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abril 30, 2016
Ivens Machado por Fernando Cocchiarale
Ivens Machado
FERNANDO COCCHIARALE
Esta mostra homenageia Ivens Machado, artista recentemente falecido, cuja contribuição para a história da arte brasileira das últimas cinco décadas ainda está por ser criteriosamente estabelecida. A maior parte das peças aqui expostas pertence ao MAM (coleção Gilberto Chateaubriand e coleção MAM), complementadas com obras do Acervo Ivens Machado, projeto responsável pela gestão do acervo pessoal do artista.
Pioneiro da videoarte no Brasil (sua primeira experiência com este meio eletrônico foi feita em 1974, simultaneamente à de outros artistas como Anna Bella Geiger e Sonia Andrade, por exemplo), sua produção nessa mídia é marcada pela criação de situações em que o poder e seu tenso exercício é corporificado por atores que podem atuar em interação com o artista ou sem ele. Ivens talvez seja o artista de sua geração mais importante surgido no sul do país, ainda que sua obra tenha florescido no Rio de Janeiro, cidade em que se radicou a partir de 1964.
No entanto algumas questões (ou eixos poéticos) atravessam o conjunto da obra de Ivens desde seu florescimento efetivo, lá pelo começo dos anos 1970, até seus trabalhos finais dos dois últimos anos.
Tais eixos poéticos resultam de práticas de permanente construção/reversão, acionadas por Ivens para a produção de esculturas contaminadas por métodos e práticas da construção civil popular-comunitária, tanto no que diz respeito materiais de que são feitas − cimento, vergalhão, areia, azulejos, pedras etc. – como pelo rústico acabamento dos trabalhos.
Há que considerar também a reversão simbólica desses métodos e práticas representada precariedade anticartesiana dos resultados específicos destas obras que sequer correspondem aos quesitos funcionais das construções populares, fator que atribui a esses trabalhos um teor contra-discursivo.
Nos desenhos manuais de pautas de caderno, nos trabalhos em que Ivens interveio diretamente na operação das máquinas de pautar da indústria de cadernos ou no velamento de pautas com tintas corretoras de estêncil para mimeógrafo ─ marco inicial do florescimento poético de Ivens ─ a questão se manifesta de outra maneira, mas com o mesmo sentido e intenção contra-discursivos. Aqui o teor espacial normativo das pautas de caderno é desconstruído graficamente, por meio de linhas que se rompem ou quebram a uniformidade da página original por meio de desvios e sinuosidades, ou “corrigidos” por corretores de estêncil.
abril 2, 2016
Zé Carlos Garcia: Ganimedes por Raphael Fonseca
Zip’Up: Zé Carlos Garcia - Ganimedes, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 04/04/2016 a 30/04/2016
O cenário dos acontecimentos é o Monte Ida, na atual Turquia, a sudeste da cidade de Tróia. Zeus se encanta com um príncipe, filho do rei da Dardânia, de nome Ganimedes e que trabalha nos rebanhos de seu pai. O rapaz é comumente representado nas artes visuais como portador de um corpo atlético, mas não exageradamente musculoso, aparentemente na virada entre a adolescência e a primeira fase adulta.
Deslumbrado com a visão pastoril desse efebo, Zeus decide tomá-lo para si por meio de uma águia – há fontes que afirmarão que o próprio deus se transforma nela e outras dirão que ele invoca o animal. Tirado da esfera familiar da Dardânia, Ganimedes é levado para a companhia de Zeus e é o novo responsável por servir vinho aos deuses. Como agrado ao rapaz e benfazejo ao seu inconsolado pai, Zeus atribui ao jovem a imortalidade. A narrativa greco-romana sobre Ganimedes pode ser interpretada como um exemplo do poder de arrebatamento de uma imagem em diversas esferas: estética, geracional, sensual e sexual.
A presente exposição de Zé Carlos Garcia dialoga com este mito. É possível aproximar a pesquisa do artista, com uma trajetória de cerca de dez anos, à mutação entre o humano e o animal vivenciada por Zeus. As esculturas e objetos gerados por ele se encontram por diversas vezes entre o reconhecimento estrutural de móveis e anatomias animais, e o estranhamento proporcionado pela plasticidade dilacerada dos corpos estranhos que se instauram. De uma antiga cadeira de madeira saem penas de um pássaro e da trama de palha de outro móvel brota um pequeno inseto. Os fazeres artesanais e da zoologia se encontram e geram imagens que parecem em transformação perante os nossos olhos.
Para a ocupação da sala destinada ao projeto Zip'Up, o ponto de partida do trabalho foi o encontro entre o corpo humano e os limites arquitetônicos dados pelo espaço; trabalhar a partir de site specifics é algo que tem interessado cada vez mais ao artista. A imagem de uma estrutura tridimensional suspensa e composta pela variação cromática de penas pretas emergiu perante os nossos olhos. Uma vez a observar a confecção da peça, parecia difícil distanciá-la de um grande pássaro preto que, por fim, nos remeteu à história de Ganimedes.
