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abril 29, 2015

Miragem por Paula Ramos

Miragem

PAULA RAMOS

O olhar percorre as imagens e identifica prédios, janelas, telhados, antenas: linhas e planos geométricos a sugerir os ritmos e desenhos da urbe. De modo coadjuvante, emergem também fragmentos de nuvens, árvores, adensamentos irregulares ao fundo, bafejando o contorno de morros. E então, em meio a uma Porto Alegre de céu chumbado, desponta sutilmente um edifício, ou mesmo um conjunto deles. Aclarados por uma luz invulgar, esses fragmentos parecem ficção.

Observador arguto das relações entre natureza e urbano, Nelton Pellenz (São Paulo das Missões, RS, 1967) permitiu-se maravilhar com o fenômeno do deslocamento das nuvens em dias nublados, quando o sol atinge rapidamente um ou mais prédios, destacando alguns pontos e conferindo-lhes evidência, mesmo que fugidia. Fascinado, pôs-se a registrar esses lampejos, intensificando os contrastes por meio de ajustes técnicos na câmera, sem recorrer a efeitos de pós-produção. O resultado são imagens que tensionam realidade e fantasia, sugerindo devaneio, miragem, capricho.

Ultrapassando, porém, o aspecto de quimera, essas luzes efêmeras revelam os novos ordenamentos urbanos. Tradicionalmente, a cidade é percebida pela materialidade de sua arquitetura, volumetria dos bairros e traçado das ruas. Reconhecer o ambiente é condição vital para que possamos nos inserir nele, e poucas coisas são mais angustiantes para quem vivencia o espaço urbano do que o sentimento de desorientação. Com a expansão dos médios e grandes centros, os bairros têm seus perímetros reconfigurados, e alguns pontos, outrora de referência, deixam de cumprir essa função, embaralhando a lógica e a percepção dos transeuntes. A dimensão concreta dessa realidade encontrou, nos movimentos das nuvens e no olhar sensível de Pellenz, a sua resposta poética. Nesse ínterim, o que permanece são os lugares a partir dos quais as fotografias foram produzidas: o apartamento e o local de trabalho do artista, ambos na zona central de Porto Alegre, seus marcos pessoais na cidade.

Obsessivo em seu processo e incansável em seus propósitos, para Nelton Pellenz a fotografia é, sempre, instrumento de invenção, a partir da qual ele revisita o cotidiano, o entorno, a paisagem. É isso que Referenciais móveis para cidades em trânsito evidencia.

Paula Ramos
Crítica de arte, professora e pesquisadora do Instituto de Artes da UFRGS

Posted by Patricia Canetti at 8:46 PM

abril 25, 2015

Conversa entre Lisette Lagnado e Bernardo Mosqueira sobre Encruzilhada

Conversa entre Lisette Lagnado, Diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, e Bernardo Mosqueira, primeiro convidado do Programa “Curador visitante”.

Programa Curador Visitante: Encruzilhada, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, RJ - 29/04/2015 a 02/06/2015

Lisette Lagnado: A ambição do programa “Curador visitante” é projetar o estudante para além dos muros protegidos do Parque Lage, fazer dele um agente multiplicador. Em 1975, quando Rubens Gerchman fundou a escola, em pleno regime militar, o espaço de resistência ficava aqui dentro. Hoje, o desafio é outro. Como fazer a síntese entre a produção interna da escola, os temas públicos da agenda política – penso na agrobiodiversidade que a Profª Manuela Carneiro da Cunha trouxe na aula inaugural – e uma prática artística comprometida com o mundo contemporâneo? Conte como você se aproximou dos estudantes do Parque Lage para convidá-los a participar da exposição “Encruzilhada” que você está curando.

Bernardo Mosqueira: Em janeiro, durante o EAVerão, cheguei a acompanhar quase diariamente os cursos de imersão. Acabei entrevistando todos os participantes e orientando alguns projetos. Daí, convidei Ulisses Carrilho, que havia sido um dos alunos, a me dar assistência. Tornou-se um parceiro fundamental. Para o programa “Curador visitante”, ofereci um curso que, além das leituras, empregou uma estrutura terapêutica voltada para a investigação da encruzilhada que está em cada um.

Em uma das aulas, por exemplo, tiveram de elaborar respostas para duas perguntas: “o que há de singular em sua produção?” e “o que o mundo tem a ver com isso?”. Em outra aula, sobre carnaval e revolução, perguntei: “no centro de todas as possibilidades, o que você gostaria de ser?” e “o que falta, então, para isso?”. Assim, fomos, aos poucos, encontrando a configuração das encruzilhadas de cada um. Uma vez identificadas, adquiriram complexidade graças a novas questões e referências. Entendemos que todos nós fazemos o que precisamos da forma que podemos. Analisar nossas necessidades e nossas possibilidades (os meios para realizá-las) é conhecer nossas encruzilhadas.

LL: Como opera a “encruzilhada” nesta curadoria? É um tema, um dispositivo, ou uma projeção do momento político do país?

BM: Trabalhamos com três métodos simultâneos de pesquisa. O primeiro deles – o mais habitual no sistema das artes – foi articular um conhecimento acadêmico do mundo ocidental, particularmente na transa entre Baruch Spinoza, Friedrich Nietzsche, Herbert Marcuse, Mario Perniola, Toni Negri, Milton Santos e Muniz Sodré.

O segundo método surgiu da cosmologia de ancestralidade africana (ou de genealogia afrobrasileira) e comungou de uma série de consultas a Orunmilá, em especial de um jogo de búzios com a grande ialorixá Mãe Beata de Iemanjá e de alguns jogos com o amoroso Bruno Balthazar.

O terceiro caminho foi uma espécie de dispositivo analítico de linguagem pelo qual, após procurar sinônimos e traduções da palavra “encruzilhada”, buscamos a diferença entre os termos para, então, a partir desses coeficientes, listar suas qualidades e singularidades.

Pudemos entender que a encruzilhada é onde/quando os vetores espaciais cruzam os vetores temporais. Do ponto de vista da percepção, é quando nos surpreendemos com uma situação em que sentimos a necessidade de agir, mas não sabemos que escolha fazer. Ou seja, investimos no signo da transformação e da possibilidade e, portanto, nos encontros que sempre são propícios à comunicação e à circulação do desejo. Porém, mais do que expor um estudo sobre a encruzilhada, o objetivo desta curadoria é propor o exercício da encruzilhada, a encruzilhada enquanto ação.

Dessa forma, a exposição serve à análise do momento político do país, mas serve também para pensar a crise ecológica mundial e as negociações do real nas relações amorosas, por exemplo. De maneira mais ampla, ela se compromete com a pedagogia da análise crítica e serve diretamente a um projeto educativo de caráter transdisciplinar e experimental, como o da atual Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Mais do que um tema, a encruzilhada é cultuada e construída para provocar reflexões. Ela é o objeto de nossa pesquisa, mas também o processo em si. Não nos interessa produzir uma metáfora da encruzilhada, e o resultado tomou a forma de uma exposição, com programação, conteúdo e reverberações.

LL: Por que mudar a montagem várias vezes ao longo da exposição? Qual o sentido disso? De repente, além de propor uma exposição maior do que o escopo previsto (vinte artistas, no máximo), você convidou mais de setenta artistas e ainda propõe aqui um formato instável e difícil, em transformação permanente...

BM: Notamos que pensar a encruzilhada é tratar da possibilidade de mudança do real. No candomblé, entendemos que é para Exu que dirigimos nosso pensamento. Esse orixá, que é o fluxo, o dinamismo, a transformação, a ação, a comunicação e a atividade sexual, se movimenta e modifica o tempo inteiro. Sua casa não tem paredes: tem caminhos abertos.

