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fevereiro 25, 2016
Quase Apagamento por Georgia Quintas
Quase Apagamento
GEORGIA QUINTAS
Embora o tempo exercite invariavelmente sua dinâmica extenuante em avançar sobre infinitas coisas, lugares, paisagens, sensações, seres e recantos da alma, sempre nos iludimos pela inoperância humana em acompanhá-lo. Impregnado de sequência, frequência, ritmado pela espera da certeza cravada, o tempo se dilui pela imaginação e dá infinitas voltas na memória. Iludimos o tempo para pensarmos pelo desejo de sermos areia. De termos a natureza elegante e dual do espectador-protagonista, dono do seu próprio tempo, sem princípio nem fim.
Tempo Arenoso ecoa o gesto em tentar caminhar por imagens, um lugar e seus horizontes, apreendendo fenômenos que estavam a denunciar o interesse pela temporalidade. Este trabalho trata da paisagem como pensamento, desloca-se do tempo físico para o contemplativo, do tempo registrado pela fotografia e convertido em suspensão de memórias. Memória esta que não é do estado de lembrar-se sobre a paisagem vista, mas, contudo, da natureza maleável da experiência em fomentar o desejo de viver mais pela própria imagem fotográfica.
Num quase apagamento, Tempo Arenoso nos convida a sossegarmos o olhar e a quase fechá-los para que viajemos para dentro do nosso tempo. Certo estava Jorge Luis Borges quando dizia: “A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão”. Gosto de pensar que escapar das imagens e retomarmos a elas é uma tentativa de solapar o vazio. Seja como for, a paisagem surge quando colocamos o tempo dentro dela, quando trazemos o horizonte para dentro de nós.
Georgia Quintas / Olhavê
Marcelo Amorim: Maquinal por Priscila Arantes
Maquinal:
gesto ou um comportamento instintivo realizado por um hábito inconsciente ou sem reflexão aparente.
Marcelo Amorim vem construindo há anos uma trajetória singular, revelando, por meio da apropriação de imagens encontradas em livros, internet, arquivo ou fotografias antigas, sentidos ocultos da cultura de nosso tempo. Em Maquinal, Amorim trata de uma questão fundamental: o fato de que vivemos mergulhados em um mundo de imagens que têm influência decisiva na maneira como vemos e nos comportamos frente à realidade.
Consumimos imagens o tempo todo: nos jornais, na televisão, na internet, nos celulares. O que vemos em um mundo dominado pelas imagens – já nos advertira Flusser – não é o mundo, mas determinados conceitos relativos ao mundo impregnados na estrutura midiática.
Marcelo Amorim é um colecionador de imagens do mundo. Guarda deles fragmentos aparentemente inocentes que revelam, de maneira discreta – mas nem por isso menos contundentes –, o poder das imagens na programação de nossas vidas.
Somos cada vez mais operadores de máquinas, apertadores de botões, usuários de interfaces. Lidamos com situações programadas sem nos darmos conta. Pensamos que podemos escolher e, como decorrência, nos imaginamos inventivos e livres. Mas nossa liberdade e capacidade de invenção estão restritas a um software, a um conjunto de possibilidades dadas a priori que não dominamos inteiramente.
Maquinal divide-se em três eixos que dialogam entre si. No primeiro, encontramos uma série de pinturas a óleo baseadas em imagens das capas coloridas de uma revista americana chamada Popular Mechanics. Destinada ao público masculino e com uma estética típica dos anos pós-guerra, a publicação revela segredos de mecânica, incitando no homem uma aptidão a consertar máquinas e equipamentos de qualquer tipo. Por meio de colagens, o artista sobrepõe imagens e personagens. Amplia as capas em grandes dimensões deslocando-as de seu contexto original. Confunde e distorce propositalmente escalas, potencializa as gamas de cor e confere à sua pintura um carácter quase surreal. A máquina oscila muitas vezes para a condição de brinquedo; o carro torna-se um carrinho de montar, o soldado, um boneco para se manipular.
O estereótipo do homem bem-sucedido ecoa em outro arquivo desta grande biblioteca montada por Amorim: seis filmes caseiros e realizados em Super 8, provavelmente de uma época semelhante às imagens que permeiam as pinturas. São vídeos que mostram o carro novo, a casa, o peixe grande que o homem pescou, a lebre que ele caçou, o salto perfeito que realizou e, finalmente, o bebê; o filho que parece coroar todo esse roteiro de realizações desse imaginário de homem bem-sucedido.
No último vetor encontramos fotografias coletadas na internet de homens no exército. Muitas vezes nus e colocados em fila, como em uma esteira de montagem, deixam evidente a ideia que perpassa toda a exposição: a relação intrínseca entre o homem e a máquina.
Mas talvez seja exatamente nesta parte da exposição que o gesto delicado de Amorim fica mais evidente. O tom preto e branco de um ambiente aparentemente desprovido de subjetividade nos lança em um terreno dúbio, em que a informação de padronização de estereótipos se transforma, ao mesmo tempo, em uma mensagem de afeto. Muito diferente da imagem heróica do soldado, os homens ali estão quase sempre vulneráveis, frágeis e em momentos de descontração. E talvez seja exatamente aqui que encontramos uma pequena brecha de alívio em que a vida ainda parece fazer sentido.
