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março 23, 2014
Matuto. Matreiro? por Renato Silva
Matuto. Matreiro?
RENATO SILVA
Buscar o sentido das coisas, os termos, a acepção destes como forma de compreender o outro é também parte de nosso processo de amadurecimento. Racionalizar, interagir, entender, mastigar, dar forma. Compreender a forma.
De que nos valeria tanta labuta se não pela busca por nossa própria liberdade?
Somos sim sabedores de nada e a cada passo nos damos conta de que essa batalha é, na grande maioria das vezes ingrata pois, conhecer é descobrir que há muito ainda a saber. Costumeiramente estamos presos aos modelos com os quais nos moldamos para lidar com o desconhecido, com o outro e assim vamos, rastejando. Cotidianamente. Esse é um processo que sangra mas que, de alguma forma, nos põe melhores.
O matuto - a criatura ensimesmada que vive a margem dessa marcha voraz que chancela as relações nas grandes cidades – caminha sorrateiramente pela trilha das sutilezas. Degusta com calma toda a parcimônia que o tempo lhe deu e que o faz rico conhecedor das entrelinhas. Comunica-se por elas. Se a este a terminologia é aplicada como forma de definir qualquer “rusticidade de espírito”, isso se deve apenas a nossa sutil incapacidade em percebermos o outro. Rudimentares que somos.
Através de sua nova série de pinturas “Muito pelo ao contrário”, Fábio Baroli retrata um desses matutos, traçando e pontuando seu implícito. Nessa compilação, a sagacidade dos trocadilhos que dão forma a essa narrativa imagética traz não somente o resgate de uma cultura que, na grande maioria das vezes, nos foge à compreensão mas, acima de tudo, aponta a delicadeza das amarras de seu universo pessoal. A blague representada nas pinturas de Baroli é realisticamente sutil e por isso mesmo, devemos olha-la com leveza, em todos os seus detalhes, de forma a não perder um, dois, cem mundos inteiros e indecifráveis mas, ainda assim, perfeitamente possíveis. Uma contradição deliciosa que se afina imediatamente ao o humor temático da exposição. Afinal, o trocadilho é, acima de tudo, oposição. Imergir portanto é necessário e se mostra possível apenas quando houver de nossa parte um equilibrado senso de compreensão dos pormenores. Tenhamos calma pois o artista sabe, mais do que ninguém, que não é arrazoado buscar em nós os matutos.
A escolha pelo caminhar árduo e apaixonado é natural a todo artesão e não seria diante de tamanha sina que Fabio Baroli construiria seu relicário de tamanha ordem, sem que houvesse cicatrizes. Na tela, Na alma. Cabe a nós abraçarmos, sem sacrifício, o amor incondicional que o artista viveu junto ao maior de todos os matutos. É certo que, por muitos anos, este contato fora interrompido pois Baroli saiu para buscar mundo. Viveu, virou, tornou a mudar de direção. Transformou-se e retornou apenas para descobrir o quanto de sorrisos ainda é necessário para que seja cimentado o caminho do conhecimento. Entendeu que ainda há muito a ser feito. Em nome do pai.
Somewhere In Time por Andrei Thomaz
Somewhere In Time
ANDREI THOMAZ
Somewhere In Time utiliza como matéria-prima legendas de filmes, das quais são extraídos textos e o momento em que são exibidos. Textos e horas são impressos em postais, que formam um painel de narrativas incipientes, sugerindo histórias que não se definem. Cada trecho de legenda que é exibido num determinado momento é tão curto que só lhe resta ser um tanto banal; é por esta razão que é possível ler o trabalho em qualquer direção e ter a impressão de que os textos fazem parte de uma narrativa coerente.
Estes postais também formam pilhas, podendo ser levados pelo público. No endereço impresso neles (http://andreithomaz.com/arte/somewhere/), nos deparamos com uma vasta grade contendo inúmeras "horas" diferentes. As "horas" representam o momento em que um diálogo do filme começa a ser exibido, e são extraídas das legendas carregadas no início do trabalho. Ao clicar em alguma das "horas", o espectador assiste a uma sequência de textos, exibidos na parte inferior da tela e centralizados de maneira parecida com a forma como as legendas são exibidas no cinema. Porém, não há nenhuma imagem; vê-se apenas os textos sobre um fundo negro. Os textos também são extraídos das legendas de filmes, sendo exibidos apenas os textos cujo momento de exibição é semelhante à "hora" selecionada pelo espectador.
