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maio 31, 2015
José Damasceno: ponto e vista por Ligia Canongia
José Damasceno: ponto e vista
LIGIA CANONGIA
José Damasceno - Plano de observação, Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 20/05/2015 a 26/07/2015
José Damasceno é um escultor, por excelência. Mas a pertinência do termo escultura na era contemporânea passa a ser discutida a partir da noção de “campo ampliado” de Rosalind Krauss, nos anos 1980, e persiste até hoje. Os argumentos de Krauss foram, sem dúvida, a primeira defesa teórica organizada sobre a incapacidade de se continuar instrumentalizando as convenções escultóricas, até então baseadas na pureza do gênero e na manutenção de suas especificidades materiais. Instalações ou site specific art exigiam, à época, enorme esforço de torção e maleabilidade da análise crítica para continuar usando o nome escultura nesses tipos de obra. Para a autora, como sabemos, a inadequação do uso do termo arrastava-se desde o cubismo e o dadaísmo, e era conservada por uma insistência crônica do pensamento purista de certas formulações da crítica modernista. No entanto, o que se observava, já em meados do século 20, era o começo de uma alteração importante no próprio conceito de espaço e o início das fusões interdisciplinares. O que entrava em jogo naquele momento, a despeito dos entraves historicistas, era a percepção não dicotômica de novos fenômenos, que marcavam diferença em relação ao entendimento da escultura clássica e moderna. A pureza dos meios, dos materiais, dos locais de ação e dos conceitos escultóricos, ditos universais, parecia sucumbir diante das ideias de diversidade, simultaneidade e cruzamento de experiências.
Voltar às teorias de Krauss, para os entendidos, pode parecer algo revisionista, mas esse retorno diz respeito direto à obra de José Damasceno, o que nos faz reaver alguns de seus argumentos. É relevante, porém, e antes de tudo, ressaltar que, por ironia da história, o termo escultura não morreu. Tentou-se de tudo como substituição e alguns artistas ensaiaram nomearem-se como “propositores”, “interventores”, “instauradores” e outras denominações, sem sucesso, sem liga com os acontecimentos. Fato é que José Damasceno permanece um escultor, não só com a capacidade de produzir pequenos ou grandes objetos, mas de interferir em ambientes de grande escala, de dialogar com projetos arquitetônicos diversos e de imaginar situações fabulosas, transformando a própria natureza e as funções originais das matérias e dos espaços.
A noção não dicotômica, tão apreciada na proposta de “campo ampliado”, porém, é uma chave preciosa para a abordagem do trabalho do artista, pois a José Damasceno interessa sobremaneira desconstruir dicotomias tradicionais, como as que separam Palavra e Imagem, Pintura e Escultura ou Escultura e Instalação, assim como as oposições entre dentro e fora, imagem e coisa, figura e fundo, visível e invisível. Sua obra tem a particularidade de deter-se na passagem entre as coisas, nos territórios ambíguos entre a realidade objetiva e a perspectiva fantasmática da criação, ou ainda na confluência dos fatos empíricos com o absurdo. No âmbito dessa ambiguidade, uma questão recorrente no trabalho pode ser especialmente realçada: a que se estabelece entre as ideias de estabilidade e movimento.
Sem dúvida, trata-se de uma obra que opera na fusão de conceitos antitéticos – peso e leveza, inércia e movimento, abstração e concretude –, construindo formas elásticas e fluentes, que tomam o mundo como um campo de entrecruzamentos, onde as oposições não se chocam, e as disparidades são absorvidas sem conflito. Formas imaginárias e libertas dialogam ao mesmo tempo com o inconsciente e com a realidade, traçando uma ponte possível entre a fantasia e a lógica. Nesse sentido, o trabalho de José Damasceno constitui um evento físico instável e indeterminado, que não apenas discute os limites das convenções históricas, como interroga os fundamentos da escultura na era contemporânea. Sua operação metódica seria, pois, colocar em xeque as fronteiras entre a dimensão do imaginário e as possibilidades de suas formalizações na esfera estética, produzindo, ao invés, coordenadas inesperadas para a ativação da percepção e dos espaços.
