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abril 29, 2014
Carolina Ponte – Dispêndio glorioso por Marcelo Campos
Carolina Ponte – Dispêndio glorioso
MARCELO CAMPOS
A exposição "Só o excesso", de Carolina Ponte, reúne produções em desenhos e objetos, onde a artista se destina a mostrar o excesso, a sobra, o que emoldura vazios. Assim, Carolina nos exibe partes de arquitetura, como frisos, ornamentos que, em teoria, deveriam circunscrever conteúdos. Com este gesto, Ponte ativa uma dualidade, uma ambivalência em nos colocar ante ao que não teria protagonismo, anulando uma possível parte principal.
A produção de Carolina Ponte se dedica, justamente, à observação dos ornamentos, do gesto excessivo, do “gasto improdutivo”, nos termos de Bataille. Ao produzir objetos em crochê e desenhos multicoloridos, a artista nos faz espectadores de imagens originalmente ligadas à decoração de templos. Por outro lado, também, vinculadas a ritos profanos, momentos em que temos contato com o gasto improdutivo: enfeites, fantasias para consumações catárticas. O trabalho da artista se aproxima de uma espetacularização da forma. Orna para nada. Perdendo o núcleo, frisos e molduras são, em si, assunto principal, janelas cegas. Carolina apaga, anula as informações, e nem por isso atentamos para a falta, mas, antes, para a vontade humana de se dedicar ao excesso.
Georges Bataille lança o conceito-chave para estas discussões quando, em 1933, tratou do dispêndio, do “gasto improdutivo”. Bataille nos explica que “há uma pressão permanente provinda de um excesso que perturba os organismos vivos, havendo, então, a exigência do desperdício, do gasto ou da descarga.” Ou seja, a moldura, as ordens decorativas, o enfeite art nouveau são, sob esta perspectiva, uma exigência do desperdício. E tal exuberância só pode pretender o vazio, o lugar do sentido, para sempre velado. É este o jogo que o trabalho da artista nos indica.
A arquitetura funcionalista moderna tinha horror ao ornamento em oposição ao horror vacui (horror ao vazio), do período Vitoriano. Sabemos que o uso excessivo de imagens e elementos ornamentais teve grande influência das culturas não-ocidentais, ativadas pelo primitivismo que se anunciava em fins do século XIX.
Os trabalhos de Carolina Ponte nos situam nesta ambivalência, fornecem ornamentos, cores, volutas, detalhamentos excessivos para o vazio. Neste sentido, criam, o que Bataille chamava de fenômeno cósmico. Sim, explosões, espirais, poeiras de estrelas geram condições para que percebamos o infinito, como no cosmos.
Esbanja-se, destrói-se, perde-se, estas são conjugações de verbos para a construção da arte. Obviamente que ao tratarmos da perda, pensamos numa sociedade justificada entre o trabalho e a fabricação capitalista, desfazendo-se da artesania em favor da produção industrial. Ser perdulário, assim, é um gesto de inconsequência, de certa barbárie para os usos da civilização.
A arte ganha esta tarefa inglória, produzir para nada, criar o “gasto improdutivo”. E, culturalmente, ligar-se ao excesso, só ao excesso. Mas a vida não cabe em si. Nada se atém aos seus limites, o jogo, o sexo, os espetáculos. Damos, cotidianamente, sentido ao excesso, ou melhor, compartilhamos os excessos, o alimento, as vestimentas, os rituais. Buscamos o lirismo, a junção dos sentimentos. É difícil conter o lirismo. Impossível separar o desejo.
Carolina Ponte, em seus trabalhos, cria gestos para o excesso, linhas demais, cores demais, amplos pedaços de crochê. Aproxima-se, com isso, da poesia de Manuel Bandeira que se declarava farto do “lirismo comedido”, daquele lirismo “bem comportado”, “com livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.” Bandeira proclamava, antes, o lirismo dos loucos, dos bêbados.