São sobre essas imagens e gestos que Maquinal nos faz refletir. Se vivemos o totalitarismo dos aparelhos e das imagens publicitárias é possível vislumbrar, por meio de trabalhos como o de Marcelo Amorim, uma pequena brecha de sentido e reflexão sobre as possibilidades de criação e liberdade em uma sociedade cada vez mais programada e dominada pelas imagens técnicas.
Priscila Arantes, curadora
fevereiro 10, 2016
Notas sobre a Bienal do Mercosul por Gabriela Motta
Notas sobre a Bienal do Mercosul
GABRIELA MOTTA
Há quase vinte anos, em 1997, acontecia em Porto Alegre a primeira edição da Bienal do Mercosul. Nesse percurso, muito se debateu sobre o evento, considerando-se inicialmente a pretensa crise do modelo Bienal de Artes Visuais, a pertinência – ou impertinência – de mais uma exposição do gênero no Brasil e a limitação político-geográfica sugerida por seu nome.
Como se percebe, a crise atribuída ao modelo expositivo bienal é de ordem conceitual e não de ordem prática. Quer dizer, nós – curadores, pesquisadores, artistas, críticos de arte, leitores – podemos considerar anacrônica a existência de eventos bianuais cuja pretensão é apresentar mostras panorâmicas, mundiais ou regionais, sobre arte. No entanto, seguimos assistindo ao surgimento de novas bienais de arte pelo mundo e contribuindo com esses eventos na medida em que participamos deles enquanto agentes que os conformam conceitualmente.
Se interessa-nos discutir os modos de circulação, de abordagem e de fruição da arte, cabe reconhecer as exposições do gênero para além do fato de serem estruturas estabelecidas, basicamente, a partir de uma economia da cultura. A aproximação entre tais termos é algo a ser problematizado especialmente desde seu interior.
A Bienal do Mercosul surge em consonância com as contradições dos dias de hoje, um período caracterizado pela globalização dos mercados, pelo esgotamento dos recursos naturais, pelo afastamento do poder público em relação a setores como educação e cultura e pela acentuação das contradições sociais. Nesse pacote político-econômico-social, modificam-se os modos de financiamento e de circulação de bens culturais. Em tal conjuntura, projetos de grande porte acabam sendo privilegiados pois envolvem um maior número de profissionais aptos a formatar essas propostas nos termos exigidos por lei.
No Brasil, na esteira do PRONAC (Programa Nacional de Apoio à Cultura, também conhecido como Lei Rouanet, instituído em 1991 no governo Fernando Collor), surgem as leis estaduais de incentivo à cultura. Na prática, isso significa que a maior parte dos recursos financeiros necessários para a realização de projetos culturais virá da iniciativa privada mediante a aplicação dessas leis, que permitem o redirecionamento de um percentual de impostos. No Rio Grande do Sul, a LIC/RS – Lei de Incentivo à Cultura – foi aprovada em 1996 e regulamentada alguns meses antes da primeira edição da Bienal do Mercosul, em maio de 1997.
Tal como esse evento, todos os projetos culturais de grandes dimensões das últimas décadas, como a mostra Brasil 500 anos, o programa Rumos Itaú Cultural, e mesmo os prêmios PIPA e Marcantonio Vilaça – para ficarmos só nas artes visuais –, utilizam essas leis de incentivo. Já projetos autônomos, independentes, de pequenas proporções, encontram mais dificuldade em obter recursos para sua realização, ora por não darem o “retorno” esperado pela iniciativa privada, ora por não enquadrarem-se na estrutura burocrática dos meios de financiamento regulamentados. Mesmo se pensarmos nos mecanismos de incentivo direto, como os programas da FUNARTE, a quantidade de profissionais exigida nos editais, como assessoria de imprensa ou produtor – o que, dependendo do projeto, nem sempre é necessário –, afasta ou impede que sejam aprovadas propostas que não se enquadram nesses termos.
É nesse contexto, com essas questões em jogo – interesses políticos, economia cultural, ampliação de circuitos artísticos via projetos de grande envergadura –, que surge esta Bienal. Se a idealização da mostra reconhecia a necessidade real de ampliarmos a circulação da produção artística para além do eixo Rio-SP, ao mesmo tempo a sua criação valia-se de um mecanismo incipiente de financiamento.. Assim, a Bienal do Mercosul configura-se também como um investimento em capital simbólico capaz de fortalecer um acordo político de livre circulação comercial (algo até hoje não alcançado entre os países do bloco, nem econômica, nem culturalmente).
Destaques de um percurso
Em sua trajetória, a Bienal do Mercosul não é diferente das outras mostras do gênero. Algumas de suas edições foram plataformas importantes para discussões sobre arte contemporânea, sobre curadoria, sobre a relação da bienal com o local no qual ela acontece, sobre arte e educação. Outras, podem ser vistas como exemplos de irresponsabilidade curatorial e administrativa, o que implica em reconhecermos a complexa estrutura de gestão dos projetos de grandes proporções. Mostras como as bienais de arte conjugam especialistas em determinada área cultural – nem sempre verdadeiramente engajados com o projeto para o qual são convidados – e especialistas do setor empresarial – nem sempre conceitualmente envolvidos com a área em questão. De todo modo, é evidente que, em suas dez primeiras edições, essa Bienal propiciou um trânsito inigualável de obras de arte, de artistas e de técnicos em montagem de exposições, influenciando na formação dos agentes e do público local e configurando-se enquanto um evento fundamental, não só para Porto Alegre, mas para o Brasil.
