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março 30, 2015
Marinaldo: urbano-pop por Aracy Amaral
Marinaldo: urbano-pop
ARACY AMARAL
1.
Colagens de azulejos de Belém bandeirolas de procissões desenhos nublados de figuras / cotidiano vivenciado nos desenhos nas telas nas montagens coroas recortadas de lata dourada prateada encimando assemblages sagrados corações ou corações de galinha palavras do dia-a-dia decorando os compartimentos de armários verticais/horizontais subdivididos em planos quadrados retangulares armários desenhados pintados montados em madeira rústica ( “parti do armário meu pai trabalhava com madeira fazia as peças para a casa brincávamos de esconder” com o fascínio do “dentro do armário”). Daí ser a constante de Marinaldo o armário fechado ou com prateleiras com objetos a partir do material colhido na cidade na casa na rua nas festas no restaurante no bairro. Mas o desenho geométrico se impõe nos quadrados ou retângulos da superfície para o observador. Pinturas e compartimentos povoados com imagens de garças pedaços de madeira colorida pregos enfileirados martelados louças latas recortadas amassadas inscritas com datas pratos de ágata decorados, objetos do mercado, perfis de lata arames condutores retorcidos lembretes balões ou “splashes” de quadrinhos a figura ou o carro do Batman a constante dos pés triangulares dos armários montados ou pintados e a projeção dos apertos de cada dia/ “Bangalô do agiota” “Pago hoje”/ “Aparelho de fazer gato medidor de luz”. E de repente nada de gambiarras mas um construtivo como o foram o “Armário do bicho” (1997) seco de invejável reducionismo cromático ou “Trouxudu” (2004) engenho/montagem. A terceira dimensão emerge naturalmente em Marinaldo decoradas as secções de suas construções verticais ou horizontais pictóricas ou nas montagens com acréscimos apenas inscritos as datas insinuadas as figuras humanas nebulosas justapostas às decorações de cromatismo aplicado com liberdade total: retoma a constante do Círio o açaí elementos da paisagem visual de Belém enfim o Porto o Mercado colagem completada pelo desenho com a nostalgia da velha fotografia aposta o Pará com o sangue que se esvai pelo caudal dos rios em direção ao Brasil central. E de repente uma composição vertical fora de série : supremacia visual de LP's e três cintas masculinas sobre superficie vasta e formalmente reducionista com enigmático rosto linearmente esboçado.
2.
Afinal, Marinaldo Santos é um artista do Pará. Onde, em Belém, suas obras se vêem por toda parte. Autor de trabalhos que conheci em inícios dos anos 1990 quando num júri paraense. Daquele tempo, guardo um desenho... sempre um armário. Estudando em escola do SESI, aos 12 anos trabalhava em fabrica de castanhas, e depois, em tempos diíceis, numa serraria recolhendo o pó da madeira. Aos 15 já saiu de casa vivendo por sua conta, num certo período distribuindo a “Folha do Norte”, até começar a expor em coletivas no Pará a partir de 1983, assim como apresentando-se em individual pela primeira vez em Belém, na Galeria Elf, em 1985.
Um artista do Pará. Estado poderoso, que projeta de forma explícita um orgulho, vinculado sem duvida à sua riqueza e vastidão territorial. Com contribuição cultural que há tempos não se limita mais apenas à presença dos projetos grandiosos do arquiteto Antonio José Landi, nem à herança de Emilio Goeldi. Mas que lembra a ação do arquiteto Paulo Chaves. E hoje nem repousa mais apenas na tradição fotográfica (Luiz Braga, e que o digam com mais precisão Marisa Mokarzel e Rosely Nakagawa), ou em sua gastronomia reconhecida. Mas que nas artes visuais há muito chama nossa atenção seja com as obras de inspiração indígena na cerâmica de Ruy Meira, como no trabalho de Osmar Pinheiro e Sarubbi. Mas de maneira incisiva com a arte de Emanuel Nassar, a resgatar, ao lado de Luiz Braga, a luz, a cor e a visualidade do magnetismo dos subúrbios e de uma cidade como Belém. Captadas também nas montagens de Emanuel Franco com pinturas populares dos ribeirinhos. E mais recentemente, na vivência, em Marabá, por Marcone Moreira, em variações a partir de embarcações de rio, com partes seccionadas, isoladas e recompostas livremente em apreensão da memória de uma realidade.
3.
Há muito ja não acreditamos na falácia da universalidade da arte. A arte de qualquer lugar somente é decodificavel a quem possui uma iniciação a ela. Ou uma cultura comum, enfim. Se raro é o europeu ou norte-amelicano ou qualquer estrangeiro que se sensibiliza com a arte de nosso pais cujos desdobramentos nos sim, conhecemos através de seu desenvolvimento, seria falso igualmente pretender que se conhece a arte chinesa, japonesa ou coreana apenas por percorrer museus desses países. Podemos ficar impressionados com a técnica ou o virtuosismo de seus autores, sem dúvida. Porém apreender, avaliar de forma cabal seu sentido, sem conhecer a cultura, a filosofia de vida , a história, seria pretensão muito audaciosa. Assim como desejar poder definir com precisão o limite entre o popular e o contemporâneo... A arte do “outro” ou tem a conotação de fantástica, ou é exótica, se não se dilui no global.
4.
Imagine-se então quando nos aproximamos do universo do popular. Nem todo brasileiro que vive nas grandes cidades de nosso país se sente tocado, ou é sensivel ao dado popular. Seja do Brasil, seja do México, da Guatemala, do Peru, ou de qualquer outro país dono de riqueza como a que possuímos no Ceará, Pará, Mato Grosso, Goiás ou no interior de Minas, dos sertões do Nordeste, e mesmo da imaginária do interior de São Paulo. No entanto, é exercício de pura educação visual ocorrer a sensibilização do olhar para o universo maravilhoso desta arte tão próxima de nós.
Marinaldo Santos nos oferece agora com sua arte urbano-pop a oportunidade de podermos apreciar a criatividade que sai de seus olhos e de suas mãos, atentos ao cotidiano e aos sabores de sua cidade, seu tempo e sua circunstância. Olhos que buscam em seu entorno os materiais, as palavras, as cores que resgata, recorta, reúne e constrói com áspera serenidade. E que projeta em nova imagem para nosso encantamento.
Aracy Amaral
Janeiro 2015
março 20, 2015
Todos os mares por Katia Maciel
Todos os mares
Para Daniela Bousso, Alberto Saraiva e Paula Alzugaray
Eu morava do outro lado da montanha. Nos fins de semana, ia à praia de carro com meu pai, minha mãe e meu irmão. Lembro que nunca sabia se estava indo para a praia ou para a serra, onde vivia minha bisavó. Sentia como se fosse uma viagem e enjoava nas curvas. Da praia lembro do estalo quando pisava na areia, que acabara de dormir, e de ficar olhando, por muito tempo, o horizonte com os braços estendidos, como se as ondas fossem subir até minhas mãos e não desmancharem a meus pés. Esperava que o mar enchesse como um copo de água e alcançasse minhas mãos.
