentemente adquiriu obras do artista.
Young Male: Fotografias de Alair Gomes, que a Casa Triângulo apresenta agora, é a maior mostra de caráter comercial do artista realizada até hoje. Pelo fato de todo o seu acervo ter sido doado pelos seus herdeiros para a Biblioteca Nacional - o que também garantiu sua integridade -, são raras as obras de Alair que surgem no circuito de arte para serem adquiridas por colecionadores.
A mostra, com a maioria das obras oriundas do acervo de Robson Phoenix, que agora poderão integrar outras coleções, exibe fragmentos das séries Symphony of Erotic Icons, 1966 - 1978; A Window in Rio, 1977 - 1980 e Viagens [Europa, Arte], 1969. Essa última trata-se das fotografias de estatuárias greco-romanas realizadas na sua primeira viagem à Europa, que o levaram a trocar a escrita literária dos seus Diários Eróticos pela representação via fotografia. Mais tarde, a estética clássica que sublinha a força e a virilidade do corpo masculino serviria de referência para os retratos dos garotos nus.
A Window in Rio é uma das séries abrigadas sobre o título Finestra, que Alair fotografou da janela do sexto andar de seu apartamento, em Ipanema, flagrando o movimento dos garotos na calçada e nas janelas de prédios próximos. Sem ser notado, o fotógrafo exerce sua porção voyeur fazendo de sua teleobjetiva uma espécie de arma com a qual o caçador "abate" e guarda para si o corpo de suas caças.
Symphony of Erotic Icons foi a primeira composição sequencial realizada por Alair, entre 1966 e 1978. Considerada sua obra-prima, é dedicada totalmente ao nu masculino e compreende um conjunto de 1.767 fotografias. A série é estruturada em cinco movimentos: Allegro, Andatino, Andante, Adagio e Finale. Para Alair, a construção desse universo fotográfico almejava “transcender a sua personalidade”, criando um estado “proto-religioso”. Essa série nunca foi mostrada integralmente e dificilmente o será, devido a questões jurídicas relativas ao direito de imagem dos modelos, nunca formalizada pelo fotógrafo.
*Nos diários de Alair, escritos originalmente em inglês, é comum nos depararmos com a sigla y.m., de young male, forma que o artista adotou para se referir aos garotos com os quais ele flertava e fotografava.
Desire for the young, beautiful male body drove all the photographic work of Rio de Janeiro artist Alair Gomes [1921–1992], carried out over a span of 20 years. Throughout the course of his production extending from 1960 to 1980, the artist’s gaze, from a homoerotic standpoint, became complex and original. In recent years, this work of a radical nature, which combines personal compulsion with strategies for the development of a refined artistic language, has been better studied and legitimized by institutions such as MoMA, which recently acquired works by the artist.
Young Male: Fotografias de Alair Gomes [Young Male: Photographs by Alair Gomes], now running at Casa Triângulo, is the largest commercial show of the artist’s work ever held until today. Since his entire photographic archive was donated by his heirs to the Biblioteca Nacional – thereby ensuring its intactness – works by Alair rarely arise in the art circuit available for acquisition by collectors.
The show – featuring works coming mainly from the collection of Robson Phoenix and which can now become part of other collections – exhibits fragments of the series Symphony of Erotic Icons, 1966 - 1978; A Window in Rio, 1977 - 1980 and Viagens [Europa, Arte] [Trips (Europe, Arte)], 1969. The latter includes photographs of Greco Roman statues taken on the artist’s first trip to Europe, which led him to replace the literary writing of his Diários Eróticos [Erotic Diaries] by representation through photography. Later, the classical aesthetic that underscores the power and virility of the male body would serve as a reference for his portraits of nude young men.
A Window in Rio is one of the series falling under the overall title Finestra, which Alair photographed from the window of his sixth-floor apartment in Ipanema, registering the movements of the young men on the sidewalk and in the windows of nearby buildings. Without being noticed, the photographer exercised his role as a voyeur, making his telephoto lens a sort of weapon with which the hunter “slays” and captures the body of his prey.
Symphony of Erotic Icons was the first sequential composition made by Alair, between 1966 and 1978. Considered his magnum opus, it is entirely dedicated to the male nude and contains a set of 1,767 photographs. The series is structured in five movements: Allegro, Andatino, Andante, Adagio and Finale. For Alair, the construction of this photographic world aimed to “transcend his personality,” creating a “proto-religious” state. This series has never been shown as a whole and it would be difficult to do so, due to legal questions related to the lack of formalized consent from the photographed subjects.
*In Alair’s diaries, originally written in English, it is common to run across the abbreviation y.m., standing for “young male,” which is how the artist referred to the young men he flirted with and photographed.
Regresso - AoLeo por Alexandre Sá
Regresso
AoLeo
Por Alexandre Sá
Sísifo é uma potente metáfora do processo criativo [do viver (em seu devir..... infinito... entre a existência-em-si e a morte-enquanto.........maré-baixa//....ou o seu contrário)].
