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junho 25, 2015
Carlos Vergara - Uma segunda pele por Luisa Duarte
Carlos Vergara - Uma segunda pele
LUISA DUARTE
A arte nos aproxima daquilo que, antes dela, somente pressentíamos. É preciso haver o artista e o seu poder transformador para que uma segunda pele seja dada a um mundo antes opaco. Para que essa alquimia aconteça, é necessária toda uma delicada relação entre visível e inteligível, espécie de base estrutural da obra de arte. Entra em cena um olhar atento capaz de enxergar todo um universo onde parece haver somente um grão de areia.
A mostra Carlos Vergara - Sudários reúne trabalhos cujo denominador comum é o gesto de doar uma segunda pele – não idêntica à primeira, mas, sim, uma versão dela – para situações que antes estariam condenadas ao esquecimento, ao olhar apressado. Seja nas telas de grande formato, seja na instalação composta por centenas de sudários ou, ainda, nas fotografias – membrana que revela um determinado instante –, em todas as séries hoje reunidas a origem encontra-se no ato de gravar uma certa forma, cor ou paisagem, em um pedaço de tecido ou papel e, nesse mesmo lance, que mescla planejamento e acaso, dar-nos a ver um acontecimento poético inaudito. Um outro elemento reincidente no conjunto exposto é o da viagem. Foi necessário ir a campo, sair do ateliê, para que o que hoje temos diante de nossos olhos viesse à luz.
Se tais procedimentos criam elos, a escolha por trabalhos que possuem uma paleta rebaixada coopera para dar contiguidade à mostra como um todo. Quem conhece a obra de Vergara sabe que existem inúmeros momentos nos quais as cores vivas se sobressaem – amarelos, vermelhos, azuis apontam num movimento para fora. Aqui, ao contrário, intencionalmente há uma constante de tons mais escuros. No lugar da festa, o recolhimento, em vez do grito, o murmúrio. Mas, note-se, nesse território no qual a sobriedade de fundo melancólico supera a euforia, há, sim, lugar para surpresas.
Comecemos pelas pinturas que introduzem a exposição. Em “Boca de forno” e “Calor II”, temos dois exemplares da série de monotipias sobre lona realizadas pelo artista a partir de viagens até a cidade de Rio Acima, em Minas Gerais, onde se localiza uma antiga indústria proprietária de uma mina de limonita na qual se processa óxido de ferro para fabricação de tintas. Se o pigmento está no DNA de toda pintura, aqui ele é início e fim, e o que surge como acontecimento acolhe o acaso. A cada vez que a lona ou o linho pousam sobre determinado lugar, não se sabe exatamente o que irá acontecer depois dali, o inaudito está automaticamente engendrado no processo, a matriz necessariamente será desviada. Cabe ao artista, no caso dessas telas específicas, somente decalcar um ambiente que era ele todo uma pintura em potência, pois o processo de moagem do pigmento fazia com que tudo e todos ficassem tomados pelo pó-cor. Assim, a pintura mesma estava ali, “in natura”, cabia realizar essa apreensão e o seu descolamento para o “mundo da arte”.
“Incêndio” é uma cartografia de um acidente. Se mapas servem à compreensão objetiva de um espaço, aqui temos as coordenadas de um caos. Mapear o imprevisto significa dizer que o acaso faz parte da obra e dele depende para existir. A lona que pousa sobre estilhaços cristaliza no espaço a irrupção do incontrolável. O processo é paradoxal, pois o que se vê é a conciliação entre um tempo que retém e outro que é puro devir. Em “Incêndio”, conseguimos avistar ambos simultaneamente. Saber estancar a hemorragia das horas sem por isso tornar distante a experiência do que se passou é operação rara; destilar, filtrar um acontecimento, sem com isso torná-lo anódino, é essa preciosa simultaneidade na divergência, resultado de uma alquimia fina, que se vê diante da tela. O que um dia foi puro caos ganha prumo, sem que nessa mudança se perca de vista a vitalidade do acontecimento de origem.
Completa o conjunto de pinturas a obra “Muro Mole”, na qual mais um paradoxo interno está posto – a firmeza própria de todo e qualquer muro se desfaz, o artista retira o chassi e deixa o tecido mostrar-se em sua maleabilidade. Se os pigmentos puros estão no DNA da pintura, mais ainda está no muro, suporte das primeiras manifestações humanas conhecidas, as pinturas rupestres. Em “Muro Mole”, Vergara mais uma vez realiza uma operação a um só tempo simples e potente, a pintura de alguma maneira já existia antes, o gesto do artista é o de ir ao mundo munido de lona e pigmento, exercitar a escolha do lugar, decalcá-lo e revelar, comportando o acaso, o que antes era paisagem opaca, sem segunda pele.
Será contra a aceleração e em favor de um olhar mais lento e cuidadoso que parece nos falar a instalação que completa a exposição, na qual veremos cerca de 250 monotipias realizadas em lenços de bolso. Escrevo sem ter visto a obra montada, mas podemos arriscar enunciar algumas ideias contidas nesses trabalhos nomeados de Sudários. Mesmo ganhando escala em conjunto, suspensos no ar ou presos à parede de maneira sutil, todos são primos da delicadeza e pedem uma aproximação paciente. Resultado de viagens do artista para regiões tão diversas quanto São Miguel das Missões, Capadócia, Pompeia e Cazaquistão, cada lenço traz consigo diferentes tempos e espaços, bem como ritualiza uma repetição. Os lenços enunciam presenças ausentes, recordam que a matriz se encontra distante, mas trazem consigo um vestígio do passado, conformando assim uma memória.1
Interessa-nos aqui, ainda não tendo visto a instalação pronta, pensar essa obra e o seu processo de feitura em relação a uma contemporaneidade saturada de imagens que nos parece mais cegar do que enxergar e na qual corremos desenfreadamente, sem saber ao certo para onde vamos. Entre posts no Facebook e fotos no Instagram, o presente torna-se contínuo, fazendo com que o passado desapareça rapidamente e o futuro nunca chegue. A ação de viajar, ir ao encontro do que não conheço ou ao que não me é familiar, torna-se cada vez menos experiência do presente e mais registro apressado em imagens do que se passa, com o intuito de serem postadas para uma multidão de outros, conhecidos ou não. Uma vida sem passado é uma vida sem espessura, monolítica, no pior sentido do termo.
Os sudários de Vergara, no que possuem de tranquilidade na solidão, no que incluem momentos de parada, de olhar paciente, caminham na contramão desse modus operandi atual – um estado dispersivo, que nos enfraquece em nossas potências mais verticais, no qual o tempo do capital nos engole e nos tornamos espécies de zumbis ventríloquos. Na mão inversa dessa onda que nos carcome de maneira insidiosa, cada lenço, mesmo que sutilmente, torna-se um gesto de resistência diante desse cenário de liquefação da experiência existencial em seus desafios maiores.
Das grandes monotipias sobre tela aos sudários, existe sempre uma pressuposição de que ali, no mundo sensível, concreto, habita uma segunda pele, uma dimensão inteligível e espiritual, que pede para ser acordada de seu sono profundo. É justamente essa alquimia de um despertar que mescla acaso e planejamento, surpresa e intenção que nos é endereçada em “Carlos Vergara - Sudários”, uma exposição que solicita a cada um de nós um tempo mais lento e uma abertura para as entrelinhas e os murmúrios. Somente assim estaremos despertos, e não anestesiados, para o encontro com a arte e, num sentido mais amplo, para a vida além da sua opacidade mortífera. Cheguemos mais perto dessas obras, reside aí a chance de um princípio diferente do mesmo.
NOTA
1 Completam a exposição dezenas de fotografias em pequeno formato com os registros das ações que originam os Sudários, sublinhando assim a importância do processo para a obra como um todo.
A Reinvenção da Pintura: trechos do catálogo por Felipe Scovino
Trechos do texto assinado pelo curador Felipe Scovino publicado no catálogo da exposição A Reinvenção da Pintura.
Palatnik construiu a sua carreira como um autodidata. Com 4 anos, sai de Natal, em 1932, e segue com a família para a Palestina. Realiza seus estudos escolares e a seguir estudos de mecânica e física, especializando-se em motores de explosão. Frequenta um ateliê livre de arte e passa a ter aulas de pintura e modelo-vivo. Pinta principalmente paisagens, naturezas-mortas, retratos dos seus colegas, professores e familiares. Seus primeiros desenhos são feitos a carvão e impressionam pelo traço consistente e lírico. Nos seus primeiros anos dedicados à arte, a obra é figurativa. A reviravolta na sua obra acontece em dois momentos temporalmente próximos. Quando volta ao Brasil, em 1948, um dos seus tios cede o que seria o quarto do chofer da família para o artista. Esse cômodo, situado no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, transforma--se no seu ateliê. Provavelmente por conta de seus estudos envolvendo mecânica e física, assim como das aulas de arte e da sua inquietação natural, qualidade típica do inventor, e surpreendido pela falta de luz em seu ateliê, episódio que relata na entrevista publicada neste catálogo, Palatnik começa a produzir uma das obras mais importantes da arte cinética em dimensão mundial: o Aparelho cinecromático.
O segundo momento, que sem dúvida alguma tem uma relação intrínseca com essa obra, no sentido de iniciar e prolongar a sua pesquisa com o cinetismo, é o convite que recebe, ainda como pintor figurativo, de Almir Mavignier para visitar o Hospital Psiquiátrico Pedro II, sob a coordenação da dra. Nise da Silveira: “Mavignier disse que iria me mostrar o trabalho de uns colegas, e eu fui”. Os colegas, na verdade, eram os pacientes esquizofrênicos da dra. Nise, pioneira no uso da pintura e do desenho no tratamento psiquiátrico. Palatnik não entendeu como aquelas pessoas, especialmente Raphael Domingues e Emygdio de Barros, produziam imagens tão densas sem jamais ter passado por uma escola de artes: “Pensava que eu era um artista formado. Resolvi começar de novo. A disciplina escolar, de ateliê, não servia para mais nada”. Foi o momento de abandonar temporariamente os pincéis — porque o artista voltará ao uso da tinta no final dos anos 1950, ao realizar obras com tinta sintética sobre vidro —, mas isso não significou o abandono da pintura, como ressalta Mário Pedrosa: “A pintura de luz de Palatnik continua a mostrar seus encantos, a criar relações cromáticas sui generis”.