A partir daí, pudemos entender que a percepção da encruzilhada emerge apenas em alguns momentos, mas sua natureza é ontológica; é uma condição constante. Para fazer uma exposição que fosse encruzilhada (fosse Exu), e não metáfora-da-encruzilhada, não poderíamos congelar um instante da exposição, impedir que se movimentasse e se transformasse. Por isso, pelo menos um novo trabalho é inserido na mostra a cada sete dias. Há ainda uma programação semanal de performances, e, toda segunda-feira, uma parte da montagem da exposição é alterada.

Essas mudanças na organização espacial da mostra criam novos grupos de trabalho, novos discursos e novos sentidos que são anunciados nas frases plotadas no espaço expositivo: “Isto não é uma parede. Isto é um caminho aberto.” Espalhar trabalhos por todas as áreas do parque (Piscina, Terraço, Capela, Oca, Platô, Torre, Gruta, caminhos, encruzilhadas, jardins, trilhas e floresta) faz parte da concepção de uma mostra que conceitualmente não pode se conformar dentro de limites.

LL: Em que medida vocês identificam uma escola com uma encruzilhada? O que ambas têm em comum? Afinal, sua curadoria foi pensada para um lugar de ensino.

BM: Nosso processo se desenvolveu em um momento institucional de encruzilhada. Descobrir como transformar a estrutura da escola em um modelo mais dinâmico, mais livre, mais radical e mais atravessado por outras áreas do conhecimento é uma grande encruzilhada. Levar a EAV ao “grau zero”, como você dizia em janeiro, é trazer a escola para o ponto onde todo caminho é sentido e é possibilidade.

Da perspectiva do aluno-artista, o aprendizado é uma sequência de encruzilhadas. A cada nova informação recebida e a cada nova reflexão elaborada, ele se transforma, toma caminhos diferentes, tem novas responsabilidades, pode outras coisas. “Encruzilhada” só poderia acontecer no contexto de uma escola experimental de arte. Para construir a encruzilhada em si, como a desejamos, entendemos que precisávamos gerar com a exposição a experiência da surpresa, da abundância de caminhos possíveis e da necessidade de tomar uma decisão (que implica sempre em renúncia).

A grande quantidade e diversidade dos trabalhos e as múltiplas possibilidades de associação entre as obras são exigências conceituais próprias de um estado de encruzilhada e atendem um projeto pedagógico. Pensando a mostra principalmente para os estudantes da EAV, desejamos que levem da exposição a noção de “poder-mais”. Desejamos, junto com a escola, inspirar capacidade crítica, força, coragem e responsabilidade. Mas é importante que fique claro que não pensamos a exposição como um espaço para “aprender” somente: configuramos um conjunto de obras a partir do qual desejamos que o público crie conhecimento. Esse é um espaço de ação e transformação.

LL: Quais são os eixos que estruturam o percurso da exposição?

BM: Só posso falar da configuração inicial já que a ideia é que a montagem se modifique a partir dos acontecimentos públicos e das respostas que obtivermos dos visitantes (um pouco como se comungasse da atualidade jornalística dos folhetins).

Há um eixo dominante que atravessa temas como manifestações políticas, carnaval, pornografia e comunicação. Ele fica próximo à peça Território Liberdade: Faça Você Mesmo, de Antonio Dias (1968), para evidenciar que nosso interesse está mais nas ações sobre o real do que em sua representação. Um outro eixo parte de um conjunto de obras feitas aqui dentro do Parque Nacional da Tijuca e abrange trabalhos que investigam a crise ecológica e questões próprias à população negra e aos povos indígenas no Brasil. Assim, a floresta foi examinada como encruzilhada entre local e global, resistência e mundialização.

Temos ainda as relações amorosas como encruzilhadas e um estudo sobre o “possível”. Nesse grupo, há um conjunto de seis obras baseadas na imagem do dado. Seis como os lados do dado. Há um eixo que aborda Brasília, desde seu projeto e construção até um fantástico final, cruzando verdade e mentira. Por fim, há um grupo de performances e trabalhos na área externa que evocam a força que nos leva a dar o próximo passo.

LL: Você saberia dizer em que momento de sua vida tomou a decisão de ser curador de exposições?

BM: Eu estudava Engenharia Mecânica na UFRJ havia quase três anos quando resolvi fazer o curso “Arte e Filosofia”, com Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger, no Parque Lage. Depois de alguns meses, eles propuseram o exercício de produzir um texto crítico sobre uma exposição que estivesse aberta na cidade. Na noite em que apresentei esse texto, Fernando me disse “Bicho, você já é crítico de arte.” E Anna Bella: “Larga essa engenharia. Você tem de ser um de nós.”. Mesmo que estivessem clara e carinhosamente exagerando, e que ela tenha completado com sua clássica máxima “eu estou brincando, mas não estou”, decidi confiar neles.

Desliguei-me da Engenharia, ingressei no curso de Jornalismo na Escola de Comunicação da UFRJ e, pouco tempo depois, comecei a estagiar no setor de Comunicação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde fiquei por aproximadamente um ano e meio. O cotidiano na EAV e no MAM me apresentou aos artistas que tinham na época de 20 a 30 e poucos anos. Acompanhei com muita intensidade essa produção – e posso dizer que a parte mais importante de minha formação se deu (e se dá) dentro dos ateliês dos artistas e em grupos de estudo com eles. Logo que me desliguei do MAM RJ, fiz minha primeira curadoria, “Liberdade é Pouco. O que desejo ainda não tem nome”. Foram 47 artistas, na minha casa, discutindo liberdade. Havia também uma sensação de que os curadores naquela época não eram muito generosos nem muito criativos. Isso, depois, se mostrou em parte uma arrogância de quem era muito novo, mas foi fundamental para que eu me empenhasse em desenvolver um tipo de curadoria baseado na relação atenta e íntima com os artistas e seus trabalhos.

LL: Poderia citar uma curadoria importante na sua formação?

BM: Citaria duas: a dOCUMENTA 13 (em Kassel, na Alemanha, em 2012, com direção artística da curadora Carolyn Christov-Bakargiev) e “Contrapensamento Selvagem” (dentro da mostra “Caos e Efeito”, no Itaú Cultural, em São Paulo, em 2011, com curadoria de Paulo Herkenhoff). Mesmo que eu tenha ressalvas, ambas foram transformadoras na minha forma de ver e fazer exposição.

LL: Me interessa o que exatamente mudou na sua cosmovisão da arte, se é que podemos falar da arte como aparelho de percepção para agir no mundo. Ou seja: você já vinha atuando como curador, mas, de alguma maneira, essas exposições colocaram sua prática em questão, em xeque (numa encruzilhada).

BM: Para mim, realizar uma exposição é o ato político de organizar muitos discursos a partir de um conjunto de compromissos éticos. Localizo a medida do sucesso de uma mostra no coeficiente de transformação que ela gera no público (individualmente, nos grupos e nas comunidades), no artista participante, na instituição, na estrutura das relações e símbolos do sistema das artes e na cultura. Quanto maior e mais positiva for a transformação, mais forte é a exposição. Uma exposição, portanto, deve fornecer, semear e tornar mais possível a elaboração de processos de reflexão.

Posted by Patricia Canetti at 1:46 PM

Pedras Errantes por Isabella Lenzi e Juliana Caffé

Pedras Errantes

ISABELLA LENZI E JULIANA CAFFÉ

Zip’Up: Manuela Costalima - Pedras errantes, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 29/04/2015 a 30/05/2015

[Scroll down for English version]

Por meio de múltiplos suportes, Manuela CostaLima vem desenvolvendo uma pesquisa sobre o lugar e seu processo de significação pela experiência humana. Em uma série de trabalhos recentes, a artista realiza derivas por São Paulo em busca de elementos que partilhem sua experiência no espaço urbano. Em outras obras, explora um desdobramento desse ato de deambular e transpõe o seu caminhar para o ambiente virtual. A cidade real, antes percorrida a pé e fotografada, dá lugar à cidade mapeada pelo Google Street View.