Aqui, não devemos perguntar à artista, para quê? Para quem? Não queremos “saber do lirismo que não é libertação”.
abril 16, 2014
Fisálias - Paulo Paes por Luiz Camillo Osorio
Fisálias - Paulo Paes
LUIZ CAMILO OSÓRIO
Em julho de 2005 fiz com Paulo Paes uma exposição no festival de inverno do Sesc em Friburgo. Discutindo e escolhendo com ele os infláveis a serem expostos, insistia que os recortes de balões, utilizados em seus workshops para ilustrar o caminho que o levou aos infláveis, deveriam ser mostrados. Não seriam “obras”, mas revelariam etapas significativas do processo e articulações fundamentais no seu caminho criativo. Para se entender a singularidade do percurso artístico de Paulo Paes é importante deslocarmos e ampliarmos os parâmetros de identificação do que seja a obra. A relação entre cultura popular, artesania, produção de utensílios e criação artística são uma coisa só em sua poética e, por isso, revelar estes cruzamentos com o balonismo parecia-me importante.
Naquele momento, independentemente da exposição, ele me mostrou algo que começara há pouco tempo, denominado Fisálias. Estavam sendo produzidas gradualmente em seu ateliê. Além das peças em si, havia desdobramentos novos bastante originais. Estas Fisálias eram feitas de resíduos industriais, mais especificamente de garrafas Pet, amarradas através de uma costura cuidadosa e cheia de detalhes. Depois de prontas são lançadas ao mar. Os desdobramentos após o lançamento poderiam ser vistos no site, criado para elas e reunindo imagens in loco e relatórios minuciosos dos acontecimentos marinhos a elas acoplados. Dos balões para as Fisálias temos um caminho singular de movimentação da obra. Os infláveis estão para os balões assim como as fisálias estão para as redes e barcos de pesca. Nos dois casos há uma relação produtiva entre artesania e experimentação.
A Fisália é um produto artificial que se transforma em organismo biológico. Elas podem ser pensadas como redes, em que micro-organismos se agarram e constituem colônias, ou seja, pólos de irradiação de vida marinha. Rede tanto no sentido de uma malha que captura algo no mar, feita de nós, laços e cadeias articuladas, como também no sentido de ser um canal de agregação e disseminação de potências criativas. É também vislumbrada a possibilidade destas Fisálias se transformarem em ilhas-embarcações capazes de flutuarem servindo como uma alternativa de sobrevivência. A passagem de uma rede para um barco/casa é uma questão de escala e de projeto. Centenas de garrafas Pet desfiadas, enlaçadas e enredadas em uma teia complexa que se lança ao mar para agregar vida. Transformadas em escala, multiplicada exponencialmente sua base de sustentação, aventa-se a hipótese de uma cabine de sobrevivência a ser experimentada no futuro. Esta possibilidade de uma rede que sirva como plataforma móvel e sustentável no mar é parte da potência visionária do projeto.
As redes atraem vida e se deslocam como abrigo de organismos marinhos. É uma célula de resistência que se apropria de detritos industriais e cria agentes de agregação e multiplicação de formas de vida. O experimento que se lança ao mar transforma-se em possíveis corais artificiais, em cnidários e esponjas marinhas feitas de resíduo poluente. Há uma poesia construtivo-visionária de envergadura ainda pouco palpável.
Segundo o próprio artista no site criado para relatar o processo construtivo das Fisálias, a idéia é “produzir uma experiência plástica resultante do cruzamento entre processos biológicos aleatórios e estruturas planejadas para lhes dar suporte físico no mar”. Estas estruturas planejadas, feitas com as garrafas Pet, são de cuidadosa e meticulosa elaboração, partindo de uma experiência anterior com redes de pesca, artesania aprendida no convívio com o mar, além de projetos de construção de pequenas embarcações e da familiaridade com a produção de esculturas e infláveis. Mais uma vez, o trânsito da artesania para a construção artística se dá sem sobressalto, tendo o artista controle manual de todo o processo criativo e acrescentando-lhe uma visão experimental que nasce do convívio inteligente com os materiais.