Primeiro ponto: revelando espaços
Desde sua primeira edição, a Bienal do Mercosul tinha como um dos seus desafios encontrar locais para sua realização, considerando a precariedade e escassez de equipamentos públicos em Porto Alegre. O que poderia ser um limitador da mostra, tornou-se uma de suas marcas: a descoberta de locais não tradicionais, a criação de espaços expositivos e mesmo a colaboração na melhoria de algumas instituições, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul.
É com essa dinâmica que espaços como o DEPREC – um galpão portuário – abrigou mostras das duas primeiras Bienais, o Hospital Psiquiátrico São Pedro foi utilizado na terceira edição do evento, os armazéns do Cais do Porto concentraram a maior parte das exposições realizadas na 4ª, 5ª, 6ª, 7ª e 8ª edições da mostra. Boa parte desses lugares, e outros tantos como o singular “prédio da Mesbla”, utilizado na 1ª Bienal, ou a Casa M, projeto da 8ª edição que transformou uma casa residencial do centro histórico de Porto Alegre em um ponto de encontro, abrigando espaços expositivos e de estudos, cozinha e biblioteca, jardim e sala de estar, deveriam ter sido preservados enquanto equipamentos culturais da cidade, o que infelizmente nunca ocorreu.
Por que isso não aconteceu? A Bienal afirma não ser de sua responsabilidade manter esses locais. A prefeitura não tem condições financeiras de arcar com os custos de novos equipamentos culturais. O Estado, atualmente, não garante nem o pagamento dos servidores públicos, o que dirá destinar alguma verba para a cultura. Os armazéns do Cais do Porto são alvo de uma disputa política envolvendo a negociação dessa área com a iniciativa privada para sua presumida exploração comercial.
Como em uma boa peça de teatro, em algum aspecto, todos os personagens têm razão. O cenário cultural no âmbito do capitalismo tardio é complexo e estamos longe de conseguir compreender todos os meandros dessa rede. De todo modo, por mais que o esquema atual de financiamento cultural praticamente obrigue todos envolvidos com a cultura a ter CNPJ, ainda é como pessoas físicas que podemos fazer alguma diferença.
Segundo ponto: algumas diferenças
Paulo Sergio Duarte foi o pesquisador convidado para assumir a curadoria geral da 5ª edição da Bienal do Mercosul (2005). Logo que seu nome foi anunciado, o crítico apresentou sua proposta para a mostra, na qual destacam-se, entre tantos outros aspectos, pelo menos três ações determinantes para a discussão tanto sobre esta Bienal especificamente, quanto sobre o papel de uma bienal em geral.
Em primeiro lugar, Paulo Sergio manifestou a inadequação da mostra ser limitada ao universo sugerido por seu nome, iniciando o processo de internacionalização do evento. De fato, restringir a Bienal aos países membros do bloco não poderia contribuir para qualquer discussão estética, nem mesmo sobre arte latino-americana já que “Mercosul” é um acordo econômico e não uma região. Com enfeito, cientes disso, nenhuma edição da mostra limitou-se a contemplar somente obras desses países, apresentando exposições especiais com artistas como Jesús Soto ou Pablo Picasso. Porém, é só a partir da 5ª edição que essa abertura passa a fazer parte do discurso curatorial, modificando a estratégia de mostras especiais, até então adotada pelos projetos curatoriais.
Em segundo lugar, Duarte envolveu-se em defesa do Núcleo de Documentação e Pesquisa da Bienal, contribuindo para sua estruturação. O NDP, apontado como necessário já na primeira edição dessa exposição, foi criado pela Fundação Bienal em outubro de 2004 e abriga todo tipo de documentação referente à história do evento.
Por fim, tentando amenizar o clichê que associa as exposições do tipo bienal com discos voadores por serem ambos “aparições” eventuais, a 5ª Bienal comissionou quatro obras públicas. Os artistas Waltercio Caldas, Mauro Fuke, Carmela Gross e José Resende foram convidados a desenvolver projetos para a região da orla do Guaíba. Mais uma vez, tal atitude não chega a ser inédita na trajetória da Bienal do Mercosul, tendo em vista as onze esculturas públicas legadas na 1ª edição do evento, localizadas no Parque Marinha do Brasil, e a obra Supercuia, de Saint Clair Cemin, comissionada pela 4ª Bienal. A diferença, na 5ª Bienal, está no modo como tais obras foram definidas: através de projetos que levavam em consideração, sobretudo, o lugar no qual seriam instaladas. Hoje, todas essas obras encontram-se bastante deterioradas ou interditadas, por total irresponsabilidade da Prefeitura de Porto Alegre.
Assim como Paulo Sergio Duarte, as equipes e os curadores gerais da 6a e da 8a Bienal, Gabriel Perez Barreiro e José Roca respectivamente, serão lembrados como pessoas que assumiram a responsabilidade de pensar sobre o papel de uma bienal de artes visuais, interferindo um pouco nos aspectos controversos dos grandes eventos. Em todas essas edições da mostra, desenvolveram-se projetos que contemplavam questões como formação de circuitos autônomos, educação em artes visuais, constituição de acervos públicos, o papel da curadoria, inclusão de agentes locais, contribuindo para que a Bienal do Mercosul fosse uma plataforma importante para a discussão sobre o mundo da arte.