O fascínio pelo movimento do jogo de luzes, a relação simbólica com a estrutura do caleidoscópio — que o próprio artista ressaltou em texto — e por que não com o cinema, e o aspecto lúdico que o Aparelho cinecromático possui não podem mascarar uma importância que é singular nessa obra: não apenas marca o pioneirismo da arte cinética no mundo, mas essa invenção dialoga intensamente com a produção cinética na Europa e na América do Sul, particularmente na Argentina e na Venezuela, assim como amplia o conceito de pintura. Se a pintura atravessava novos procedimentos para a sua apreensão e comunicação ao estabelecer diálogos intensos com a performance nos anos 1950 e 60, como foram os casos do dripping de Pollock, as antropometrias (1960) de Yves Klein ou as ações performáticas-pictóricas de Niki de Saint Phalle, a ampliação do termo “pintura” em Palatnik se deu de forma delicada e silenciosa, mas nem por isso menos intensa e importante que a vivenciada por esses artistas. Não podemos esquecer a relação formal dos Cinecromáticos e dos Objetos cinéticos (produzidos a partir de 1964) com o campo escultórico.
Como relata o crítico Romero Brest nos anos 1950, “há quase cinquenta anos os artistas plásticos vêm fazendo esforços para adequar os meios materiais estáticos — pintura e escultura — a uma concepção vital e, portanto, espiritual que exige o espaço e o movimento como veículos de exteriorização emotiva”. O encontro com Mário Pedrosa acaba por lhe mostrar que a arte não tratava mais da representação, no sentido de intermediação entre o mundo figurativo e a realidade externa a essa realidade. A tese de Pedrosa sobre a natureza afetiva da forma na obra de arte narra que “não é a subjetividade que vai explicar a imagem mas é a imagem que vai nos dar acesso àquela subjetividade”, como acentuou Marcio Doctors. Quando passa a frequentar a casa de Pedrosa, participando (de poucas) das reuniões que incluíam o núcleo embrionário dos artistas que fundariam o Grupo Frente em 1954, do qual também fez parte um ano depois, dois acontecimentos marcam a trajetória artística de Palatnik. O primeiro é o conhecimento da Gestalt por meio do livro de Norbert Wiener emprestado por Pedrosa e das conversas que mantinha com esse crítico, e o segundo é o contato com Almir Mavignier e Ivan Serpa, parceiros de vida e cujos trabalhos, dentro daquele grupo, eram os que mais se aproximavam dos seus.
A pesquisa de Mavignier sobre arte concreta converteu-se numa intensa produção de cartazes, desenhos e telas, e, assim como sua proximidade com o design, criou um vínculo intenso com a pesquisa de Palatnik. Serpa era outro artista que tinha muito interesse na pesquisa sobre a Gestalt e em sua relação com a produção de arte concreta. Suas telas executadas durante o período do Grupo Frente e a sua produção ao longo do chamado neoconcretismo — apesar de não ter participado das exposições nem assinado o Manifesto — conduziam para um diálogo com Palatnik. Tanto Mavignier quanto Serpa foram pioneiros na pesquisa sobre op art no Brasil — no fim dos anos 1960, Serpa desenvolveria a série Op-erótica —, daí a singularidade dessas produções e da aproximação com o estudo sobre cinetismo feito por Palatnik. Uma maior falta de interlocução de Palatnik decorre tanto do âmbito tão particular da pesquisa que realiza quanto do desejo pessoal de se manter afastado de discussões teóricas sobre a arte. Ainda sobre o aspecto lúdico de sua obra, Luiz Camillo Osorio em importante ensaio sobre o artista associa o trabalho de Palatnik com o de Calder, cujas obras “nascem de gestos simples, de pequenos achados onde sobram graça e encantamento”. Esse ponto de contato se realiza porque a obra de Palatnik também é regida por uma economia de gestos e métodos e porque o mesmo pensamento pictórico habita sua obra, assim como a noção de magia ou ludismo que dela emana.
É importante destacar que Calder esteve no Brasil, seja expondo ou participando ativamente da vida social e artística nos anos de 1940 e 1950, e Pedrosa foi um dos críticos que mais escreveu sobre ele, enaltecendo portanto sua ligação com o Brasil. Osorio ainda acentua uma ligação desses artistas com o trabalho de Miró. Uma característica importante na constituição dessa ideia de ludismo — que aqui pretendo separar do riso fácil ou de uma interpretação rasa que pode ser dada pelo espectador — é o caráter de transgressão e coerência na obra desses artistas e a relação plástica que estabelecem entre geometria, paisagem e novas percepções para a pintura: estabelecem diálogos com pesquisas tão distintas quanto Cézanne, Picasso ou Tatlin. No caso de Palatnik há uma característica de revelar o artista como artesão, no sentido de que todos os elementos constituintes de suas obras são produzidos por ele, não há assistentes envolvidos. O ateliê mais parece uma oficina do que aquilo que imaginávamos ser o ateliê de um artista. Tanto em Calder quanto em Palatnik, seus ateliês cheiram a óleo lubrificante ao invés de tinta, apesar de ela também existir. O pincel é a luz (em Palatnik), a moldura é o ar (em Calder), e em ambos a paleta é uma gaveta recheada de porcas, parafusos, arames e metal.
As pesquisas artísticas envolvendo o cinetismo no Brasil eram quase inexistentes no final dos anos 1940 e no início dos 50. Além de Palatnik, outra artista de destaque nessa pesquisa era Mary Vieira, mas esse reduzido núcleo sofreu duplamente. Primeiro, porque os artistas moravam em regiões díspares e não está claro se naquele momento conheciam a pesquisa um do outro, e segundo porque o conservadorismo imperava de modo radical no campo das artes visuais. Mário Pedrosa sem dúvida era uma saudável exceção. Um exemplo desse conservadorismo, e ao mesmo tempo contrassenso, foi a recusa da 1ª Bienal de São Paulo em aceitar a obra do artista porque o primeiro Aparelho cinecromático (1951) não se encaixava em nenhuma das categorias regimentais da mostra. Palatnik acabou sendo convidado a participar porque houve a desistência da delegação japonesa, e ao final ele recebeu menção honrosa.
No final da década de 1940 há a criação dos primeiros núcleos de artistas abstratos no Rio de Janeiro e em São Paulo, o que provoca reações diversas de setores da produção artística brasileira. Di Cavalcanti alertava: O que acho, porém vital é fugir do abstracionismo. A obra de arte dos abstracionistas tipo Kandinsky, Klee, Mondrian, Arp, Calder é uma especialização estéril. Esses artistas constroem um mundozinho ampliado, perdido em cada fragmento das coisas reais: são visões monstruosas de resíduos amebianos ou atômicos revelados por microscópios de cérebros doentios. O abstracionismo nascente devia ser imediatamente rechaçado. É nesse ambiente hostil que começam a se formar as primeiras produções artísticas de ordem construtiva no Brasil. Em 1948, Mary Vieira realiza sua primeira escultura eletromecânica, Formas elétrico-rotatórias, espirálicas com perfuração virtual. Os Polivolumes são torres vazadas, feitas em alumínio anodizado, formadas por semicírculos móveis em que o espectador, agora transformado em participante, escolhe a posição destes. Essas estruturas são móveis apenas no sentido horizontal. Aparelho cinecromático e Polivolumes acabam por antecipar, por exemplo, as questões participativas que estarão presentes, guardadas as suas devidas especificidades estéticas, políticas e artísticas, em um primeiro momento nos balés neoconcretos de Lygia Pape e posteriormente nas experiências pós-neoconcretistas de Hélio Oiticica e Lygia Clark. Se nos Aparelhos cinecromáticos e nos Objetos cinéticos o movimento e a participação se dão de forma autônoma em relação ao espectador — o que não acontecerá nas suas pinturas de matriz construtiva, já que a mobilidade do espectador frente a elas causa uma redimensão da ideia de movimento, dinâmica, e confronta a suposta rigidez que uma pintura teria —, os Polivolumes anteciparam de certa forma questões encontradas nos Bichos (1959-1964) de Clark.
Nesses dois últimos exemplos, a obra é o molde para a nossa vontade. A questão da decisão sobre a forma do objeto passa a ser do participante. Na obra de Palatnik percebemos a influência (leia-se a chegada tardia) da modernidade no Brasil, e em particular do construtivismo. Ao mesmo tempo, sua obra nos revela os pontos de fuga (e aqui em confronto mais direto com a rigidez do Manifesto Realista) e a contribuição que a arte brasileira ofereceu para o mundo no seu mais alto grau de invenção.
Entrevista do curador Felipe Scovino com Abraham Palatnik
Entrevista realizada em dezembro de 2012, publicada no catálogo da exposição A Reinvenção da Pintura.
FELIPE SCOVINO - Considero a sua obra como a trajetória de um pintor. Desde a pintura com luzes dos Aparelhos cinecromáticos aos veios dos trabalhos com jacarandá, passando pelos Relevos progressivos feitos com cartões, até as séries mais recentes. Como avalia esse posicionamento?
ABRAHAM PALATNIK - Eu sempre me considerei um pintor, embora ao longo do tempo eu tenha mudado radicalmente a forma como a pintura aparecia. Muitas vezes eu realizava os Aparelhos cinecromáticos e os Objetos cinéticos com a pintura.