Afixadas à parede e espalhando-se pelo chão do ateliê, as Fisálias revelam seu processo criativo. As garrafas são agrupadas e formam cachos que se prendem por cabos e anéis feitos com o corte preciso do próprio material, revelando a artesania aprendida dos velhos pescadores. Nenhum material é acrescentado além das garrafas plásticas. Os cabos são feitos com a própria garrafa “descascada” como se fossem uma laranja e amarradas em cabos maleáveis capazes de suportar as intempéries do alto-mar. Na parede, elas avançam pelo espaço como se fossem plantas trepadeiras que crescem aleatoriamente em busca de alguma forma temporária. A constatação da força plástica não confere a estas peças autonomia formal, no sentido de terem uma presença poética independentemente do seu lançamento ao mar. Talvez, o ponto não seja a impossibilidade desta autonomia, mas a insuficiência do ponto de vista do seu alcance poético uma vez agregado o valor das várias camadas de significado e vida que vão se acoplando nas muitas etapas do processo. As relações estabelecidas nos vários momentos de produção – da coleta, da fatura, do lançamento, do acompanhamento (com seus relatórios e discussões) e os usos reais e simbólicos desencadeados a partir de novos focos de interesse que se agrupam constantemente ao projeto – surgem das interações que transformam as maneiras de olhar, de fazer e de ser das Fisálias.
É notável a capacidade das Fisálias em constituir novas adesões a partir das suas particularidades de acumular formas de vida. Há desde interesses de biólogos, passando por pescadores e por comunidades ribeirinhas em busca de novos instrumentos de produção e de afirmação de uma identidade comunitária. Neste sentido, vemos nas Fisálias aquilo que Foucault chamou de heterotopias, ou seja, lugares reais e que constituem formas de vida heterogêneas, desviantes e em tensão com os já existentes. Assim, elas criariam espaços de conflito e convivência.
A coleta das garrafas já estabelece o primeiro processo de troca e a participação efetiva de aliados poéticos. Os lixeiros da Urca - bairro carioca onde mora o artista - interados minimamente do projeto separam as garrafas recolhidas e as vendem diretamente ao artista. Sabendo das condições necessárias para servirem ao manuseio, já fazem a primeira separação de garrafas. Daí até o lançamento, o trabalho é de ateliê. Prontas as Fisálias, começa o desafio das escolhas de local e comunidade para a colocação das peças, levando em consideração as características ecológicas, sociológicas e políticas que seriam agregadas ao projeto. Na verdade, são etapas complementares, de relevância equivalente.
A decisão de realizar o trabalho com as Fisálias em Recife foi tomada em um workshop seu na cidade e teve acolhida produtiva dos diversos segmentos relevantes para o projeto. O contato com a comunidade da “Ilha de Deus” foi sendo costurado e agregou uma vitalidade participativa incomum em projetos artísticos. A comunidade que vive do extrativismo no mangue e da criação de camarões, tem uma longa história de resistência à exclusão social. A adesão às Fisálias foi crescendo em relação direta às trocas de experiência e de horizontes produtivos que se abriam. Os pescadores interessaram-se em especial pela possibilidade de elas virem a criar corais artificiais em alto-mar que os ajudassem como pontos pesqueiros. Além disso, a comunidade da Ilha de Deus, constantemente reprimida pelo crescimento desordenado da cidade do Recife, agregou-se em torno do projeto vendo se constituir ali uma forma de visibilidade capaz de fortalecer as suas demandas políticas, sociais e econômicas.
A inserção das Fisálias e a disseminação de atividades previstas no projeto, daria visibilidade às formas de vida e de produção nascidas dentro da comunidade e contribuiria para mudar a imagem de uma ocupação destrutiva do ecossistema do mangue. Por mais insalubre que seja a vida nas palafitas, há entre as pessoas que ali vivem uma identidade orgânica com o ambiente – tanto do ponto de vista físico como simbólico - e o objetivo é melhorar a infra-estrutura e as condições de educação e produção da comunidade. O “coeficiente artístico” das Fisálias não se limita a sua atuação social e política, mas são elementos relevantes que se agregam ao seu modo de ser estético – em que as condições plásticas, a fatura e a presença silenciosa no site ou no museu (não site) são determinantes.