Pensando nessa imagem, realizei a instalação Ondas: Um dia de nuvens listradas vindas do mar (2006) em que mar reage à presença do visitante empilhando progressivamente suas ondas. Vi o mar em listras como esperava vê-lo na praia da minha infância.
Ao olhar, hoje, este mar listrado, penso na geometria informe de um mar impossível. O mar como superfície de azuis com linhas brancas que se quebram umas sobre as outras. O branco se desmancha sobre nossos pés e chega rápido ou de mansinho, mais uma vez, lá de longe, ao infinito. O som fervilhante afunda o sabor efervescente.
Com uma câmera caseira, filmei, na praia do Forte São João, bem perto dos meus pés, as ondas que pareciam chuva de luz, pura energia a cintilar na imagem como fogos de artifício.
Na instalação reuni estes dois sentidos das ondas, onda mar e onda energia. Ondas empilhadas diante de você e ondas de energia branca sob os pés. Vemos, ao final, a imagem da frase escrita por James Joyce em O retrato de um artista quando jovem, quando ele se reconhece como escritor: “um dia de nuvens listradas vindas do mar”. Joyce se pergunta – De onde veio esta frase? As ondas suspensas e repetidas nos encaminham para as nuvens moventes no céu.
No mesmo dia que filmava Ondas: um dia de nuvens listradas vindas do mar, filmamos o vídeo Mareando no qual, sentada de costas, miro o mar que, em movimentos acelerados, curtos, longos e insensatos, parece estar em um mundo diferente do meu. Buscava uma imagem que indiferenciasse objeto e referente, como o faz progressivamente a narrativa do romance A invenção de Morel, de Bioy Casares: um refugiado em uma ilha assiste a um mundo onde o real é pura imagem. Em Mareando, sou figura fixa diante de um mundo que é movimento. Aproximo, talvez, o mar do cinema do ponto de vista de uma espectadora que se move pouco diante das marés e maresias.
Vertigo é o nome da instalação em que ondas verticais e invertidas, em fluxo contínuo, nos abrigam no ponto de fuga: quanto mais nos aproximamos do encontro que ocorre no canto entre as duas paredes projetadas, maior a sensação de vertigem. A geometria surge na forma de uma mesma onda que encontra a si própria em um ângulo de 90 graus. O espelhamento de ondas reforça a ideia de uma repetição que, no entanto, parece se diferenciar de si mesma, dado o movimento do fluxo e refluxo que nos abriga.
Vertigem é o princípio de Vertigo, de Alfred Hitchcock, e também da Invenção de Morel: a vertigem é o amor. Nas duas narrativas, o homem afunda em imagens em busca da mulher. Mulher que é imagem de outra (Vertigo), mulher que é imagem de si mesma (A invenção de Morel). Vertigem é cinema, movimento circular a nos tragar para o fundo feito de nossas próprias imagens, posto que, como nos diz Henri Bergson, somos imagens entre outras imagens.
Mar adentro é o avanço do mar dentro das arquiteturas dos museus e galerias. O mar surge em ondas aos nossos pés, que se movimentam pelo piso coberto de areia. As ondas disparadas por sensores acompanham os visitantes e seguem muitas direções, em geometrias inusitadas. O som parece o sussurro de mares conhecidos. Mar adentro também é título do filme espanhol de Alejandro Amenábar: um homem mergulha em um mar de azul em esplendor e sofre um acidente que o deixa sem movimentos. Toda a vida parece concentrada nos tons de um mar que deixa de existir.
Uma vez sonhei com uma casa de vidro perto do mar em que o piso era feito de ondas azuis, tudo era azul. Mar adentro é o piso de ondas, é o mar produzido pelo encontro de ondas que cada visitante acrescenta à instalação. A presença e mais uma presença e outra presença geram o mar e outro mar e outro mar.
Tanto mar. Tanto mar.
As praias dos piratas na Bretagne e no Caribe, o mar da China, as praias de Arraial, as praias do sul de Torres a Mole, as praias azuis mediterrâneas, as dos penhascos portugueses, as pacíficas e mornas do Nordeste, com a força do Paracuru e a gentileza de Patacho. Muitas praias. Escrevo este texto na praia de Santo Antonio, perto do Cabo Polônio, uma praia selvagem como a do início do mundo: estou no Uruguai, mas estou na Barra da Tijuca da minha infância quando atravessava o verde e chegava, pisando de mansinho, na areia que estalava.
março 18, 2015
A Seleção do 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil
Texto da Comissão Curadora
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA, BITU CASSUNDÉ, JOÃO LAIA, JÚLIA REBOUÇAS E SOLANGE FARKAS
Ver lista de artistas selecionados
O trabalho de seleção configura-se como uma valiosa oportunidade de confrontar a produção artística do Sul global, que abrange países da América Latina, Caribe, África, Oriente Médio, Oceania, e partes da Europa e da Ásia. Diante das profundas transformações socioeconômicas e culturais vividas por essas regiões, os contornos que definem esse Sul vão, aos poucos, mudando de estatuto. E, ainda que os indicadores da economia e as instâncias políticas tenham alterado a condição de algumas dessas localidades diante do resto do mundo, permanecem evidentes as enormes disparidades regionais. A produção artística reage, assim, à história e às promessas de futuro, às velhas e às novas ordens políticas, aos afetos, aos projetos, à alteridade. De maneira poética, mas também crítica, é possível tatear alguns pontos de tensão e de inflexão no cenário que se apresenta.
Tendo como ponto de partida a experiência desse Sul geopolítico, iniciamos o processo de seleção de trabalhos e artistas com os sentidos aguçados para identificar, por meio das obras e portfólios, quais são essas questões que animam e movem a produção artística da região. Nas mais de três mil inscrições, pudemos perceber um corpo de trabalhos com tantas afinidades quanto heterogeneidades.
De forma geral e especulativa, enxergamos três grandes cenários, ou ambientes. Um primeiro poderia ser definido por um acirramento da ideia de crise, quando se mostra urgente enfrentar questões políticas e sociais que se manifestam, sobretudo, na condição do sujeito no mundo, na sua forma de se relacionar e de lidar com o outro. Um tom documental surge aqui, denunciativo, mas também propositivo. Outro corpo de trabalhos vai investigar um ambiente pós-utópico, para além da presença humana, em que o sujeito está ausente ou objetificado. As paisagens são desoladoras e a relação com o tempo é ambígua. De qual tempo se fala? A história parece flexível e as narrativas históricas se sobrepõem em camadas muitas vezes indistintas. Por fim, um terceiro momento anuncia possibilidades para um novo engajamento do sujeito no mundo. São diversas as obras que tratam da conexão do homem e da natureza, ou da natureza como um grande sistema de poder. O artista, aqui, atua de maneira performativa, colocando-se como agente desse entrelaçamento. Se essas questões são francamente uma tentativa de identificar afinidades, está claro que nelas não se encerram as possibilidades de leitura e de entendimento das obras em questão.
