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novembro 30, 2015
A E O, de Bruno Borne por Luísa Kiefer
A E O, de Bruno Borne
LUÍSA KIEFER
Perder-se na contemplação de uma obra de arte é um exercício de escolha. Precisa ser um ato deliberado, uma decisão. Certo é que pressupõe disponibilidade. Para se entregar a este mundo que mistura real e virtual, é preciso estar livre da censura guardiã da lógica. Também não é fácil achar tempo para a contemplação em um mundo que mede o tempo em segundos ou em suas frações. A exposição A E O, de Bruno Borne, é, neste sentido, um convite: pare, olhe, desfrute sem medo de se perder.
Com sua obra site-specific, criada para e a partir do ambiente em que é instalada, Borne intima o público a mergulhar em três videoinstalações que retratam o próprio espaço expositivo da galeria, provocando um diálogo complexo e labiríntico entre espaço, obra e imagem. Ele utiliza programas de computação gráfica, que geram modelos 3D, para reconstruir virtualmente as salas da galeria. A partir dessa simulação é que começa o jogo e o convite para perder-se em sua obra. Espelhos reais e virtuais multiplicam o ambiente projetado, criando metaimagens que se reproduzem em looping, sem deixar muitas pistas do que é reflexo e o que é simulação.
Partindo das formas geométricas correspondentes às letras que dão nome à mostra, as três projeções, pensadas cada uma como uma obra independente, formam, ao mesmo tempo, um conjunto, misturando-se e complementando-se. Acompanhadas por um som ambiente que se diferencia ao nos aproximarmos de cada trabalho, A E O transforma o ambiente da galeria em obra, incorporando e transformando o entorno – e a própria presença do espectador – em imagem.
Diante do conjunto da exposição, cabe ao espectador decidir se aceita, ou não, o convite para perder-se na imagem e, assim, descobrir o seu poder de contemplação.
novembro 29, 2015
Silêncio impuro por Felipe Scovino
Silêncio impuro
FELIPE SCOVINO
Silêncio impuro, Anita Schwartz Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ - 05/11/2015 a 06/02/2015
Nessa mostra o som é um índice, pois as obras operam com o seu lado negativo no qual ele (som) é silenciado. O que existe, ou melhor, aquilo que se expande pelo espaço é a imagem do som, isto é, as mais distintas suposições que podemos ter sobre qual som poderia ser ouvido se finalmente aquilo que o impede (uma amarra, uma solda, ou ainda o livre entendimento de que a obra possa ser compreendida também como uma partitura) fosse revelado ou reinterpretado. O som, portanto, é evidenciado pela forma mas a nossa expectativa pelo seu acontecimento é negada pelo seu silêncio. Ele é desejo, torna-se visível mas nunca acontece na sua forma mais plena, que seria a audição. Não necessariamente a impossibilidade do som se converter em audição, algo como se aquele som fosse um “grito surdo”, constitui-se como drama ou falência mas como um fenômeno que nos possibilita criar inúmeras metáforas para o que pode ser qualificado como som assim como relevar novas propriedades para as obras em questão, tais como o caráter de delicadeza e suavidade que as mesmas podem possuir. Esse tipo de afirmação encontra um par, guardadas as suas especificidades, com as experiências de John Cage, que evocavam que o silêncio possuía uma particular notoriedade: ele não existe. O silêncio nunca é completo pois sua vibração é permanentemente constituída e frequente. Lembremos da célebre performance 4’33’’ do mesmo artista e as circunstâncias de como o público de uma sala de concerto se comportou diante do (suposto) silêncio. Uma vez que o silêncio, assim como colocado por Cage, não se reduz à questão acústico musical, as obras aqui reunidas não afirmam um significado último e derradeiro para o silêncio; ao contrário: mostram sua abertura, complexidade e multiplicidade e apontam finalmente para o fato de que silêncio e som estão em constante mutação e interpenetração.