Para o público de arte, a visitação ao mangue tem também um duplo aspecto propiciado pelo trabalho. Estar diante de um mundo com o qual ele não convive e perceber as redes que se formaram em torno das Fisálias. Abriram-se canais de comunicação novos entre as pessoas e os próprios moradores ganharam novo contato com o seu ambiente, além de verem crescer as oportunidades de trabalho. Esta troca entre pessoas e interesses, normalmente conflitivos, entre setores apartados da sociedade, é parte da potência poética do trabalho.
Não se trata de resolver os conflitos ou de se estetizar a pobreza, mas de torná-los visível e de se criar formas alternativas de convivência e de produção. O trabalho artístico viabiliza novas formas de sociabilidade e de produtividade, revelando diferenças sociais e estabelecendo laços entre subjetividades constituídas por temporalidade e espacialidade discrepantes.
A poesia destas ilhas flutuantes de resíduo industrial equivale ao apontado por Foucault, na sua discussão das heterotopias, ao do navio, considerado “um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que existe por si só.....o navio é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem barco, esgotam-se os sonhos e a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas polícias.” Entre redes e barcos, as Fisálias são o lugar de encontro das diferenças e de produção de formas de vida heterogêneas.
Luiz Camillo Osorio
abril 11, 2014
Natural e manual por Cauê Alves
Natural e manual
CAUÊ ALVES
Camille Kachani, Zipper Galeria, São Paulo, SP - 17/04/2014 a 10/05/2014
Tradicionalmente a arte se opõe à natureza. A natureza é a condição original, aquilo que não foi cultivado pelo homem e que existe independentemente da atividade humana, de qualquer artifício artístico.
A arte, por ser construção do homem, normalmente é entendida como oposta àcondição original e primitiva dos elementos naturais. Aristóteles já havia afirmado que a arte imita a natureza. Tratava-se de perceber que a arte produz à maneira de, faz como, não apenas no sentido de reproduzir, representar as coisas ou imagens da natureza, mas desenvolver o próprio processo inventivo da natureza, na possibilidade de uma semente se transformar em uma árvore.
O trabalho de Camille Kachani, como grande parte da tradição artística ocidental, cria coisas que a natureza não proporcionaria, mas que existem potencialmente nela. A madeira, material orgânico recorrente na produção do artista, possui uma carga afetiva. Para Kachani,é como se existisse algo de semelhante entre a natureza humana e esse material. Uma espécie de história primordial em comum.É como se o artista atualizasse uma possibilidade da madeira de se tornar outra coisa: uma mesa, um cabo de martelo ou uma maleta. Mesmo queas plantas que brotam em seus objetos sejam artificiais, não significa que as obras apenas imitam o exteriorda natureza. Trata-se de uma aproximação tanto da potência inventiva da natureza quanto dos objetos da cultura. As gavetas e pés de mesa não são ready made, são construídos pelas mãos de Kachani. Na verdade, não há diferença aparente entre aquilode que o artista se apropria e o que ele faz.
Os cabos são alongados como se estivessem vivos, crescendo nos próprios objetos espontaneamente e sem esforço. Entre as estratégias recorrentes de Kachani está a noção de colagem como justaposição de elementos contrastantes e complementares. As relações mais fundamentais se dão entre os elementosnaturaise manuais, mas há uma série de outras relações mais prosaicas, como a de útil e inútil ou orgânico e inorgânico. O que se observa é que esses pares de opostos tendem a se transformar um no outro. A natureza se revela artificial e o material transformado, a madeira, natural.