Em vez de fugir das garras desse resquício de pássaro, desejamos que os espectadores se entreguem ao seu chamado e explorem seu movimento através de uma postura física ativa. Congelada no tempo pelas mãos de Zé Carlos, esta imagem pede uma lenta fruição de sua sensação de encarceramento, deixando incerto o seu movimento de pouso ou ascensão instaurado pela sua presença.
Convidamos o público a, mais do que se colocar ficcionalmente no lugar do jovem raptado, subverter a fonte e recodificá-la a partir de suas visões particulares da soma entre desejo e posse. Tal atitude é dialógica ao gesto do artista de deslocar o material orgânico e criar uma narrativa que pede diferentes começos, meios e fins.
Espera-se que o pássaro enviado ao Monte Ida pouse em São Paulo sendo um pouco de urubu, um pouco de pavão e outro tanto de corvo; que o fantasma da imortalidade de Ganimedes volte à sua terra-natal e que as imagens, sejam elas artísticas ou carnais, sigam a nos atiçar e nos jogar nesse lugar movediço entre a paixão e a violência.
abril 1, 2016
Ricardo Rendón: Memória possível por Jacopo Crivelli Visconti
Ricardo Rendón - Memória possível, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 04/04/2016 a 30/04/2016
Para a instalação de 2006 intitulada Wall Work (Drill Work), Ricardo Rendón furou repetidamente uma parede de drywall, até deixar quase perfeitamente visível sua estrutura interna. Em obras mais recentes, como bem sabe quem acompanha o trabalho do artista mexicano, os furos tornaram-se algo parecido a uma marca registrada, uma intervenção eminentemente “autoral”, e, portanto, devida e imediatamente reconhecível, como a fita azul de Edward Krasinski, ou, em outro contexto, as garrafas de Giorgio Morandi. Pode ser útil retomar um trabalho como Wall Work (Drill Work), um dos que inauguraram o modus operandi de Rendón, porque são nessas primeiras experiências que a relação com o universo da construção civil, e mais especificamente com o fruto de um fazer manual, quase operário, é mais explícita e direta, e permite entender melhor os desdobramentos posteriores.
Em textos e declarações sobre seu trabalho, o artista tem enfatizado exatamente a relação com o aspecto manual, do qual ele reconhece tanto o lado prático quanto um valor por assim dizer filosófico: “Parece-me que a execução do trabalho constitui um momento de profunda reflexão pessoal, um instante de concentração”. É por isso que se torna tão importante, na economia do trabalho e para a sua correta compreensão, a presença constante dos rastos da performance do artista, como as sobras de material, a serragem e a poeira que se acumulam no chão ao furar, e ali são deixados.
Parece possível afirmar, então, que o ato de furar a parede, ou qualquer superfície, foi escolhido por Rendón como estratégia primordial porque permite uma visão “através”. Não se trata apenas de enxergar para além do primeiro plano, mas de “ver” a espessura desse plano, reconhecendo, por exemplo, na parede branca, o fruto de um trabalho físico, com sua acumulação de esforço e conhecimento, e não apenas o convencional muro branco da galeria de arte, noção no fundo abstrata e portanto, contraditoriamente, quase intangível.
A análise de um outro trabalho da década passada, Puerta Cerrada (2007), confirma a interpretação de que o que move a prática de Rendón é um esforço constante por descobrir e destapar conflitos de natureza social, apontando para a relação idiossincrática entre o que fecha a visão e o que deveria deixar ver através. Nesse caso, o artista construiu no Parque México, na Cidade do México, um cubo de tijolos, do tamanho de um quarto ou pequena casa, sem nenhuma abertura, mas com desenhado o contorno de uma porta e três janelas, a sugerir exatamente a potencialidade (ou a necessidade) de furar a estrutura.
A partir dessas considerações, é possível ler nos trabalhos que integram agora a exposição na Zipper uma nova virada na trajetória de Ricardo Rendón. Contra o pano de fundo de uma visão social que continua bastante clara na maneira como o ato do trabalho físico é entendido, o artista parece voltar a enfatizar o valor escultórico da sua produção. Evidentemente, as obras de Rendón nunca deixaram de ser propriamente escultóricas, ocupando, de maneira ineludível, o espaço expositivo, mas o que vemos aqui é uma nítida preocupação com questões específicas da escultura, notadamente o tratamento do peso, ou a maneira como o peso da peça não é acessório, mas central na constituição do trabalho. Ao suspender fragmentos de chapas de pedra e de madeira, Rendón coloca essas questões em pauta, ao passo que sugere um diálogo com referentes da história recente da escultura ocidental, como a série das Gravitaciones de Eduardo Chillida, entre outras possíveis referências, que justifica a sua reivindicação de um papel central para a escultura no panorama artístico contemporâneo.