Já em Jogo da Vida, são apresentadas dezenas de narrativas possíveis de ocorrerem no jogo de tabuleiro homônimo. Mesmo que o jogo utilize uma série de simplificações – todos os jogadores casam, todos terão filhos ao longo da partida, todos são heterossexuais -, a vasta gama de histórias que podem ser criadas ao longo do mesmo não deixa de ser fascinante. Ao exibir apenas os textos das casas do tabuleiro do jogo, na sequência em que são visitadas por um jogador, propomos ao espectador que preste atenção nas narrativas criadas pelo jogo, fruindo-o de maneira distinta da de um jogador preocupado com a vitória.
março 21, 2014
Marcelo Solá - amor e agressividade por Agnaldo Farias
Marcelo Solá - amor e agressividade
AGNALDO FARIAS
Durante anos, o preto sobre o branco, mais forte, incisivo, foi a marca registrada de Marcelo Solá. O lápis, a caneta, o pincel, o bastão, a barra de carvão, uma variedade de instrumentos que logo de saída demonstrava seu respeito pela qualidade intrínseca de cada um deles, invariavelmente em preto, atacava a superfície branca do papel ou de uma parede – a ação de Marcelo Solá nunca se reduziu à arena clássica do desenho, a folha de papel-, para sulcá-la através de figuras ásperas, linhas escandidas, cortantes; para manchá-la com borrões, garatujas, traçados regulares realizados com obsessão e descuido calibrado, até o ponto de roçarem o ruído, bordejarem o incompreensível; para até mesmo sufocá-la através de camadas espessas de preto, como uma pele que sobrepunha a outra pele, calando-a parcialmente, mesmo que fosse para delimitar um trecho pequeno, uma região mínima do quadrilátero branco e que passava a esplender como uma autêntica conquista.
Desenhar limita-se com apropriar, tomar posse. Lançamos nossas ideias nos papéis, desenhamos sobre a areia, cravamos nossos nomes em árvores e pedras movidos pelo atávico desejo de estar e permanecer além dos nossos próprios corpos. É esse impulso ancestral que Marcelo Solá toma para si e atualiza. E o realiza fazendo uso da equivalência dos gestos, de um entendimento agressivo de que palavras e frases escritas, silhuetas esboçadas através de linhas de contorno, rendilhados ornamentais, estruturas que enunciam volumes no espaço tridimensional, tudo isso pertence ao âmbito do desenho, tudo isso tem a ver com o gesto gráfico, com a prática de um exercício cuja invenção significou nossa própria invenção. Desenhar é uma ação de raiz dupla: por um lado retém aspectos do visível, por outro implica em lançar e projetar nossas ideias, faz com que ganhem matéria e corpo, coloquem-se à luz.
Trocando a oposição do preto contra o branco que lhe é tão cara, Marcelo Solá foi ampliando sua conquista introduzindo cores até chegar a essa nova série, surpreendente, na qual persevera quase exclusivamente sobre o preto. Sobre um campo onde a luz cessa engolida, onde a claridade é travada pelo mistério das trevas, emergem, luminosos, os gumes e os planos coloridos de seus desenhos. Uma profusão de cores floresce no papel, e também aquém e além dele. Justapostos, intercalados, embora em alguns casos haja interpenetrações e mesmo sobreposições, os motivos como que se ajustam preenchendo os espaços no preto. Há formas arquitetônicas, algumas nítidas outras embaralhadas, que se despacham para o fundo, abrindo perspectivas no plano escuro; há silhuetas e rabiscos, contornos retráteis que se encolhem ou se exaltam em reverberações semelhantes às que encontramos à tona dos lagos; há palavras, letras e números, sentenças variáveis, datas e lugares, que nos levam a espaços mentais e temporais, fazendo-nos deslizar em outros sentidos, como é típico da linguagem escrita; há, por fim, o plano chapado das cores, a expansividade do vermelho e do amarelo, a iridescência do dourado, o retraimento do azul e do violeta, invadindo o espaço que separa nosso olhar da folha de papel ou puxando-nos para o seu interior. Tudo sempre muito agressivo, sempre sórdido, mas também sempre amoroso.