Nessas ações, a artista busca investigar o sentido de lugar, além de questionar e trazer novos significados ao ambiente virtual, que à primeira vista se apresenta frio e desprovido de vida e memória.

Os três projetos pensados para esta exposição partem do local da galeria e tratam do caminhar como um instrumento de significação de espaços e de busca por situações que marquem sua experiência.

Logo à entrada da Zipper, a artista impõe a presença do Gabião, um objeto escultórico de grandes proporções. De uma gaiola metálica repleta de pedras britadas, destaca-se uma pedra maior que rompe a trama metálica e escapa da grelha. Vista da janela da sala da exposição, a escultura cria uma ponte entre o que está presente no espaço interno da galeria e seu tema: a cidade.

O Gabião remete a uma experiência no espaço público, e seus elementos constituintes, pedra e metal, relacionam-se diretamente à materialidade das ruas e sua simplicidade brutal. A obra cria uma espécie de barreira para o público e remete a uma tensão entre indivíduo e multidão que se materializa na dinâmica das pedras que pressionam umas às outras e rompem a tela.

O elemento concreto reaparece no espaço expositivo. Na obra Wandering rocks, as vozes da cidade habitam cubos de concreto espalhados pelo espaço expositivo. Em cada um dos cubos estão gravadas as coordenadas geográficas do início e do fim de caminhos realizados em São Paulo em que a artista capta sons e vozes. Os registros desses encontros fortuitos ressaltam pontos do ambiente urbano que adquirem memória, distinguindo-se dos demais. Em conjunto, a instalação forma um grande fluxo de consciência de uma cidade polifônica, um mapeamento sonoro e geográfico, que convida o público a percorrer o espaço urbano a partir desses múltiplos estímulos.

O som que ecoa das caixas e preenche a sala não é um registro exato de cada caminho, mas uma reconstrução a partir de elementos que marcam a memória subjetiva da artista. No ambiente permanece a essência de uma experiência de espaço público. Esse espaço também é explorado em caminhadas virtuais. A partir da tela do seu computador, a artista captura cenas congeladas da cidade e, ao forçar aproximação por meio do zoom, transforma essas imagens em planos de cor. A repetição da ação traduz seu percurso virtual e o espaço urbano para uma escala cromática que dá origem à obra Geopantone.

Como em uma escala pantone, que contém o código correspondente a cada cor, junto à cada tonalidade captada estão as informações referentes ao endereço virtual daquele lugar, contidas na barra do navegador do Google Street View. A obra propõe assim uma relação com São Paulo a partir de sua paleta de cor.

Em conjunto, os três trabalhos resgatam a essência do espaço público a partir de uma síntese pessoal da experiência vivenciada. O ruído urbano é apagado e o que permanece são instantes singulares captados; as pedras são como edificações em seu estado puro e desagregado; os geopantones representam em cor características do espaço e da paisagem.

Dessa forma, a artista contrapõe instrumentos de controle e racionalização à experiência real e humana. Por meio de uma reconstrução afetiva dos espaços percorridos, busca dar significado àquilo que é frio e desprovido de identidade e apresenta uma cidade singular.

Isabella Lenzi
Juliana Caffé
2015


Wandering Stones

ISABELLA LENZI E JULIANA CAFFÉ

Zip’Up: Manuela Costalima - Pedras errantes, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 29/04/2015 a 30/05/2015

Using multiple media, Manuela CostaLima has been developing a research about the place and its signification process through the human experience. In a series of recent works, the artist performs meanderings throughout the city of São Paulo in search of elements that share her experience in the urban space. In other works, she explores an offshoot of this act of wandering and transposes her roaming to the virtual environment. The real city, previously traveled on foot and photographed, gives way to the city mapped by Google Street View.

In these actions, the artist seeks to investigates the meaning of the place, while also questioning and bringing new meaning to the virtual environment, which at first sight appears to be cold and devoid of life and memory.

The three projects conceived for this exhibition start from the gallery site and regard the act of walking as an instrument of giving meaning to spaces and of searching for situations that mark her experience.
Right at the entrance of the Zipper Gallery, the artist imposes the presence of Gabião, a sculptural object of large proportions. From a metal cage filled with crushed rocks, a larger stone stands out, breaching the metal frame and escaping the grillage. Viewed from the window of the exhibition room, the sculpture creates a bridge between what is present in the internal space of the gallery and its theme: the city.

Gabião refers to an experiment in the public space, and its constituent elements, stone and metal, relate directly to the materiality of the streets and its brutal simplicity. The work creates a sort of barrier for the public and refers to a tension between individual and crowd which materializes in the dynamics of the stones pressing against each other and breaching through the screen.

The element of concrete reappears in the exhibition space. In the piece Wandering rocks, the city voices inhabit concrete cubes spread around the exhibition space. In each of the cubes are found engraved the geographical coordinates of the start and the end points of the routes completed in São Paulo, in which the artist captures sounds and voices. The records of these chance encounters highlight locales of the urban environment which acquire memory, distinguishing it from the others. As a whole, the installation forms a large stream of consciousness of a polyphonic city, an audible and geographical mapping, which invites the public to go through the urban space starting from these multiple stimuli.

The sound that echoes from the boxes and fills the room is not an accurate record of each route, but a reconstruction from the elements that mark the artist's subjective memory. In the environment remains the essence of an experience of public space.

This space is also explored in virtual walks. From your computer screen, the artist captures frozen scenes of the city and, by zooming in, transforms these images into color planes. The repetition of the action translates this virtual route as well as the urban space into a chromatic scale that gives rise to the piece Geopantone.
As in a pantone color chart, which contains a code corresponding to each color, next to each captured tone is the information about the virtual address of that place, contained in the Google Street View browser bar. The work thus proposes a relationship with São Paulo starting from its color palette.

Together, the three works restore the essence of the public space starting from a personal synthesis of a real experience. The urban noise is cleared and what remains are singular captured moments; the rocks are like buildings in its pure and unbound state; the geopantones represent in color the characteristics of the space and of the landscape.

Thus, the artist contrasts control and rationalization instruments with the real and human experience. Through an affective reconstruction of covered spaces, she seeks to give meaning to that which is cold and devoid of identity, and presents a unique city.

Isabella Lenzi
Juliana Caffé
2015

Posted by Patricia Canetti at 11:55 AM

Belo em si por Paula Braga

Belo em si

PAULA BRAGA

Delson Uchôa - Belo em si, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 29/04/2015 a 30/05/2015

Olhando para a beleza dos padrões simétricos encantadores de uma pintura de Delson Uchôa, o espectador tem duas opções: parar na superfície da aparência ou galgar ao Belo em si.

Uso aqui esse conceito de sonoridade platônica depois de passar três dias mergulhada no mundo do artista alagoano, cuja rotina no ateliê, perto de uma praia distante do burburinho de Maceió, inclui horas dedicadas à contemplação e ao cuidado do Belo em um sentido filosófico: na calma e na dedicação a essas pinturas gigantes cheias de tramas e cores luminosas, olhar um espelho, contemplar a beleza das coisas do mundo sensível e a partir delas almejar o suprassensível.