As obras de Carla Guagliardi expõem através de uma economia de gestos e elementos uma surpreendente leveza nas suas composições estruturais. A escolha dos materiais (borracha, madeira, espuma) envolve um repertório de fragilidades e um equilíbrio precário. Tudo parece ruir ou estar prestes a desabar, mas por outro lado as obras evidenciam uma dinâmica que é própria da natureza do som: querem o ar. Como partituras, seus elementos ao mesmo tempo que se revelam como notas suspensas no espaço, tendem a ecoar ad infinitum. Esta imagem cria um diálogo pertinente com a série Partitura (2010) de Artur Lescher, que nos mostra todas as possibilidades dessa propriedade imaginativa e quase audível. Estão lá o ruído, o som, a música, mas acima de tudo o silêncio como vibração. Essa qualidade semântica, que sobrevoa todos as obras da mostra, reflete uma dualidade perspicaz nessa série de Lescher: há uma dualidade sendo confrontada, pois a leveza ou suavidade das “notas” de suas partituras nos levam a “ouvir” ou sentir, por outro lado, um peso, uma massa sonora. A condição de partitura também se faz presente nas duas obras de Cadu. Em Hemisférios pequenos blocos de papel vegetal possuem em suas superfícies o resultado de exposições diárias à luz do sol e às demais condições do ambiente. Por meio de um suporte é fixada uma lupa que, ao longo de algumas semanas, foca a luz do sol direcionando-a para uma determinada área. O resultado é um grafismo desse tempo, o lento e silencioso passar das horas, que trava uma pertinência com a imagem da partitura. Não há som, apenas o seu caráter indicial e o processo de excluir ou escavar a matéria para revelar uma outra possibilidade de aparecimento ou ação poética da obra. Esta imagem reflete uma situação similar em Da série pagão (2010) de Nuno Ramos. Nestas obras, os instrumentos musicais foram “jogados” para dentro da matéria, no caso a pedra sabão. Não existe a possibilidade de atingi-los, fazer uso das suas propriedades sonoras. O que se tem é desejo, pois se os alcançássemos e os libertássemos, poderíamos fazer uso das suas qualidades e seríamos surpreendidos e encantados por sua natureza poética. Tanto nos desenhos de Cadu quanto nos instrumentos de Nuno existem formas capazes de ressoar potências visuais e sonoras, que, como um “engenho silente” [1], estão a ponto de serem ativados por nossas mentes.
Já em Für Elise (2006) a partitura é o ponto de partida. O solo para piano de Beethoven que dá título à obra é uma das melodias mais conhecidas e altamente disponibilizada em caixinhas de música. Como explica Cadu, ele criou “um sistema para a produção de uma imagem baseado nas características mecânicas da caixinha que contem essa melodia.
A reprodução desta para o mecanismo da caixinha ocorre através de um ‘garfo’ com dezoito pontas em diferentes afinações por onde um cilindro contendo as marcações de tempo aciona separadamente cada um de seus dentes em momentos específicos. As marcações neste cilindro foram escritas em uma folha de papel milimetrado transformando-se na planificação deste processo. Adicionando um novo tempo para cada nota musical, da esquerda para direita, surgiu um padrão em formato de cascata, que repetido dezoito vezes, gera sua escrita em negativo. Os intervalos de tempo na melodia, inicialmente brancos, são preenchidos por tantas notas que ao final apresentaram-se negros.” Cadu criou uma nova partitura ou qualidade sonora para uma melodia através de um sistema, objetivo e preciso, que transmite um sentido de caos ao que já era dado como estabelecido.
Em Metade da fala no chão – piano surdo (2010) de Tatiana Blass, o personagem é o tempo. Ao ter, lentamente o piano e por conseguinte o som encobertos e silenciados por uma mistura de cera e vaselina, o que se evidencia é o angustiante, tedioso e impassível processo de mudança. De forma cênica, o drama da vida moderna se faz diante dos nossos olhos: a matéria pouco a pouco torna muda a paisagem ou local da ação. Precisamos, diante do inesperado, refazer as nossas expectativas e reelaborar os nossos sentidos. Sua obra, ademais, escancara a consciência da finitude.
A obra de Waltercio Caldas vai na contra mão do espetáculo, segue uma via distinta daquela do ruído diário que absorve as grandes cidades. “Cultiva os vazios” [2] como afirmou Paulo Sergio Duarte, e exibe um método em que a ausência e a delicadeza são fios condutores de sua presença no espaço. Esta ambiguidade pode ser resolvida dessa maneira: o ar atravessa os sólidos, aquilo que dá consistência ao território construído pelo artista e, mais do que isso, se torna expressivo. Como os intervalos de uma partitura, ele constrói silêncios, dita ritmos, auxilia na compreensão da vibração. O vazio constrói lugares, age sobre a estrutura dos sólidos e produz um leve timbre sobre aquelas superfícies. Sua obra também é musical. Reduzida ao necessário para que possamos perceber semitons ou o mais discreto e preciso som, a sua obra, e em particular nesse caso Lá dentro (2010), rege ou conduz os nossos ouvidos para um lugar distante daquele em que o ruído do mundo parece habitar. Sua recusa em permanecer nesse lugar do estrondo e sugerir, da forma mais delicada possível, que o silêncio “vibra” e possui qualidades sonoras é uma das suas mais contundentes colaborações, pois o seu encantamento é justamente nos afastar das certezas, fazer com que duvidemos do real e por conseguinte imaginemos estar a uma distância segura do caos ou desse ruído do mundo.