Podemos mesmo dizer que a própria presença material da obra no mundo, com suas sentenças visuais desconcertantes e seus nexos especulativos, atesta a falência de um corpo fechado de categorias e princípios convencionais, justo na contramão da visada formalista moderna. Como linguagem em aberto e campo em expansão, as obras de José Damasceno exigem do historiador e do espectador a percepção da emergência de novos códigos, que Hans Belting reconheceu como ataques à noção ideal da arte e à crença das vanguardas no progresso contínuo da modernidade. E Belting acrescentou:
O que o conhecimento histórico edificou a duras penas – uma ordem ideal em que tudo obedece às regras da história da arte – a arte recente tende a destruir. O sistema de hierarquia e de classificação histórica é objeto de ataque por parte dos artistas, que agora se apropriam do passado sem a preocupação de justificar sua reinterpretação no interior do discurso ordenado da história da arte. Os artistas fabricam uma história da arte deles.[1]
O entendimento dessa “história da arte deles” leva-nos a pensar, consequentemente, o quão longe os artistas podem estar, hoje, da noção de estilo, noção que governou a arte ocidental ao longo dos séculos, do medievo ao modernismo. E essa é uma questão que interessa pontualmente à obra de José Damasceno, uma vez que cada um de seus trabalhos parece exigir uma análise precisa e particular, como se fosse um ser absoluto, com identidade incomparável e significância exclusiva. É provável que se reconheçam algumas “famílias” de obras, como as que pertencem à série Projeto-objeto, dos anos 2000, assim como se pode perceber um corpo de questões recorrentes ao longo do tempo, mas sua trama lógica está longe de ser captada de forma fácil e, menos ainda, desconectada de uma rede de pensamento.
Nesta exposição do Santander Cultural, o artista apresenta uma escultura (Parábola), uma colagem sobre impressão (A gruta: after Johan Moritz Rugendas, Grottes près de S. Joze), uma obra em tapeçaria e cinco instalações de grande porte. No salão central da instituição, a instalação Cinemagma dialoga com a escultura Parábola, pois ambas constituem obras “em percurso”, indiciando acontecimentos fluidos e cinemáticos.
Cinemagma impacta pela evidência de sua monumentalidade, mas sinaliza a existência de um mundo e um espaço interior, de natureza desconhecida e inacessível. Com certo espírito surrealista, a cena com a qual nos defrontamos institui, ao mesmo tempo, um lugar público e íntimo, dramático e lírico, fluente e estável, organizado e caótico. As coisas acontecem na dinâmica da passagem, sem a determinação precisa dos limites. O próprio estado da matéria, apesar de sua corporeidade, indefine-se entre o líquido e o sólido, entre o fluxo caudaloso do imaginário e a tentativa de criar uma arquitetura para os sentidos, uma tentativa de ordenar o sonho em um sistema volumétrico identificável. Cinemagma é uma zona imagética intermediária, lugar em processo, em movimento, que se propaga em plena fluência, como uma imensa vaga que se avoluma na interioridade da criação e salta para a realidade.
Trata-se de um ambiente pictórico composto por numerosos filamentos de estopa colorida, que se organizam e se movem numa dinâmica própria, como uma tela de Pollock que adquirisse espessura. Mas também como uma cena alucinante de Max Ernst que tivesse transbordado da tela ou uma arquitetura de Piranesi que extravasasse o desenho. A atmosfera é esmagadora e onírica, e sua escala monumental contribui para enfatizar o tom dessa aventura transbordante. A porta que flutua no meio da grande massa de matéria indicia o trânsito, a passagem entre dois mundos, e os recipientes de vidro ali instalados funcionam como lentes, como instrumentos dilatadores e amplificadores da visão, atravessados pela luz.
A escultura Parábola, próxima à instalação, ecoa a mesma ideia de mobilidade e transitoriedade, pois que também flui, caminha e se dobra a uma arquitetura impossível e circular, sem início nem fim, impondo-se como um labirinto e como eterna passagem. Parábola agrega a dicotomia entre construção e destruição, sistema e acaso, e surge como algo que escoa na interface dos extremos: um diagrama móvel. Na verdade, mais do que a estabilidade das formas, o trabalho de José Damasceno é montagem no tempo; é ritmo, maleabilidade, cinema, uma vez que ele busca sempre uma sensação cinética ou progressiva em superfícies, acontecimentos ou matérias congeladas.
Nas laterais e no espaço ao fundo do Santander Cultural, as três instalações expostas não fogem à hipótese desse “mover estático”, dessa animação potencialmente anunciada e da noção de temporalidade, já comentados.