Apesar da seleção de obras em diferentes suportes e mídias (fotografias, gravuras, obras sonoras, esculturas e instalações), o vídeo e o filme aparecem como dispositivos relevantes em número e em qualidade de proposições. Produzir imagem, seja em movimento ou não, instalada no espaço expositivo ou como proposta de experiência imersiva do cinema, parece ser uma estratégia importante para nosso tempo e nossa região. Por fim, a performance, cuja história é intrínseca à da videoarte e à do próprio Festival, continua a ter um papel importante, central, dentro das artes visuais contemporâneas e da própria linguagem do vídeo.
março 13, 2015
Tangentes por Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho
Tangentes
LUIZ CHRYSOSTOMO DE OLIVEIRA FILHO
“ Um quadro abstrato não representa, mas se apresenta”
Samson Flexor, 1956
A nova série de pinturas “Tangentes” de Paiva Brasil reafirma mais uma vez sua delicada e consistente poética. Uma sólida trajetória de 60 anos de trabalho e dedicação. A escolha do título da exposição revela também ao público a sutileza de como este artista vivencia sua arte. O conceito de tangente pode ser apropriado de três formas distintas na matemática: diretamente da geometria euclidiana, onde a definimos como a reta que toca uma curva ou superfície sem cortá-la, compartilhando um único ponto; da trigonometria, que estuda a relação entre os lados e os ângulos de um triângulo, sendo que a definição de tangente(de um ângulo) é expressa aqui como um número real positivo, resultante da razão entre o cateto oposto e o cateto adjacente de um dado triangulo; ou por fim da geometria cartesiana(analítica), que se utiliza de métodos e símbolos algébricos(notações e letras) para representar e resolver questões geométricas, incluindo a definição da tangente em uma equação de reta. Paiva “joga” com esses elementos, todos tão presentes no seu léxico, mas deixando sempre o observador livre para escolher que caminho seguir.
Artista discreto e sensitivo, Paiva faz parte, por tradição e direito, de nossa primeira geração construtiva. Sem nunca ter estado vinculado formalmente a nenhum dos movimentos concretista ou neoconcretista, ele criou e vem desenvolvendo de forma independente uma linguagem abstrato-geométrica desde meados dos anos 1950. Aluno no MAM-RJ de desenho e composição gráfica de Santa Rosa e de pintura de Samson Flexor, Paiva poderia ter-se filiado a tradição de alguns membros do Grupo Frente no Rio de Janeiro como Rubem Ludolf, João José e Décio Vieira , da mesma forma que poderia estar ao lado dos alunos paulistas de Flexor no pioneiro Atelier Abstração como Norberto Nicola e Jacques Douchez. Ele, entretanto, solitariamente, tomou um rumo distinto.
Seu repertório concreto sempre flertou com os binômios Composição/Cor , Construção/Movimento , Lúdico/Jogo, muitas vezes alternando seu uso, em combinações aleatórias surpreendentes e inovadoras. Sua habilidade como programador visual e pintor nunca limitou seu experimento de ir além da bidimensionalidade ou de qualquer restrição ao suporte tradicional. Suas pesquisas de cor, ao mesmo tempo que conciliaram gradações ou tonalidades aproximadas, sempre estiveram associadas a “construções” do quadro, ou objetos de cor, que exigiram do artista o exercício de novas formas, entrelaçando estruturas, redefinindo os espaços do quadro, como se fossem espaços novos de cor. Em outros momentos a cor, como elemento subsidiário, era o “suporte” para esculturas móveis, como na série “Vertebrados”, onde o artista deu asas a suas experiências escultóricas, sempre na interação como expectador, matéria tão cara à nossa história da arte.
Paiva também desbravou o uso de símbolos , em sua forma “bruta” ou na “construção” de novos significados, às vezes como um novo vocabulário. A apropriação do número 5, obra que o marca definitivamente a partir do final dos anos 60 e percorre toda sua trajetória, exemplifica bem sua disposição para essa invenção e ousadia poética. Explorou nas séries ”Emblemas”e “ Esfumados”, a curva e a reta, mas também a opacidade e os volumes com cor, muitas vezes com um grafismo sofisticado e vibrante. Saiu do plano e criou um elemento novo tridimensional que abandona a ideia de um simples algarismo para virar múltiplos algoritmos da forma(referência ao objeto escultórico “Integração”). Através da série “Carimbos” incorporou a essa mesma invenção a repetição contínua, obsessiva, mas ao mesmo tempo lúdica. Reconfigurou letras e palavras nos anos 1980, e mais uma vez, com as cores e os planos de cor, redefiniu o próprio sentido destas nas chamadas “Coleturas”. Paiva faz poesia visual com números e letras, sem que seja necessário titular a prioriversões de poemas concretos. É antes pintura. E pura abstração.
A nova série “Tangentes”, ora aqui exposta na Galeria Mercedes Viegas, mescla uma certa síntese desse percurso. Vemos ali a curvatura do 5, o encontro da tangente imaginária? Ou brincamos como um jogo de peças que tenta o encaixe perfeito sem saber exatamente qual deve ser a forma final? A exploração dos espaços vazios , como uma ausência de cor , é parte do equilíbrio e da composição das cores? Paiva dialoga aqui com o espaço, montando e desmontando, horizontalizando ou verticalizando, sem entretanto que saibamos onde tudo começa . Será a forma que define e orienta ou as cores que se encontram/dissipam? Com refinada sutileza podemos girar seus “objetos” de cor e redescobrir novas opções e novos sentidos. Por que não novas tangentes? Por onde devemos guiar nosso olhar? É isso que o artista exige. Anuncia um caminho, mas deixa o espectador, como sempre, fluir e se posicionar.
Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho
Rio de janeiro, 10 de Março de 2015
Imagens de imagens por Annateresa Fabris
Imagens de imagens
ANNATERESA FABRIS
Tramas, ora robustas, ora delicadas, poderosos jogos de verticais e oblíquas, linhas de fuga pronunciadas, equilíbrios de massas determinados pela luz. São estas algumas das características principais da chamada “fotografia de engenheiro”, amplamente utilizada no século XIX para documentar o nascimento e os estágios temporais das grandes obras tecnológicas que modificaram a paisagem com suas pontes, viadutos, canais, represas, usinas, estradas de ferro, estações, edifícios para diferentes usos. Formas geométricas, gigantescas, cuja escala dimensional se torna, não raro, dramática, em função da presença de diminutas figuras humanas, constituem o arcabouço de imagens absolutamente modernas, embora não muito valorizadas no momento de sua produção. Nelas, a luz é uma protagonista absoluta, quer infiltrando-se na trama de andaimes de madeira e estruturas de ferro, quer criando contraposições tonais que ajudam a realçar a materialidade e a concretude de obras ainda não acabadas.