A reunião de diapasões em Empty Voices (2011), de Otávio Schipper, não nos deixa esquecer que este território da exposição está a vibrar a todo instante. Regidos pelos trabalhos de Guagliardi, Empty Voices e Lá dentro compõem uma sonata emudecida e mais do que isso o silêncio se torna visível, passa a pertencer a um estado material também. A eminência do som que é percebido fortemente nesses trabalhos se faz como obra: estamos aguardando, na expectativa, contrária a todos os sinais, de que algo novo se produza, mas o que está diante de nossos olhos, no sentido clássico, são esculturas. É nesse momento que o silêncio se torna denso, tátil e se lança a uma percepção, ou inteligência, puramente óptica. E isso não é pouco pois dar materialidade e consistência poética ao imaterial é tarefa das mais árduas. A obra de Schipper, em especial, assim como a de Guagliardi, pertence ao ar, porque é nesse lugar que ela constrói uma superfície vibrátil, virtual e potente. As obras da exposição revelam uma potência sem igual: um inesperado sussurro que não para de vibrar em suas estruturas.
[1] Tomo emprestado de uma expressão utilizada por Adolfo Montejo Navas ao qualificar a obra Rio Máquina de Artur Lescher como um dispositivo sonoro. In: NAVAS, Adolfo Montejo. A música calada de Artur Lescher. Rio de Janeiro: Anita Schwartz, 2009. Acessado em 28 de setembro de 2015: http://www.anitaschwartz.com.br/evento/artur-lescher.
[2] DUARTE, Paulo Sergio. Waltercio Caldas. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 76.
novembro 28, 2015
Jaqueline Vojta Coming Home por Jorge Sayão
Jaqueline Vojta Coming Home
JORGE SAYÃO
Jaqueline Vojta apresenta, em sua exposição na Galeria Mercedes Viegas, suas fotografias de paisagens realizadas na Inglaterra e no Rio de Janeiro, cidade em que mora. Sua formação como pintora está presente na escolha temática, ao fotografar o campo, no vale de Dedham, em Essex, onde o artista inglês do século XIX, John Constable, viveu e pintou a maioria de suas paisagens.
Antes de entrarmos propriamente na obra de Jaqueline, há um aspecto evolutivo importante que deve ser considerado nessa retomada da pintura de Constable. O processo de desenvolvimento e concepção da fotografia tem na sua formação e constituição, na pintura de Constable, um importante e insubstituível estágio. A fixação da imagem fotográfica ocorre pela incidência dos raios luminosos e suas variações de sombras e luzes, formando manchas de cor sobre uma película de filme sensível. Constable tornou-se notório por ser um dos primeiros pintores a compor suas telas através de uma organização por manchas de cor e não, como prescrevia a tradição, por sua estrutura linear. Portanto, sua pintura é uma etapa fundamental na concepção e criação dos dispositivos fotográficos. Podemos dizer que sem Constable não haveria fotografia.
O que significa este movimento de Jaqueline do campo da pintura para uma técnica imagética, como a fotografia? O que caracteriza sua fotografia?
A pintura, juntamente com o desenho, é a mais antiga e estabelecida forma de expressão artística visual. Em sua trajetória, desenvolveu temas que lhe são próprios, consolidando uma linguagem específica. No Ocidente, até o surgimento da fotografia, a pintura foi a forma preponderante de representação, subdividindo-se em uma infinidade de gêneros. Paisagens foi o gênero escolhido por Constable e retomado por Jaqueline.
Sendo a fotografia uma técnica relativamente nova, com pouco mais de um século de existência, em seus primórdios, teve sua visualidade herdada dos pintores. Neste curto intervalo de tempo, paulatinamente, desenvolveu a especificidade de sua linguagem e pouco a pouco foi se emancipando da pintura, construindo sua própria história.