O trabalho Monitor-crayon é um grande painel embutido na parede, com milhares de peças de giz de cera, justapostas por encaixe dentro desse painel. As peças são colocadas ao acaso, seguem o princípio de um sorteio fortuito de cores e criam uma superfície fervilhante e abstrata. A formação da imagem que daí advém produz um pulsar constante no olhar do espectador, como se ela não se estabilizasse jamais e não produzisse nenhum foco repousante para a visão. Ademais, a obra se relaciona com o processo dos pixels nas transmissões digitais, como se os materializasse potencialmente em objetos. Da mesma forma, remete-se à pintura pontilhista do passado moderno, como em Seurat e Signac, fundada, cientificamente, sob a ótica das cores e da psicologia da percepção. Importante sublinhar que o pontilhismo surge como uma técnica rigorosa, atendendo a descobertas científicas da época, voltadas aos fenômenos da visão. Os artistas começavam, portanto, a colocar as questões pictóricas em correlação com os problemas da percepção, sem o apego romântico dos impressionistas e, ao contrário, em conformidade com a razão da ciência.
Ora, Monitor-crayon mexe com esse passado ”científico” da pintura e com os processos atuais da tecnologia virtual, mas superpõe e inter-relaciona razão e acaso. A aleatoriedade das cores dos bastões de giz dá à obra um caráter volúvel e cinético, imprevisto aos parâmetros da lógica, aproximando-a bem mais dos fundamentos de uma visão não racionalista da história. Como uma máquina fabulosa em ação, saída das páginas do escritor surrealista Raymond Roussel, Monitor-crayon engrena articulações excêntricas e desconcertantes que tornam sua imagem uma espécie de centauro: metade coisa, metade flutuação. Ciência e delírio, precisão e deambulação, as ambiguidades se entrelaçam nas narrativas multilineares de José Damasceno, que navegam na convergência de tempos e espaços dispersos e no cruzamento dos sentidos.
A instalação Mass media para modelar (you are such stuff as images are made on) também tem grande parte de sua matéria embutida na parede e em cores aleatórias, mas, desta vez, o pontilhismo de Monitor-crayon é substituído por uma turbulência material e cromática mais espessa e mais difusa, que possivelmente nos remete à pintura informal. A referência ao mundo do cinema faz-se agora explícita, sugerindo a existência de um écran e de um público imaginário, sentado diante da tela. Os seres que veem a “pintura” ou assistem ao “filme”, contudo, são constituídos pela mesma matéria do que é visto, numa fusão inesperada de espaços, funções e representações. Além disso, a instalação remonta ao pensamento de Merleau-Ponty, para quem “todo o visível é talhado no tangível”,[2] mas que ganha um comentário notável de Georges Didi-Huberman, quando ele acrescenta que “nós devemos fechar os olhos para ver, já que o ato de “ver” nos remete, nos abre a um “vazio” que nos olha, nos concerne e, em suma, nos constitui”.[3] Ver e ser visto, portanto, seriam funções pertencentes ao mesmo signo. Embora ancorado na experiência táctil, um signo que se abre ao invisível, que alude à própria obra de arte, em que “a questão entre o volume e o vazio se colocam inevitavelmente a nosso olhar”.[4]
Já o trabalho Observation plan, apesar de se afiliar ao pontilhismo de Monitor-crayon, e talvez mesmo a seu estado pulsante, engendra outras ordens de pensamento. Formado por centenas de lápis amarelos enterrados na parede, sua alusão ao desenho é patente, embora se ofereça como obra escultórica. O próprio lápis indica imediatamente essa correlação. No entanto, o que os lápis desenham é o nada, a ausência da linha e dos contornos, revelando-se como índice de uma forma que apenas se anuncia, mas é inexistente. Numa inversão radical das funções tradicionais, o desenho se retira, para que o fundo tome seu lugar. A questão entre figura e fundo é tão antiga quanto a própria arte, e seu debate constituiu basicamente o âmago das investigações modernas. Ativar, problematizar e revelar novos aspectos da intrincada relação entre o fundo e a forma é a operação ousada desse trabalho, além de promover o vazio a um estatuto material imponderável. Ademais, Observation plan faz e desfaz o que vemos a todo instante, se espraia e se recompõe incessantemente, conforme os variados pontos de vista do observador. Obra de mobilidade impressionante formula espaço e tempo como noções inteiramente provisórias e cambiantes, retomando os processos cinemáticos e o dinamismo latente, tão caros a José Damasceno. Dentre todas as obras da exposição, Observation plan talvez seja a que mais evidencie os jogos poéticos do artista em relação aos cruzamentos entre o visível e o invisível, pois, aqui, o invisível não é somente uma hipótese, mas um ato de “presença”.