Essa mesma visão essencial de estruturas – definidas “arquétipos nascentes” por Jean Desjours – está na base de algumas serigrafias e litogravuras realizadas por Gerty Saruê a partir de meados da década de 1970. A matriz dessas obras está em fotografias feitas pela própria artista, que costumava sair pela cidade em busca de motivos que despertassem sua atenção: canteiros de obras, demolições, ferros velhos, sucatas e lixo. Desse inventário não escapa nem mesmo a remontagem do Monumento a Ramos de Azevedo, levada a cabo na Cidade Universitária entre 1973 e 1974. Essas fotografias revelam de imediato que Saruê não se encanta tanto com o objeto em si, mas antes com texturas, estruturas geométricas e formas insólitas. Isso é perceptível nas tomadas de fragmentos do monumento de Galileo Emendabili, o qual adquire um aspecto inquietante em virtude dos cortes efetuados pela artista. E também no conjunto dedicado aos ferros (1977), captados como tramas dotadas de um princípio de organização formal.
O canteiro de obras como cenário teatral, como lugar de uma criação particular, no qual o inacabado e o intermediário (a que se refere Desjours) funcionam como metáforas de um processo temporal, que vai revelando aos poucos os segredos de estruturas e texturas, é um dos motivos preferidos de Saruê. Interessada primordialmente nas estruturas geométricas e no gigantismo inumano desses lugares, nos quais são gerados os novos monumentos da cidade vertical, a artista não deixa, contudo, de dirigir seu olhar para um objeto quase artesanal, o carrinho de mão, flagrado numa situação a meio caminho entre construção e ruína.
As fotografias despojadas e caracterizadas por um preto e branco rigoroso, que poderiam evocar as “esculturas anônimas” de Bernd e Illa Becher, porém, são transpostas para um novo suporte, demonstrando o desígnio da artista de percorrer um caminho próprio. Ao método serial e objetivo dos alemães, Saruê contrapõe composições nas quais a cor desempenha um papel fundamental. Longe de conquistar o olhar com efeitos agradáveis, a cor cria um distanciamento em relação à imagem-matriz, conferindo uma nova realidade à representação. Cores quentes e frias, reunidas, por vezes, numa mesma obra, ou criando manchas numa superfície quase monocromática, geram tensões, conciliam contrastes, realçam planos e investem de uma nova densidade superfícies quase imateriais, apesar de seu gigantismo. O recurso à cor faz com que a artista constitua séries a partir de uma mesma fotografia. Graças a isso se instaura um processo de diferenciação que reforça o trânsito de imagens e seu potencial de estranhamento.
Saruê demonstra, assim, que o que lhe interessa de fato na migração de um suporte para outro não são nem a dimensão figurativa, nem o objeto, e sim a imagem enquanto geradora de inúmeras visualizações que põem em xeque um ponto de vista único. A imagem da imagem é, pois, uma maneira paradoxal de afirmar o real por meio de um processo de abstração, de colocar numa perspectiva crítica o que atraiu o olhar com sua geometria particular. Nesse ponto, a cidade que sobe se encontra com a ruína, com a sucata, com o efeito devastador de um progresso material mal gerenciado, convertendo em figurações fantasmáticas o que deveria ser uma projeção no futuro. O carro abandonado, a paisagem poluída de Cubatão, a grama que parece brotar por baixo dos ferros são emblemas do outro lado das belas geometrias, a apontarem com sua presença o fluxo do tempo como degradação.
toque-me por Ananda Carvalho
toque-me
toque-me, Complexo Cultural Funarte Brasília, DF - 20/03/2015 a 03/05/2015
Rastros de memórias espiam o caminhar dos passantes. Entre as inúmeras vozes do nosso inconsciente, uma toca o orelhão. É uma máquina, um sujeito, uma fala que nos envolve.Nas encruzilhadas da travessia, tal voz preenche a paisagem pela oralidade: palavras pulsam à espera do toque desencadeado pelo afeto de cada um.
Como um oráculo, essas vozes emanam uma reflexão sobre a vida contemporânea, os relacionamentos, a convivência, o tempo presente... O sussurro desses desejos é invocado em toque-me, um trabalho site-specific que engloba dois orelhões instalados na Marquise da Funarte. Entretanto, esta proposição artística de Eduardo Salvino & OSNÁUTICOS só ocorre por meio da interação do passante com tal dispositivo de comunicação. Ao atender o telefone, o público é envolvido por poesias de Alex Dias e Francesca Cricelli. Pode-se dizer que toque-me é uma máquina vidente, na medida em que essas vozes permeiam relações que sobrepõem acaso e subjetividade.
As “visões” de toque-me também são construídas em processo colaborativo com o público local, ativando histórias e vivências da cidade de Brasília. Por meio de uma oficina de criação poética, os artistas convidam o público a criarem e a performarem outros poemas que também são disponibilizados nos orelhões.Aqui os termos artista, obra e espectador se misturam, articulando uma rede de proposições através de uma máquina comunicacional que um dia fez parte da vida cotidiana.
O orelhão despe-se, então, da sua autoridade de oráculo e torna-se interface de escuta de um arquivo coletivo. As palavras não são mais conjugadas como verbos no imperativo, e rodeiam os passos dos transeuntes. As vozes ocupam a cidade com um desejo de abraçar seus públicos. Ao mesmo tempo, múltiplas e subjetivas, elas emergem à procura de uma identificação. E, assim, deslocam-se na penumbra do imaginário em busca do que estava à espera de ser, simplesmente, tocado.
março 6, 2015
O rapto por Paula Alzugaray
O rapto
PAULA ALZUGARAY
Nas vistas e panoramas da iconografia brasileira do século 19, o esplendor da natureza retratada poderia dispensar a presença humana – que ora aparece num canto do quadro, tímida, minimizada, quase anulada pela paisagem, ora cede à tentação de domesticá-la, assumindo uma postura desafiadora.
Na “Floresta Virgem”, litografia de Araújo Porto-Alegre de 1853, dois homens entram na mata fechada. Um vai armado, o outro carrega uma pasta ou caderno de notas debaixo do braço. Ambos são, provavelmente, a mesma pessoa: o intelectual oitocentista que penetra na paisagem nativa com vontade dominadora e certa avidez por torná-la exótica ou pitoresca.
Katia Maciel tem o mesmo ímpeto de devassar a espessura da floresta. Mas, diferentemente de seus antecessores expedicionários e artistas viajantes, não contempla nem ataca suas maravilhas. É capturada pela paisagem.
A figura que pende, laçada a um galho de árvore, na clareira de uma floresta – “Vulto” – é o eixo central de “Suspense”, o projeto de cinema expandido que a artista começou em 2013. Esse “Vulto” confere um eixo rítmico ao entrecortado discurso cinematográfico em processo de Katia Maciel.