FS - Um dado altamente relevante na sua obra é o diálogo estabelecido entre tecnologia e intuição, e como o experimentalismo e a organicidade sobrevoam a sua trajetória. Quer dizer, dois dados aparentemente ambíguos encontram uma simbiose perfeita. É claro que a ciência não é puramente objetiva, e a sua obra nos alerta justamente para esse desvio.
AP - Eu gostava muito de experimentar várias técnicas, realizar trabalhos com motores e articulações. Não considerei a pintura especificamente como uma finalidade absoluta. Sempre estive associado ao movimento no espaço.
FS - É interessante, porque percebemos na sua obra que a ciência elabora também uma subjetividade, e essa característica de certa maneira acaba desenvolvendo a participação do espectador. Por exemplo, a série W nos oferece um intenso diálogo com o deslocamento do espectador assim como da obra. Um movimento duplo.
AP - Não era essa a minha intenção, mas acontece que o espectador também se emociona, quer participar e fazer alguma coisa. A intuição é um fator predominante, porque na hora de fazer um trabalho ela sempre interfere.
FS - As obras advêm de projetos que ficaram guardados durante muito tempo e apenas posteriormente puderam ser realizados? Há estudos para todas as obras?
AP - Não. Alguma coisa eu projetei, mas outros [estudos] foram modificados durante a produção do trabalho. Mas normalmente eu não planejava. Por exemplo, veja o caso das hastes [dos Aparelhos cinecromáticos ou Objetos cinéticos] que constavam no estudo: à medida que vou produzindo a obra e de acordo com o espaço, eu vou modificando as suas dimensões. No caso das séries de pinturas com ripas de madeira, essas características de não haver um projeto são mais fortes. Pinto telas abstratas que servem como “modelo” para as pinturas da série W. Passo para um segundo estágio que é o corte das réguas com cores e formas próximas às das telas que serviram como modelo. Na etapa seguinte, fico trabalhando as réguas para frente e para trás, [“desenhando” o futuro trabalho]. As cores correspondem aos ângulos [da “pintura matriz”], as faixas podem corresponder, mas na hora da produção final, tudo pode mudar. Portanto, eu faço os projetos, deixo amadurecer um pouco e assim surgem as possibilidades de modificar uma coisa ou outra. A ideia de cada Objeto cinético é uma constelação que é mais ou menos prevista, e a partir disso vou construindo, apesar de que ocorrem durante a construção modificações no plano original. Eu vou mudando o comprimento [das hastes] e o tempo de oscilação. Isto é muito cerebral, porque parece que é algo simples de realizar, mas existem muitas conexões e articulações que precisam ser coordenadas para que a obra funcione.
FS - Quais foram as suas referências artísticas nos primeiros anos de produção? O que lia, viu, ou quais foram os artistas que o influenciaram naqueles anos?
AP - Não creio que sofri influência direta das correntes artísticas que predominavam à época. Quando faltava luz no meu pequeno estúdio [em Botafogo, no fim dos anos 1940] usava velas para me locomover no espaço. Foi isso que me deu a ideia de trabalhar com luz. Logo depois comprei umas lâmpadas, comecei a ver as sombras e a luz vencendo obstáculos. E a atividade foi se desenvolvendo. Chamei o Mário Pedrosa ao ateliê e ele me disse que eu estava indo muito bem. Isso me deu muita energia para prosseguir. Fiz um “trambolho” enorme [o primeiro Aparelho cinecromático] com lâmpadas colocadas em cilindros que giravam. Usava celofane colorido pra mascarar algumas partes do cilindro, como também conseguia realizar movimentos horizontais e verticais.
FS - Voltemos um pouco no tempo. Como era o ambiente cinético na arte brasileira nos anos 1950? Lembro-me da Mary Vieira, do Sérvulo Esmeraldo, para não falar nos mais citados pela historiografia como Maurício Nogueira Lima, Geraldo de Barros, Ivan Serpa, Sergio Camargo, Lygia Clark,Lygia Pape e Waldemar Cordeiro, entre outros participantes do Grupo Ruptura e do Neoconcretismo. Em que medida havia (ou não) uma troca entre vocês? Como foi a recepção da crítica nas décadas de 1950 e 60?
AP - Nós nos encontrávamos de vez em quando, mas eu participei de poucas reuniões [do Grupo Frente e posteriormente dos neoconcretos]. Isolei-me porque a minha ideia era o movimento, o que para eles não significava nada. Eu queria um movimento real nos trabalhos. Ainda não sabia como fazer isso, e foi quando me instalei no ateliê na Praia de Botafogo.
FS - Isso quando voltou da Palestina?
AP - Sim, eu fui para lá nos anos 1930, ainda criança. Na hora de voltar para o Brasil, a guerra estourou, o Mediterrâneo estava minado. Meu pai queria voltar para o Brasil, mas não havia possibilidade. A única saída era ir para a África, de lá talvez encontraríamos um meio de voltar, mas depois meu pai desistiu. Ele achava que a guerra duraria pouco, mas não foi o que aconteceu. Quando voltei ao Brasil, nos instalamos no Rio e um tio meu cedeu um quarto, que era reservado para o chofer — que por sinal ele nunca teve — para que eu usasse como ateliê. Lembro-me que um dia, um vizinho chegou a chamar a polícia.
FS - Por quê?
AP - Porque eu estava mexendo com luzes, arames, e ele achou que eu era um terrorista.
FS - Esse era o primeiro Aparelho cinecromático?
AP - Sim, me deu essa ideia de fazer alguma coisa em movimento, ainda era com cilindros, umas polias e uma série de artifícios. As ligações eram feitas com barbante, porque eu queria experimentar, mas também sabia que não poderia finalizar com barbante. E o vizinho, com uma luneta, de vez em quando olhava para o quarto, estranhou o que eu fazia e resolveu chamar a polícia.
FS - Imagino que por volta desse período tenha surgido o primeiro contato entre você e Mário Pedrosa. Como ele chegou até você?
AP - Nós nos reuníamos muito na casa dele. Ele era um intelectual com interesse não só em arte, mas na política. Lembro-me que quando chegávamos à casa — eu, Almir Mavignier, às vezes o Ivan Serpa —, os interlocutores do Mário que dialogavam sobre política iam embora. Eles sabiam que o Mário, independente de política, do seu interesse pelos partidos políticos, também se interessava por arte. Conversávamos muito, e certa vez ele me emprestou um livro sobre a Gestalt, de Norbert Wiener, e naquela época ninguém falava nisso, mesmo entre os artistas. Ele me disse para ficar com o livro porque ele tinha outros. Mário me disse que era muito importante acompanhar o que estava escrito naquele livro. Eu li com cuidado e realmente me abriu um pouco os horizontes, as ideias foram clareando então.
FS - E a participação na 1ª Bienal de São Paulo aconteceu logo em seguida?
AP - Como disse, estava no meu ateliê realizando o trabalho mas não tinha a menor ideia do que aconteceria. Enfim, eu completei o trabalho e na hora chamei o Mário Pedrosa, e ele gostando do que viu disse: “manda isso pra Bienal”. Eu tive que quebrar uma parte da parede para tirar a obra do cômodo. Enviei a obra, mas a Bienal disse que não poderia ser aceito porque não se enquadrava em nenhuma das categorias. Não era pintura, nem desenho, nem gravura e nem escultura. Enfim, não cabia no catálogo. Não havia como participar da Bienal.
FS - O trabalho permaneceu em São Paulo?
AP - Sim, mas logo depois encontrei o Mavignier que me disse que a obra participaria da Bienal porque a delegação do Japão não viria e a organização da Bienal resolveu aceitar o Cinecromático. Foi uma sorte. Lembro-me que o Frans Krajcberg trabalhava como assistente na Bienal e ficou encarregado de tomar conta da obra, porque havia uma engenharia complicada para ligá-la. O Krajcberg arrumou cadeiras, uma sala escura, e quando cheguei à Bienal fiquei bem contente. Quando a comissão da premiação visitou a minha obra, o Mário me ligou e disse que eles tinham gostado e que a obra poderia inclusive ser apresentada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Mas claro que não poderia, porque era tudo muito improvisado. Os mecanismos eram toscos. Eu tinha arrumado um ventilador, tirei tudo dele: as aletas, grades, o suporte etc. Usei só o mecanismo oscilante dele para acionar as varetas com cilindros, de maneira que estava funcionando precariamente. Eu pensei que esse mecanismo não duraria, mas durou o tempo todo da Bienal. O barbante não rompeu, foi até o fim.
FS - Como foi o convite para participar do Grupo Frente? Os artistas se reuniam na casa do Pedrosa?
AP - Não, eles se reuniam sozinhos e começaram a discutir teorias, e aí eu disse que aquilo não era comigo. Se apegar a teorias? Não! Participei de umas duas reuniões, mas já estava com a ideia formada de tentar o movimento, e eles naturalmente nem pensavam nisso. Então eu me afastei deles, mas continuávamos amigos. Lembro que certa vez encontrei o Ivan Serpa na rua e ele me disse: “Virei um pintor moderno”. E eu fiquei me perguntando o que era um pintor moderno.
FS - Parece-me que a sua posição foi sempre estar à margem ou a uma distância segura dos debates mais oficiais sobre a formação e produção do abstracionismo geométrico no país. Foi nesse sentido que você preferiu não assinar o Manifesto Neoconcreto? Porque há fotos em que você aparece na casa de Pedrosa e me parece que havia um comprometimento com aquele grupo.
AP - Ainda em relação ao Grupo Frente, recebi o convite da turma, participei de algumas exposições, mas em outras eu dei uma desculpa e não participei mais. Com relação ao Manifesto, eu não participei porque não tinha interesse no envolvimento com a teoria.
FS - Como se deu a sua formação como artista? Nos anos 1950 e 60 não havia revistas, e poucos catálogos de arte chegavam ao Brasil ou eram produzidos por aqui. A Bienal de São Paulo era a grande fonte de pesquisa para os artistas, e imagino que no seu caso não tenha sido diferente.
