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julho 23, 2014
Diante de uma vassoura por Thais Rivitti
Diante de uma vassoura
THAIS RIVITTI
Zezão, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 16/06/2014 a 02/08/2014
Conheci a arte do Zezão inadvertidamente. Antes de ouvir falar do artista, antes de saber que os arabescos pintados de azul pelos muros da cidade eram uma arte (é assim que o artista diz: “minha arte”), sem a menor ideia de que um dia nossos destinos iriam se cruzar. O fato, por si só, já merece consideração. De alguma forma, atesta a força de uma produção que chegou a público sem a mediação do circuito artístico.Vi sua arte, um desenho azul turquesa com contornos mais escuros, espécie de estilização de sua assinatura, traço que guarda algo de uma caligrafia na qual as letras – separadas, nítidas, claras – não existem, saindo de bueiros, buracos e inscrita em muros da cidade. Sempre o mesmo, mas sempre diferente. Mais do que marcar uma passagem (“fulano esteve aqui”), seus desenhos sempre chamavam a atenção para os espaços onde se instalavam. Ao menos para mim, a mensagem era clara: a ocupação de Zezão de espaços como o esgoto, os subterrâneos, os espaços esquecidos – ou deixados à deriva para serem valorizados no processo especulativo que hoje veio a ser amplamente discutido pela ação de movimentos sociais – era uma operação extremamente inteligente e contundente. Mostrava que havia uma voz anônima falando uma linguagem própria, fosse a do grafite ou a da pichação, que não iria se calar. Colocava para todos: os pedestres, os usuários de transporte público, os donos de carros, que a cidade é um espaço de uso comum.
Fazer isso por meio de um desenho que contornava as tampas de bueiros e transbordava para a rua, como a dizer que ali dentro se escondiam muito mais coisas do que os olhos poderiam ver, que os espaços invisíveis e abandonados da cidade poderiam ser um terreno fértil, sempre foi visto por mim como um ato estético e político. Depois é que vieram as discussões sobre aquilo ser ou não ser arte. Discussões imensas, pois o que estava em jogo era o próprio conceito de arte que, sendo historicamente formado, está sempre em transformação e talvez não possa ser integralmente apreendido no presente.
Zezão, há algum tempo, se vê às voltas com a transposição de sua arte para lugares fechados: museus, galerias e centros culturais. Sobre suas exposições em galerias, ele diz que o que faz nesse contexto é fine art (em contraposição, talvez, àquilo que ele faz nas ruas: street art). Na visita que fiz a seu ateliê, ele postou-se diante de mim, com um pé na frente e outro atrás, dizendo que vive entre esses dois mundos. Não é uma posição cômoda. Mas acredito que seja a posição de todos aqueles que participam do sistema das artes hoje: aceitar a parte business sem abrir mão das questões fundamentais que mobilizam nosso trabalho.
O lado fine art de Zezão segue seu próprio caminho. Encontrei, nesta mesma visita, um trabalho que me chamou a atenção. Tratava-se de algo que eu, com olhos treinados em aulas de arte na universidade, algumas visitas a museus e leituras de textos teóricos, aprendi a chamar de assemblage. A obra era feita com materiais retirados de uma caçamba de lixo: muitas madeiras velhas (e envelhecidas pelo artista: “tem que ter um acabamento”), placas de sinalização urbana, molduras velhas e uma vassoura gasta. Estes mesmos olhos adestrados me fizeram ver ali ecos da obra “Fool’s House”, 1962, de Jasper Johns. Perguntei, mas Zezão não conhecia o trabalho do artista americano. “Sou autodidata, parei de estudar na 5a. série”, ele respondeu. Talvez por isso ele não saiba que, na arte contemporânea, a assinatura do artista não entra mais na frente dos quadros. Talvez justamente por isso ele tenha sido capaz de fazer com esse desenho, que nasce da sua assinatura, uma arte. Ele era motoboy e morava numa pensão enquanto eu estava na universidade juntando dinheiro para ver um Jasper Johns ao vivo. Foi uma alegre surpresa ter encontrado aquela vassoura pendurada. Era como se sua presença me dissesse que, por mais diferentes que fossem nossos caminhos, nós dois ainda pudéssemos nos encontrar. Ali, diante daquele utensílio de cabo longo e fios desgrenhados, espécie de pincel agigantado, como já sugeria Johns – o instrumento adequado para trabalhar no espaço urbano de Zezão.