Na primeira exposição do projeto apresentava-se o enredo: mulher perdida no paraíso (reduto mais longínquo da floresta?) envia fotografias como pistas para a sua impossível localização. Agora, no segundo capítulo do projeto, já não há fotografias, portanto, as pistas estão rarefeitas. A presença humana, imperativa na primeira parte, praticamente desaparece e a natureza se faz onipresente. Dentro das Cavalariças, cada uma das quatro obras expostas espelha a realidade verde circundante.
Expedição, rapto ou extravio? A dúvida sobre o quê, exatamente, teria atraído ou levado essa mulher de identidade dissimulada ao coração da floresta permanece.
Mas seu destino e sua condição – atada a uma árvore, em movimento pendular – nos colocam no rastro dos habitantes ancestrais dessas matas ao fundo da Lagoa. Onde hoje está o Parque Lage, na pré-história do Rio de Janeiro, viveram os temíveis índios carajás, que tinham aversão ao olhar humano e o poder de se transformarem em onças. O mito conta que não havia selva mais escura que aquela onde viviam os carajás. Como medusas, devoravam quem quer que os encarasse. Era fatal enfrentá-los de olhos abertos [1].
Antes de embarcar em expedição amazônica, a fim de realizar seu lendário filme, unindo pesquisa etnográfica e drama ficcional sobre a menina branca sequestrada e endeusada por índios, Flávio de Carvalho manteve contato com os índios carajás do Brasil Central – em 1952, quando integrou as filmagens de “O Grande Desconhecido”, de Mário Civelli. Mas nada indica que sejam os mesmos carajás implicados no rapto de Katia Maciel (escolherei tomar o caso como rapto, aprofundando a relação entre “Suspense” e “A Deusa Branca”, longa-metragem não finalizado de Flávio de Carvalho, e dada toda a carga mítica e simbólica implícita nesse tipo de episódio).
Em correspondência secreta com o pensamento mágico dos antigos povos das matas do Rio, “Suspense” projeta-se nas paredes das Cavalariças como um mapa inviável do paraíso perdido. As pistas, agora latentes, parecem querer inscrever-se no travelling infinito da “Trilha”, vídeo que ocupa a integridade de uma das paredes do edifício central das Cavalariças.
Além da ilusão de entrever sinais em cascas de árvores, há também as armadilhas. A mais perigosa talvez seja o “Verso”, dispositivo tecnológico antropofágico, que devora o visitante tão logo este penetra o edifício, fazendo dele o protagonista do ritual que se desenha ali.
Na sala contígua, “Uma Árvore” (que respira como um animal, ou que parece ter devorado um, a fim de assimilar sua capacidade de expandir e contrair pulmões), trabalho de 2009, incorporado ao “Suspense”, não deixa dúvidas sobre o partido da artista em construir seu discurso a partir dos princípios de ordenação do mundo que apreendeu da experiência da mata.
Paula Alzugaray
Janeiro de 2015
[1] Mussa, Alberto. A Primeira História do Mundo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2014. p. 98-100
O mais profundo é a pele por Marisa Flórido Cesar
O mais profundo é a pele
MARISA FLÓRIDO CESAR
“O mais profundo é a pele”. A célebre frase de Paul Valéry não descreveria melhor as telas de Andréa Facchini: não há como se inscrever na epiderme do mundo sem esse roçar de peles, sem enfrentar seu atrito, suas falhas e dobras, suas contenções e extravasamentos. A pele-tela é o limite que separaria mundos, o raso e o profundo, a ilusão e a semelhança, o transparente e o opaco, o visível e o invisível, a confissão e o segredo, a janela-espelho e o plano.
Se a pele é porosa, o plano é opaco? A superfície material do quadro é seu limite e fronteira, a pintura enquanto coisa. Mas a opacidade é também interrupção e síncope na representação e na transparência da tradição pictórica: algo se apresenta e reflexiona sobre si mesmo, algo questiona seu funcionamento. Como nas reflexões de Louis Marin: na transparência da janela-espelho pictórica, transita-se o outro, representando-o, “aqui está o outro presente em sua ausência”; na opacidade reflexiva, “aqui estou eu apresentando-me no ato de representar algo ou alguém”. Da opacidade se extraem as estratégias, o funcionamento e o poder das obras? É a relação das obras com as condições limítrofes de sua possibilidade?
Mas tudo se confunde aqui. A pele é também opaca; o plano é, todavia, poroso. À artista, talvez interesse o movimento misterioso desse aparecer e desaparecer de algo para o olhar. É essa desmedida do visível, esse ponto cego, que dobra e se desdobra em cenas cotidianas e pequenos delírios, entre a minúcia da descrição e o frenesi das fabulações, entre um mundo que se apresenta por enquanto e os outros infinitos, imaginários e potenciais, que o atravessam. Por isso não raro vemos algo brotando pelos poros de suas telas, no transcurso ainda incompleto desse emergir: um edifício inacabado, um rosto que aparece, uma trança suspensa. Não raro vemos, por outro lado, o transbordamento dessa pele-plano em panos, pelos, florestas. Entre a asfixia e a desopressão, nas superfícies drapeadas, o que vemos são as ondulações da pele, as dobras de um corpo pictórico que transborda, debatendo-se nas amarras e coerções de molduras físicas e abstratas. Porque o mundo visível é apenas um traço que desfila, ante olhos ávidos e assombrados, seu movimento incessante; e o homem, frágil posto que nele se distende e se retrai, excêntrico e errante.
É dessa tensão que emerge a pintura tátil de Andréa Facchini, como um fluxo incontido que precisa explodir, à vertigem, cores, peles e poros. Que necessita atravessar a superfície para continuar em um próximo quadro, em um próximo plano, na contiguidade e atrito com a pele ao lado. Uma extensão que se expande em curvas e turbilhões; uma sensualidade carnal que envolve e expulsa. Mas, sobretudo, é dessa desmedida do visível – que é também o ponto cego a partir do qual o olhar se constitui – que, paradoxalmente, se encontra a potência da arte: abrir fissuras na pele opaca do mundo para que alguma coisa o atravesse, para que algo enfim se mostre. Ainda que seja o abismo em que fugas, formas e imagens se evanescem e se dissipam.
Marisa Flórido Cesar
Dezembro de 2014
A Matéria do Tempo como Experiência no Espaço por Denise Gadelha
A Matéria do Tempo como Experiência no Espaço
DENISE GADELHA
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Diego Arregui, artista peruano que atualmente reside no Chile, expõe pela primeira vez no Brasil, marcando o recente interesse da Zipper Galeria em promover intercâmbio internacional através do projeto Zip’Up.