Quem já leu Platão percebe aqui um neoplatonismo alagoano, que traz o filósofo Plotino para a mesa onde se serve o sururu comprado nas favelas à beira da lagoa Mundaú. Para construir um texto que se aproxime desse banquete tropical, discuto a obra de Delson Uchôa seguindo a ideia de belo na filosofia antiga.
Convite ao leitor: leia reclinado num dos divãs do banquete, num salão cujas paredes estão cobertas pelas peles coloridíssimas da pintura de Uchôa e adentre um corpo do mundo que só quer atiçar, com a beleza, a busca do belo em si.

O Belo como busca da origem

Para entender a obra de alguns artistas é preciso sair da posição distanciada de espectador. Como entrar numa obra bidimensional? Obras de Delson Uchôa frequentemente têm várias camadas, peles sobrepostas, que podem ser levantadas e adentradas. Você se coloca entre duas peles coloridas, passa a ser uma das camadas da pintura. Outra experiência imersiva similar a esta de se cobrir com pintura é ser corpo tridimensional na casa-ateliê onde Delson trabalha. Se aquela casa fosse achatada em uma superfície bidimensional, teria tantas cores quanto as pinturas expostas nas várias paredes da casa.
Há pinturas no chão, há pinturas penduradas por fios, que balançam soltas no espaço e pinturas descansando em mesas enormes que ficam ao ar livre, para que o sol ajude a tinta a secar num tom mais esmaecido, e para que a chuva desenhe pequenas poças de cor. Tudo isso está cercado por um jardim aguado diariamente às 5 da manhã, com espécies raras, cultivado sem pressa, esperando a pintura da natureza crescer em seu tempo. A casa é uma pintura tridimensional que contém pinturas bidimensionais em vários planos.

Delson preparou um quarto para mim na pintura-casa, com Tear (1989) na parede em frente à cama e Calota Lunar na parede lateral. Na mesa de cabeceira deixou três livros: uma coletânea de artigos sobre o neoplatonismo, a tradução da Ilíada feita pelo Haroldo de Campos, e A Invenção de Orfeu do poeta alagoano Jorge de Lima (“há sempre um copo de mar para um homem navegar”). Eu, que acredito no deus acaso e acho que um artista se revela pelos livros que leu, me deixo conduzir por esses três planos da casa, em feliz respeito pela sincronicidade. Frases desses livros começam a se desenhar em padrões flutuantes e invisíveis pela casa-pintura. E no jogo de dimensões e espaços, pergunto-me se tudo isso não poderia explodir para dimensões maiores que o espaço, para a quarta, quinta, sexta dimensão. Como seria a beleza crescida em extensão, volume, tempo, e sabe-se mais quais coordenadas? Seria a beleza que se pode pensar mas não se pode perceber com o corpo de que somos feitos: beleza inteligível mas não sensível.

Na teoria das ideias de Platão (lembra que no meu quarto havia o livro sobre neoplatonismo?), nosso mundo sensível, esse que o corpo percebe, é sombra do mundo inteligível. Sombra é uma diminuição em dimensão. Um corpo tridimensional tem uma sombra bidimensional. Como fazer o caminho contrário e partir do mundo de sombras em direção ao mundo inteligível? O procedimento sugerido por Platão para o retorno à origem plena, para o retorno à casa original, é subir degraus com o impulso do amor, como quem sobe uma escada. Amor, em Platão e neoplatônicos, nada mais é que desejo de beleza. E, sendo desejo, nunca se satisfaz, então sempre quer mais beleza, sempre quer uma beleza do degrau acima.

Ama-se primeiro os corpos do mundo perceptível com os sentidos. Depois, percebe-se que a beleza não pode estar em um corpo só, e passa-se a amar vários corpos perceptíveis. Daí, percebe-se a beleza que está nas produções feitas por esses corpos, nos ofícios e nas criações intelectuais. Por fim, chega-se ao amor como desejo da máxima beleza, que é a sabedoria, e neste ponto o amante parou de amar sombras do belo e está muito próximo do verdadeiro Belo em toda a sua plenitude dimensional. Este é o Belo em si.
No neoplatonismo da Renascença, os degraus descritos por Platão em O Banquete são substituídos por espelhos posicionados cada vez mais longe da verdadeira beleza. O belo do mundo material é reflexo pálido num espelhodistante da beleza original.

A origem do Belo

Falando sobre sua casa-pintura, Delson costuma dizer que se sente morando dentro da baleia. Lá dentro, cercado pelas pinturas, ele habita um corpo forrado por mucosas coloridas. Sente-se pintando de dentro de uma “viva-pintura”. “Morar na pintura será perpétua reflexão?” pergunta ele. Aqui a palavra “reflexão” sugere tanto o pensamento que é degrau para se atingir o belo em si quanto a reflexão de um espelho. Morar na pintura seria olhar somente para si mesmo, para o “belo em si” narcisista? O artista que vive em sua própria obra corre o risco de, como Narciso, obsedar-se com sua própria imagem refletida no lago e ali definhar em autofagia? Não se, como o neoplatônico Plotino defende, existir o desejo de retorno à casa, à origem, num movimento cujo patrono não é Narciso, mas sim Ulisses, o herói que depois da Ilíada empreende a viagem de retorno a Ítaca desviando-se do belo sedutor de Calipso e Circe, rumo a um belo mais virtuoso, que é origem de si e portanto semelhante de si.

Delson Uchôa também caminha em busca do semelhante de si, daquela beleza que ele vê refletida em suas obras, mas que é uma beleza de maior dimensão, cujas sombras ele prossegue adicionando em camadas a obras feitas muito tempo atrás. Não pretendo sugerir que ele esteja acessando uma beleza de ordem metafísica superior. Afirmo, no entanto, que ele busca uma beleza semelhante a si – ou semelhante à sua produção imagética – na origem das tramas e mandalas que se acumulam nas camadas de suas obras: os padrões do artesanato artesania brasileira são usados por Delson como um âmago de onde tudo provém. E que por sua vez provém, no limite da série, de um ponto condensado, ele me diz – uma origem de tudo, que se pode chamar de belo em si ou de Uno ou de “momento imediatamente anterior ao Big Bang”. Então, que diferença faz falar do belo em si ou do belo em mim ou do belo em cada pintura e em cada corpo, se tudo já foi átomo daquele âmago denso de pura beleza indivisa? A autofagia praticada por Delson engole o todo.

Autofagia

A questão da autofagia apareceu na produção de Delson Uchôa quando ele desenrolou pinturas muito antigas, feitas décadas antes, e decidiu continuar a pintá-las, como que se alimentando de sua produção anterior. Além disso, seu método de trabalho é autofágico por assimilar como pincelada cada marca feita pela rotina da casa, pois a camada mais antiga de cada trabalho já foi o tecido da toalha de mesa ou a resina espalhada por cima das lajotas do chão. Nesta última técnica, o artista despeja resina transparente no chão de lajotas de barro, espera a secagem, pinta no chão por cima da resina seca, pisa naquele tapete inusitado, arrasta os móveis, varre, passa produtos de limpeza doméstica no chão-pintura. E um dia, descasca a pintura do chão, deita-a numa mesa de trabalho e, a esta base cheia de memória, acrescenta elementos, linhas, cores. Exercitando a “perpétua reflexão” de morar na pintura, há algo de autorretrato aqui, que extrapola o rosto e registra o movimento cotidiano, o tempo do retratado. Nenhuma pintura fica pronta em menos de seis meses, e o artista costuma datar o ano de início e de término de cada obra. Ela já foi chão ou toalha de mesa, e antes ainda, foi átomo do cerne do mundo. É preciso tempo para o processo criador gerar mundos.