março 19, 2014
Uma flor para a Maria por Virginia H. A. Aita
Uma flor para a Maria
VIRGINIA H. A. AITA
Atendo o telefone, recém chegada de viagem sem saber dos últimos acontecimentos, e minha mãe me diz, consternada - a Maria, a Maria morreu. Sem entender direito, pergunto: que Maria? A Maria, responde, como se houvesse uma só, ou como se sua entonação já a distinguisse. Mesmo abatida pelos anos e retirada no “seu canto”, era única. A Maria do Iberê? Replico. Sim, soube agora. Tento às pressas ter notícias, chamo alguns amigos, mas já é tarde para que eu possa me despedir. Queria levar-lhe uma flor, não mais ‘aqueles’ bombons que gostava ou livros de poesia (Florbela Espanca, Pessoa, João Cabral), o que já vai tempo não fazia. Me despedir, em verdade, era tentar restituir lembranças tão caras, atualizar num átimo a alegria do tempo dos encontros, dos amigos e asseclas reunidos na casa, aqueles sempre presentes (Eduardo e Marta incansáveis, a Lia, Miriam e ... , e suas assistentes, Helena e Rita) e os que vinham de ‘longe’ (Cristovão, Flávio Tavares, Zílio trazendo notícias do Rio, depois, Augusto Massi preparando com Maria a edição do livro de contos), das agradáveis conversas, das estórias fabulosamente verídicas de uma vida temperada de aventura e risco ao lado de Iberê. Um tipo de amizade assídua e leve que se perdeu com as antigas gerações.
Não esquecerei aquela sala, com as persianas entreabertas, emoldurada pelas estantes laterais até o teto com livros do acervo de Iberê, pequenas esculturas, um busto de cerâmica e uns poucos objetos. Mais adiante um conjunto de bronzes do Chico, próximo da escada, e os gatos esgueirando-se entre cadeiras e pernas. As paredes alvas tomadas por grandes telas exalando uma cor azulada, e de perto, um cheiro remanescente do óleo, que segundo o artista, “nunca seca por completo.” No centro, um sofá cercado de poltronas baixas, meia luz, onde Maria aguardava, alegre e caprichosamente composta, seus convivas habituées ou inesperados que a faziam exultante. A sala era o proscênio da memória, onde o simples ato de narrar a fazia reviver, e as conversas assumiam um tom, não nostálgico, mas revitalizador, investindo de emoção e sentido os dias magros. Ali, o menu de assuntos era variado, dos debates entre Iberê e Ronaldo Brito, que nomeava seus quadros com poesia de Pessoa (“Tudo te é falso e inútil”) a recitais de poesia (Dante Alighieri em italiano), encontro de antigas colegas, ou as mais prosaicas questões como a fuga acidentada do gato Martins. Mas também era conclave, em que discutiam de temas políticos às mazelas da arte, e se confabulavam as iniciativas que levaram ao início da Fundação. A medida em que essas atitudes tomam corpo, e angariam adeptos, as reuniões deslocam-se para o ateliê do artista, ao fundo. Um entusiasmo contagiante, mas também apreensão pelo destino da obra, animava os primeiros encontros, agora formais, com todos sentados em circulo em meio aos apetrechos do ateliê. As difíceis conciliações, harmonizadas com sugestões de Maria Helena, a ‘pauta’ do Martins, o diligente empenho do Justo em administrar os esforços, eu mesma redigindo atas, e tudo ‘ungido’ pela perseverança incansável da Maria, e o apoio assertivo de Jorge Gerdau.
Me detenho a fisgar essas lembranças para de algum modo iluminar este momento, e celebrar sua vida que agora tem o fecho de uma belíssima história. Sou grata por tantas coisas, o carinho, as jantas memoráveis (com vinho, sobremesas, declamações e queijos, ‘à moda francesa’), desde os tempos da Lopo com sua irmã Eunice e a mãe velhinha, as infindáveis conversas noite à dentro saindo às pressas de carona com a Lia. Sobretudo, pelo que aprendi sobre o que realmente significa ‘viver com arte’. Queria sim, não me despedir, mas reencontrá-la junto a Iberê e todos aqueles com quem compartilharam a mais intensa experiência de uma vida pautada pelo convívio dos amigos e os desafios de uma vida dedicada a arte. O vazio da ausência se abranda pela ternura dessa amizade, e a luz cálida que irradia uma vida nutrida de esperança, entrega e um delicado sentido da complexidade humana.