O projeto de Arregui intitulado “Armadilha para distender o espaço” apresenta uma instalação que instiga a constatação da ambiguidade nos processos perceptivos. Sua proposta estabelece jogos visuais que confundem a noção de profundidade, dificultando a distinção entre o que está dentro e o que está fora; aquilo que é inerente à representação ou que habita a realidade compartilhada. Revela com simplicidade poética o quanto a especificidade do ponto de vista fatalmente condiciona o entendimento.
Basicamente, o procedimento da obra consiste em escurecer um ambiente pintado de preto para projetar uma fotografia em grande escala, dialogando com a dimensão arquitetônica local. Entretanto, antes de alcançar seu destino no fundo da galeria, a projeção é interceptada por superfícies bidimensionais estrategicamente colocadas no meio do caminho. Assim, a imagem recai também sobre outros planos que flutuam no espaço, forçando a reconstituição da cena por meio da soma cognitiva das partes. Deste modo, Diego Arregui desconstrói a imagem fotográfica em camadas separadas, e, com isso, produz lacunas capazes de dilatar o momento de apreensão.
Em geral, diante de trabalhos desta natureza, o observador instintivamente tende a procurar pelo melhor posicionamento no ambiente onde a lógica da imagem poderá ser restabelecida, desvendando o quebra-cabeça que recompõe o enquadramento original.
Ou então, pelo contrário, o sujeito pode experimentar a obra circulando aleatoriamente, desfrutando a oportunidade de caminhar no interior de uma imagem. Explorar alternativas oferecidas em cada conjunção de fragmentos percebida a partir daquela posição única. Cada variação de ângulo multiplica exponencialmente o reconhecimento de padrões visuais que ora se conectam, ora se desencaixam.
Os intervalos instituem vazios ativos, assim como o silêncio entre as notas e acordes dão ritmo à música, segundo Arregui. O vazio é matriz, berço de inúmeras potencialidades latentes que vão sendo decantadas aos poucos, transformando-se em realidade mediante o olhar de quem as percebe.
O registro fotográfico empregado neste trabalho testemunha ruínas de um vilarejo localizado ao norte do Peru, chamado Chuyillache. Este povoado foi arrasado durante o grave desastre natural causado pelo fenômeno El Niño, em 1983. Diego Arregui fotografou as casas abandonadas adotando uma postura frontal, a fim de ressaltar o aspecto chapado na captura das superfícies. A tomada de cena tira proveito de janelas remanescentes nas ruínas para mostrar uma sequência de planos justapostos, cuja profundidade é ainda mais ressaltada na montagem da instalação.
Tanto o simbolismo associado à janela quanto a ruína desempenham papéis significativos neste projeto. A janela possibilita a visão através de, ultrapassando os limites do espaço confinado sob certo enquadramento, sob determinada perspectiva. Encarna sugestivamente a dimensão arbitrária da percepção, lembrando-nos que o espaço, bem como o tempo, é construção subjetiva codificada pela mente humana. Já a ruína evoca a constância do passado sempre moldado pela interação estabelecida com a atualidade. O passado só tem existência nas reminiscências que sobrevivem na contemporaneidade, no efeito dos ecos que atuam sobre o agora. Tanto o futuro quanto o passado só existem sob a ótica do presente.
The Matter of Time as an Experience in Space
DENISE GADELHA
Diego Arregui, Peruvian artist currently residing in Chile, exhibits his work in Brazil for the first time, marking the recent interest of Zipper Gallery in promoting international exchange through the Zip'Up project.
The project by Arregui entitled "Trap to distend space" presents an installation which instigates the finding of ambiguity in perceptual processes. Its proposal establishes visual games which confuse the notion of depth, blurring the distinction between what is inside and what is outside; that which is inherent to the representation, or that which inhabits the shared reality. It reveals with poetic simplicity the extent to which the specificity of point of view inevitably conditions the understanding.
The procedure of the work is basically to darken a setting painted black so as to project a large-scale photograph, creating a dialogue with the architectural dimension of the locale. However, before reaching its destination in the background of the gallery, the projection is intercepted by two-dimensional surfaces strategically placed along its way, in such a fashion that the image also falls onto other planes floating in space, forcing the reconstruction of the scene by means of the cognitive sum of the parts. Therefore Diego Arregui deconstructs the photographic image into separate layers, and thereby produces gaps able to extend the time of apprehension.
In general, when standing before work of this nature, the observer instinctively tends to look for best positioning within the locale, where the logic of the image can be restored, unraveling the puzzle which recomposes the original frame.
Or, on the contrary, the subject may experience the work by circulating randomly, relishing the opportunity to walk inside an image, and to explore alternatives offered in each junction of fragments perceived from that unique position. Each angle variation exponentially multiplies the recognition of visual patterns, which at times connect to each other, and at others disengage from one another.
The gaps establish active empty spaces, just as the silence between notes and chords give rhythm to music, according to Arregui. The void is womb, the cradle of numerous latent potentialities that are slowly decanted and transformed into reality, before the eyes of those who perceive them.
The photographic record used in this work witnesses the ruins of a village in the north of Peru, called Chuyillache. This township was devastated during a serious natural disaster caused by El Niño in 1983. Diego Arregui photographed the abandoned houses by adopting a frontal perspective, in order to emphasize the barefaced aspect of surfaces. The scene shots take advantage of the remaining windows in the ruins, so as to portray a sequence of juxtaposed plans - the depth of which are even more emphasized in the setup of the installation.
Both the symbolism associated with the window and the ruins play significant roles in this project. The window allows for the see through view, pushing the boundaries of the space confined within a certain frame, from a particular perspective. It suggestively embodies the arbitrary dimension of perception, reminding us that space, just as time, is a subjective construction coded by the human mind. The ruins in turn, evoke the constancy of the past, always shaped by its interaction with the present.
The past exists only in the reminiscences that survive in contemporary times, in the effect of the echoes acting upon the now. Both future and past exist only from the perspective of the present.
Oximoros por Denise Mattar
Oximoros
DENISE MATTAR
James Kudo - Oximoros, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 25/02/2015 a 21/03/2015
Oximoro é uma figura de linguagem que harmoniza dois conceitos opostos formando um terceiro conceito. James Kudo é um criador de oximoros: nas suas colagens, pintadas à mão, as cores são estridentemente silenciosas e nas paisagens, docemente venenosas, tudo parece fixo - na eternidade do instante.
Seu trabalho se constrói em relatos, em que a ficção e a não ficção estão continuamente mescladas. São memórias imaginadas borrando a linha entre o real e o irreal. Ele relembra e revitaliza narrativas, transitando entre questões estéticas e ambientais. Viu a cidade-sonho de seus avós submergir nas águas, deixando um rastro de destruição e perdas. E viu surgir uma nova realidade, menos romântica - porém vibrante. As águas jorrando em cascatas, faiscando energia. Acumulou imagens fugazes e povoou-se de lembranças desconexas.