Thais Rivitti, Junho 2014.
julho 22, 2014
Estrutura Quadro: Revisão e Desdobramentos por Douglas de Freitas
Estrutura Quadro: Revisão e Desdobramentos
DOUGLAS DE FREITAS
A ‘Estruturaquadro’ é uma série de regras impostas por Marcus Vinícius para a construção e configuração de sua produção. O artista definiu, a partir dos materiais tradicionalmente usados na confecção e nos meios de exibição das obras de arte, o que empregar em seu trabalho, e a maneira que esses elementos devem ou podem atuar.
Estabelecidas as regras, o trabalho do artista é, passo a passo ir encontrando brechas, ver quais novas ideias e possibilidades é admissível, dentro dos limites impostos por ele. E é a partir dessas brechas que o trabalho se desdobra.Regras postas, o artista passa a acomodar elementos geométricos de vidro, madeira e ferragens, pintados sempre apenas com as cores disponíveis no mercado, para formar a superfície de suas pinturas.
Assim chegamos em ‘Estrutura quadro: revisão e desdobramentos’. Na exposição Marcus propõe a revisão de séries anteriores, e desdobramentos, que como recorre em toda sua produção, foram se apontando no fazer dos trabalhos, na busca do melhor acabamento, ou da melhor acomodação dos diversos elementos que compõe o trabalho.
Nesses desdobramentos, o artista chegou a um novo material, o alumínio, que se nos preocuparmos em seguir as regras da ‘estrutura quadro’, entra como elemento da moldura. A partir desse novo material todas as regras se repetem, a novidade é que em alguns trabalhos o alumínio se apresenta sem revestimento de tinta, ele é apresentado com suas características plásticas. Os trabalhos em si, são molduras-caixas de alumínio, onde a primeira camada é o vidro de proteção, e o fundo é também alumínio. No curto espaço entre o fundo e o vidro, de aproximadamente 1 cm, é que tudo acontece. As laterais internas das molduras recebem delicados recortes geométricos coloridos. A construção da pintura, neste caso, não se apresenta na superfície, como acontece normalmente nos trabalhos do artista.
Talvez seja o uso da matéria crua a novidade da vez na obra de Marcus Vinícius,o não revestimento de tinta destes trabalhos de alumínio, e a série onde o que vemos na superfície é apenas o efeito de uma acidulação no vidro, e alguns poucos recortes de vinil adesivo. Sem revestimento, a cor apresentada é a cor da matéria usada.
Toda a composição dessas pinturas do artista parece se assemelhar muito mais a uma composição industrial, ou até arquitetônica. Não que não haja no trabalho uma inteligência de pintura. A cartela limitada de cores, que deveria ser fator limitante de resultados, é sabiamente contornada pelo artista através da combinação das cores, onde um amarelo se torna mais quente ou mais frio de acordo com a cor do elemento colocado ao seu lado.A questão é o encaixe, como em um desenho de planta baixa arquitetônica, não é admissível o vazio, toda a composição espacial dentro da estrutura quadro é organizada e ocupada. E deste modo, o trabalho revela sua feitura, um olhar mais atento é capaz de decifrar seus encaixes, suas diferenças de superfície, seu modo de construção.
Se o trabalho lida com o espaço, avançar para o espaço ele avança muito pouco, quase nada. Apenas os trabalhos das series Listrados e Arrimados, onde vidros se apoiam sobre os quadros, ou se projetam apoiados em calhas das madeiras que compõe a superfície dos trabalhos, se desdobram para fora do retângulo ou quadrado do quadro. Ainda assim são vidros, avançam para o espaço, mas projetam a luz, o espectador, e o próprio espaço para dentro.