Duas fotografias de Curral da praia mostram o acúmulo de tempos da autofagia. Na primeira imagem, feita nos anos 1980, o trabalho está instalado em uma cerca de madeira construída no mar, o curral, técnica indígena de pesca ainda usada em Alagoas para aprisionar os peixes. A pintura é uma lona branca estreita na qual o artista definiu um labirinto de figuras geométricas. Seria o trabalho a lona branca ou a interação da lona com a cerca do curral? A segunda fotografia do mesmo trabalho, feita por volta de 2006, esclarece que a obra não existe sem o curral: agora a cerca foi adicionada à lona branca original, e anda com ela para onde o trabalho for levado.

Cultura Híbrida

Ainda em autofagia cultural, o artista olha para o espelho da arte nordestina popular, para os desenhos geométricos em carrocerias de caminhão, para os bordados, a cestaria, a cerâmica marajoara e volta, como Ulisses, para a origem virtuosa de tudo. Como ele costuma afirmar, “o abstrato não existe”. O que existe é um sistema cognitivo que não reconhece a origem daqueles padrões.

Em Alvorada, a lona vivida na rotina da casa juntou-se a uma esteira de palha, dessas usadas para banho de sol na praia, e a trama da esteira orientou os desenhos feitos com pincel. Artesanato indígena e geometria são integrados à feitura da peça que faz parte dos “mestiços de primeira geração”, como explica Uchôa: mamelucos são as peças que têm em seu DNA o índio e o europeu. Padrões geométricos aparecem no neoplasticismo e na artesania indígena também, então é difícil dizer se a cor dos olhos vem da mãe terra ou da avó europeia, mas o certo é que algumas composições de Delson ecoam a cestaria e a art nouveau, a luminosidade nordestina e os vitrais de catedrais. Daí Alvorada ser pintura mameluca.
Palmares e Catolé são cafuzas, mistura de elementos indígenas com africanos, o que resultou numa geometria mais definida, de retângulos coloridos como os dos tecidos africanos. E dos mestiços iniciais, a pintura mulata é Muxarabi, na qual o elemento africano é mouro, das treliças que resguardam a intimidade das casas na arquitetura colonial brasileira. Apresentada na 53ª Bienal de Veneza, Muxarabi é feita com três lâminas sobrepostas que podem ser manipuladas pelo visitante. A última pele é para ser usada, escrita, modificada pelo visitante, no conforto privado de ver sem ser visto, e escrever o que quiser no afago da luz filtrada pela peça.

Definida a primeira geração de hibridismo cultural no Brasil, Delson Uchôa olhou para a América Latina como um todo, e juntando-se a Torres-Garcia dirigiu-se à origem apontada pelos símbolos primitivos que povoam Rapsódia Americana e que assumem um caráter ritualístico em Catedral TG. Aqui o templo, a casa que conecta homem e mistério original, recebe as iniciais do tronco idiomático tupi-guarani e do nome do artista uruguaio que inverteu o mapa da América do Sul: nosso norte é o sul. Assim como o mapa de Torres-Garcia parece estar pendurado (“como um presunto”, diz Delson), a pintura Catedral TG deve ser içada durante uma cerimônia, de forma que os cincos círculos, desdobrando-se diante do espectador, enfatizem o movimento de ascensão, de distanciamento do belo material para o belo inteligível. Delson fala ainda desses círculos como luas, ostensórios e como homenagem a Oxumaré, orixá dos ciclos e simbolizado pelo arco-íris. Os círculos de Catedral TG sincretizam alegria, magia, mistério e religião, apontando para o hibridismo da alma latino-americana. Em Florão da América, os círculos estão concêntricos, sugerindo a totalidade como reunião de várias totalidades: uma América fabulosa.

A mestiçagem expandida

A série mais recente de Delson Uchôa expande a pintura e discute a ideia de cultura em tempos de globalização. Obras da série Bicho da Seda trabalham com um elemento novo que orienta a composição e padronagens da pintura: sombrinhas made in China, que colocam cores e padronagens decorativas na paisagem seca da caatinga alagoana. Evidentemente, chamar esses objetos de sombrinhas é muito mais adequado a uma discussão sobre pintura expandida do que nomeá-los guarda-chuvas. As sombras são metáforas recorrentes na discussão sobre a função mimética da pintura, que olha para a natureza tridimensional e dela cria uma representação planar. Delson Uchôa salpica a paisagem da caatinga com as cores industrializadas das sombrinhas e depois registra o resultado em fotografia. Em vários registros, as sombrinhas estão narcisicamente instaladas próximas à superfície refletora de um poço de água, remetendo à beleza obsedante e aos riscos de não se observar essas fotografias para além da superfície brilhante do metacrilato. A presença de elementos industrializados e sintéticos na paisagem colore a tristeza arenosa da caatinga, mas tem seu lado feio. As sombrinhas são assustadoramente baratas, produzidas à custa de baixíssimos salários e alto impacto ambiental. Para além da superfície colorida, o belo da matéria chega a um discurso político.

Renascimento e luz

A pintura passa por mutações na obra de Delson Uchôa e na história da arte. Volta forte na arte contemporânea brasileira, com muitos jovens seguindo a vertente aberta pela exposição Como vai você, Geração 80?, de 1984, na qual Uchôa apresentou A festa no céu, trabalho feito no teto do edifício do Parque Lage, como uma Capela Sistina tropical, prestando homenagem à história da arte e às particularidades do Brasil.

Nos anos 1980, Delson já era conhecedor de história da arte, que estudava voraz e solitariamente em paralelo às demandas da faculdade de medicina, concluída em 1981. O convite de Marcos Lontra para apresentar uma obra na hoje famosa exposição do Parque Lage motivou-o a juntar o que lia na coleção Gênios da Pintura com as referências figurativas e geométricas da pintura popular, dos parques de diversão nordestinos e carrocerias de caminhão. Interessava-o a “estridência cultural e luminosa do nordeste” e a pintura no teto é o início da integração entre arte europeia e arte popular nordestina. Para Delson, a exposição Como vai você, Geração 80 revelou a possibilidade de trabalhar a partir de um novelo de referências cujos fios até hoje ele segue. Novelo é também o título de uma pintura expandida, que Delson diz que não se importa se alguém preferir chamar de escultura, mas que são, literalmente, “sombrinhas-pinturas” expandidas para a terceira dimensão.

Novamente a ideia de um núcleo denso e total aparece no discurso de Uchôa na figura de novelo que contém todos os fios, que possa explodir em diferenciações reconhecidas como arte popular, arte europeia, figuração, geometria, símbolos primitivos, cores, natureza, água, praia, e sombrinhas. Uchôa identifica a década de 80 como o instante do Big Bang. Tudo o que é belo é brilho refletindo a luz da origem. Quem faz essa reflexão é a arte ou a natureza? É todo o processo criador: natureza naturante.
Nas pinturas de Delson Uchôa o belo expande-se para muitas dimensões, sai da parede para ocupar o espaço, a casa, a caatinga, a discussão sobre arte nacional e economia global. A fotografia de Craibeira chegando à praia nos remete à pintura neoplatônica de Botticelli. Craibeira brilha com suas cores iridescentes refletindo a luz do sol, da areia e do espelho de água. Não é Narciso obsedado, é Vênus corporificando o belo.