De todo modo, o aspecto artesanal tende a se sobrepor ao industrial, ao feito em grandeescala numa lógica impessoal de repetição. Além do processo de execução das peças ser manual, opresenteconjuntode trabalhos de Kachani instiga o contato com as mãos do visitante. Há algo de sensível, de tátil em grande parte deles. Os objetos são originalmente feitos para a escala do corpo, particularmente para as mãos, como se estivessem fadados a serem tocados: foice, tesoura, enxada, escova, faca, cabos de utensílios domésticos ou puxadores.
Há ainda uma dimensão de sentidos nesses trabalhos ligada à memória subjetiva. A gaveta e as maletas são recipientes facilmente associados às lembranças, guardados e recordações. Entretanto, o fazer e a ação de executar o trabalho possuem algo de conceitual. Muitos dos instrumentos usados para construir o trabalho são também constituintes dele. Além de serem instrumentos de fácil manuseio,sua presença parece ser uma volta autorreflexiva do trabalho sobre si mesmo. É a obra que aborda seu próprio processo de construção ao sereferir a objetos tão usados no ateliê,como o martelo.
Há ainda uma série de outros trabalhos que se situam entre o equilíbrio e o desequilíbrio. São arranjos aparentemente instáveis, mas que possuem apoios firmes no chão: com três ou quatro pés, as peças se sustentam pela soma de instrumentos diversos. Elas parecem dançar uma música sem qualquer coreografia. Uma escada improvável se ergue cambaleantea partir de instrumentosque se transformam em degraus elaterais.A peça, que não aguenta o peso de um humano, repele o toque do visitante também com a ameaça dosutensílios cortantes e pontiagudos que a formam. A ergonomia dos objetos feitos para mão não se adequa plenamente à nova função que adquiriram. Há uma disjunção total entre a nova formae sua função anterior. O que resta é um abismo entre o uso cotidiano dos objetos e a configuração da peça final.
Essa distância aparece de modo mais direto quando utensílios como copo, prato e talheres são divididos ao meio.Existe uma cisão que não separa completamente uma metade da outra porque as duas estão ali, próximas e aludindo a um todo. Há uma pequena divisão que, ao mesmo tempo, separa e une os objetos. É o hiato entre as duas metades de um martelo que sintetiza toda a mostra: a distância entre uma totalidadee a singularidade partida da arte. No trabalho de Camille Kachani,natureza x arte ou natural x manual, ao invésde oposições, sãounidades indissociáveis.
Mariana Felix - Mirì por Emmanuel Van der Meulen
Mariana Felix - Mirì
EMMANUEL VAN DER MEULEN
Mariana Felix, Mercedes Viegas Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, RJ - 16/04/2014 a 17/05/2014
O trabalho de Mirì tem a elegância desses artistas atentos aos detalhes, à transição, que não pretendem argumentar, convencer, mas sim mostrar o que estávamos prestes a esquecer: mistérios simples e cotidianos do corpo, da floração, do contato, do crescimento, da escuta cuidadosa, do sono e do encontro. Mistérios do objeto, da silhueta, da espera, do banho, da cor deixada à sua própria vida e que impregna a tela. Na verdade, a surpresa não é aqui o fruto de uma máquina, de uma produção, mas de um alerta, graças às formas surgidas da terra modelada com paciência, às linhas enérgicas de pintura. Alerta que mescla sem mossa os traços do sonho no cotidiano. Este aqui é, e não é, o cotidiano do artista. É aquele de nossos pensamentos confusos, dessas estranhas associações de ideias, de desejos, de alegrias repentinas que aparentemente não têm qualquer função e que nos transpassam, nos tornam estrangeiros de nós mesmos em um curto instante.
Pinturas, esculturas, entram aqui em nosso campo visual como coisas, imagens − figuras sutis ou cartografias delirantes − que não ignoram o mundo, pelo contrário, não entram em competição com ele, melhor dizendo, inserem-se em seus meandros. Sonhar não é esquecer, é pensar de outro modo, com o que o corpo transporta, o inconsciente sugere, pensamentos-objetos, ideias-órgãos, os quais para nós seria inquietante definir, assustadores às vezes. Com o que a tela, a cor, a terra indicam, Mirì constrói, repertório sem sistema nem ordem preconcebido, um mundo e, um mundo dentro de nosso mundo. Ela vai ao encontro de um povo, de uma tribo, ainda indene contra a violência moderna, das simplificações que a eficácia, o trabalho em série impõem, mas sem preocupação de existir.