Por último, os trabalhos Poco a poco e A gruta, unidos em sequência numa mesma parede, novamente recuperam a relevância da figura de um simples ponto na formação de uma imagem, considerando-o, na realidade, a estrutura, a origem e o esqueleto de todas as formas. Antes de tudo, o ponto é um ser matemático, sem escala, sem dimensão, um ser abstrato e absoluto por natureza. Mas pode ser também matéria pictórica e escultórica, a primeira das “figuras” do mundo das linhas e dos volumes, e ainda um dispositivo de reflexão visual, tomando significações diversas, como a de foco, de furo ou de perspectiva. Os conjuntos dançantes dos pontos em Poco a poco, nesse sentido, constituem um desvio na ordem da geometria euclidiana e da representação convencional, pois retiram o ponto de fuga de seu eixo catalizador e, justamente ao contrário, neutralizam sua unicidade, tornando-o não um, mas vários, dispersos, aleatórios e permutáveis. Como os pontos são adesivos aplicados na parede, o espectador fica em dúvida se ali tudo é plano ou se há espessura e não consegue apreender uma figura definida, já que os pontos se agrupam e se separam, para novamente se unirem e se espraiarem, aparentemente sem sistema. Essa obra seria, portanto, mais uma evidência das operações reflexivas de José Damasceno a respeito do espaço, da inteligência de sua poética em relação às convenções históricas e às normas da representação, e ainda aos métodos normativos da percepção.
A gruta, por sua vez, encerra irônica e oportunamente o conjunto dos elementos de Poco a poco, reinserindo a história e a representação tradicional no mesmo contexto, ao se apropriar da imagem de Grottes près de S. Joze, de Rugendas, uma litografia de 1835. A imagem, porém, é invadida por pontos brancos, que perturbam sua perspectiva, furam sua integridade plástica com a ilusão de “vazios” ou “defeitos”, ampliam e transformam a luminosidade do clima soturno da paisagem, além de incrementar mais ainda a atmosfera já absurda da imagem de Rugendas. Esses pontos brancos são, sem dúvida, uma crítica às formalizações do século 19, mas, por outro lado, querem se fundir àquela imagem e pertencer à sua própria narrativa.
Pontos e linhas ou pontos e filamentos se alternam e se rebatem mutuamente na exposição, buscando discutir os limites materiais da escultura contemporânea, com e através do território livre da imaginação e do campo aberto da linguagem. Para José Damasceno, interessam as ações poéticas que agem de forma descontínua, na passagem entre as coisas e na vertigem do desconhecido, Sua obra trata da dilatação do espaço e da percepção, reinventando lugares numa dinâmica extraordinária, que nos leva a zonas e associações imprevistas e fora das regras. O fascínio do artista pelos estados transitórios, por tudo o que movimenta trocas e promove saltos entre mundos aparentemente díspares, leva-o à criação de uma topologia inesperada, em um reviramento das dimensões “normais” do tempo, do espaço e mesmo da representação.
NOTAS
[1] BELTING, Hans. L’histoire de l’art, est-elle finie? Nîmes: Jacqueline Chambon, 1989, p. 5.
[2] MERLEAU-PONTY, Maurice, apud DIDI-HUBERMAN, Georges. In: Ce que nous voyons, ce nous regarde. Paris: Minuit, 1992, p. 11.
[3] DIDI-HUBERMAN, Georges. Ce que nous voyons, ce nous regarde. Op. cit., 11 e 17.
[4] Idem, loc. cit.
maio 19, 2015
Das Amarras por Alexandre Costa
Das Amarras
ALEXANDRE COSTA
Em seu trabalho anterior, Tronco (2013), Afonso Tostes incluiu uma série de nove pinturas a óleo dedicadas às imagens do fogo e da fogueira, fazendo alusão ao seu uso ancestral como signo de comunicação entre os homens. A imagem seminal do fogo fora então colhida de sua cena mais remota, sua primeira pintura, delineada pelas palavras de Homero, de onde o artista viu irromper a imagem e a ideia da chama como sinal e anúncio da vitória dos gregos em Troia.
A visita a Homero desdobra-se agora nesta nova série, Das amarras, composta por obras que encontram na Odisséia sua motivação maior: as chamas e as tochas que encerram a Ilíada cedem agora à continuidade da narrativa homérica, cujas palavras desembarcam num novo cenário, talhado entre o céu e o mar, um cenário que (des)abriga Odisseu em suas venturas e desventuras na busca pelo caminho de regresso à casa.