AP - A formação começou na Palestina. Ingressei em uma escola de pintura, que era livre, e os exercícios eram desenhos a carvão. Os colegas se revezavam, e eu também servia de modelo. Lembro que esses desenhos com carvão, a gente apagava com pão.
FS - Teve alguma aula de arte no Brasil? Frequentou cursos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro?
AP - Não, excetuando aquela escola em Tel-Aviv, fui um autodidata.
FS - Havia algum tipo de troca entre os artistas sul-americanos que tinham a arte cinética ou op art como suporte? Estou me referindo principalmente aos brasileiros, argentinos e venezuelanos, países em que o cinetismo teve uma grande circulação e produção.
AP - Quando expus com a Denise René, nos anos 1960, entrei em contato com esses artistas e visitei o Cruz-Diez lá em Paris. Até hoje, tenho encontros esporádicos com ele e com o Julio Le Parc. Recentemente ambos estiveram no Rio e encontrei-os.
FS - Imagino que Yaacov Agam ainda era um estudante quando você estava na Palestina, mas havia artistas trabalhando com arte cinética durante o período em que morou naquele país?
AP - Não havia artistas que se dedicavam à arte cinética. Encontrei o Agam anos depois, em Paris. Ele me levou para o seu ateliê e fiquei impressionado. Era uma fábrica. Havia várias pessoas trabalhando para ele, algo que para mim era inconcebível, pois sempre trabalhei sozinho.
FS - E complementando, quando e de que forma a marchande Denise René tomou conhecimento da arte produzida no Brasil? Imagino que os artistas brasileiros que moravam em Paris e tinham relação com o cinetismo, como Lygia Clark e Sergio Camargo, foram importantes para esse movimento.
AP - Parece que ela esteve aqui. Quando estive em Paris ela me convidou para participar da exposição internacional de arte cinética Mouvement 2, em fins de 1964 e início de 1965. Ela havia conhecido a minha obra na Bienal de Veneza, em 1964.
FS - Voltando para tempos mais recentes. Por que a escolha pelas letras W e K e a consequente numeração posterior? E eles também não obedecem a uma construção em ordem crescente, mas aleatória, me parece.
AP - Não há razão. Nem sempre a ordem reflete a temporalidade ou a ordem de produção das obras. Às vezes, fui fazendo trabalhos e não dava número. Assinava e datava posteriormente.
FS - Nas séries K e W há uma escolha cromática de difícil conciliação, mas no seu caso ela opera de forma magistral. A impressão que tenho é que todo o esforço é no sentido de operar dinâmica, trânsito. As pinturas estão constantemente em movimento. E uma das grandes diferenças em relação a outros artistas cinéticos é a inserção de uma “tecnologia barata”, ou então, podemos entender que a sua “tecnologia de ponta” é permeada por barbante, vidro, cartão. Materiais baratos que são encontrados de forma abundante no comércio.
AP - Eu sempre trabalhei com o que tinha à mão. O primeiro Aparelho cinecromático é um exemplo disso. É uma tecnologia inventada por mim, porque foi algo novo, não era conhecido. Fiz no total 33 Cinecromáticos, e alguns deles ao longo do tempo foram desmontados, as peças foram reutilizadas. Os comandos dos primeiros Cinecromáticos eram feitos também com pregos, uma tecnologia muito precária.
FS - Duas características me impressionam bastante na sua obra. Primeiro,o caráter de coerência, o pensamento pictórico e os gestos precisos e em muitos momentos econômicos com que produz as suas obras. E a segunda característica é a forte aparição do artista como artesão: não há assistentes, tudo é produzido por você, inclusive as ferramentas, em determinados casos, se não estou enganado. O seu ateliê parece mais uma oficina do que aquilo que imaginamos ser um ateliê (de pintura). Cheira a óleo lubrificante em vez de tinta, apesar de ela também existir. O seu pincel é a luz e a sua paleta é uma gaveta recheada de porcas e parafusos.
AP - Exato, [ainda] tenho os pincéis, que raramente eu usava. Tornei a usá-los com o início das novas séries de trabalho [notadamente a série das cordas e a W].
FS - Há uma diferença radical em como construía as suas pinturas por meio das ripas de madeira e como elas são feitas hoje em dia. Agora elas são cortadas a laser, e nos anos 1970 a prática era feita de forma quase artesanal, por você, no ateliê.
AP - No começo eu tinha a necessidade de cortar as ripas com uma serra de fita. As ripas possuíam várias espessuras e eu as manuseava em cima da mesa. Naquela altura, trabalhava em apenas um cômodo da casa [refere-se à casa atual, também localizada no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro]. Ainda não tinha avançado pela casa, como foi sendo feito aos poucos. À medida que as experiências deram certo, finalmente cheguei à sala [o seu espaço de trabalho aumentou], arrumei dois suportes e uma chapa bem grande para dispor as pinturas. Eu subia numa cadeira e consegui ter a possibilidade de realmente ver de perto e de longe, os cortes feitos com a serra de fita.
FS - E como aconteceu a mudança para o laser?
AP - Queria que alguém cortasse isso, em vez de eu cortar. Ganhei em tempo e precisão. Isto aconteceu há cerca de 8 anos.
FS - Mas antes de chegar às ripas, você pinta com acrílica sobre Duratex que serve como uma espécie de modelo para a etapa posterior. Essas pinturas são fatiadas?
AP - Quando descobri que o raio laser cortava [as ripas] perfeitamente, deixando as bordas certas, [foi algo muito bom] porque as chapas eram cada vez maiores e o trabalho de serrar em casa já não dava certo. Mas fiquei acompanhando o corte deles por uns 2 meses, porque [a empresa] nunca tinha feito aquele tipo de corte. No começo eram umas tiras mais largas, mas aos poucos cheguei ao mínimo que eu precisava. O tipo de espessura que precisava — mais fina — seria mais complicado de conseguir se não fosse o laser.
FS - Depois que recebe a chapa “fatiada”, você move essas ripas?
AP - Sim, ela chega com cortes no topo e na base. No ateliê, eu emendo, corto na altura do topo, coloco uma fita crepe antes de cortar porque senão embaralha tudo. E assim eu comecei a manusear a chapa, realizando [ou alterando] a sequência das ripas, uma a uma, até sair uma coisa perfeita.
FS - Acho interessante que nas pinturas existe uma relação entre cores que em outras circunstâncias brigariam entre si, seriam forças antagônicas, colidiriam entre si, e no seu trabalho, pelo contrário, há uma harmonia e não conflito. Esta é uma característica que distingue a sua obra, por exemplo, dos concretistas suíços ou alemães, que exigiam a ideia de um projeto, de uma rigidez na execução das obras, tanto do ponto de vista prático quanto do teórico. E na sua série W quase sempre são formas de ondas impressas nas telas, ou estou enganado?
AP - Nem sempre são formatos de “ondas”. Às vezes mudo de acordo com o elemento, vou manipulando as peças aos poucos e aí surgem as formas. O que é mais predominante vai se isolando do resto. Às vezes eu começo a trabalhar a partir do meio, surgem as possibilidades e aí eu termino.
FS - Parece que as pinturas estabelecem uma continuidade extramoldura.
AP - Não, eu termino as pinturas com uma característica bem clara, que é um final de um lado e um final de outro.
FS - O movimento em suas obras é delicado, preciso, mínimo e lento, especialmente nos Aparelhos cinecromáticos e nos Objetos cinéticos. O que acho curioso é que essa qualidade de tempo cada vez mais se perde nos tempos atuais. Há uma espécie de suspensão de tempo e espaço sendo provocada pelas suas obras. Vivemos cada vez mais cercados de informação e num transbordamento de imagens em que o excesso revela o lado paradoxal dessa “torrente tecnológica”: a desinformação ou o afogamento em dados inúteis. Percebemos consequências graves como a banalização da imagem, e é nesse momento que o seu trabalho se coloca. Parece-me que ele opera exatamente contra essa automatização.
AP - Não saberia dizer se meu trabalho opera dessa forma. No caso das pinturas, às vezes as obras possuem um centro mais agressivo e finalizam num ritmo suave. O que eu sempre procuro é centralizar os movimentos mais no meio e expandir para as bordas. Esta parece ser uma característica que sempre sigo. No caso dos Aparelhos cinecromáticos e dos Objetos cinéticos, é outra dinâmica. Eu me esqueço completamente da ideia inicial e vou executando as conexões, as articulações, para conseguir o que procuro.
FS - E essas duas séries possuem movimentos mais precisos, mais lentos. Remetem-me a uma ideia de dança.
AP - Não sei se é balé...
FS - Há um ritmo mais cadenciado e ao mesmo tempo o meu olhar se desmembra, ele percorre vários lugares ao mesmo tempo.
AP - É isso o que procuro.
FS - Como foi a transição da pintura figurativa para os Aparelhos cinecromáticos? Penso que o contato com Raphael Domingues e Emygdio de Barros, assim como com a dra. Nise da Silveira no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, foi vital para essa transição. Mas o que efetivamente aconteceu para que esse desligamento com a figuração e não com a pintura acontecesse? Uma dúvida: eles nunca tiveram qualquer acesso a livros de história da arte?
AP - O Raphael, durante sua juventude, me parece que teve uma experiência em um liceu. Ele já tinha uma relação com a arte. Era esquizofrênico, perturbado, mas seus desenhos eram fantásticos. Fiquei muito impressionado com os trabalhos deles. Admirava muito. E durante algum tempo realmente abandonei a pintura. Eu disse: “Bom, tudo o que eu faço é uma porcaria, não vou fazer mais”. E abandonei mesmo os pincéis e as tintas e fiquei assim por uns 2 meses. Fiquei perturbado demais, mas tive um contato com o Mário [Pedrosa] e expliquei a ele o meu drama: “O que farei agora? Não tenho mais condição de fazer a pintura”.
FS - Mas qual foi o motivo desse choque, o que impressionou tanto?