Meios e linguagens e, por conseguinte, as questões referentes às duas visualidades, da pintura e da fotografia, se tangenciam mas não coincidem necessariamente. É neste intervalo, entre pintura e fotografia, que se inserem as fotos de Jaqueline. Não são fotos de uma fotógrafa stritu sensu, não tratam das questões clássicas da linguagem da fotografia. Jaqueline não faz uma fotografia documental, recuperando o ponto exato da visada do pintor, até porque, o próprio Constable, como pode ser verificado no sítio de suas pinturas, alterava a perspectiva, deslocava edificações, rearranjava a paisagem em função da composição da tela.
Jaqueline, ao retornar ao Constable Country, busca capturar a atmosfera do lugar, tanto no aspecto luminoso e cromático, quanto na sua carga e impressão afetiva. Atualiza questões clássicas da pintura em um novo suporte, a fotografia. Retorna à temática do pitoresco do século XIX: o homem junto à natureza, agora, sob o prisma dos dilemas e das dificuldades do homem contemporâneo, que já não consegue mais interagir com a natureza e sofre as consequências desta privação. As figuras humanas surgem nas fotos esporadicamente, quase perdidas em meio à grandiosidade da paisagem, sem nela encontrar guarida, apenas vagando a esmo. A relação de flaneur mostra a dimensão do deslocamento do homem urbano contemporâneo em relação ao mundo natural. Busca acolhimento sem, no entanto, nele encontrar seu lugar e sua plenitude. A divergência de atitudes entre as personagens das telas de Constable, que desenvolvem sua vida produtiva no seio da natureza, e as figuras nas fotos de Jaqueline, deslocadas de seu meio existencial, explicita a defasagem, a transformação sofrida, ao longo dos séculos, na interação homem-natureza.
Seguindo o motto de Constable, ao se referir à sua terra natal, I should paint my own places best, Jaqueline fotografa o lugar em que vive, as praias de Ipanema e Leblon, locais onde a natureza se faz presente, resistindo em meio à selva urbana. Fotografa a resiliência da natureza que viceja, apesar da destruição praticada por nossa sociedade, que já não se apercebe da sua importância para o bem-estar e a sobrevivência do homem.
Jorge Sayão
Rio de Janeiro, novembro de 2015
novembro 10, 2015
Trans por Victor Arruda
AGENDA RJ Hoje 11/11 às 19h: Victor Arruda @ Artur Fidalgo http://bit.ly/A-Fidalgo_V-Arruda-2015
Posted by Canal Contemporâneo on Quarta, 11 de novembro de 2015
Trans
VICTOR ARRUDA
Victor Arruda - Trans, Artur Fidalgo Galeria, Rio de Janeiro, RJ - 12/11/2015 a 11/12/2015
Venho há algum tempo refletindo a respeito das imagens recorrentes em meu trabalho. Objetos,(revólver,chave, buraco de fechadura, cigarro, faca, sapatos, maços de dinheiro,etc) partes de corpos que surgem, muitas vezes desconectados, decepados (olho, seio, pênis, cabeça, mão, braço, o coração "anatômico"...), situações envolvendo sexo e abuso de poder financeiro (como nas pinturas "Salário Mais Justo","Dr. Jorginho", "As Vítimas (que se fodam)" ou atitudes hipócritas (tanto nas questões pessoais "O Anjo de Irajá", "O homófobo Ingênuo", como sociais " Cena Carioca"). Sem falar dos "abismos", série em que as repetições reafirmam o sentido das obras.
Tenho pensado muito a respeito de como e por que razão volto aos mesmos signos, às mesmas cenas, situações... Seriam fixações neurótica e/ou tentativas - inconscientes - de escapar delas? Há uma teoria - freudiana - sobre sonhos recorrentes em pessoas que sofreram grandes traumas. Talvez algo semelhante ocorra na arte (pelo menos no caso de alguns artistas, como eu...). Mesmo que em situações muito menos graves - mas sérias o suficiente para causar perturbações.
Sou um artista contemporâneo e minha produção está ligada não apenas ao conhecimento da história da arte, que é o meu principal interesse intelectual, mas também à psicanálise.
Faço análise psicanalítica há muitos, muitos anos, e também leio bastante a respeito. Tenho assistido, como ouvinte, a muitos cursos e palestras, e alguns psicanalistas têm escrito textos sobre minhas pinturas, etc.