Paula Braga, 2015

Posted by Patricia Canetti at 11:22 AM

abril 24, 2015

Tombo por Thais Rivitti

Tombo

THAIS RIVITTI

Rodrigo Braga - Tombo, Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, RJ - 02/04/2015 a 24/05/2015

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Há várias histórias que contam a chegada das palmeiras imperiais ao Brasil. A mais conhecida delas afirma que as palmeiras, originárias do Caribe, teriam entrado no Brasil trazidas das ilhas Maurício. Luis d’Abreu, oficial português cuja embarcação naufragara, conseguiu alcançar as Maurício e, ao sair de lá, veio para o Brasil trazendo com ele sementes da planta cultivada ali pelos franceses no Jardim Pamplemousses. A Palma Mater, a primeira em terras brasileiras, teria sido plantada pelas mãos do próprio monarca, D. João VI, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, ainda em 1809, um ano depois da corte portuguesa ter se instalado no Brasil. E as demais palmeiras do Jardim Botânico seriam todas “filhas” diretas da Palma Mater, guardando essa origem comum. Por mais fantasiosa que a narrativa seja, é preciso reconhecer que ela está em plena consonância com a ideologia do regime monárquico do século XIX, cujo poder tinha origem numa única fonte, o Rei ou Imperador, e cuja sucessão era hereditária. Não demorou para as palmeiras imperiais tornarem-se símbolos do Brasil, juntando-se a outros elementos que viriam a compor a noção de identidade nacional.

A urbanização que acompanha a vinda da corte portuguesa ao Brasil introduz na paisagem do Rio elementos que, como as palmeiras imperiais, passaram a compor o imaginário nacional, no momento em que o país ainda gestava sua independência. As construções erguidas na cidade no início do século XIX eram neoclássicas, evocavam um passado (a tradição clássica greco-romana) que o Brasil nunca tivera. O arquiteto francês Grandjean de Montigny, depois de passar uma temporada na Itália pesquisando a arquitetura antiga e renascentista, chega ao Brasil em 1816, como integrante da Missão Francesa. No Brasil, Montigny foi professor da Academia de Belas Artes e construiu alguns edifícios, dentre eles a própria Academia (da qual hoje só restou o portal, que foi transportado por Lúcio Costa para o Jardim Botânico) e Praça do Comércio, atual Casa França-Brasil.

A exposição Tombo, de Rodrigo Braga, articula esses dois elementos essenciais à formação de uma identidade nacional: o natural e o arquitetônico, ao sugerir uma analogia visual entre os troncos (estipes) das palmeiras e as colunas do salão do espaço expositivo. Para além de problematizar o caráter postiço da noção de brasilidade, construída por meio da apropriação de elementos exógenos, o trabalho de Rodrigo Braga atravessa a história para se colocar no presente.

As palmeiras, caídas, em posição horizontal, formam um espaço em ruínas. Grossos caules em decomposição mostram um corpo que testemunhou quase 200 anos de história brasileira e que, finalmente, cedeu. O vídeo, em exposição em uma das salas, traz imagens da retirada de palmeiras já sem vida, já sem coroa, revelando a paisagem atual do Rio de Janeiro em franca transformação.

Abordando esgotamento de uma certa concepção de identidade nacional, o trabalho abre-se àquilo que ainda está por vir. Questionando a lógica segundo a qual o passado prescreve o futuro, o próprio passado aparece na exposição como uma série de narrativas abertas, a serem escritas ou recontadas. O conjunto de cópias de documentos, fotografias, pranchas botânicas, plantas e desenhos arquitetônicos em uma das salas expositivas são pontos a serem ligados por uma narrativa histórica sempre atualizada no presente.

Thais Rivitti
Curadora


Rodrigo Braga - Tombo, Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, RJ - 02/04/2015 a 24/05/2015

There are a number of stories that tell how imperial palms first reached Brazil. The best known of them says that the trees, native to the Caribbean, were brought to Brazil from Mauritius. After surviving a shipwreck, Luis d’Abreu, a Portuguese officer, managed to reach that island, and from there he headed for Brazil bearing seeds of the plant, which was grown there by the French in the Pamplemousses botanic garden. The first Palma Mater to grow in Brazil is said to have been planted by the monarch himself, Dom João VI, in the Rio de Janeiro botanic garden as early as 1809, just a year after the Portuguese set up court in Brazil. The other palm trees in the botanic garden are believed to be the direct “offspring” of this first imperial palm, sharing the same common origin. However apocryphal the story may be, it is quite consistent with the nineteenth century ideology of monarchic rule, whose power derived from a single source, the king or emperor, and whose succession was hereditary. It was not long before the imperial palm became a symbol of Brazil, alongside other elements that gradually combined to form the notion of national identity.

The urban development spurred by the arrival of the Portuguese court in Brazil introduced new elements to the Rio landscape that, like the imperial palms, started to inhabit the national imaginary at a time when the idea of independence for the country was still embryonic. The buildings erected in Rio in the early 1800s were neoclassical, alluding to a past (the Greco-Roman tradition) that did not pertain to Brazil. French architect Grandjean de Montigny, after spending some time in Italy researching ancient and renaissance architecture, disembarked in Brazil in 1816 as part of the French artistic mission. He taught at the Academy of Fine Arts and designed some buildings, including the Academy’s own premises (of which all that remains is a doorway, which Lúcio Costa transported to the botanic gardens) and Praça do Comércio – the hub of the city’s trade activities – now Casa França-Brasil.

Rodrigo Braga’s exhibition, Tombo, articulates these two essential elements in the formation of a national identity – the natural and the architectural – by suggesting a visual analogy between the trunks (stems) of the palm trees and the columns of the exhibition room. While it addresses the artificiality of the notion of Brazilianness, pieced together by appropriating foreign elements, Braga’s work traverses history to bring it into the present.

The palm trees, toppled over, lying horizontally, form a space in ruins. Their thick, decomposing stems are bodies that witnessed almost two hundred years of Brazilian history and finally surrendered. The video, screened in one of the adjoining rooms, shows how the palm trees, already dead and stripped of their crowns, were removed, revealing the present-day landscape of Rio in the very throes of transformation.

Investigating how a certain conception of national identity has run its course, the work is receptive to whatever is yet to come. Questioning the logic by which the past dictates the future, the past itself appears in the exhibition in the form of a series of open narratives to be rewritten or retold. The copies of documents, photographs, botanical sketches, plans, and architectural drawings in one of the exhibition rooms are all dots to be joined together by a historical narrative that is forever being renewed in the present.

Thais Rivitti
Curator

Posted by Patricia Canetti at 4:03 PM

abril 23, 2015

Verdadeiramente por Bernardo Mosqueira

Verdadeiramente

BERNARDO MOSQUEIRA

Leonardo Remor - O vento dissipa as lembranças de uma realidade anterior, Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 18/03/2015 a 26/04/2015

Porto Alegre, 2015. A cidade é um equívoco. Alguém disse, de forma melancólica, que aqui havia verde, que, no passado, aqui havia água. Mas, naquela época, o que havia de bom se já era cidade? Ó, cidadão, é mesmo para você que falo: renuncie o que acredita saber para conseguir descobrir que você não sabe. A tremenda petulância desse povo de Ocidente só reflete em discurso opaco, caminho frustrado e posicionamento arrogante que, ao tentar esconder a insegurança, dificultam encontrar ou construir beleza no que ainda podia ser semente. Nem plantinha baixa era ainda.

A cidade moderna é montada a esconder o que há de sujo, podre, poluente. Cloaca Máxima é o nome do esgoto de Roma onde foi jogado o pobre do São Sebastião, tão sofrido, lânguido e afirmativo. O cinema moderno é sonho compartilhado. Nasce e, sob tendas, acontece nas atrações, ao lado de outras magias, feitiçarias, bizarrices, infidelidades e desconhecimentos. Hoje, seu espaço – físico – é heterotópico como o jardim.

O jardim, por sua vez, nasceu com a sobra do tempo, com a sobra de comida, com a sombra, com a propriedade privada, com muda, enxerto, água e sol. E cuidado. Se antes a gente podia pensar no que vai fazer além de sobreviver, agora tem de ver desespero no horizonte. ¡Ayudame a mirar!