Ainda cabe reconhecer a importância dos projetos da 1ª, da 2ª e da 7ª edições da mostra sulista. A 1ª edição da Bienal do Mercosul, com curadoria de Frederico Morais, além de conseguir transpor todas as dificuldades inerentes de um projeto inaugural, homenageava o crítico Mário Pedrosa e o artista argentino Xul Solar em duas mostras especiais. O projeto da 2ª Bienal, elaborado por Fábio Magalhães e por Leonor Amarante, apresentou um grande número de proposições artísticas desenvolvidas especialmente para a mostra, voltando-se efetivamente para a produção contemporânea de arte. Por fim, em sua 7ª edição, com curadoria geral de Victoria Noorthoorn e Camilo Yáñez, a Bienal do Mercosul, além de suas exposições, apresentou uma programação constante de debates, de performances artísticas e de ações educativas em continuidade com o que vinha se desenvolvendo desde a 5ª edição do evento.
Terceiro ponto: de que é feito o chão?
Há no ar um clima de mau tempo. E não estou falando da chuva constante que cai sobre Porto Alegre nos últimos meses. Desde o final da 9ª edição desta Bienal circulam conversas nas quais se especula sobre a continuidade da mostra. Em que pese a minha ignorância quanto ao real papel do empresário que assume a presidência desses eventos, é fato que, sem essa figura, pelo menos no Brasil, não se faz uma exposição nas proporções de uma bienal internacional. São personagens coadjuvantes do ponto de vista daqueles interessados em discutir arte, mas totalmente protagonistas do ponto de vista da viabilização de projetos de grande envergadura.
Em sua 9ª edição, pela primeira vez, quem ocupou a presidência da Fundação Bienal foi uma mulher. A empresária Patrícia Druck assumiu esse papel e, ao lado da curadora geral, Sofia Chong Cuy, conseguiu realizar uma Bienal com grandes nomes da arte, como Hans Haacke e Robert Rauschenberg, e muitas contendas, como a saída, ao final desta edição, da pesquisadora Mônica Hoff, que coordenava o programa pedagógico da Bienal desde 2006. Porém, a mais grave dessas polêmicas envolve uma grave acusação. Há quem diga que as dificuldades para a realização da mostra, enfrentadas pela diretoria e pela curadoria, teriam sido agravadas em função do comportamento misógino de parte importante da instituição. Não cabe aqui apontar nomes, nem de delatores nem de acusados, mas considerar o conservadorismo da sociedade em geral, algo que aflora quando mulheres assumem setores tradicionalmente ocupados por figuras masculinas.
Ponto final: a lógica de super-mercado
Agora, em plena 10ª edição da Bienal, em meio à confusão envolvendo os constantes adiamentos de sua abertura e a saída de parte da equipe curatorial um pouco antes de sua inauguração, temos que nos confrontar com o que é a exposição em si. A despeito das presumíveis divergências entre o curador geral, Gaudêncio Fidelis, e aqueles que saíram – Ramon Castillo, Raphael Fonseca e Fernando Davis –, tal atitude é questionável, especialmente por ter sido tomada tão tardiamente. Por mais que se saiba que o curador geral, sem o conhecimento de parte de sua equipe, excluiu artistas da mostra alegando dificuldades em transpor a burocracia alfandegária, desligar-se do projeto de uma bienal na última hora não afeta significativamente a proposta curatorial – supostamente, já bastante conhecida por todos os envolvidos. Ou seja, retirar-se da equipe da Bienal uma semana antes de sua abertura atinge sobretudo a situação institucional do evento. E não exime totalmente nenhum curador do que é a exposição.
Independente disso, é muito difícil escrever sobre a atual Bienal do Mercosul, pois, ao contrário de todas as outras edições da mostra, não há nada nela que possa ser defendido. Claro, existem bons artistas e bons trabalhos na mostra, mas todos, sem exceção, perdem camadas conceituais e sensíveis em função do modo como estão expostos. São tantos os equívocos curatoriais, começando pela declaração da curadoria de que a mostra pretendia “retomar sua vocação inicial privilegiando obras latino-americanas”, que não vale a pena enumerá-los sob o risco de colaborar para a já frágil situação em que a Bienal do Mercosul se encontra.
Contudo, destaco um exemplo de como uma exposição pode contribuir para uma leitura rasa da arte: no prédio do Memorial do Rio Grande do Sul, em uma mostra chamada Biografia da vida urbana, encontramos, lado a lado, a obra de Antonio Caro, Colômbia, um postal de Paulo Brusky, apresentado em uma caixa de acrílico, e três garrafas de Coca-Cola, resquícios de uma das Inserções em circuitos ideológicos, de Cildo Meireles. A obra de Caro está absolutamente de acordo com uma ideia de arte retiniana, ainda que conceitual. O trabalho – uma litografia vermelha e branca na qual se lê a palavra “Colômbia” escrita com a caligrafia do logotipo da Coca-Cola – atualiza o jogo da Pop Art, envolvendo procedimentos de apropriação e de ressignificação de imagens midiáticas ou de produtos industrializados na construção de significados, no contexto da arte. É algo para ser visto com os olhos, que aponta para a nossa capacidade – ou incapacidade – visual de discernir e identificar subtextos em uma obra capaz de cruzar, numa só imagem, países, produtos e disputa política. Está onde deveria estar, em uma instituição de arte.