Apesar de compreender a carga fatídica do seu destino, Sísifo seria capaz de sorrir? No instante incapturável em que tudo reencontra sua inelutável normalidade de eterno retorno, haveria um vácuo-poético onde o abismo se revelaria útero o suficiente para que o recomeço não nos importasse tanto?
Se alguns artistas por razões distintas, insistem em endossar uma prática-área-de-conforto, aparentemente justificada pela construção de uma poética pessoal, AoLeo nunca precisou e/ou quis isto. A veracidade com que o artista se lança na presentidade do instante vivido nutre o trabalho que por justa lucidez, opta por uma refinada inteligência como placenta da imagem. Aqui, neste seu regresso a algum ponto perdido em nós, é possível perceber o redesenhar de uma rota outra, mais profunda e não menos silente. O resultado é uma generosa confluência filosófica de algumas questões que, em virtude de toda a crueldade cotidiana, parecem desaparecer diante dos nossos olhos.
* Visita orientada do curador Alexandre Sá à mostra Regresso em 16 de julho de 2016, às 16h.
junho 13, 2016
Vânia Mignone: expressão dispersa ou o afeto das margens por Luiz Camillo Osorio
Vânia Mignone: expressão dispersa ou o afeto das margens
LUIZ CAMILLO OSORIO
A trajetória de Vânia Mignone começa na virada para os anos 1990 dando à pintura um tom menos exaltado do que aquele preponderante na geração 80. Uma figuração mais crua e direta, oriunda de uma comunicação gráfica urbana atravessada pelo traço ríspido dos cordéis. Sua poética aposta em uma tonalidade afetiva desencantada com personagens solitários que nos tocam de imediato. A paleta é fria com cores chapadas sem nenhuma conotação simbólica ou psicológica. O vermelho é vermelho, o amarelo, amarelo; suas relações atuam mais por contraste do que por fusão. O preto traz luz própria, ilumina de dentro seus cenários – algo que vem da xilogravura e do Manet.
Se tivesse que imaginar aproximações de sua obra com a história da arte brasileira pensaria em três nomes cuja relação só faz sentido no interior do universo poético de Vânia Mignone; são eles Goeldi, Gerchman e Leonilson. Do primeiro, vejo uma mesma atração por personagens refratários à sociabilidade convencional, que se isolam em uma espécie de introspecção desafetada, que se ligam mais às árvores, plantas, bichos, sofás, do que às próprias pessoas que eventualmente aparecem. São seres que buscam os cantos, as margens, recusando qualquer centralidade e afirmação. A noite parece ser o momento preferido para a construção de suas cenas, do seu teatro de expressão mínima.
Com Gerchman já vejo o contato pela linha gráfica dos gibis e das fotonovelas. É comum às suas figuras pintadas, a preferência pelo personagem do subúrbio, saindo direto da dramaturgia de Nelson Rodrigues misturada à música de Lupicínio Rodrigues. Tem mais de bolero ou tango do que de samba. A Lindonéia, Gioconda do subúrbio, “na frente do espelho sem que ninguém a visse; Miss, linda, feia, Lindonéia desaparecida” atravessa algumas das figuras de Mignone e responde a muito da expressão sem expressão das suas figuras. Há na sua pintura, todavia, uma introspecção que na grande maioria das vezes esconde o olhar dos retratos e reduz a escala da figura humana – sendo nisso diferente da subjetivação política de Gerchman.
Já Leonilson é seu primo mais velho, aquele com quem sua experiência de mundo se fez possibilidade de arte. É aquela introspecção, a afirmação de uma certa fragilidade existencial que está sempre à procura de um outro lugar para a subjetividade, que os põe dentro de uma mesma micropolítica geracional. Neste aspecto Leonilson foi um divisor. Quebrou a exaltação heróica da pintura neo-expressionista dos anos 80 e fez atravessar nela uma hesitação de altíssima densidade lírica – perpassada de uma nova tragicidade. O trágico aí vinha da aceitação da finitude (a aids foi uma realidade desesperadora) cuja inscrição no corpo trazia a marca de uma entrega amorosa. Este dilema entre vida e morte, entre querer ser outro e certa impotência para mudar, articula nessas pinturas em questão uma desarticulação intrínseca entre palavra e imagem, entre sentido e sensação. Os separa, entretanto, a forte dimensão autobiográfica da poética de Leonilson inexistente, ao menos explicitamente, no caso de Vânia Mignone.
A sua trajetória pictórica manteve-se ao longo destes 25 anos perseguindo dois objetivos básicos: deixar a expressão suspensa no intervalo entre o que se pode ver e o que se sabe dizer e fazer da pintura um modo de resistência a tudo o que se vê e se diz. Daí sua contemporaneidade, sua vocação a uma atualidade sem adesão ao presente.
junho 9, 2016
Um adeus a Tunga por Laura Erber, Blog do IMS
Um adeus a Tunga
Texto de Laura Erber originalmente publicado no Blog do Instituto Moreira Salles em 7 de junho de 2016.