O espaço que interessa aqui é o espaço entre, existente entre superfície do trabalho e a parede, e o espaço criado na superfície da pintura de Marcus, todo fragmentado, e que busca através da ilusão um espaço pra dentro.
Douglas de Freitas | Julho de 2014
julho 20, 2014
Como dar gravidade ao sabor maduro de uma fruta vermelha? por Paulo Miyada
Como dar gravidade ao sabor maduro de uma fruta vermelha?
PAULO MIYADA
Primeiro, existem as histórias que começam muito antes da história contada pelo artista. De fora para dentro, lembramos que o Líbano que Gui Mohallem visita não é só o país donde emigrou sua família. A complexidade étnico-religiosa da região é por si só uma demonstração de que toda minoria é maioria para outro grupo menor, o que alavanca um jogo de separações e polarizações que redefine o desenho da paisagem, além da vida de cidades e famílias inteiras. É possível ser maioria em uma região, mas ser minoria entre os regentes do país, assim como ser minoria em uma cidade, mas ter maior poderio econômico e, portanto, maior soberania sobre a própria vida. É possível, e aí reside a raiz do problema, ter certeza de que, entre os tantos sistemas de crença, o seu é o mais puro, o mais próximo de uma verdade passada ou atemporal. Hoje mesmo, se buscarmos por notícias do Líbano em alguns dos principais jornais do mundo, encontraremos notícias sobre o nacionalismo maronita, sobre os refugiados da guerra da Síria – ainda em curso e com potencial para escoar para o Líbano a qualquer momento – e o sintomático impasse do parlamento libanês em definir um presidente consensual entre os partidos cuja representação segue atrelada às variadas etnias religiosas.
Depois, a maneira como estas histórias atravessam a história da família do artista e suas próprias motivações em visitar o país. Da grande fome durante a Primeira Guerra Mundial até a longa guerra civil iniciada em 1975, passando pela reestruturação conflituosa que se seguiu à Segunda Grande Guerra – toda a genealogia mais ou menos próxima da família de Mohallem é marcada por eventos que impulsionaram emigrações, boa parte para o Brasil. A viagem, nesse caso, combinava esperanças de vida nova e certa sensação de morte frente ao passado, ao lugar de origem e aos amigos e familiares que ficavam para trás. Para o convívio familiar do artista, isso implicou na certeza de uma falta: a parte da memória que não lhe pertencia e nem poderia pertencer; as águas lodosas de um fosso imaginário. Sua viagem ao Líbano era, em princípio, uma maneira de responder a essa falta, compensá-la com a investigação das histórias eclipsadas de seu pai, mãe, tios e primos.
As histórias anteriores ao trabalho de Mohallem estiveram, então, presentes na fatura de sua própria história, como carimbos que assinalavam tudo que conheceu em sua viagem com os signos do abandono e da saudade (o que encontrava havia sido deixado para trás), da violência e da morte (muitas das pessoas envolvidas haviam fugido de conflitos ou viviam sob sua ameaça contínua) e do perigo iminente (por vezes as conversas sobre sua estadia acabavam mencionando o risco de ataques, bombardeios e sequestros). No nível do raciocínio consciente, pelo menos, viajar ao Líbano, de Beirute ao seu interior e serras, seria um processo de exposição à dor, ao medo e à falta. No entanto – e aqui começa efetivamente a história que os trabalhos de Mohallem nos contam –, as conversas, paisagens e encontros teimaram sempre em extravasar essas fronteiras. Mesmo que involuntariamente, a presença curiosa do artista provocava seus familiares a religarem memórias a pessoas há muitos anos não vistas, por vezes extravasando em emoções. Junto com elas, vinham os traços de uma hospitalidade antiga e diferente, com os sabores das frutas da estação, as cores e
alturas das montanhas, os hábitos singelos como os cuidados com a horta – armadilhas
de encantamento que cooptavam aos poucos esse visitante para uma camada diferente daquela dos conflitos iminentes.