AP - Porque eles não tinham aprendido nada na escola, não frequentavam ateliês, e de repente surgem imagens tão preciosas. De onde surgiu essa força interior? Não vou mais pintar porque minha pintura não valia nada, era uma porcaria. Mas o encontro com o Mário Pedrosa foi crucial, importante. Percebi que ele não era só político, tinha muitas ideias interessantes. Ele me deu o livro sobre a Gestalt. Eu lia aquilo com cuidado e percebi que tinha um potencial para fazer algo.
FS - E essa condição do artista como artesão, inventor, se reflete no espaço da sua casa. Alguns dos móveis foram feitos por você. Como se deu essa divisão e ao mesmo tempo associação entre o ateliê de artista e a área de design e indústria? Lembro que durante muitos anos você dividiu uma fábrica com o seu irmão. Havia um desejo de tornar a arte pública? Você poderia descrever o que era produzido por vocês?
AP - Foi a necessidade de me sustentar. São duas situações diferentes. Na década de 1950 fundamos, eu e meu irmão, a fábrica Arte Viva, que produziu os móveis com as pinturas feitas com vidro. Depois de feitos pelos operários, eu pintava os vidros dos móveis. Na década de 1970, também com meu irmão, começamos uma produção industrial dos objetos de design e de utilidades, em larga produção, que tinham animais, por exemplo, como tema. Era a Silon.
FS - Era você quem projetava e desenhava tudo para a Silon?
AP - A maioria fui eu. Na Arte Viva, eu fazia os desenhos dos móveis: cama, armário, mesas, cadeiras, enfeites. Tudo era feito por mim. Contratávamos pessoas que já trabalhavam na parte de marcenaria e executavam exatamente o que eu desenhava. As pinturas em vidro começaram durante a Arte Viva e portanto passaram a ser inseridas nos móveis. No caso dos objetos de design, conseguimos uma importadora que fez com que o trabalho tivesse uma aceitação imensa, brutal no mundo. Não tenho ideia de quantas peças foram produzidas, se bobear foram mais de 1 milhão de peças em 20 anos de atividade. Isso durou até 1995, aproximadamente.
junho 24, 2015
Ascanio MMM, racionalidade orgânica por Guilherme Bueno
Ascanio MMM, racionalidade orgânica
GUILHERME BUENO
Ascânio MMM - Flexos e Quasos, AM Galeria de Arte, Belo Horizonte, MG - 29/06/2015 a 25/07/2015
O conjunto de trabalhos expostos por Ascânio MMM na Galeria de Arte AM sinalizam uma nova questão em suas pesquisa artística de cinco décadas. A geometria – que para o artista sempre existiu como um sistema (um procedimento organizado e aberto de articulação de questões), nunca um dogma – assume certas estruturas “moles”, resultantes de discretos (porém efetivos) achados incidentais, capazes de tensionar a malha rígida do alumínio em curvas e torções em que a presença física do material se entrelaça a um arabesco de planos e volumes reais e virtuais.
A incorporação de elementos como o espelho em uma das obras, o uso comedido e preciso da cor em certos perfis e o jogo travado entre o plano da parede – onde algumas peças se instalam – a transparência do volume que admite a existência dessa mesma parede, ao invés de ocultá-la, bem como o transbordamento para o espaço explora de tal modo a relação volumetria x ”pictorialidade”, que convida-nos ainda a pensar como Ascânio soube, tomando de empréstimo um dado mais próximo à pintura (a cor), aprofundar uma questão manifesta em trabalhos de décadas anteriores.
Pensemos em suas esculturas brancas: nelas se priorizava uma luminosidade que ressaltasse a concretude do volume plástico – a “solidez escultórica”, em uma palavra. Em obras posteriores, quando a cor natural dos materiais passa a ser privilegiada, acentuava-se não só carnalidade daqueles, mas também se integralizava com franqueza a dinâmica modular desenvolvida, valorizando as graduais secções combinadas de volumes ou sua repetição “arquitetônica”.
Temos nos trabalhos de agora um cruzamento dessas duas abordagens capaz de explorar ora avanços e cortes empreendidos pela cor, ora momentos em que a cor ensaia “prensar” bidimensionalmente alguns volumes e, por conta disso, alterna a profundidade de volumes reais (o prisma gerado pelos módulos) e virtuais (o espaço interno dos mesmos e os outros pequenos prismas formados pelas dobras da malha metálica), como se percebe, por exemplo, na haste vermelha que retorna uma das peças para a parede, ou o uso do espelho para paradoxalmente negar e afirmar a virtualidade da parede de suporte da peça, fazendo com que o reflexo da malha fure visualmente a mesma e crie uma profundidade que, em meio ao caos ordenado de planos que se acumulam, presta homenagem à perspectiva renascentista.
Há duas questões que parecem se afigurar como chaves da concepção de escultura de Ascânio: a primeira é sua ênfase em preservar – mesmo (ou justamente por conta) empregando frequentemente materiais industriais – uma certa artesania do trabalho. Em outras palavras, não quer dizer que ele ainda precisa serrar perfis metálicos, mas que ele identifica nos gestos construtivos de uma peça (o aparafusar mais ou menos frouxo, a adição de mais uma fileira de módulos, o interesse pela luminosidade comparada entre o estado natural de um material ou da sua condição espacial quando adicionada a cor) brechas intuitivas para uma empiria produtiva, como se, a título de comparação, ele agisse como um arquiteto que não delimita a obra a seu projeto, mas admite em sua execução que novas soluções possam se desenvolver. Em se tratando de sua trajetória profissional – que, aliás, passaria alguns anos concentrada na arquitetura – poderíamos pensar que ele interessou-se não apenas pela questão da escala dada pelo modulor corbuseano, mas igualmente pela franqueza orgânica e sincera do emprego dos materiais em Fran-Lloyd Wright. Esse parece um dado essencial para chegarmos a segunda questão, a de como tais princípios lhe permitem uma abordagem livre da geometria.
O artista, cedo se interessou por problemas como a participação do espectador (como se observa em suas primeiras realizações – a exemplo das caixas) e uma atitude mais fenomênica da geometria, como testemunharia no neoconcretismo, atento inicialmente às multiplicações morfológicas dos Bichos de Lygia Clark (como ele mesmo afirma) e, a meu ver, mesmo que menos diretamente, em Amílcar de Castro (pelo modo segundo o qual a forma desenvolve-se atenta a sua existência física no espaço relacionada a sua explícita materialidade) ou ainda, em uma abordagem mais genérica, na percepção de como os artistas daquele movimento foram capazes de aprofundar uma questão de espacialidade (mesmo que, no caso deles, na maioria das vezes, pictórica) e ajuste de planos por uma redução cromática extrema. No entanto, como observa-se mais a frente em seu percurso, Ascânio revelara a mesma disponibilidade frente a geometrias “desviantes” e construtividades como a de Arthur Piza, indóceis a uma atitude pré-determinada e programática. Assim, se ele atentara para a geometria, jamais isso se dera nele arraigado a vinculação a um programa. Ou seja, a geometria não existe mais como um imperativo semântico que carrega consigo a mensagem de uma superação do passado, como inevitavelmente se passara na abstração racionalista dos anos 1950.
Com isso, quando dissemos acima que ela não lhe vem como algo apriorístico, é justamente porque ele não partiu da geometria, vendo-a como algo absoluto – princípio e fim de toda a visualidade – , outrossim compreendendo-a como o melhor modo de delimitar o campo de suas questões plásticas e tectônicas. Indo além, o entrelaçamento desta com os materiais, ao invés de promulgar uma eulogia mitificante e nostálgica de uma “era de ouro” perdida (como se nota regularmente em certa produção contemporânea acomodada em uma elegia de nosso passado construtivista, revestida de certa auto-indulgência), entende que o nó mais interessante na relação entre material e forma pode se dar na ambiguidade do material negar a reificação da geometria (e vice-versa) ou, ao contrário, que a geometria acentua a potência física e ótica do primeiro, ao conter qualquer (falsa) impressão de efeito virtuosístico na consecução dos volumes. A beleza desse princípio – para além, é óbvio da beleza clara das obras – é dele ser bem sucedido justamente em alcançar para o que seriam objetos ou materiais “frios” e impessoais como o espelho e as peças de alumínio uma organicidade ímpar (sem recorrer a nenhuma simulação de “manualidade”), adquirida naqueles manejos construtivos a que Ascânio se permite investigar no seu ofício cotidiano de ateliê.
junho 20, 2015
Sem querer abarcar toda a água que nos cerca por Marta Mestre
Sem querer abarcar toda a água que nos cerca *
MARTA MESTRE
Em sua última exposição (Galeria Pilar, São Paulo, 2014) Mauricio Adinolfi apresentou um conjunto de telas intitulado “Mangue” com uma representação vegetal colorida, mas que a dado momento o artista cobriu integralmente com um “brilho metálico da tinta prata”, tendo sido assim apresentadas na galeria.
Segundo o artista José Spaniol que assinou o respectivo texto, o gesto de Adinolfi “sufocava” a representação, e trazia para primeiro plano “as veladuras, as lacas, os vernizes, o pigmento prata sobre óleo”, isto é, um conjunto de propriedades materiais que opacificavam ou anulavam a primeira referencia à natureza.
Ainda que a superfície prateada com que Adinolfi cobriu as telas de “Mangue” não tenha anulado completamente a fatura da primeira pintura, e isso veio a constituir um elemento expressivo para o conjunto, havia naquela ação uma “recusa” da representação, ou certa recusa do gesto precedente. Este “impasse”, creio, apontou novas direções (não unívocas mas complementares) para Adinolfi continuar a fazer “pintura”, para além da pintura.
Estas novas direções não são de agora. Já nos anos 40 C. Greenberg referindo-se a Mondrian insistia na “presença física” da pintura, que contrapunha ao ilusionismo albertiano da janela na parede. A ênfase na “presença física” ajudava a pensar as relações, cada vez mais intercomunicáveis, entre pintura e escultura, em especial suas trocas de função, e simultaneamente consolidava a tese da “morte da pintura” (já anteriormente defendida por Malevich).