Já os trabalhos de Cildo e Brusky discutem exatamente o contrário daquilo proposto por Caro. De partida, não foram feitos para serem vistos e sim experienciados no cotidiano. Em suas gêneses, está a proposição de novos meios de circulação e de fruição da produção artística, está precisamente o questionamento das instâncias institucional e retiniana da arte. Se hoje é lícito que tais propostas sejam expostas em mostras de arte, é preciso sublinhar que são documentos, resquícios materiais de algo que ultrapassa largamente a noção de objeto de arte. Apresentá-los enquanto obras prontas só contribui para a crescente fetichização da arte, a mesma que estimula a transformação das grandes exposições e museus de arte em competitivas instituições de entretenimento.
Por fim, uma exposição que alinha trabalhos artísticos cujo ponto em comum é um produto como a Coca-Cola diz mais sobre o refrigerante do que sobre arte.
Em Frente
Não será a primeira vez que uma exposição do tipo Bienal será lembrada por seus equívocos. Sobram exemplos de edições conceitualmente frágeis nas Bienais de São Paulo e de Veneza. Podemos lidar com isso e pensar em como minimizar as consequências negativas desses projetos. No caso de Porto Alegre, o pior desses efeitos seria considerar que a Bienal deixe de ser realizada. Espero profundamente que o complicado projeto de sua 10ª edição sirva de estímulo para que a Fundação Bienal do Mercosul resgate seu papel transformador e volte a contribuir para a construção de um debate instigante sobre arte e sobre o mundo da arte.
Gabriela Motta é pesquisadora em crítica e curadoria. Possui doutorado em artes visuais pela ECA/USP.
fevereiro 9, 2016
Sobre os vidros por Luiz Camillo Osorio
Sobre os vidros
LUIZ CAMILLO OSORIO
José Bechara - Jaguares, Paço Imperial, Rio de Janeiro, RJ - 18/12/2015 a 28/02/2016
A poética de José Bechara, desde o começo de sua trajetória, é marcada por incorporações de materiais cotidianos transformados por uma intervenção plástica marcadamente construtiva. A utilização recente dos vidros parece trazer algumas novidades. É sobre elas que quero falar. Importante frisar que não há rupturas, mas uma sobreposição constante de processos, procedimentos e materiais. Os vidros mudam o modo como suas instalações atuam no espaço e produzem uma experiência estética. Sim, falo aqui em experiência na medida em que estes trabalhos apostam na presença singular do acontecimento plástico e no quanto ele se desdobra no jogo de sensações e sugestões. Falar em experiência é falar em processo de formalização – algo que se produz no intervalo entre o que se vê e o que é visto.
Diferentemente das lonas de caminhão, o vidro não tem tempo, sua superfície não deixa grudar densidade histórica, não insinua profundidade. Ao contrário, o olho perpassa, atravessa o plano e se põe em contato com o que está fora. Se a lona era uma opção pela “interioridade” do material, o vidro é todo transparência e exterioridade. Além disso, se a lona acumula e resiste ao tempo, o vidro está na iminência da fratura, da quebra, de deixar de ser. Na lona interessava o que vinha do uso anterior – as manchas, os rasgos, as emendas, o descoloramento, as falhas – já no vidro interessa o que ele mostra fora dele, o que é pura articulação com o espaço e os outros elementos incorporados.
A saída para as instalações, realizada em momento anterior de sua obra, no começo dos anos 2000, vinha dos volumes agregados pela oxidação da lona, que aos poucos foi produzindo um gesto composicional que se projetava no espaço e incorporava a arquitetura. Não por acaso ele vai trabalhar com casas, móveis, mesas, elementos de uma arquitetura reduzida à geometria que se articulam na tensão entre brutalidade e delírio. A referência específica a coisas no mundo, objetos reconhecíveis do nosso cotidiano, foi se transformando em um jogo entre formas cheias e vazias que desenhavam no próprio espaço.
É deste gesto gráfico agregativo que surgem os vidros e as instalações recentes. Vários elementos anteriores são reapropriados e deslocados. Como nas suas pinturas e instalações, há uma ação que geometriza e outra que transtorna a forma, um jogo entre equilíbrio e instabilidade. Entretanto, aqui entra também uma certa fragmentação corporal, como se a frieza do vidro e das interferências geométricas no espaço o obrigassem a inserir uma energia expressiva através desses fragmentos pendurados. O ruído contido, que nas lonas vinha da densidade acumulada do material, aqui é introduzido com a soma de fragmentos heterogêneos que se combinam pelo conflito e não pela fusão harmoniosa – uma cabeça pendurada, um volume de papel, um tubo de luz, uma inserção pictórica ou cromática na parede. Tudo se agrega em torno do vidro que é o catalisador plástico da instalação.