Daí o que as fotografias e stills coloridos por Mohallem nos oferecem é esse limiar entre, por um lado, os indícios de diferença e conflito presentes na paisagem e nos espaços retratados e, por outro, as confissões visuais de um envolvimento afetivo em curso. Na mão avermelhada, oscilam ambas as leituras, quer enxerguemos na mancha a lembrança do sabor de fruta madura ou a reminiscência das tantas mãos manchadas de sangue que rondam a memória do Líbano. Já com os vídeos, as peças de parafina rubra, o depoimento da tia e o poema declamado por seu pai, emergem alegorias da tensão mais intrínseca à história dentro de todas essas histórias: aquela entre Gui Mohallem e uma origem que deveria pertencer-lhe e não obstante lhe era tão estranha, blindada pelo silêncio de seu pai. Viajando, o artista começou a se apropriar de sua herança escondida e, assim, conseguiu trazer aos olhos do pai certo reconhecimento da parte do filho que não enxergava, da parte de si que havia enterrado.
Nazareno: Aqui do lado de dentro! por Marco Lucchesi
Nazareno: Aqui do lado de dentro!
MARCO LUCCHESI
Como definir o cosmos de Nazareno, em sua condição tácita e vibrátil, feito de puro dinamismo? Como definir esse microuniverso em busca permanente de sinais, remissões que redesenhem um gesto concentrado e primordial, como um alfa cheio de luz e calor? Como defini-lo, em sua liberdade radical, como compreendê-lo sem o aprisionar?
Nazareno é essencialmente um poeta do espaço. Não do espaço puro, bem entendido, mas do espaço regido por um deus ludens, que o faz crescer e diminuir, como se buscasse os gigantes da Antiguidade e as províncias de Liliput. Um poeta do espaço dentro de um cosmos sazonal, retrátil e expansivo: nas variações de escala, na taxa demográfica de objetos, que se nutrem de espaço, que dentro dele se descobrem e com ele se confundem. Espaço objetal onde, ao fim e ao cabo, surgem novas e estranhas potências. Pluriformas de ocupação territorial, ora recatadas, ora sabiamente dispersas. Sempre em movimento de fuga e torna-viagem, num feixe de convergência ou então acêntrico, deslocado, fora da moldura, com inesperadas saídas de emergência.
O artista exerce uma espécie de teologia do jogo, uma herança em que nada se perde: antes se transmuta na poesia do espaço, dentro de uma razão combinatória de acaso e necessidade, com imagens portadoras de límpidas modulações, sobrepostas, com céleres passagens de ritmo e semântica, seguindo uma recorrente flutuação de sentido e diversidade de conceito. E desde os títulos lapidares, criados por Nazareno, que parecem uma inscrição rupestre, dura e suave.
Nazareno é um poeta do espaço, com saudades das matrizes, míticas, de um passado que tudo devora como esfinge. Mas o segredo pode estar nas flechas que têm sede de futuro. Nessa ucronia inscreve-se com rara sensibilidade a obra de Nazareno, saudosa do futuro.
julho 6, 2014
Atravessamentos - Raphael Couto por Elisa Byington
Atravessamentos - Raphael Couto
ELISA BYINGTON
A agulha pontuda e curva atravessa a pele do artista que costura tecidos, borda pérolas sobre seu corpo, em uma operação plástica. A pinça puxa a linha, a pele se rompe aqui e ali e deixa pequenas gotas de sangue no rastro do bordado, que desenha sobre o peito a ponta de um coração. Impossível ignorar o aspecto metalinguístico do quadro, enquanto as reações cutâneas e a vermelhidão que se espalha dão a dimensão da realidade da imagem fotográfica, entre dor física e prazer estético.