Posto isto, começaríamos por dizer que, tal como em “Mangue”, alguns gestos e opões de Maurício Adinolfi continuam a performatizar debates e impasses que a disciplina da pintura enfrentou e (ainda) continua a enfrentar, em especial, a questão do seu “fim”.
A série “Outburst” (2007), é disso exemplo. Nela o artista, auxiliado de ferramentas elétricas, diferentes brocas e instrumentos de corte, perfurava superfícies da madeira, criando diversas formas, como animais ou elementos lineares. Para além de um investimento físico do corpo, a ação aparentemente inócua de desenhar tinha um risco e um descontrole que punha em causa a idéia de figuração, levando Adinolfi, num salto interpretativo, a rapidamente “abandonar” o pensamento plástico para investir sobre a materialidade e espacialidade. Como Adinolfi referiu a propósito deste trabalho: “[era uma] combinação entre conhecimento, força bruta e elétrica, refletindo a ação como uma forma de pensar, onde o exercício intelectual e muscular se mostra em potência e instante na constituição do trabalho”.
Julgo que os dois momentos acima referidos – “Outburst” e “Mangue” –, em seu intervalo de sete anos, nos ajudam a entender a proposta que agora Adinolfi nos traz, e os impasses críticos que a sua pintura alimenta. Através de procedimentos “contra” a superfície e “contra” a representação Adinolfi atualiza a genealogia crítica da pintura (lembrando as ações de Fontana), mas abre espaço para entender a pintura operando por subtração (e não por adição) aproximando-se da escultura e da instalação, como aquela que agora nos traz.
“Calafate, um homem é um barco”, o seu mais recente projeto, guarda relação com as intervenções realizadas pelo artista em regiões litorâneas de rio e mar, em especial ações colaborativas e coletivas que envolveram as comunidades locais (“Cores no dique”, 2009-13; e “BarcoЯ”, 2013), mas ao contrário destas não se configura como uma “escultura social”. Aqui o artista não está preocupado em expandir a pintura ao quotidiano das populações ribeirinhas e “construir” uma troca de sentidos e experiências, mas interessa-lhe a experiência individual. E o mar é a superfície de contato, a “alteridade” entre o homem e o mundo, que vai querer explorar. Como refere Adinolfi “a idéia de se lançar ao mar sempre retorna à experiência individual da descoberta interior”.
Assim, “Calafate...” assume-se como um espaço de “embate” e “descoberta” através de elementos que já compõem a poética de Adinolfi, mas que aqui assumem um caráter metafísico ou, porque não, existencial.
Um barco de porte médio, visivelmente desgastado pelo uso e pelo abandono está encostado contra a porta de acesso da galeria, impedindo que vejamos, de uma só vez, toda a “narrativa” que o artista propõe. A existência de um elemento incomum – o barco - no centro da cidade causa um efeito de estranhamento, suspendendo a nossa credulidade, para além de contrariar a normal circulação pelo espaço da FUNARTE. Por este motivo, o acesso ao ponto “nevrálgico” da instalação faz-se por uma porta secundária que, uma vez transposta, nos desvenda não só a proeza técnica da colocação do barco quanto nos apresenta aquilo que chamaria de “recriação anti-naturalista do mundo”. Explico: diante dos nossos olhos conseguimos reconhecer todos os elementos que o artista nos apresenta, somos inclusive capazes de nomeá-los, mas escapam-nos os nexos lógicos entre eles. Objetos que sabemos pertencer ao real dissolvem as suas propriedades habituais e transmutam-se numa montagem onde os materiais recusam os seus sentidos culturais pré-estabelecidos e dialogam numa expressiva “desadequação”. Do interior do barco (mantemos a pergunta: “de onde veio e como foi ali parar?”) expande-se uma matéria irreconhecível (uma pintura) como num poema de Adinolfi: “O início casco, cinza, lodo; ressurgir/ da cor interna/ a jornada de cor”. A luz baixa faz-nos obliterar as características arquitetônicas da galeria, e focar a nossa atenção na “massa” que se espalha pelo chão: asfalto e entulho revestidos de fibra de vidro e tinta branca.
O mar, na poética de Adinolfi, não se apresenta como tema ou assunto da pintura, mas configura-se como um exercício de ir e voltar, de confronto incerto com questões específicas do artístico. Um “espaço intermediário” de elevado risco, assim como a baleia para Ismael ou o Adamastor para Vasco da Gama. Uma viagem interior (às “índias de dentro”, como escreveu o poeta português Camões) onde muitas vezes se navega com um mero bote salva-vidas.
É desta forma que, diferente de “Mangue” e de “Outburst”, a pintura que enxergamos em “Calafate...” guarda certa distância relativamente à sua genealogia crítica e parece muito mais atuar sobre o processo criativo, da mesma forma que uma idéia filosófica atua sobre o modo como pensamos. E por isso se torna necessário (pelo menos para mim isso chega de forma clara) que o artista esteja interessado em testar e abrir as potencialidades de um campo especulativo sem as contingências específicas da pintura. É isso que torna esta exposição um pretexto para continuar a explorar os impasses próprios da disciplina, podendo ainda se aventurar por outros mares.
Marta Mestre, Maio, 2015
* frase presente na dissertação de mestrado do artista. Madeira Sobre Mar - Unesp/Capes 2015
junho 17, 2015
Soy un perdedor, I am a god por Raphael Fonseca
Soy un perdedor, I am a god
RAPHAEL FONSECA
Quando Alvaro Seixas me convidou para escrever esse texto, veio com o nome da presente exposição definido: Paintbrush. Conversamos em seu ateliê e pude ver alguns dos trabalhos aqui apresentados. Modernismo, pintura, abstração e História foram algumas das palavras-chave que rondaram a nossa conversa. De todo modo, elas não me pareciam dar conta da irreverência que o título “Paintbrush” pode conter.
Essa inquietação me levou a refletir em torno desta categoria estética esboçada pelo artista. O termo em inglês pode levar a duas interpretações; a palavra que diria pincel em português me parece ser o caminho mais rápido de leitura. Enquanto isso, há aqueles que se lembrarão do célebre software de mesmo nome que opera em distintos sistemas operacionais. Nos idos da década de 1990, com o aumento da popularização dos computadores no Brasil, foi ali que muita gente fez seus primeiros desenhos e ilustrações digitais. A precariedade do aplicativo era notável: as fontes eram de difícil regulação, o botão de spray estava distante de se parecer com a potência das cores de um Basquiat e desenhar linhas retas demandava estudo. As páginas em branco dos arquivos novos eram um convite à experimentação e à certeza de que aquelas imagens, quiçá em outro aplicativo futuro, poderiam ser mais arrojadas.
Havia uma certa despretensão no uso do Paintbrush que me parece fazer eco nas pinturas aqui reunidas de Alvaro. Entram em jogo materiais menos tradicionais e nobres da História da pintura, como o próprio spray e os rolos de pintura de parede. Se em outras exposições suas as referências à história da arte moderna aparecem por vezes de modo citacionista, talvez aqui seja possível reconhecê-las mais pela informalidade das composições do que pela possibilidade de apontarmos iconografia precisas.
Essa palavra - “informal” - nos possibilita aproximar esses trabalhos de grupos distintos de artistas, tais como os célebres pintores estadunidenses chamados por “expressionistas abstratos” ou os brasileiros e franceses alcunhados “abstracionistas informais”. Independentemente da bagagem artística do espectador, me parece mais potente seguir junto às janelas do Paintbrush. Adentrar a galeria e movimentar nossos corpos no espaço já possibilitam constatações para além das memórias da espacialidade modernista.
Diversos são os modos de composição dessas telas; se algumas parecem vir da ferramenta de preenchimento de formas com uma cor só (aquele ícone do balde de tinta), outras se dão a partir da repetição de cliques das pinceladas. O mesmo pode ser dito sobre as próprias paredes que, uma vez pintadas em tons que mais parecem extraídos de catálogos de decoração, transformam o cubo branco em um mostruário de cores dóceis.
Essas opções técnicas e cromáticas fazem lembrar de um dado memorável do Paintbrush: sua limitada capacidade de apagar a última ação do usuário. Se, por exemplo, dois jatos de spray neon fossem aplicados em lugares posteriormente indesejados, apenas seria possível subtrair o último. Cabia ao ilustrador digital aprender a conviver com seu erro ou começar uma nova imagem a partir do branco. Gosto de pensar essa exposição em sentido parecido; verbos como “acertar” e “errar” perdem seu sentido e são substituídos pelo fenômeno do “experimentar”. A pintura é um campo de batalha mesmo quando desmonumentalizada através de sua aproximação com algo tão corriqueiro como um software de imagens digitais.
Justo por serem tão profanas, não é difícil nos sentirmos convidados a contemplar e habitar os percursos dessas imagens. O olhar percorre atenciosamente essa série de trabalhos devido à capacidade do artista conseguir reunir elementos formais e cromáticos que parecem tão ruidosos quando juntos, que são capazes de criar uma espécie de sinfonia onde sample, orquestra e verborragia se misturam. Isso está naquele jato de spray rosa neon sobre a superfície também de cor rosa ou naquelas pinceladas verdes e azuis que receberam outros espirros de neon sobre suas camadas. Isso me parece estar presente também quando, numa perspectiva mais geométrica e arquitetônica, se repete sobre parte de um dos portais da galeria a mesma cor aplicada sobre uma tela quadrada.
São nesses detalhes – é no solitário jato rosa sobre uma pequena tela redonda – que se constitui a pesquisa do artista. É assim que opera o seu Paintbrush e seus botões personalizados de formas, cores e preenchimentos. Mais do que um apaixonado neto do modernismo, seu trabalho tem a latência de um estudioso da arte consciente de sua capacidade de abrir diversas abas em um mesmo espaço.