De certa maneira, podemos dizer que estas instalações com os vidros sintetizam muito da trajetória poética de José Bechara. Há neles uma compressão expressiva que articula o frágil e o bruto, a impessoalidade e o drama. Coisa que já aparecia nas lonas com a geometria introduzida pela oxidação, mas que aqui se explicita sem cerimônia. A dimensão dramática adquirida pela obra parece-me produzida pela inserção da luz, que assume um papel decisivo: não só pela temperatura que ela dá à instalação, aquecendo o vidro, como pelo jogo de sombras e reflexos que é introduzido. É também aí que a experiência estética, mencionada de início, ganha tonalidades afetivas desconhecidas em sua obra anterior - mais especulativas, mais simbolistas, carregadas de sugestões cênicas. Sensações que não param de sugerir sentimentos e ideias.
Luiz Camillo Osorio, 2015
A vida é a soma errada das verdades por David Cury
A vida é a soma errada das verdades
Conceitualmente, trata-se de uma paisagem cívica negativa.
Quinze sentenças acerca da história social e política brasileira são isoladas em lajes de cimento e ferro, em meio a escombros residuais.
Quer de senso metafórico, filosófico ou lírico, cada uma delas aspira à condição de aforismo sobre três das formas de violência incorporadas ao nosso cotidiano: a social (Matem a todos porque nem Deus nem o Estado reconhecerá os seus), a política (A ianque Dorothy Stang não voltou para casa) e a moral (Aqui o mal ao menos de impostura prescinde).
Contudo, trata-se aqui não de arte política, mas política da arte: o texto quer ser imagem e matéria. Esse híbrido de experiência sensível e mental é que deve contestar qualquer percepção unidimensional dos fatos — levando-os à contínua revisão e paradoxo, incerteza e crise.
No relacionamento entre a instalação e o público, tais “palavras de ordem” e seu comportamento escultórico devem implicar monumentos de aridez reflexiva.
David Cury, 2015
Cristina Salgado - No interior do tempo por Marcelo Campos
Cristina Salgado busca formas no interior do tempo. Mesmo sabendo que o que se exteriorizará serão imagens difusas, nascidas da intensidade de caber em desconforto num corpo. Vive-se, nas obras da artista, uma duração, uma passagem em “conformação incerta”, já que a potência da visualidade atravessará, sempre, ameaças. Em No interior do tempo, a artista inicia a pesquisa na descoberta de uma atlas de anatomia. As formas e imagens do corpo são de tal ordem surreais que acabam por se parecerem aos desenhos da artista. Com isso, Cristina intensifica algumas lâminas, realçando alguns cortes em ossos, tecidos, músculos, ao mesmo tempo em que apaga outros tantos. Da nomenclatura científica, sobram “poemas visíveis”, como ela os denomina. Criam-se, então, poemas simbolistas, mallarmaicos, com palavras que se conscientizam e criam sentido no espaço ao redor. Os espaços aqui apresentados são intermediários. Das imagens anatômicas surgem órgãos inteiros e repetidos, olhos, bocas, narizes, cabelos.
Esta exposição, assim, trata de situações que se misturam entre visibilidade e sombra, formas e tempo, o exprimir e o silêncio. Tal mudez parte, antes de tudo, da perplexidade de o trabalho de Cristina Salgado se predispor a mímicas, “gestos que já são desenhos”, unindo-se quase como a escrita e a oralidade. Há sons? E esta pergunta se fundamenta quando constatamos que se houver sons estes habitariam, também, o interior do tempo, o ultrassom. A paisagem não será ouvida. Nada se assemelhará à evocação das tormentas ou da calmaria.
O que a ciência procura exibir é o “não visto dos instantes perdidos”. Perdidos pela ignorância, mas, também pela passagem do tempo, pelo envelhecimento, pela mudança de estado. E, assim, o corpo vai perdendo as pontas, abandonando seus contornos regulares.
Há em toda a pesquisa aqui apresentada um ir e vir de referências, uma antiga metalúrgica, o mobiliário inexplicável, trabalhos de momentos distintos da carreira da artista. Sobretudo, vemos a escolha por certa aridez, o que, imediatamente, coloca as paisagens no lugar de miragens. Tal secura da matéria se condiciona a um tempo paradoxal, aquele indiscernível entre passado e futuro, onde as coisas parecem límpidas na sua clareza exprimível, mas ruínas na aparência de certa expiração. Tudo pode expirar. Ainda mais para uma sociedade vigilante “que marca horas iguais para todos”, desejando a captura dos instantes. A mesma sociedade que não percebe na onisciência, nos olhos que tudo vêem, uma confrontação com o tempo que passa.
Nos filmes de Cristina Salgado, a repetição da natureza - o mar batendo nas pedras ou em continuidade, sem gesto, sem horizonte - almeja a permanência, já que o desejo de movimento será, sempre, o desejo de inércia, “de ver chegar o que permanece”.
E assim, a artista lida com técnicas de anulação, justamente em imagens que parecem tudo revelar: os interiores, a nomenclatura epitelial, as divisões mais inalcançáveis. Estamos, então, diante de mobiliários sem conteúdos e de desenhos do corpo sem a proteção da pele. Aqui, a artista nos impõe um contato direto, onde a ergonomia, por exemplo, não foi contemplada. Como habitar cadeiras que parecem não prever a presença do corpo, já que se impõem estreitas, altas, rentes em demasia? Diante de tal cena, podemos concordar que “ser não é habitar”.