Há uma forte conotação ritual e sacrificial nesta espécie de cirurgia sem cortes, que busca a transformação do corpo por acréscimos, superposições, substituições estéticas, e opta por elementos estranhos à fisiologia: copos de vidro, tecidos e elásticos, entre outros, que procuram redesenhar os limites do corpo e seus traços característicos. Notáveis os autorretratos que oscilam entre a desfiguração e a refiguração do rosto-escultura.
É uma arte vivida com coragem, literalmente sobre a própria pele, inescapável espelho da identidade, depositária das memorias e marcas que afloram durante a existência. Uma pele reformulada como objeto, sobre a qual natureza e artificio se misturam na busca de outra unidade para o corpo. Pintura e escultura do ser no mundo.
Na escolha de constituir-se em sujeito e objeto da própria arte, Raphael Couto tem urgência em falar da vulnerabilidade do ser humano, da dor, do erotismo gay, das brechas e margens ambíguas do corpo, da experiência do sagrado e profano por seu intermédio. A ideia do corpo ferido e da purificação ritual estão bem presentes para o artista que tematiza, nos seus escritos, as questões iconológicas do corpo de Deus encarnado, oferecido em sacrifício para a regeneração da humanidade, seu papel simbólico estruturante para grande parte da imagética e pensamento Ocidental.
Há um projeto e um desenho que precedem os trabalhos: sejam estes performances feitas para o publico, sejam realizadas somente para a câmera fotográfica. Na série dos patchwork, a obra afirma sua plena participação na historia da arte: costura quadrados de cores primarias sobre a pele, reconfigurando-a com a referencia formal e cromática ao abstracionismo mondrianiano. A este, se superpõe, ainda, o brilho do cetim que traz à memória a sensualidade dos parangolés de Oiticica. Há também a sobriedade nas “suturas” que aplicam o azul e o branco em diferentes transparências sobre o rosado da pele, colorido clássico como em uma odalisca de Ingres ou Madonna de Bellini.
A fotografia passou a ocupar um lugar central nos trabalhos de tipo processual. Outrora mero registro, hoje é parte integrante da criação. Transformou as obras que eram efêmeras e transitórias, por definição, em objeto de arte. A imagem resultante anula o tempo da performance, congela o instante, reconsidera as questões de composição e iluminação, mas consente também uma diferente aproximação do olhar, uma intimidade que deixa ver os poros, as marcas, as reações cutâneas, que acrescentam força dramática à obras que tem como material o ser humano.
julho 1, 2014
A arqueologia de um acontecimento liminal por Luiz Guilherme Vergara
A arqueologia de um acontecimento liminal
LUIZ GUILHERME VERGARA
O que se revela à primeira vista nesta genealogia dos gestos da Regina de Paula é sua condição liminal enquanto artista e obra – como zona de passagem e transformação de sentidos no mundo. Este obra-acontecimento inaugura um lugar suspenso do tempo onde se diluem pelo sal do mar o sagrado como estado batismal de infância da arte. Regina está sendo levada ou nos leva juntos a esse banho de descarrego literal à beira mar, onde se entrega a um rito de transgressão ou transbordamento mito poético. Nesta condição liminal a artista realiza incisões cirúrgicas, fecundações e transbordamentos entre o corpo da literatura e uma estética existencial. Sem dúvida a Bíblia não é qualquer livro. Assim, Regina não está mais tratando de desconstruir ou justapor fronteiras entre o moderno e pós-moderno, mas do resgate não ainda consciente da experiência do sublime pelo sublime na arte. Sem dúvida neste conjunto de performances são trazidos para essa margem da praia toda a sua bagagem de saberes e fazeres antecipatórios destes futuros, desde as ruínas dos tijolos de areias, do construtivismo ao avesso de sua poética, como também sua arquitetura de desfazimentos de muralhas. Ao mesmo tempo, a artista não deixa de praticar com uma grande dose de resistência e rigor o que implica no “des-criar o real” 1, des-criando também escrituras sagradas em nome da infância do ser linguagem em ação.