Vejo em seu rosto o mesmo sorriso discreto, no fundo do olhar aquela faísca dos que acreditam, sua sábia ‘escuta’, sua resistência as tantas dificuldades, sua coragem de ir mais longe e arriscar o incerto, sua capacidade admirável de acreditar no talento, e na absurda e inexplicável força da arte de reconstruir a vida, iluminar pontos cegos e contradições e nos restituir a nossa ‘melhor natureza’. Ela, Maria, foi quem primeiro acreditou em Iberê, que alimentou seu sonho e o apoiou incondicionalmente na improvável missão de ser artista no Brasil oligárquico e obscuro da década de quarenta, que acreditou que sua arte devia perdurar e contaminar a quantos pudesse com sua paixão, sua rebeldia intransigente e sentido de vocação. Também fez belas artes e ensaiou suas próprias pinturas, mas escolheu seu papel, de modo algum secundário, de gestora daquele projeto de vida, catalogando cada obra produzida, antecipando o meticuloso trabalho que se seguiria na Fundação. Um dia comentou que cedo se surpreendeu com o súbito desenvolvimento das primeiras pinturas de Iberê, a obstinação e força assombrosa do seu talento: isso era um veredicto. No fundo sabia que o indivíduo genial é mito, que a arte, um ‘ativo imponderável’, tem um custo humano pesado e que vocação é trabalho árduo, a duas e mais mãos, sonho e decepções compartilhados. No Rio, durante os primeiros tempos, morando em uma pensão, cozinhava em um fogareiro, e gostava de contar como fazia cafezinho para as constantes visitas de Iberê, comuns ou ilustres, como Clarice que surgia nas horas mais improváveis para discutir seus últimos escritos. Na viagem à Europa, nem tudo são flores, mas as alegrias compensam, sobretudo os novos amigos. Enquanto Iberê se esmerava em ‘copiar’ os clássicos nos museus, e assistir as aulas dos mestres, reclamando que Lothe “não era tão bom artista, mas um bom e sistemático professor”, ela lembrava o quão elegante era Giorgio de Chirico, “um verdadeiro gentleman”. Sempre achei que entre suas qualidades sobressaia essa abertura às pessoas, às suas peculiaridades e diferenças, mesmo cultivando as amigas do antigo colégio Sacré Coeur, abriu-se ao mundo e soube criar novos vínculos. Se Iberê com sua eloqüência fazia muitos amigos, era Maria que timidamente os acolhia e cultivava. Uma amiga leal que sabia ouvir pacientemente como se nada a surpreendesse.
Alguns dos que se debruçaram sobre a obra de Iberê, observam a importância do atelier como algo mais que local de trabalho - um espaço construtivo, lugar sagrado, de liberdade e experimentação, de confabulações e gestação de formas. O atelier, contiguo à casa, era o recinto em cujo perímetro sua vida gravitava, e no centro da casa, orquestrando tudo, Maria. Na verdade, era ela a ‘sua casa’. Ou melhor, a “arvore plantada na planície” em que alçou seu vôo. Dedica-lhe num poema essas mesmas palavras, “quero nascer nesta arvore, quero subir com seus galhos até o beijo da luz”. Maria foi o lar de Iberê, para onde sempre retornava, onde se reconhecia, e tecia diligentemente, contra a aridez do tempo, entraves institucionais e a impossibilidade do sonho, sua vasta obra. Com inteligência prática ela soube perceber, após sua morte, que a obra precisava de uma ‘casa’, um espaço disciplinado e vivo em que respirasse e pudesse ser vista e atualizada, e lutou pela implantação desta Fundação, hoje um modelo de gestão cultural com Fabio Coutinho. Maria, com seus silêncios, tenacidade entusiástica e profunda reverência pela arte, tornou Iberê um artista possível e sua vontade invencível erigiu em torno dele um espaço de excelência e disseminação da arte que se expande muito além de uma vida.
Virginia H. A. Aita
Pesquisadora em filosofia e critica de arte, curadora independente.
março 14, 2014
Criando Sempre por Jorge Emanuel Espinho
Criando Sempre
JORGE EMANUEL ESPINHO
Tantas e tantas vezes verificamos - num qualquer percurso artístico de que somos testemunhas -, a coerência e o recorte formal característicos desse criador funcionarem como pragmáticas e invioláveis prisões, que por fim encerram e limitam a própria liberdade criativa do artista. Sua pretensa liberdade fica assim reduzida e rebaixada apenas a uma teórica possibilidade nunca exercida. Se naturalmente esperamos e aplaudimos uma prática livre e inclusiva como parte fundamental da ação do artista, é com frustração e pesar que vemos se vulgarizar um encerramento da sua criatividade bem dentro da própria obra, assim feita percurso a respeitar e prosseguir, assim feita limitação e fronteira, encerramento e repetição. Muitas e demasiadas vezes, o próprio caminhar do artista se faz numa paisagem imutável e esterilizada, em derrapagem de infinito desdobramento dos seus temas e pressupostos, métodos e meios; sem que assim se veja avanço ou diferença, inovação ou aventura.