A isto, esta exposição se propõe, tratando o espaço como se fosse um depois, uma des-possessão. E, por isso, não haverá guardados, nada para cobrir as prateleiras. Antes de tudo, os dias e os sonhos serão a única possibilidade de separação dos mundos, não mais a posse de formas, mas, antes, a busca no interior do tempo.
Toda libertação do poder, como nos ensina Paul Virilio, será, sempre, formulada por técnicas de desaparição.
Marcelo Campos, 2015
Colagens e Pinturas por Célia Euvaldo
Essas Colagens querem ser esculturas: o papel branco chinês é agarrado pela folha de papel preto e engorda, se deforma, pela ação da cola e do peso maior do papel preto. E ambos “trabalham” ao longo do tempo, conforme o clima. Não se pode dizer que o branco seja o fundo, suporte do papel preto; o que há é uma inter-relação, em que o preto às vezes chega a ultrapassar os limites do branco. Um atua sobre o outro, um transforma o outro.
Essas Pinturas lembram que saíram do desenho: pinceladas-linhas horizontais (quando a tinta é aplicada) e espatuladas-linhas verticais (quando a tinta é arrastada) preenchem o campo inteiro, deixando seu rastro de linhas. Pinturas, sim, porém sem cor. O preto aqui não é cor, não adjetiva, é matéria. Expansivas no sentido inverso, estendem-se para dentro como buracos negros. Também se modificam, mas não de maneira física como as Colagens. Transformam-se com a luz, pelo movimento do olhar, o ângulo de visão.
Ambos os conjuntos procedem por combinações de poucas variáveis. Nas Colagens, dois formatos padrão, em papéis de consistência diferente, geram tensões entre si apenas por variações e rotações de suas posições recíprocas. Nas Pinturas, o jogo se dá pela posição e quantidade de linhas-espatuladas verticais que atravessam o campo das linhas-pinceladas horizontais, ora distribuídas igualmente, ora agrupadas num canto, ou outras posições. Tudo em estrita economia.
As obras todas insinuam uma geometria, jamais plenamente cumprida. Os acasos, as imprecisões da mão também colaboram para o abrandamento, ou melhor, a não consumação da geometria.
Célia Euvaldo, 2015
Bruno Miguel - Essas pessoas na sala de jantar por Bernardo Mosqueira
(ao meu amor)
No dia 5 de novembro de 2015, duas barragens que continham rejeitos de mineração se romperam na cidade de Mariana em Minas Gerais gerando um rastro de destruição, devastando vilas inteiras, pondo fim violentamente à vida de moradores e causando aquele que já é considerado o maior crime ambiental da história do Brasil. A negligência da mineradora Samarco, além de causar os assassinatos imediatos de seres humanos por afogamento em barro químico, colocou também todo o rio Doce em risco de morte. Graças às ambições irresponsáveis dessa joint-venture entre a Vale (ex- “do Rio Doce”) e a anglo-australiana BHP Billiton, não é mais possível captar água do rio para consumo, e mesmo a produção de energia nas usinas hidrelétricas locais foi paralisada. Agora, metais pesados, como alumínio, ferro, manganês e mercúrio, compõem a lama tóxica que percorrerá por volta de 600 quilômetros até chegar ao oceano, carregando também toneladas de árvores, peixes e outros animais mortos. O impacto nocivo dessa tragédia no meio ambiente, na subsistência das pequenas comunidades e na economia da região é assolador.
Tudo o que o humano realiza o faz como expressão da técnica, faz como paisagem, na paisagem e a partir da paisagem. Todas as transformações físicas que operamos sobre a terra (plantações, construções, utensílios, arte) acontecem para responder às necessidades humanas mais fundamentais – alimentar-se, proteger-se, movimentar-se, relacionar-se – e fazer uso individual ou coletivo de objetos físicos e simbólicos.
Desde 2010, Bruno Miguel vem frequentando leilões, antiquários e lojas de antiguidades para coletar pratos, copos e outros tipos de objetos domésticos funcionais e decorativos que lhe fossem especialmente interessantes. As peças de vidro e cristal foram combinadas e preenchidas com resina de poliéster para criar as cerca de 150 peças da instalação Cristaleira. A obra Essas pessoas na sala de jantar é formada por quatro centenas de composições constituídas por utensílios de louça (bules, xícaras, pires, manteigueiras e sopeiras), espuma de poliuretano, pequenas árvores artificiais, papel machê e tintas de cores vibrantes. Enquanto a verticalidade dos encaixes dos objetos da Cristaleira remete necessariamente ao esforço originário daquilo que erguemos do chão, cada um dos objetos de Essas pessoas na sala de jantar pode parecer uma ilha, um monte, uma erupção, um escorrer de lama – até mesmo de lama tóxica.
A pesquisa de Bruno Miguel, que além de artista tem atuação como professor de pintura, aponta bastante para os elementos característicos dessa técnica e de sua história. Se há anos Bruno vem investigando o gênero pictórico da paisagem, agora ele o relaciona também com a natureza-morta. O procedimento, no caso das obras de Essas pessoas na sala de jantar, é de criação de uma imagem a partir do contraste entre duas faturas. As louças em porcelana são reconhecidas como pertencentes ao contexto doméstico e familiar e estão relacionadas à ideia de refinamento e fragilidade; sua imagem é associada ao gênero da natureza-morta. Já os montes coloridos têm seus processos de criação semelhantes aos das alegorias de carnaval. São garridos, lúdicos, aparentemente fortes, e sua imagem é associada ao gênero da paisagem. O encontro entre elementos da cultura pop com referências de outras origens é um procedimento importante na produção de Bruno Miguel.