Ali onde o olhar contemporâneo é tragado por um fluxo ininterrupto de imagens, onde a narrativa em abismo do real torna-se uma segunda natureza, Mirì sabe olhar, prestar atenção no estranho, no que não é bonito nem feio, no que foi posto de lado. Ela sabe escutar seu coração bater apaixonadamente, puxar o portão do jardim e misturar-se aos jogos das crianças sem fazer a lição. Aliás, cada um sabe que os jogos infantis são muito sérios. É preciso uma força singular e uma grande liberdade de espírito para preservar essa faculdade de maravilhamento, de jogo. Tal como sua técnica ou suas ideias, nisso reside o trabalho de todo artista.
A infância, sim, a infância de Mirì (a nossa também) está certamente presente em seu trabalho, mas sem saudosismo. Sobretudo sob a forma do que se poderia chamar de infância da arte, de um primitivismo lúcido, benevolente, que não reivindica um retorno a uma idade de ouro, a um paraíso perdido, mas a uma preocupação de que o homem continue a ser − apesar da ciência e do saber acumulado − uma criatura enigmática. Nela há alguma coisa de universal e, por certo, de falsamente ingênuo. Essa ingenuidade muito elaborada onde, no entanto, não se revela nenhuma ironia, é a assinatura do artista. Seu percurso denuncia sua experiência de diferentes culturas de modos de vida: Líbano, Brasil, Estados Unidos, França. Daí depreender-se talvez sua facilidade de propor alguma coisa de irredutivelmente humano e aberto. Nota-se também, de modo claro, como Mirì se inscreve em sua época, responde a seu modo às indagações de nosso tempo, sem retórica nem efeitos: O que é que é estar junto? O que é que é travar conhecimento, amar? Será que a solidão nos impede de participar do mundo?
De sua formação no Parque Lage e na Escola Nacional Superior de Belas Artes de Paris, reconhece-se importantes preocupações formais, notadamente em seus quadros, nos quais as dobras da tela, sublinhadas de uma maneira viva, suscitam o desenho e a composição. No entanto, estes indicam um mais além na simples constatação material: deflagração da paisagem que cartografa a energia de um momento em sua cidade, Rio de Janeiro, e mostra um território em expansão. Essas grandes pinturas, autônomas, vêm oferecer assim um cenário singular, quase uma cenografia às esculturas. Estas, realizadas em seu ateliê na Campanha, se prendem à figura, no sentido mais complexo do termo. Divindades silenciosas, “internas”, diz a artista, que as deixa aparecer mais do que ela, não as procura no transcurso de um paciente trabalho solitário. Elas se fazem, se desfazem, para ressurgir de suas mãos.
Tais silhuetas escutam o murmúrio das coisas mais do que elas não apregoam sua verdade. Daí emana uma espécie de xamanismo pop: ao arcaísmo calculado das formas acrescenta-se um cromatismo ora discreto (a cor da própria terra ou do esmalte), ora exuberante, por exemplo quando as cores do arco-íris se oferecem ao belo sorriso de uma caveira. Da conversa com Mirì surgem nomes: Giacometti, Moore, Brancusi, assim como Thomas Schütte e Leonilson. Concebe-se também a vênus de Brassempouoy, ou essas outras vênus pré-históricas, cujo despudor parece evidente. Essas referências importantes indicam, em linha pontilhada, uma orientação: o onirismo da forma, a abertura da obra para interpretações múltiplas, forçosamente subjetivas, mas, sobretudo, o silêncio que as rodeia.