Entre o Paintbrush e a pintura há uma distância tão grande quanto a encontrada entre Beck e Kanye West. Se um diz “Soy un perdedor”, o outro canta “I am a god”. O fazer do DJ também pode ser um potente espaço de composição. Nada impede, como nos mostra tão bem Alvaro Seixas, que se trabalhe a partir desse diálogo pendular.
junho 16, 2015
Paisagens íntimas, paisagens imensas por Agnaldo Farias
Paisagens íntimas, paisagens imensas – O projeto poético de Manoel Veiga
AGNALDO FARIAS
Manoel Veiga - Trabalhos Recentes, Galeria Mezanino, São Paulo, SP - 17/06/2015 a 11/07/2015
É curioso pensar que enquanto vamos vivendo submersos em nossos cotidianos previsíveis e genéricos, ignoramos os acontecimentos simultâneos, próximos e distantes, salvo aqueles que, a revelia da nossa vontade e desejo, são despejados pela mídia. Não pensamos no que está acontecendo agora, não pretendemos quase nunca saber o que acontece fora da órbita dos nossos interesses imediatos, porque, em primeiro lugar, é-nos simplesmente impossível reter a amplitude do tudo que, ao menos na aparência, compartilha nosso espaço e tempo. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade em Mundo Grande, nitidamente preocupado em dar conta da amplitude dos acontecimentos no mundo e consciente do fracasso desse intento
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
[...]
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também na rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
E o que dizer então de acontecimentos em escala sideral, das imagens que nos chegam das estrelas que já não mais existem, emitidas que foram há milhões de anos-luz? E da súbita consciência que o universo está em expansão? E de estarmos fixos pela ação da gravidade num planeta minúsculo que gira em torno de seu próprio eixo na vertiginosa velocidade de 1.675 km/h, que ainda se move ao redor do sol, a 107 mil km/h, o que é pouco se comparado à velocidade de rotação galáctica, que é de 810 mil km/h, tudo isso dentro da Via Láctea, em rota de colisão com a galáxia de Andrômeda, numa velocidade de 230 mil km/h? O que dizer? Bem, nada. Tudo isso parece tão distante, tão absurdo para nossa ridícula e mesquinha compreensão que nem vale a pena pensar. O mesmo vale para os processos ditos ínfimos, microscópicos (lembra-se quando em algum momento da infância lhe foi revelado que o corpo humano é 70% composto por água?). E que tal as bactérias, células, moléculas, átomos, partículas, e toda a infinita matéria que, segundo fomos recentemente informados, também é energia, cuja incompreensível coesão dá corpo a tudo o que há?
Talvez pense-se pouco, quase nada, ou nunca sobre temas dessa natureza porque eles nos dão uma medida mais aproximada da nossa importância, que é pouca coisa além de zero. Desagradável, não? Constatações como essa reduzem a pó a crença no individuo, e o valor desmesurado que hoje se dá ao próprio ego, a irrelevância das noticias que emitimos a nosso próprio respeito pelas redes sociais, é prova patética do desejo de compensação.
Não obstante, há muita gente ocupada em perscrutar o invisível, pesquisando, levantando, expandindo, a essa altura, a unânime e já antiga constatação que o tempo não é absoluto, que se modifica em consonância com o espaço, resultado do efeito da gravidade que altera fisicamente ambos, o que nos habilita a pensar na existência de outros espaços e tempos, simultâneos aos que habitamos.
Entre as várias gentes que se ocupam desses temas destacam-se os ligados às ciências e as artes (não nos ocupemos dos religiosos porque estes creem em demasia, mas de cientistas e artistas, que também creem, é certo, mas de outro modo, abertos que são a outras possibilidades). Há muita gente que pesquisa o oculto, esteja ele em regiões íntimas, imensas, ou mesmo em outras dimensões. Manoel Veiga, por exemplo, que nessa nova exposição apresenta-nos suas telas e fotografias mais recentes, pesquisas relacionadas com o íntimo e o imenso, que demonstram uma sofisticada compreensão de um projeto poético envolvendo pinturas e fotografias sem escorrer em desvios nostálgicos ou exercícios ególatras, tão em voga.
Possivelmente forçando um pouco, pode-se encaixar a produção de Manoel Veiga no âmbito do gênero “paisagens”. Para tanto deve-se, de saída, observar sua dupla proveniência: no caso das fotografias a apropriação de imagens do espaço produzidas por um telescópio de altíssimo alcance, quanto a pintura, no resultado de sua peculiar ação catalisando processos físico-químicos, que faz de cada uma um campo onde os pigmentos, em lugar de serem aplicados, de acordo com o protocolo tradicional da pintura, sofrem alterações calculadas em sua estrutura.
Comecemos pelas fotografias que compõem uma série em pleno curso intitulada Hubble, nome extraído da fonte delas todas, o imenso telescópio orbitando sobre nosso planeta que, livre das impurezas da atmosfera, “enxerga” o espaço sideral com mais nitidez que a quase totalidade dos outros instalados no chão. Mas o que ele “enxerga”? Este é ponto. Os olhos do Hubble não são os nossos olhos, não enxergam do mesmo modo que nós. O propósito desse dispositivo óptico de altíssima tecnologia, lançado ao espaço em 1990, é melhorar a visibilidade de certos processos, no seu caso em particular, a apreensão da luz visível e, sobretudo, da luz infravermelha que estrelas entre outros corpos situados no espaço irradiam no comprimento de ondas entre 3 a 180 micrômetros (1 micrômetro corresponde a 1 milionésimo de metro) e que, ademais de invisível aos nossos olhos, é bloqueada pela atmosfera da Terra. O interesse pela captação da radiação infravermelha deve-se ao fato da heterogeneidade do espaço, cujas nuvens de gás e “poeiras” de natureza diversa eclipsam a luz visível. A luz infravermelha fura esses bloqueios permitindo que se tenha acesso a regiões mais longínquas.
Do mesmo modo que o nosso cérebro “lê” as frequências que atingem nossos olhos, o Hubble, como outros telescópios e radiotelescópios, transpõem em gráficos e cifras o que logra captar da contemplação do espaço. Convém ter em mente que hoje em dia o registro das imagens, tanto no seu Iphone quanto no Hubble, é digital, ou seja, primeiro vem a captação da luz pela tradicional parte ótica (lentes), luz que em seguida é jogada nos sensores digitais, geradores de um arquivo que será tratado automaticamente por um software.
Numa reconfiguração poética usando um computador, Manoel Veiga apropria-se de algumas imagens produzidas pelo Hubble, disponíveis no site da NASA, para gerar outras imagens. Sob esse ponto de vista, ele procede do mesmo modo como o telescópio, sendo que, na prática, suas imagens pertencem a espaços impossíveis, que pouco ou nada tem a ver com o espaço do mundo real de onde partem as que são captadas pelo aparelho, salvo o fato de que tanto um quanto o outro são, no final das contas, representações. No caso do espaço produzido pelo artista, sua paisagem, nasce de relações de causa e efeito deformadas, francamente absurdas segundo os parâmetros da ciência. A tecnologia digital vale-se da estratégia de atribuir cores diferentes a certos elementos químicos para melhor diferenciá-los numa mesma imagem. Agindo homologamente, o artista transforma em preto e branco a imagem apropriada, para posteriormente invertê-la, obtendo uma aparência de negativo fotográfico. Com esses procedimentos sugere um cruzamento da fotografia com desenho e gravura, além de estabelecer uma contraposição de técnicas derivadas da alta tecnologia -Hubble e computador, com uma paciente carpintaria, característica de um trabalho de tradição artesanal.
Se as fotografias referem-se a frações do espaço sideral, paisagens obtidas por torsões em panoramas imensos obtidos por um telescópio, a pintura de Manoel Veiga mergulha cada vez mais profundamente na produção de paisagens que se não são microscópicas, são produzidas pela catalisação de elementos microscópicos.
Como descreve o artista:
As pinturas são realizadas no chão... O processo se inicia com a preparação de uma mistura cuidadosa de várias cores... única e muito fluida e que tem, inicialmente, uma só cor complexa... Ataco a tela, em seguida, com um pincel que mal a toca... passo a acompanhar a secagem da tinta, interferindo em determinados momentos, ... apenas pulverizando água à distância, com o objetivo de criar gradientes de concentração que vão ser responsáveis pelo deslocamento dos pigmentos... os pigmentos mais leves são mais facilmente arrastados pela força de difusão e vão sendo separados dos mais pesados.
A linguagem empregada nesse excerto, o conhecimento seguro de noções extraídas do campo da Mecânica dos fluidos revela o engenheiro informando o artista, habilitando-o a se valer de fenômenos físicos elementares em ferramentas para a construção de paisagens. A ideia de catalisar o processo de separação dos pigmentos por intermédio da pulverização premeditada, sistemática e controlada de água, o solvente por excelência da tinta acrílica, significa o disparo e a aceleração de processos que, de outro modo, seriam mantidos como que adormecidos, latentes. Significa, portanto, a produção de tempos. Assim como em suas fotografias Manoel Veiga ocupa-se do fabrico de espaços, em suas pinturas de agora, resultantes de anos de uma pesquisa profunda e sem paralelo em nosso meio, o artista fabrica tempos e espaços, paisagens construídas pela manipulação de elementos tangíveis, não obstante invisíveis. Sem traços metafóricos, o aspecto recorrente da grande maioria da pintura produzida em nosso meio, as de Manoel Veiga são paisagens nascidas de implosões microscópicas, ínfimas e reais.