A natureza sempre foi e sempre será, mas sempre como nunca antes. Falta pouco para acabarmos, e repito o que já lhe perguntei e você não respondeu, ó, cidadão: o que, enfim, há de singular? E o que o mundo tem a ver com isso? Será que as respostas estão no já velho enigma escondido na Filadélfia? Lá, a cachoeira, o lampião?

Se isso fosse uma máquina de produzir fantasmas ou uma projeção ao vivo ou uma brincadeira com escalas ou algo diferente que o “tira da rotina”, isso seria algo como a feira de ciências que se repete sempre da mesma forma todo ano: isso seria senso comum, quase nada.

Mas não, cidadão. Isso é um velório relaxante do mundo. Isso é o elogio ao voyeurismo da própria desgraça em oposição ao passante comum que não é cego, mas não vê. Isso é um projetor de imagem/luz que ilumina o peso, a resistência e a morte dentro de tudo que é matéria. Isso é um desespero para se fazer entender (muito solitário e um pouco mais solidário do que generoso). Mas, sobretudo e lindamente, isso é um diorama que abriga no seu centro o próprio público e seus desejos.

Que verdura vem a ser Guaíba? Repita as perguntas. Que território é esse? Público? Mesmo? Relacional ou interacional? Esta exposição sem gente não é nada. São as pessoas e seus comportamentos aqui dentro que podem gerar interesse. São as pessoas e seus comportamentos, sempre, que geram interesse. Guaíba para limpar calçada. Macro vira micro. E o micro vira macro, num jogo que cativa o olhar, que cativa o olho, que torna o olho cativo, o olho em cativeiro, o olho prisioneiro. E então, por fim, nos torna prisioneiros da aparência. O espaço arquitetônico é sempre imaginário e concreto. A arquitetura (pelo fim das metáforas!) é como manejo do espaço para dramatizar a natureza. Vamos encenar no imaginário. Um depois do outro. Então, finalmente, estamos fabricando fantasmas, desorientações, discursos de estratégia opaca. Volume, aparência. Plantinha, MDF. Guaíba, tinta, fusível.

Constelação, montanha de folhas, sal, pedra, coisas da natureza. Pedra, areia e planta. É pedra. Areia. E planta. Com atraso, ao vivo, maior, estranho, mais alto, mais baixo. Decidir as formas como o outro vê é criar ficção. É desenhar laços de poder. Mas falta dado, sobra dado. Tem um coeficiente complexo entre fricção e fogo. Poderíamos ter vivido num mundo onde o que o outro sabe é mais encantador do que assustador. Hélas! Poderíamos ter vivido num mundo onde se entende e agradece pela verticalidade alternada e constante necessária para a riqueza das relações. Se falta pouco, que vivamos sem os afetos tristes, que pensemos o que há na relação entre melancolia, insegurança e espacialidade poética.

As cidades são palimpsestos de diferentes linguagens de poder de diferentes tempos. Faliu antes de abrir. Não soube. Tempos outros que são só o presente, esse lugar de passagem. E elogiemos a resistência e resiliência do que aqui é verdadeiramente móvel. E esse texto, em cada letra, é pleno na leveza e na graça de um belo jardim a passeio.

Posted by Patricia Canetti at 1:12 PM

Não temo quebrantos por Raphael Fonseca

Não temo quebrantos

RAPHAEL FONSECA

Felipe Caldas - Corpo Santo, Santander Cultural, Porto Alegre, RS - 18/03/2015 a 26/04/2015

O projeto RS Contemporâneo possui um pressuposto claro: dois profissionais de Porto Alegre selecionam quatro artistas atuantes na cidade para serem acompanhados por e dialogarem com quatro curadores de outros estados do Brasil. Tratando-se de nossa escala continental, não se faz óbvio que as duplas de comparsas formadas desse modo já se conheçam previamente – ao menos este não foi o caso desse “encontro às escuras” com Felipe Caldas.

Sermos da mesma geração e cursarmos ao mesmo tempo nossos doutorados em história da arte era apenas o começo da série de coincidências que perpassa o meu percurso e o de Felipe. Se ele foi criado na pacata cidade de Alvorada, ao lado de Porto Alegre e com menos de 200 mil habitantes, também fui acostumado a uma relação de centro e periferia com o Rio de Janeiro. Ser criado na zona oeste da cidade, no enorme bairro de Jacarepaguá, também me ensinou, assim como percebi nos relatos de Felipe, a sempre ter de sair duas horas antes de casa para qualquer compromisso e levar, para o bem e para o mal, a vida muito a sério.

Conhecer o seu ateliê foi como visitar a casa em que fui criado e onde minha mãe ainda reside; a amálgama entre vida profissional e vida familiar, entre vida ativa e contemplativa, tornou-se nostálgica e cheia de detalhes. Sentamos todos na mesma mesa para almoçar sem distinção entre mãe, filhos e visita, com cachorros que dormiam aos nossos pés, e com um fluxo de assuntos que se movimentava das questões específicas daqueles que estudam as artes visuais para observações sobre a vida que apenas as matriarcas sábias são capazes de construir.

Ao lado desse espaço de encontro, havia um pequeno altar em que duas esculturas religiosas afro-brasileiras estavam concentradas; a mãe de Felipe é filha de Oxum e frequenta as chamadas casas de batuque desde a juventude. Mais do que isso, trabalha como costureira de roupas de santo para outros praticantes. Enquanto isso, minha mãe trabalha como costureira modista e é filha de Iansã. Pratica esporadicamente a umbanda e, quando reza, pede para os bons guias de luz, Nossa Senhora da Medalha Milagrosa e os pretos velhos que admira.

Artista e curador desta exposição coincidem quanto ao fato de não serem frequentadores de nenhum espaço religioso, mas contrastam quanto às suas ascendências afro-brasileiras: o primeiro é filho de Ogum e este que escreve é de Xangô. Não podemos negar a presença constante de cantos, imagens e objetos afro-brasileiros dentro dos nossos espaços domésticos desde nossas infâncias; estes formaram a nossa cultura visual e a ideia do que seria uma religião de nossas famílias.
Imagino que seja a partir desse contato diário e reflexivo sobre a relação entre imagem e religião que advenha o interesse de Felipe Caldas na construção da série nova de trabalhos apresentados no Santander Cultural. Corpo santo nasce da rotina, dos laços familiares e dos afetos que transbordam nossas relações.

Formalmente, ao se observar a produção do artista, é possível aproximá-lo de outros autores cujas imagens denotam um embate entre corpo e tela ou papel em branco. Em obras expostas recentemente, como em uma série de desenhos de 2011-12, é perceptível a sobreposição de informações visuais espalhadas por toda a superfície. Faz-se difícil contornar a ação do artista, o que torna estas obras um registro da gestualidade e dos materiais utilizados (como grafite, carvão, tinta e betume) sobre o branco – é essencial a experimentação da forma e o enfrentamento do desenho como processo em que o tempo age.

Já numa série de pinturas expostas em 2012 e retomadas em 2014, o artista explorou um caráter mais narrativo de sua produção: os sonhos. Quando observamos algumas destas telas, como Eu sonho com Beuys e Antônio Dias (2012), em que Felipe inicia uma pesquisa em que dialoga com alguns dos artistas que admira e que se configuram como suas referências, sua pintura se torna menos violenta e dispersa, construindo uma imagem mais narrativa. Na obra citada e relativa a Beuys e Dias, é na anatomia do animal ao centro da composição que se concentram as manchas assimétricas e de cor barrosa que vinham a ser exploradas pelo artista. O mesmo pode ser dito de outras imagens dessa mesma série em que áreas de pinceladas rápidas contrastam com figuras que aparecem de modo difuso do que poderia ser o fundo da imagem.