É este cenário, tão cheio de céu e mar, que o artista acolhe na sua pintura, trazendo-o à tela na forma e na ordem de distintos azuis. É este o seu primeiro plano, em cores e formas que o artista limita à superfície. Mas sua arte reconhece que as estórias de Odisseu, amarradas ao fio das palavras de Homero, não se esgotam em mar e céu: elas exigem que se inclua nessa paisagem aquele que é capaz de narrá-la. Odisseu confunde-se a ela, contagiando-a de sua presença. Ele quer tornar à casa. Lá estão sua mulher, seu filho, sua terra. A falta deles nutre os seus movimentos e sua força, e bem mais que o leme, o remo e o barco, é o seu desejo que guia o retorno. Rodeado de mar e de céu, Odisseu também os têm contra si, e lança-se acima e abaixo deles, manejando toda a potência de seu engenho e de sua arte para superá-los. Se o desejo guia a sua viagem, seus truques e invenções – a sua poesia – são as ferramentas que lhe garantem sucesso.
Livre dessa poesia, a poesia do humano, o cenário não estaria completo. A busca de Odisseu é também a busca de Homero em revelar essa poesia e o quanto ela tem de sonho e invenção. Na tradução de Afonso Tostes para as palavras épicas de Homero, a realidade de Odisseu só se completa quando se completa o seu cenário, acrescentando à paisagem os traços de seu engenho e as marcas da sua arte. Essa completude é materialmente conquistada somando à superfície da tela e à técnica da pintura um segundo plano que se sobrepõe ao primeiro, impondo ao mar e ao céu os inevitáveis truques de Odisseu. Porque nem só de céu e mar vive o homem: ele lida com eles, interfere, reage, acrescenta-se a eles, deixando sobre a pele de tudo os indícios de sua arte, os variados inventos do “multiardiloso” Odisseu. Espelho do humano, ele inventa um caminho em meio à natureza, sobrepondo a ela suas amarras, aqui traduzidas em cordas, fios, carcaças, redes, laços, pedaços de madeira e vestígios de embarcações e barqueiros, materiais que o artista recolheu sob o céu e aos pés do mar, e que espelham a estória de Odisseu e a história dos homens, a astúcia de seus inventos e a perícia das suas mãos.
maio 7, 2015
Zonas de Metamorfismo por Ana Albani de Carvalho
Zonas de Metamorfismo
ANA ALBANI DE CARVALHO
A exposição Zonas de Metamorfismo apresenta a produção recente de Dione Veiga Vieira, artista cuja trajetória teve início na década de 1980. Em um conjunto de imagens dotadas de grande força visual, Dione Vieira explora as relações entre fotografia, realidade e ficção a partir do olhar sobre a paisagem natural. A textura material de algumas fotografias, propositadamente, aproxima-se da experiência que temos diante da pintura; em outras, emprega decididamente os recursos da computação gráfica, como o quadriculado e as escalas de cor, sinalizando as relações históricas entre arte e ciência e sua necessária conexão para a construção do conhecimento sobre o mundo.
A partir de tomadas em paisagens marítimas ou montanhosas, Dione joga com diferentes pontos de vista, passando do distante e amplo, para o detalhe e a proximidade, destacando texturas e cores que o olho provavelmente não observaria sem o auxílio da lente de uma câmera. Este ir e vir entre o particular - a multiplicidade de cores e texturas observadas em um pequeno fragmento de rocha ou na vegetação que cresce entre as pedras – e o geral, representado pela bruma ou pelo mar, simula alguns códigos do discurso científico, especialmente voltado ao exame minucioso da natureza. As imagens fotográficas que Dione nos apresenta, porém, mais do que seduzir por sua beleza, visam suspender a possibilidade de uma delimitação efetiva entre o campo do sensível e o do inteligível, entre o que sabemos existir na realidade e o que as imagens nos apresentam ao olhar.
Caso o espectador se contente com uma mirada rápida, talvez tenha a impressão de que algumas cenas se repetem em fotografias de diferentes dimensões. Dedicando um pouco mais de atenção – lembrando a proposição do artista espanhol Antoni Muntadas, quando defende que “percepção requer envolvimento” –, percebe-se variações sutis em alguns elementos ou pontos da cena. Estas pequenas diferenças remetem à passagem do tempo, fluindo em ritmo aparentemente lento. Com o título da exposição Zonas de Metamorfismo referindo-se às transformações sofridas pelas rochas, a artista pretende remeter aos fluxos do tempo geológico, cuja escala de mudança está muito além da experiência humana. Assim, a experiência proposta através da arte, de modo geral, e no caso destas séries de fotografias e instalação, em particular, propõe uma desaceleração no ritmo da percepção. Um corpo que parece pedra, um cenário que oscila entre que é mesmo leve ou pesado, apresenta-se denso ou fluído.