Agnaldo Farias
FAU-USP
junho 12, 2015
Reconfigurações por João J. Spinelli
Reconfigurações
JOÃO J. SPINELLI
Idealizado pelo Espaço Expositivo e Residência Artística Transarte, o Edital Bolsa São Paulo de Apoio às Artes Visuais tem como meta principal favorecer e valorizar a criação artística diferenciada, incomum à produzida na atualidade adstrita em sua maioria aos apelos do incipiente mercado de arte brasileiro e ou aos modismos embasados em valores oriundos do mercado artístico internacional: uma indagação cultural independente, proposta e articulada pela Transarte - sem nenhum apoio financeiro governamental – pensada somente para fomentar, vivificar, pensar a arte brasileira desvinculada de todo e qualquer tipo de imposição estética, social, política, econômica e ou cultural.
Por se tratar de um projeto incomum suscitou indagações dos próprios artistas inscritos, frente à sua determinação inicial de encontrar autores com domínio técnico que entendessem e vivenciassem a arte com liberdade e autonomia. Idealizações sensíveis, distantes de pulsões nostálgicas; reafirmações criadoras que interrogam semântica e tecnicamente a própria contemporaneidade, seus percalços e inseguranças com o porvir.
Além de apresentar novos talentos a Transarte reconfigura a função mediadora exercida pelos antigos salões oficiais de arte patrocinados por museus e instituições públicas, que desde o final do século XIX até a segunda metade do século passado, intermediavam com eficiência as criações de artistas jovens, apresentando-os à comunidade. Sem recorrer e ou utilizar nenhum recurso financeiro público, institucional, distante do óbvio e de meras novidades alvissareiras apresenta a produção plástica de seus primeiros selecionados, reforçando assim que a criação artística contemporânea não precisa ser entendida apenas como um ponto de partida, distante da história da arte, que documenta da pré-história até os dias atuais a sua contínua transformação, mas que registra, como uma única verdade, a liberdade frente à diversidade de linguagens desvinculadas de todo e qualquer tipo de imposições políticas, sociais, mercadológicas. Isentas de proselitismos reafirmam que o fundamental para a criação artística nunca foi alterar a realidade, mas provocar novos e transformadores olhares.
Além da pintura de linhas, formas e composições estruturadas de Thiago Hattnher, das assemblages pós-dadaístas de Alexandre Heberte, a Bolsa São Paulo reforça o caráter democrático da gravura, da fotografia e do videoarte apresentados por Sandro Brasil, Julia Goeldi e Alexandre Teles. Diagramas conceituais convergentes registram a diversidade e a transitoriedade da representação imagética destas duas primeiras décadas do século XXI.
Interfaces das artes visuais, estas técnicas alcançam um número maior de espectadores que por sua vez lhes outorgam um caráter vivo, dinâmico.Estas obras, diferentemente da solidão do processo criativo específico da pintura, nascem de um trabalho solidário do gravador com o impressor, do fotógrafo com o editor e do videomaker com o computador, criando por tabela, uma relação mais próxima do cotidiano, como era costume acontecer com as antigas gravuras utilizadas como ilustrações bibliográficas que determinaram, desde o início, a finalidade principal desta técnica pioneira da arte multiplicada: estar junto ao público e ser de fácil acesso a todas as camadas sociais, ao contrário da produção hermética, intelectualizada exposta na maioria dos museus e ou galerias de arte convencionais.
João J. Spinelli
Prof. Dr. ECA, USP. Historiador e Crítico de Arte
junho 8, 2015
Tiago Judas: O monstro por Paula Borghi
Tiago Judas: O monstro
PAULA BORGHI
Tiago Judas - O monstro, Central Galeria de Arte, São Paulo, SP - 12/06/2015 a 08/08/2015
No princípio o Herói buscava a estrela. A luz brilhando no céu, hoje vai ao encontro da forma através da imperfeição. Para isso, é preciso embarcar de corpo e alma na escuridão dos sete mares. Foi assim, a fim de compreender os mistérios da natureza, que o nosso grande Herói navegou em direção a mais uma aventura.
Da escotilha do navio, ele avista o primeiro sinal. Três boias flutuavam em direção ao seu olhar. Com a ajuda de uma luneta ele pode notar uma boia esférica, uma cônica e outra cúbica, cada qual em uma cor. Mareado, não podia acreditar no que via. Pensou se tratar de uma miragem devido ao tempo em que se encontrava solitário em alto mar. Mas era real. Por um instante achou que estava perto da firmeza do chão. Contudo, as boias nada ancoravam. Elas estavam simplesmente flutuando naquela imensidão, dançando conforme a maré. "quadrado, triângulo e círculo", ele repetiu em voz alta para si mesmo.
Naquele momento um pássaro pousou no mastro descansando suas asas por alguns minutos. Eles se entreolham, nada disseram. Passado alguns minutos o pássaro retoma seu vôo deixando uma única pena cair no convés. Um agradecimento ao Herói por sua hospedagem, que pega o presente e equilibra-o na ponta de um filete de papel para lembrar-se que mesmo para quem busca o chão, de vez em quando é bom olhar para o céu. Este era mais um sinal.
Um longo tempo a deriva, no embate entre a realidade e a ilusão, e de repente uma abelha entra zunindo na cabine. Sim, uma abelha só passeia onde pode colher flores, e flores precisam de raízes. Ele estava perto do chão, aquele era o último sinal. Quis chorar de felicidade mas estava seco. Depois de dias lutando pela sobrevivência sua alma era um fóssil, uma memória. Mas aquela paralisia iria acabar em breve. Os sinais eram claros, o chão estava próximo e logo poderia dar passos firmes em algum continente.
Algumas léguas dali um vulcão entra em erupção e transborda sua cascata flamejante. A lava alaranjada encontrava o mar e ao se resfriar tornava-se terra preta. A fumaça desse encontro norteia o Herói que reassume o leme. Agora com rumo ele lembrou das três formas geométricas primárias boiando no seu caminho, da pena que antes era pássaro e da visita da abelha que veio de uma harmônica construção de espaços hexagonais. Enquanto mantinha sua rota em direção a disforme fumaça que surgia na linha do horizonte pensava no quadrado como o mundo material, como uma prisão necessária que nos coloca na experiência das suas quatro paredes, a largura, a altura, a profundidade e o tempo, enquanto o triângulo, onde dois pontos se tornam um, pode ser visto como um caminho em perspectiva, que leva a matéria para o círculo, a suficiência do tudo; o infinito.
Sendo o Herói um ponto flutuando no oceano, agora com um outro ponto de referência, mesmo que esfumaçado, ele pôde traçar uma reta, e só assim notou que o seu barco esteve o tempo todo ancorado. O Herói experimentou as tempestades e as calmarias mas não chegou a sair do lugar. Era preciso enfrentar o desconhecido. Lançou-se ao mar em um gesto corajoso. O contraste entre a chama que ardia dentro dele e o mar que fluía afora, era simplesmente lindo e aterrorizante. "Triângulo, circulo, quadrado, pássaro e hexágono", pensava quase que como um mantra enquanto nadava. Seu espírito estava se preparando para a transformação, para o encontro com a essência da matéria.
O sol havia se posto, naquela noite a lua era nova e o céu estava sem estrelas. No meio da escuridão, um ideal é uma luz que indica o caminho para chegar até o horizonte, onde existe nova forma, terra firme transbordando do vulcão. Sem hesitar, nosso Herói nadou depositando toda sua energia naquele percurso, naquela linha, naquele desenho em alto mar. Não havia nada capaz de fazê-lo desistir. Sua determinação alcançava uma outra dimensão do espírito. Sim, ele sabia que estava acompanhado pelo monstro e isso não o atingia. Ele só precisava ir em direção à luz.
Porém, por mais persistente que o Herói fosse, ele ainda tinha que lidar com os limites da matéria. Foi sabendo desses limites que o monstro encontrou o caminho para atacá-lo. Projetando a mandíbula, ele deu a primeira mordida. Naquele momento o Herói sentiu-se preparado para ser devorado. Quando deixou o barco ele sabia que somente com a entrega ao movimento natural, ele poderia encontrar a forma perfeita. E assim foi devorado, deformado e transformado em movimento.
Ele aceitou a imperfeição, para um dia ter o direito de ver o perfeito.
Paula Borghi
São Paulo, maio de 2015
Sob relógios: dias de areia: segundos de chuva: por Raquel Stolf
Sob relógios: dias de areia: segundos de chuva:
RAQUEL STOLF
O ouvido se inclina sem sair do lugar. Um ruído cai, escorre e escoa. Entre cada segundo, um punhado de ar. Ou um grão (sólido, líquido ou gasoso).
Um grão como um sinal:
Tentar agarrar a cortina de chuva, a parede de chuvisco, numa película reversível de espera. Um silêncio descontínuo aguarda sua vez de entrar em cena. Em cada conjunto de grãos que desliza de mão em mão, entre um ouvido e outro, acena uma atmosfera.
Existe alguma diferença entre o sinal gráfico de um parêntese, o sinal gráfico de uma chave e um grão de chuva? Entre alguns parênteses (entre mãos), escuta-se algo. Ausculta-se algo rente/entre chaves, antes ou depois? Há alguma chance numa fração de areia?
Nem antes, nem depois. O que está sendo pensado, visto e escutado aqui ou ali acontece simultaneamente dentro e fora. O ângulo entre a parede e o chão também precipita.
A chuva pode ser desacelerada, aguda e invertida. Como uma queda aquecida, num sol plano. A sobreposição é tátil, na trepidação de ruídos escondidos, na demonstração de um precipício percussivo. O eco diminuto de cada esfera catalisa uma espécie de nuvem interna, que ressoa e se dissipa até ser reativada.
Dias de areia em segundos de chuva.
Instante suspensivo e dispersivo:
O fluxo de gestos (mãos, grãos, grânulos tênues) adia alternadamente um encontro com o sentido? Ou o sentido está nas margens? O que acontece entre a duração dos autoinstrumentos e a duração de uma cronoescuta?
O silêncio é a areia dos ruídos1 ou o ruído é a areia do silêncio?
1 PONGE, Francis. A mesa. Ed. bilíngue. Trad. I. A. Reis e M. Peterson. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 187.