Na instalação Essas pessoas na sala de jantar, durante todo período de exposição, os objetos serão rearranjados no espaço, criando diferentes percursos pela sala. Se a música dos Mutantes “Panis et circensis” descreve a oposição entre um sujeito que age transformando o mundo e “as pessoas na sala de jantar” que “estão preocupadas em nascer e morrer”, podemos refletir sobre que tipos de atividade transformadora esses trabalhos podem inspirar como objetos simbólicos. Ao colocar a paisagem numa escala dos objetos de uso manual, Bruno pode avivar a consciência da nossa agência na relação com o meio, da necessidade imperativa de reflexão sobre as reais causas e sobre as possíveis extensões dos efeitos de nossas práticas. Afinal, barragens podem romper vidas. Além disso, em nosso tempo histórico, todo processo fantástico é exercício legítimo para que possamos vir a ser capazes de imaginar o que ainda não existe.
Na instalação mais recente, Cristaleira, Bruno se põe a investigar mais especificamente o gênero da natureza-morta. Nesse caso, os objetos circundam o público apoiados sobre prateleiras alinhadas, evidenciando o espaço vazio no centro da sala. Dispostos dessa forma, somos levados a refletir se a fragilidade, na verdade, não é nossa e se não seríamos nós essas pessoas preocupadas em nascer e morrer.
Bernardo Mosqueira, 2015
fevereiro 8, 2016
Amalia Giacomini - Viés por Felipe Scovino
As obras de Amalia Giacomini constroem uma relação muito profícua entre o que a historiadora da arte norte-americana Rosalind Krauss chamou de não-arquitetura e não-paisagem ao definir um campo ampliado da escultura. Para Krauss, o campo ampliado é gerado pela problematização de um conjunto de oposições, entre as quais está suspensa a categoria modernista “escultura”. Ela aponta que o vazio, por mais paradoxal que seja essa afirmação, pode ser um meio de construção ativo do espaço, pois funciona como estrutura de sustentação da escultura. Em especial no caso de Giacomini, esse processo ocorre quando ela desloca o apoio de suas obras da parede para o espaço, como em Dobra. Com uma economia de gestos e métodos, essa estrutura em grid é exposta em um intervalo ambíguo que manifesta aparência e dissolução, expandindo o espaço de forma infinita.
Ademais, percebam que em Viés não há meios externos para a sustentação da obra. O que definitivamente sustenta a obra são as características materiais implicadas nela própria, ou seja, esta obra faz alusão às noções de gravidade, impermanência e equilíbrio através do emprego do material e da organização de suas forças. A relação das correntes com o espaço e o corpo do espectador explicitam o ponto principal do trabalho que é uma “afirmação do peso”, pois é ele quem dá forma, volume e espacialidade à obra, construindo um axioma que é atravessado por conceitos como superfície, presença, ambiente e autonomia da obra de arte. Por meio daquilo que constitui as características físicas e materiais da obra ou como ela se apresenta ao mundo, experienciamos um novo lugar. Em diálogo com o minimalismo e o pós-minimalismo, em especial com a obra de Fred Sandback, é especialmente inventivo o fato de como a linha fabrica fronteiras, caminhos, percalços, desvios, rumos, em torno de uma tridimensionalidade tátil. As ideias de não-arquitetura e não-paisagem são retomadas também pelo fato de como o entorno, e não apenas o objeto per si, é parte da obra e definitivamente trazido para “dentro” do espaço expositivo.
Em um jogo entre luz e sombra, opacidade e translucidez, o recorte de uma das janelas do Paço e a instalação de telas em série fazem com que agora o olho do espectador duvide sobre a própria memória que tínhamos daquele espaço. O corpo mais uma vez é exigido e colocado dentro dessa lógica de expansão da arquitetura, da paisagem e do objeto. Diferentes possibilidades de leitura e manifestação espacial nos são propostas. Dependendo da incidência da luz e do posicionamento que tomamos em relação à obra novas visadas da arquitetura interna e da paisagem externa são transformadas. Se a linha foi o leitmotiv das obras que se encontram na primeira sala ao construir uma espacialidade que atua em conjunto com o corpo, a luz exerce esse ofício na outra parte da mostra. Ademais, a série Memória do espaço delimita uma ocupação de um espaço que é constantemente redesenhado, reposicionado e principalmente colocado em suspeita. Ela desenha volumes virtuais e convida o olhar a percorrê-los entre uma rede de vazios, sombras e intervalos que os atravessam. Corpo, movimento, arquitetura, física, luz e uma construção virtual do espaço são campos de interesse da artista. Em suas obras, nunca o espaço é percebido como um todo pois ele está sempre em mudança. Duvidamos sobre o que está diante de nós porque sejam telas intercaladas com o espaço, a paisagem ou o próprio vazio, sejam correntes que se colocam como desenhos no espaço criando topografias ou lugares variáveis, o material e as formas criadas por Amalia sempre sugerem um ato contínuo em que olho e imaginação são constantemente solicitados e cruzados.
Felipe Scovino, 2015