Essa PERMEABILIDADE tem sido importante e fértil para mim, e é nela que me apoio para aprofundar minha curiosidade a respeito das repetições obsessivas que percebo em meu trabalho.
É por acreditar profundamente que esse constante retorno tem influenciado no meu processo de amadurecimento e de transformação que resolvi criar esta nova série de pinturas, onde as imagens se repetem, mais uma e outra vez, iguais ou como se vistas em seu próprio espelho. No meu próprio espelho (de Alice, obviamente). E, espero, se reflitam no espelho próprio de cada um que as olhe.
A palavra palavra por Galciani Neves
A palavra palavra
GALCIANI NEVES
A palavra palavra, Galeria Carbono, São Paulo, SP - 11/11/2015 a 30/01/2016
Toda palavra foge de um poço chamado solidão. E, ao livrar-se desse lá no fundo, vai se modificando na língua (músculo do outro). Força limites, repete-se sem parar, teimosa e inevitável, como se nunca tivesse acontecido antes. Nem toda palavra dita é útil. As mais absurdas, intrusivas e assustadoras são mais comuns do que se imagina. Forjadas frescamente por um delírio, fermentam em vão ideias evocadas, acontecimentos deambulantes, desassossegos.
E toda palavra nua é um encontro de nadas. De um deslize sem rastro, atônito, entre vozes que não se deixam escrever. Vem daí a tarefa de sua investigação: traçar, a todo custo, sua origem. Toda palavra é útil: convenção entre os ruídos, é lembrança de um acontecimento nítido ou tradução de uma imagem instantânea, com passado e futuro, explicando o mundo desconhecido, para saber e para fazer saber. Toda palavra é desmesura, como se, naquele poço em que se aprofundou de muito em muito, no fundo do breu, deixando-se cair na dúvida, fosse levando restos de parede, roçando em dedos, complicando-se em partículas minúsculas para não mais se deixar compreender.
Nesses extremos, que definem os exercícios da palavra para referir-se às coisas, Jorge Menna Barreto infiltra-se para acionar uma espécie de antinomia da palavra – contraditoriamente, do individual para o universal, da singularidade própria de um que quer avançar para o todo e qualquer um que se encaixe, forçadamente, em uma dada categoria. O artista provoca o núcleo duro das palavras, recolhe, refaz, indistinguindo seus radicais.
Na Galeria Carbono, os trabalhos selecionados do acervo para habitar um conjunto não apaziguado convivem com suas “Desleituras”, título de um projeto de Jorge já vivenciado no 32º Panorama da Arte Brasileira (2011) no MAM-SP. Na ocasião, o artista desenvolveu palavras a partir da hibridização, mescla e sobreposição de termos e conceitos com o intuito de potencializar discursos e processos de percepção com o público acerca dos trabalhos da mostra em questão.
As desleituras são impressas em tapetes de borracha e se configuraram como dipositivos poético-educativos, como disparadores de conversas em visita a uma dada exposição. Sugerem uma subversão dos processos de mediação artística que, por vezes, pretendem “explicar” a obra, oferecer um discurso fechado ou assertivo. Segundo o artista, as desleituras flertam com os procedimentos presentes em textos críticos e estão em um território ambíguo: em pleno fluxo entre obra, exercício crítico e dispositivos de mediação.
A palavra é procedimento do artista para deslocar e expandir a pretensa pureza original dos trabalhos, o dito ponto crucial em que o pensamento pode construir reflexões sempre díspares acerca de cada poética aqui presente. Assim, propõe validades perceptivas e moventes e não verdades irreversíveis. As “desleituras”, processos erguidos a partir das poéticas de outros artistas, o que é muito diferente de sobre, realizam-se na dimensão do provável, do circundante e, ao mesmo tempo, através desses trabalhos.
Talvez convenha não arriscar a origem das palavras ao rés do chão. Ou melhor, arrisque-se. E nade em aparências. Elas vão nos trair. Caminhe com os pés esmagando as palavras, exaurindo-as em seiva. Avance, rasgando, esfaqueando a teia, que é o texto, tessitura da aranha, que se desfaz para construir sua casa-armadilha. Percorra, meio sem jeito, o outro lado desses casulos. Finque suas bandeiras de certeza. Sufoque-se nesse lugar movediço. São palavras – arcos com flechas direcionados para nós mesmos.
Galciani Neves, novembro 2015