Impressiona a todos nós o impulso antropofágico da artista. Com pequenos gestos investe, como conduzida por um transe, no desterramento de textos hermeneuticamente fechados em narrativas religiosas para re-encarná-los de areia e sal enquanto verbos e provérbios contemporâneos.
Abre e rasga os livros, corta-retira suas carnes paginadas, escava cuidadosamente seus miolos para abrir uma entrada / entropia de retorno ao infinito, como se pelo acontecimento único da linguagem des-criasse a própria literatura no oceano. Já não somos mais leitores de letras mas sim da indizível nomeação do sublime. Entramos pela mão da artista por uma brecha “borgeana” esculpida com o rigor do construtivismos universal, para mergulharmos no livro aberto do corpo metafísico ou mítico poético. Descobrimos com a artista um entre lugar-espaço imanente, um ventre profundo por trás das páginas Biblicas. A seguir tudo se cobre de espumas, de areias do deserto e do mar, com infinitos grãos de cristais e de catedrais. Nesta cerimônia performática Regina reinventa, sem querer, a mitologia grega do nascimento de Vênus – ou Afrodite – fecundada pelas espumas e espermas de Urano castrado por Zeus.
Regina de Paula escava em camadas, sem saber, uma arqueologia de si próprio, mas que ao mesmo tempo, abre espaço para as inquietações que acompanham a história da infância da humanidade. Com diz Nietzsche – “em quase todos os pontos, os problemas filosóficos são novamente formulados tal como dois mil anos atrás: como pode algo se originar do seu oposto, por exemplo, o racional do irracional, o sensível do morto, o lógico do ilógico, a contemplação desinteressada do desejo cobiçoso, a vida para o próximo do egoísmo, a verdade dos erros?” 2
Neste movimento autopoiético Regina encarna um estado de infância indissociável da fecundação entre linguagem e existência. Tal como Peter Pál Pelbart 3 revisita Agamben 4, Regina traz para sua experiência a “potência do não” pela destruição do aprisionamento da linguagem pelo texto. Como um ser livre ou uma criança, transforma o livro em um corpo de dobras para desfolhamento e, com um sorriso especial, vai escavando suas páginas uma a uma. Após esse desfazimento ou des-criação do livro, Regina faz um resgate existencial do acontecimento do ser - linguagem no mundo. Lança ao quebra-mar palavras “como se” inaugurando mundos religados entre beleza – sublime e carne-espírito.
Assim também abrem-se passagens para os sentidos indizíveis das entrelinhas, dos intertextos de incertezas, fazendo do livro um corpo feminino, um ventre-espaço, liminal da dádiva humana – o demasiado humano - da arte na vida.
Neste conjunto de obras/gestos Regina nos transporta a um legado de manifestações artísticas de desterramento e reterritorializações da arte de volta à terra ou ao mar. Desde o Contra-Bólide de Oiticica às intervenções na paisagem de Katie Scherpenberg, Regina de Paula dá um salto duplo para um horizonte de possibilidades – para o nascimento virgem do oceano-espuma de incertezas. Por isso, ainda não consciente, sua des-criação do testamento é também a dissolução da arte no real - para intuir outros espaços-tempo de micro-utopias indissociáveis dos ritmos entre opostas heterotopias e entropias cósmicas além das palavras.
NOTAS
1 PELBART, Peter Pál. A Potência do Não. Linguagem e política em Agamben. (p. 22) In. FURTADO, Beatriz, LINS, Daniel. Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008.
2 Nietzsche. Das Coisas Primeiras e Últimas. (p 15). In. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Um livro para Espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
3 PELBART, Peter Pál. A Potência do Não. Linguagem e política em Agamben. In. FURTADO, Beatriz, LINS, Daniel. Fazendo Rizoma. São Paulo: Hedra, 2008.
4 AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.