Na reconstrução desse painel de memórias, Kudo cola os fragmentos, opondo referências. Pinta superfícies de madeira imitando o revestimento que a imita; criando um duplo simulacro. Árvores e folhagens, sutilmente desenhadas, sobrepõem-se a explosões de cores cítricas, industriais, que permanecem em suspensão - no momento antes do grito. Na floresta cuidadosamente recortada, colada sobre planos vigorosos e luminosos, mimetizam-se armas. Comportas e águas enfileiram-se hieráticas - em escalas de cor.
Kudo cria, também, pequenas pinturas, como escudos de armas, nas quais estabelece um equilíbrio flutuante dos elementos que aludem às suas vivências: a opressiva presença das comportas, a força cristalina da água e a memória afetiva dos piqueniques no rio. E eles afloram representados por signos criados pelo artista para encarná-los: os sólidos de falsa madeira, o degradé de azuis, os retalhos de xadrez...
Na atual exposição, que abre a temporada de individuais da Zipper Galeria, Kudo apresenta também dois site specific, nos quais faz jorrar no espaço as águas aprisionadas em suas telas.
Realizada com qualidade técnica impecável, sua estética vibrante e contemporânea remete ao futuro. Não por acaso, o artista foi incluído no livro 100 painters of tomorrow, de Kurt Beers, e sua participação na ART15 - London foi aprovada, com entusiasmo, pelo curador Jonathan Watkins.
Construído sobre memórias, o trabalho oximoro de James Kudo nada tem de nostálgico, mas cria situações insólitas - que convidam ao encantamento e à reflexão.
Denise Mattar, Janeiro de 2015
março 4, 2015
Baravelli por Luiz Paulo Baravelli
Luiz Paulo Baravelli
Galeria Marcelo Guarnieri, Ribeirão Preto, SP - 09/03/2015 a 04/04/2015
Objeto versus espaço, abstração versus empatia, Instituto Figueiredo Ferraz - IFF, Ribeirão Preto, SP - 10/03/2015 a 25/04/2015
Escrevo algumas notas a respeito da exposição; notas soltas em vez de um texto corrido com começo, meio e fim; principalmente porque não quero chegar ao fim!
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- Anedota (apócrifa?): o pioneiro cineasta russo Serguei Eisenstein fazia filmes muito longos, com três, quatro horas de duração. Quando os exibidores quiseram reduzi-los às duas horas de praxe, Eisenstein reagiu: “Se quiserem cortar meu filme, que cortem no sentido do comprido. Só vão ver meia tela de imagem, mas vão ter a história toda!”
- Creio que a palavra “retrospectiva” significa um olhar para trás. Talvez tecnicamente esta exposição seja isso, na medida em que inclui trabalhos dos últimos cinqüenta anos. Mas... estive lendo um pequeno livro que conta a trajetória de Piet Mondrian. Ele começou fazendo paisagens bem figurativas, lá por 1908, 1909 e foi gradualmente simplificando, depurando, geometrizando e, passando pelas abstrações que conhecemos, chegou até a síntese de “Broadway Boogie-Woogie”, em 1943. Imagino que teria sido impossível para ele em 1943 voltar a fazer uma pintura figurativa como as de 1909, 34 anos antes.
Sem me comparar a ele, é perfeitamente possível que em 2015 eu, com naturalidade, volte a fazer uma pintura como a “Luis XV”, de 1966. Estes 49 anos de intervalo não tornam (para mim, pelo menos) esta pintura obsoleta, esta palavra que o Modernismo tornou terrível. Com a noção retro assim em cheque, como se pode então dar um nome a esta exposição?
- “Se uma coisa começa, começou. Se começou, é assim mesmo”. (Gertrude Stein)
- Durante estes cinquenta anos trabalhei imerso em uma situação onde todo mundo sabe tudo e ao mesmo tempo ninguém sabe nada (eu inclusive). É um exagero retórico, mas dá para saber do que estou falando.
- Resumindo um texto de Christoph Asendorf: É comum nos estudos de percepção mostrar às pessoas o desenho em perspectiva isométrica de um cubo. Como as arestas são paralelas a vista não consegue se decidir se ele é côncavo ou convexo. Ver as duas situações ao mesmo tempo é impossível. Diz ele: “Se o cubo é visto como convexo ele se torna um objeto (abstração), se é percebido como côncavo é um espaço (empatia).”
Objeto versus espaço, abstração versus empatia pode ser uma porta dupla para entrar nesta exposição.
- Trabalho à noite porque é quando a luz está do lado de dentro.
- Se há um personagem de ficção com o qual me identifico é com a Sherazade.
- Para um visitante que não conheça meu trabalho esta exposição pode trazer uma perplexidade. A variedade do trabalho é enorme e, sem consultar as etiquetas, é difícil adivinhar as datas em que as obras foram feitas. Penso uma explicação que pode ser redutiva, mas serve para começar: lá atrás, no começo da década de 60 me propus a ter uma sensibilidade em vez de ter um método.
Naquela época predominava aqui o concretismo, com suas regras, rigores e tabus. Visitando as exposições deles eu pensava : o que estas artistas fazem quando não estão pintando? Será que andam na rua, olham para as pessoas e as coisas? Por que isso não aparece no trabalho? Porque não enfrentam o mundo em sua riqueza e complexidade em vez de se confinar a uma clausura árida e metódica?
Quando completei 60 anos, a guisa de balanço fiz uma lista de minhas influências e referências, artistas de todo tipo que vieram antes de mim e com os quais aprendi algo. Entre os trezentos e tantos nomes, Millor Fernandes,com seus aforismos enganosamente simples: “Livre pensar é só pensar”, “Enfim, um escritor sem estilo”, etc. Li essas coisas ainda moço e adotei, porque me pareceu óbvio. E quando, juntamente com Fajardo, Nasser e Resende conheci Wesley Duke Lee, em 1964, percebi nele uma atitude semelhante. Sem hesitar o nomeei meu mestre e os dois anos de estudos seguidos de outros de colaboração e amizade foram decisivos para que eu escolhesse meu caminho. Desisti do curso de arquitetura (desistimos, todos os quatro) porque a noção de liberdade e autonomia que Wesley emanava, me “condenou à liberdade”, para usar a frase de outra pessoa de minha lista. Quando, mais tarde, já na década de 70 Fajardo, Nasser, Resende e eu fizemos a Escola Brasil nossa intenção foi colocar os alunos diariamente nesta situação de liberdade informada e consciente.
No meu trabalho pessoal no atelier, como na Escola, liberdade não significa falta de critério e que qualquer coisa valha. A liberdade significa também determinar o próprio território. Assim consciente e deliberadamente restrinjo meu trabalho a desenho e pintura, que é meu “soft spot”, a área onde me sinto confortável e eficiente. As experiências em três dimensões do início da carreira foram rareando porque percebi que as peças não resultavam escultóricas, mas pictóricas, como que pinturas e desenhos no espaço. Esculturas são coisas, objetos sólidos e concretos; percebi que o meu mundo é o mundo impalpável da imagem, filha da imaginação.