É preciso deixar para cada um a tarefa de encontrar tais figuras, grupos, corpos, de decifrá-los. Trata-se, talvez, de fragmentos de contos, cruéis ou subversivos, de objetos cultuais, singularmente engraçados, de testemunhos de episódios amorosos variados, felizes ou infelizes, de desejos estranhos, novos, de organismos em gestação, de visões. Não obstante, é preciso sublinhar a alegria que esse trabalho passa, alegria de fazer, de deixar aparecer o que estava ali, escondido nas dobras da tela ou nas bolas de terra, formas ou sentimentos. É para uma espécie de arqueologia que Mirì nos convida, e cabe a cada um de nós cavar ali sua própria história.
Emmanuel Van der Meulen
Tradução de Helena Ferreira
O mar que resta - Beatriz Franco, por Giuliana Scimè
O mar que resta - Beatriz Franco
GIULIANA SCIMÈ
Um mundo estranho e encantado, onde o sal, o "ouro branco", domina completamente: a paisagem, a vida dos homens, a fauna e a flora. Um micro-sistema de milhões de anos, com origem milhares de anos antes que os homens habitassem o mundo, tão rico em história. É incrível como uma faixa tão pequena de terra atraiu populações míticas para nós. Os fenícios, os misteriosos fenícios, navegaram o Mar Mediterrâneo e fundaram a colônia de Motya. Diodoro da Sicília escreveu: “Era localizada em uma ilha há seis estádios de distancia da Sicília e foi embelezada com muitos prédios bonitos graças à riqueza de seus habitantes”. Das salinas, os fenícios extraiam o "ouro branco", um bem muito precioso por séculos, e também pescavam caracóis - todos conhecemos os caracóis do mar com cauda longa - que usavam para tingir o linho de púrpura. Em seguida, os normandos, Frederico II da Suábia menciona o sal nas Constituições de Memphis, as transformam em monopólio da coroa, o que não surpreende pela riqueza que produziam.
O sal se “cultiva” entre bacias, canais, diques e mar. Uma rede de piscinas que refletem, coloridas por tons suaves e mutável e pelo vermelho profundo das algas escondidas. Branco, azul claro, laranja, pink, ocre, água, sal e faixas de terra criam uma paisagem de formas e cores mutáveis e suaves. Às vezes uma fina camada de cristais, como a neve, engrossa a superfície da água: é a “flor do sal”. O cheiro é de água salobra e violetas. A música é o som do vento, das ondas do mar e do canto dos pássaros. Podemos imaginar a surpresa de Beatriz Franco diante deste mundo tão diferente da sua experiência pregressa. Mas ela não se deixou encartar com a visão de todos aqueles elementos que compõem esse ambiente, também fascinantes e encantadores: moinhos de vento antigos, casas de colônias, pilhas de sal, garças e flamingos. Ela isolou, daquele contexto sugestivo, a essência, a mensagem final e determinante que não se encontra na observação do cenário como um todo, mas no detalhe onde o mar deposita o seu precioso dom, capturando o 'sabor' de um lugar que nenhuma imagem descritiva pode comunicar.
Imagens abstratas, além da realidade objetiva, como metáforas narram nossas emoções profundas. Eles representam arquétipos de sensações e sentimentos fugazes da percepção cotidiana, embora permanecendo inevitavelmente ligadas à realidade. E assim é a fotografia: reprodução da realidade.
Apenas alguns, Beatriz Franco entre eles, sabem filtrar o mundo objetivo através de um misterioso processo conceitual e construir imagens que se assemelham às ilusões. As linhas, os ritmos, as cores registram ondas sonoras que vibram suavemente em uma espécie de memória ancestral: “o mar que resta" dentro de nós.
abril 4, 2014
Ainda água, enfim água Douglas de Freitas
Ainda água, enfim água
DOUGLAS DE FREITAS
O trabalho de Sandra Cinto propõe um constante exercício de reconstrução, desejo de reconstrução, ou ainda, tentativa de reconstrução das ruínas do mundo contemporâneo. A artista lança mão de uma cartela de elementos simbólicos, escadas, pontes, abismos, candelabros, velas e brinquedos, em fotografias, objetos, desenhos e instalações, para criar um ambiente onírico, coabitado por melancolia e esperança.