As pinturas que compõem a série Welcome to macumba, também do ano passado, parecem ser mais familiares ao conjunto de obras de Corpo santo. Além da proximidade no que diz respeito às narrativas aqui propostas, há um maior detalhamento da materialidade dessas cabeças de animais – o caráter expressivo comentado no começo não abandona as suas preocupações, mas me parecem ser as primeiras imagens em que claramente são perceptíveis contornos anatômicos e uma relação mais clara entre primeiro plano e segundo plano.

No que diz respeito às novas pinturas e desenhos apresentados no Santander Cultural, o primeiro dado que me chama a atenção diz respeito à monumentalidade da forma que não está contida exclusivamente na escala das telas, mas no modo como os corpos as preenchem. Felipe dá destaque às figuras centrais a essas composições e, mais que isso, proporciona um entorno para suas carnes que faz com as que as imagens respirem e as vejamos com clareza. Ainda há espaço para experimentação dos materiais e das pinceladas rápidas, mas esses elementos não se sobrepõem aos corpos, e sim contribuem com seu destaque.

Temos uma resolução formal da sacralidade que bebe claramente de tradições pictóricas ocidentais e muitas vezes cristãs – não à toa aí estão citações a Andrea Mantegna e à Capela Sistina de Michelangelo. Porém, o que me parece interessante é que temos perante os nossos olhos um corpus de distintas configurações físicas da santidade tanto numa perspectiva cristã, quanto com elementos iconográficos afro-brasileiros e de outras distintas culturas como a budista (e suas tartarugas) e a egípcia (o ouroboros). Mais do que isso, fica o convite para que o espectador acesse tal conjunto de signos e estabeleça cruzamentos a partir de seus vocabulários imagéticos – um homem sentado num trono vermelho não necessariamente é São Jerônimo, do mesmo modo que uma mulher que traja azul não deve ser rapidamente associada a Iemanjá. O artista cria, portanto, um panteão de colagens de elementos que são, antes de tudo, apenas imagens.

Creio ser interessante pensar junto a Hans Belting e seu livro A verdadeira imagem, publicado em 2006. Logo na primeira frase, o historiador se pergunta: “Que é uma imagem verdadeira?” – imagino que esta pergunta seja aplicável também ao conjunto aqui proporcionado por Felipe Caldas e, abrindo um pouco a questão, à relação entre imagem, religião e Brasil. Em outras palavras, essa série de desenhos e pinturas me leva a perguntar se existiria uma “imagem verdadeira” no território das religiões brasileiras; como responder essa questão se, do mesmo modo que distintas foram as correntes do budismo pelo mundo asiático, multifacetadas foram também as organizações religiosas no Brasil?

“A fé na verdadeira imagem trai-se também a si mesma, já que facilmente pode ser abalada”, segue a argumentar Hans Belting.[1] Nas duas instalações presentes na exposição, essa traição inerente a qualquer imagem vem à tona e denota a potência da pesquisa de Felipe Caldas. Um barco de papel, objeto ritualístico de alguns grupos budistas, é pintado de dourado, içado ao ar e tem sua fragilidade escancarada. Já no chão, vemos um ponto riscado (assinatura gráfica da umbanda) criado pelo artista e feito com sal grosso. O vento que pode derrubar o barquinho é o mesmo capaz de dissolver o grafismo do chão e verter ambas as instalações naquilo que sempre foram: imagens.

Experiências visuais como essas permitem cruzamentos entre espaços, tempos e crenças que convidam o público a fruir e aprender sobre as imagens na mesma medida que me fizeram conhecer as até então por mim ignoradas casas de batuque no Rio Grande do Sul. A partir de meu desconhecimento, pude perceber os tantos pontos em comum não apenas entre o batuque daqui e a umbanda do Rio de Janeiro, mas entre a persistência de Felipe Caldas na criação de imagens e a minha própria na tentativa de escrever.

Seguimos em busca de imagens e palavras verdadeiras que têm prazo de validade; criamos e analisamos esses corpos santos que, quando jogados para o mundo, rapidamente se tornam profanos. Conscientes dos nossos limites, não tememos, porém, os quebrantos; parafraseando e adaptando um canto de Clara Nunes: “Dentro do samba nós nascemos, / nos criamos, nos convertemos / e ninguém vai tombar a nossa bandeira.”[2]

Notas
[1] BELTING, Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne Editora, 2011. p. 10.
[2] “Guerreira”, composta por João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, e cantada por Clara Nunes no disco homônimo lançado em 1978.

Posted by Patricia Canetti at 1:08 PM

abril 1, 2015

Iberê e Seu Ateliê por Paulo Gomes

Iberê e Seu Ateliê

PAULO GOMES

Iberê e seu ateliê: as coisas, as pessoas e os lugares, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS - 02/04/2015 a 02/04/2016

Esta exposição tem como tema a poética de Iberê Camargo, o universo mental e material que concretiza a sua obra. O assunto está partilhado nos três gêneros trabalhados ao longo de sua carreira – a paisagem, a natureza-morta e as figuras –, demonstrados através de um recorte cronológico, que vai do início, ainda nos anos 40, a consolidação nos anos 60 e a culminação dos anos 70 em diante. O objetivo almejado é o de possibilitar ao público da Fundação Iberê Camargo uma visão abrangente da obra do artista, por meio de uma mostra linear buscando uma visão do todo de sua carreira.

A base para a organização da exposição está fundada em três eixos: a poética, isto é, o universo mental e material de concretização da obra, o temperamento do artista, não o do homem, pois prescindiremos da biografia e, finalmente, a execução, isto é, os caminhos trilhados em busca dos resultados. Ao longo de sua trajetória, a Fundação Iberê Camargo apresentou uma diversidade de olhares sobre a obra de Iberê, privilegiando temas e questões inerentes à sua obra. Essas mostras, de caráter investigativo na sua maioria, permitiram aos espectadores perceber a riqueza e a diversidade de uma trajetória, enfatizando aspectos técnicos, temáticos, éticos, filosóficos, etc. Com esta mostra pretendemos apresentar o Iberê como artista, um operário da arte, na busca pela melhor expressão e pela maior qualidade.

A mostra está organizada somente com obras pertencentes ao acervo da Fundação. Para sua concretização, depois de análise do acervo, foram selecionados cerca de quinhentos trabalhos, que permitiram uma visão global da trajetória do artista. Essa primeira lista foi organizada por temas e gerou uma segunda, ordenada cronologicamente, permitindo uma visão evolutiva dos temas tratados. Essa lista gerou uma terceira de aproximadamente 160 obras. Esta foi, finalmente, analisada peça a peça, buscando na sequência cronológica um ponto de vista da criação que fosse coerente e significativo e que permitisse uma leitura clara da trajetória do artista. Essa lista, após as adequações de ordem prática – disponibilidade das obras, espaço disponível, viabilidade material, gerou a presente exposição, com as obras distribuídas em grupos – natureza-morta, paisagens, figuras, autorretratos e ateliês. No tratamento não exaustivo desses temas indicaremos uma origem, seu desenvolvimento e o seu ápice. Mesmo quando ausentes do primeiro plano esses temas tendem a retornar a superfície, tratados de modo diferenciado e adequados ao momento da trajetória de Iberê Camargo. Levando esse aspecto em consideração encerraremos cada um dos três módulos da exposição com uma obra de síntese, produzida ao final da trajetória do artista.

Paulo Gomes
Artista, professor do Instituto de Artes da UFRGS e da pós-graduação em Artes Visuais da Universidade de Santa Maria

Posted by Patricia Canetti at 4:58 PM