Liberdade gera autonomia e isso tem um primeiro preço: o isolamento. Não conheço outro artista que esteja fazendo um trabalho semelhante ao meu e assim prossigo sozinho. O segundo preço é uma decorrência: eu sou o assunto do meu trabalho. Dizendo assim parece cabotino e pretensioso, mas explico, com um exemplo: um repórter, vendo um fato qualquer, digamos um atentado terrorista, não pode ignorá-lo e vai relatá-lo com a maior objetividade possível evitando qualquer subjetividade. Já um artista tem uma espécie de dupla personalidade: ele é uma pessoa comum que coexiste no mesmo corpo com um artista, um ‘percebedor/fazedor residente’. O artista vai tentar perceber se esse fato realmente atingiu a pessoa. Se for sensível e honesto pode chegar à conclusão politicamente incorretíssima que não está se importando a mínima com o atentado, mas que naquele mesmo dia foi tocado inexplicavelmente por outra coisa completamente diferente, a sombra que uma árvore projetava no muro da casa e vai tratar disso. Ele não ignora o atentado, apenas percebe e deve ter a coragem de assumir que há um nível acima do óbvio. Um artista não é um repórter, não é um divulgador de boas causas nem um designer que precisa atender a solicitação de um cliente. Não tenho editor nem causas a defender e nem clientes, só minha sensibilidade. É difícil, às vezes.
São cinquenta anos dessa atitude que estão à mostra no Instituto Figueiredo Ferraz e nas duas unidades da Galeria Marcelo Guarnieri - Ribeirão Preto e São Paulo.
Luiz Paulo Baravelli, fevereiro, 2015
Enigmas por Bernardo José de Souza
Enigmas
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
A partir de uma série de elementos visuais que nos fornecem pistas sobre as questões ontológicas que jamais deixaram de despertar a curiosidade do homem, e fazer avançar o conhecimento científico, Vera Chaves Barcellos investiga a natureza humana e, por consequência, a origem da vida. Construída como uma espécie de laboratório, esta instalação composta por imagens, fósseis, pedaços de pele e caixas de sal, lança o público em um universo tão familiar quanto intrigante, confrontando-o com o desconhecido, mas também com o reconhecível.
Fotografias de primatas contemplativos, aparentemente confortáveis em suas celas num zoológico, produzem um incômodo sentimento de empatia com esta espécie ancestral tão semelhante à nossa ao ponto de recuperarmos, ainda que inadvertidamente, a noção de sermos todos animais - muito embora nós dotados de uma inteligência transcendente. Entretanto a faculdade de pensar que, em tese, nos permitiria compreender a complexidade do mundo e das coisas de maneira holística, aparta a humanidade dos demais seres vivos, gerando uma cisão entre cultura e natureza absolutamente deletéria à manutenção da vida; esta consiste em uma das principais questões a se impor à agenda contemporânea nesta era do antropoceno, quando o homem impacta o ecossistema de forma tão dramática ao ponto de rivalizar com as sucessivas mudanças de ordem natural e geológica ocorridas em nosso passado remoto.
Se a tipologia de peles de vison (caçados, abatidos?) dispostas na parede concorre com os resíduos de sal que formam um alfabeto grego nas caixas dispostas pelo chão, aludindo assim não só à selvageria de nossa relação com o reino animal, mas também à esfera do conhecimento acumulado ao longo da história, é, no entanto, a imagem de uma primata, vestindo véu e grinalda, que sintetiza a condição humana. Somos os mesmos, mas também somos o outro.
A relação com a alteridade segue profundamente mal resolvida em nossa espécie, em que pese nosso esforço coletivo para superar querelas filosóficas e científicas quanto à essência humana, quanto às faculdades humanistas e quanto a esta centelha criativa, por nós tão celebrada, que nos distingue no cosmos de toda e qualquer forma de vida da qual se tem notícia.
A imagem difusa da galáxia M100, registrada pelo telescópio Hubble, e publicada pela Associated Press, nos dá a dimensão do universo, mas também a escala e a estatura do homem. O céu seria o limite? Mas há limites para a engenhosidade humana, tanto na ciência quanto na ficção? Não seriam a vida e a própria ciência formas de ficção?
Representamos o mundo e, apenas assim, dele depreendemos sentido. Somente deste modo fomos capazes de articular a linguagem, ela própria um instrumento de limitado alcance face à complexidade do mundo.
Em seu processo de criação intuitivo, Vera Chaves Barcellos parece ignorar a busca pela resposta última, pelo elo perdido, assim descartando o evolucionismo e mesmo o misticismo para nos demandar ontologicamente, sempre a partir da linguagem: que coisa é essa que chamamos arte?
março 1, 2015
80 + 30 - Nordeste por Daniela Name, Ivair Reinaldim e Marcelo Campos
80 + 30 - Nordeste
DANIELA NAME, IVAIR REINALDIM e MARCELO CAMPOS*
A exposição 80 + 30 - Nordeste faz parte de um amplo projeto de reflexão e celebração dos 30 anos da chamada “geração 80” nas artes visuais. O projeto contempla a realização de seminários pelo Brasil com o objetivo de tomar conhecimento, divulgar e construir criticamente um panorama que considera a exposição “Como vai você, Geração 80?”, um ponto de inflexão, curada por Marcus Lontra, Sandra Magger e Paulo Roberto Leal, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, em 1984.
Aqui, pudemos ter a oportunidade de conhecer e gerar aproximações entre artistas e obras da coleção do Banco do Nordeste. Selecionamos e ordenamos as produções em quatro eixos, a saber, abstrações, apropriações, corpo e imagem. Além destes eixos, apresentamos alguns documentos sobre eventos e grupos atuantes em Fortaleza. Com isso, as inflexões tão presentes na produção brasileira dos anos 1980 evidenciaram-se.
Antes de tudo, mas não com total exclusividade de meios, o retorno à pintura. Nesta exposição, percebemos a pintura que ainda recodificava a relação entre figuração, abstração e expressividade, grande discussão na arte brasileira desde os anos 1950, mas que, ao mesmo tempo, já se interessava por trazer as chamadas “imagens de segunda geração”, como bem conceituara Tadeu Chiarelli. Outro ponto a ser destacado é a contaminação que a escultura sofrerá, acolhendo elementos de apropriações diversas. No Brasil, uma espécie de ‘conceitualismo cordial’ reelaborava as lições mais racionais na junção entre palavra e objeto, obra e índice, trazendo elementos mundanos, ícones do urbano e da cultura popular.
Objetivamos, assim, gerar visibilidade e trazer de volta à discussão uma produção que não se restringira ao Sul e Sudeste, mas que ganhara pontos distintivos, ativando a diacronia que sempre marcou a arte brasileira.
* Curadores de 80 + 30