A Casa das Fontes é resultado da investigação realizada pela artista nos últimos meses sobre a arquitetura bandeirista e seu uso. Na instalação, fontes d’água funcionais ocupam os três cômodos principais da Casa do Sertanista, para onde foi especialmente concebida. Fundidas em concreto, as fontes estabelecem um contraponto entre a cidade contemporânea e a solidez da arquitetura bandeirista de taipa-de-pilão. Deste modo, Sandra realiza um deslocamento para o espaço privado de elementos públicos e íntimos, em menção ao uso do espaço no século XVII, onde a casa e seu entorno reuniam uma série de funções, hoje inconcebíveis para um espaço residencial, mas que por seu isolamento em relação ao centro urbano, ali aconteciam. A brutalidade do concreto, que a artista deixa de esconder, afirma a presença das peças no mundo; seu peso visual não permite a leveza incorpórea do mundo dos sonhos, por mais que seu deslocamento do espaço público para o privado e suas formas, apontem para isso.
As fontes retomam os elementos simbólicos da obra de Sandra Cinto. Se em trabalhos anteriores eles aparecem renovados, alegoria de uma utopia almejada, nas fontes eles se colocam entre ser monumento público e lápides sepulcrais dessas utopias, uma constatação de suas ruínas. A água que circula na fonte deixa marcas sobre ela e acelera seu desgaste. Ao mesmo tempo, uma fonte sempre remete ao imaginário de ‘fonte dos desejos’, onde ao jogar uma moeda é concedido o direito a um pedido e assim, no embate amplamente discutido no trabalho da artista, a constatação de um mundo em ruínas se apresenta com a possibilidade de dias melhores, em um persistente exercício de renovar as esperanças.
Em ciclo constante, as fontes também não deixam de apontar para o tempo que passa. Tudo o que é cíclico assinala uma marcação de tempo, seja a volta da terra em seu eixo, ou o movimento das marés estabelecido por sua relação com o sol e a lua. No entanto, essa marcação do ciclo das águas nas fontes é abstrata. É possível notar o constante passar do tempo, mas não contá-lo. Ao seu modo, a artista evidencia o deslocamento de tempo que presenciamos ao entrar na casa.
Com o pé direito mais baixo, e fora do eixo principal da casa formado pelos três cômodos onde as fontes estão instaladas, a última sala expositiva recebe uma série de fragmentos de fontes que não deram certo, quebraram ou não tinham condições técnicas para serem usadas. As peças foram deslocadas e posicionadas do modo em que se encontravam na fábrica que produziu os demais trabalhos da instalação. Estes fragmentos são testemunhos da falha, possibilidade contida em toda tentativa. São registros de histórias que nunca se consolidaram.
Nos últimos sete anos, a produção da artista se desdobrou em uma reflexão sobre a água, na calmaria de um horizonte marítimo ou em um mar revolto. A água é também elemento fundamental na história da arquitetura bandeirista, onde a localização das construções é sempre próxima aos rios, caminhos de deslocamento na cidade antiga. Se nos desenhos da artista a água se solidifica como montanhas [1], na instalação ela se apresenta em toda a sua fluidez.
Em A Casa das fontes a água em si é o único outro elemento usado além do concreto, e se opõe a sua secura. Não fossem suas características físicas - ser insípida, incolor e inodora - se faria mais presente que o próprio concreto. Mesmo contida pelas fontes, é ela que preenche o espaço da casa, de maneira delicada, com o som do seu constante correr. Assim, a água continua a questão do trabalho de Sandra Cinto, não mais a sua representação, mas enfim a água.
Douglas de Freitas
[1] referência ao poema de João Cabral de Melo Neto, Imitação da água, que norteia a última grande exposição de mesmo nome realizada pela artista em São Paulo, no instituto Tomie Ohtake, em 2010.