Ah, que você escape no instante
em que tenha alcançado sua definição melhor
Lezama Lima
Ele gostava muito das palavras, de alquimia e de Lezama Lima.
Foi um dos raros artistas a colocar em contato imagem e pensamento, partindo de uma compreensão mais aguda que articulava a invisibilidade do sentido ao erotismo do visível. Penso nas suas aquarelas – Quase aurora - imagens tão tênues que não sabemos se estão na iminência de irromper do branco extremo de uma luz ou se prestes a mergulhar de novo na dimensão leitosa de onde provavelmente vieram.
Suas imagens nos libertam da posição de reféns do nosso próprio desastre, em contato com elas deixamos de ser prisioneiros dos produtos visíveis que criamos para aniquilar o nosso olhar e nosso desejo de ver. As suas são imagens que falam do nascimento das coisas nelas mesmas, entre elas, no seu infinito processo de aparição.
Creio que Tunga tenha libertado sua arte tanto das obrigações retóricas quanto da interpretação simbólica, ainda que pareça sempre querer nos prometer um novo mito original, situado em algum lugar do porvir. O fato é que diante de alguns de seus trabalhos temos a sensação de um certo embaraço interpretativo, não totalmente distante daquele produzido pela arte rupestre. Porque são imagens e formas com enorme carga de sentido, mas sempre em alguma medida inacessíveis. Mas nelas o que fascina é a exibição de uma extrema delicadeza visual quando se esperava apenas brutalidade no último homem. Se é comovente a imagem pré-histórica por seu poder de testemunhar a capacidade do primeiro homem de fazer nascer uma imagem, não é menos emocionante ver que o homem que destrói barbaramente a si mesmo e ao seu mundo ainda é capaz de produzir uma imagem tão frágil e enigmática, como no início de tudo. Tunga nos reconecta com a emoção desses começos, mas sabe que seu trabalho se situa no outro extremo.
Ele foi um artista do Antropoceno muito antes que tal discussão viesse à tona no campo das artes. A predileção pelo cobre, com sua enorme potência de significação, os dentes e os cabelos, partes de nós que testemunharão nossa morte e nossa reconversão mineral, para sermos devolvidos ao mundo antropoceno que criamos. No documentário Nostalgia da luz (2010), de Patricio Guzman, há um astrônomo que comenta a analogia entre a procura cósmica de respostas sobre a criação do universo e o ímpeto forense de procurar restos de desaparecidos: “Eu sempre observo nas minhas palestras que vou contar a história sobre como o cálcio dos ossos de todos foi criado. É a história do nosso início, o cálcio de meus ossos foi criado logo depois o Big-Bang, alguns dos átomos estavam lá; vivemos entre as árvores e vivemos entre as estrelas, vivemos entre as galáxias, somos parte do universo. O cálcio de meus ossos era parte do início.”
Assim o artista que exibe os ossos está mostrando o cálcio que estava no início da criação do universo. O início do mundo que criamos está contido em nossos ossos, essa é a espiral barroca do mundo que nasce da imagem. Imagem aqui não é semelhança nem réplica, é a própria força do imaginário. Isso tudo evoca também a sobrevivência do homem na natureza. Tunga escavou a história natural do homem em seus restos, na matéria e nos fluidos que o constituem. Interessava-se pelos restos do homem dispersos nos materiais disponíveis no mundo, é neles que encontra os elementos imaginários que conduziram silenciosamente a historia do homem. O esplendor da força criativa que sentimos diante desse trabalho advém também da visceralidade dessas figuras do imaginário. Não um imaginário individual, psíquico ou confinado à uma consciência estética. É nisso que o barroco de Lezama Lima o fascinava, pois não se trata ali de um estilo histórico, para Lezama o barroco é a realização de um destino. É algo visceral, abrangente, uma forma de contágio que fala de uma era imaginária e do potencial infinito das imagens - seu poder de procriação.
Esse modo de desentranhar o imaginário humano da matéria não deixa de ser uma espécie de arqueologia, uma arqueologia artística do futuro do mundo que vamos deixar, e no qual os museus assumem o valor de grutas, abrigando os rastros e restos deixados pelo homem no processo de exploração produtivista predatória.
Seu trabalho remete também aos gabinetes de curiosidades, com toda sorte de achados excepcionais da natureza, penso nas xifópagas, é claro, e no interesse por aberrações também presentes no universo barroco, mas que nos gabinetes se apresentavam mais claramente como objeto de confluência entre natureza e história, a natureza que ganhava dimensão histórica e vice-versa.
Sabíamos que ele estava doente e que era grave. Mas a morte é sempre uma interrupção. Perdê-lo nos deixa confusos. Ficaremos aqui meio tontos, meio perdidos entre vestígios visionários e reverberações da sua curiosidade barroca, reunidos diante dessa matéria vital gerada por fantasia tão generosa.
Laura Erber é escritora, artista visual e professora adjunta do departamento de Teoria do Teatro da UNIRIO, onde leciona Teoria e História da Arte. Autora de Os corpos e os dias (Editora de Cultura) e Esquilos de Pavlov (Alfaguara).