Questões como as lógicas do mercado ou o reconhecimento são muitas vezes apontadas como responsáveis por essa repetitiva continuidade. Aqui preferimos enaltecer e sublinhar a coragem voluntariosa face ao risco da mudança - que presenciamos fortemente nesta exposição -, e a lúcida autocrítica, como alvos a perseguir e alcançar. Uma positiva ambição criativa da artista promove, nesta mostra, novos experimentos, fazeres e avanços. Será essa, julgamos, a mais elevada razão e motivação do ser criativo.
O trabalho de Gabriela Machado vem do desenho e da pintura - e de uma pintura em que o traço é desenhado, livre, expressivo e grosso, tantas vezes fluido e aquoso -, na manifestação solta de uma energia vital que parece querer ser, desde sempre, o grande sujeito escondido, o grande alvo principal, do trabalho da artista. Reconhecida pelas suas grandes pinturas de flores que sempre recusaram ser apenas isso - e que antes se reconfiguram num aquático escorrimento sensual de côr e de encontro, como exemplos momentâneos e poéticos da força delicada e firme que as habita, suspensas em branco vazio -, a artista apresenta nesta mostra individual o lugar múltiplo em que agora se encontra. Ou melhor, que para si criou e permitiu, generosa e disponível, experimentando e abrindo para si própria - e para nós com ela -, o seu mais novo, desse seu agora.
Poderíamos, na nossa imparável ânsia de nomear, chamar a esse lugar de Cruzamento, pois nele muito se encontra e cruza, e dele muito em futuro já se descobre. Ou Farol, suspeitando e vislumbrando também já outras paisagens, ainda mais longe, a iluminar criando. Ou talvez Sentido, já que o suave tato da mão que mexe o barro, traz outro sentir/saber nesse fazer, que é um olhar novo a experimentar: avançando, tateando, sempre em improviso. Sublinhe-se desde já, que quer seja nas pequenas esculturas ou nas maiores - mais recentes, das quais encontramos um exemplar produzido na própria galeria para esta mostra -, a artista manipula directamente agora, sem tela mediando, a tal força vital que bailava ébria em suas pinturas. Com simultânea intimidade curiosa e descoberta, familiaridade e novo encontro, aprofundamento e maior leveza.
Parece acontecer aqui, e no percurso já longo da artista, uma gradual aproximação ao âmago do acontecimento, seu centro físico, sua origem. Pois se o seu trabalho revelava o resultado pictórico de eventos e manifestações registrados no seu olhar o mundo; agora surge um fazer mais delicado e artesanal, noutro sensível; resultado do encontro com esse mesmo centro. Este centro é, ou torna-se aqui, e claramente reunidos: dispersão e fonte, intenção e forma, corpo e função, lazer e essência. Apetece dizer que, ao contrário de se deixar levar por percursos e passeios lógicos e inócuos pela própria obra, a artista recua em profundidade, avançando: aproximando-se e dando o íntimo corpo que é seu, a esse manancial etéreo de cuja natureza nos foi, ao longo dos anos, sussurrando e discorrendo.
Podemos afirmar que se aqui arriscamos essa difusa fonte enquanto origem de sua obra, com maior firmeza dizemos que para onde esta vai e seguirá será mistério a ser desvendado com incerteza e parcimônia. E talvez seja esta a grande qualidade processual a que assistimos nesta mostra: o raro momento de intersecção e cruzamento entre um passado de leitura do real, e o futuro da sua nova escrita que aqui a artista esboça.
Onde antes se descrevia inventando, agora se cria a construir; onde se cantavam qualidades agora se afirma a realidade, sempre em seu forte potencial infinito. Por fim, o eterno bailado hipnótico da côr e forma, deu lugar ao sumário espesso do que tudo cria: barro, mão, orgão.
Para nós que agora olhamos, mais de longe a querer ver, esta é a fundamental lição de (des)educar o olhar. Talvez para um dia, depois, melhor o (re)criar. Nas palavras de Gabriela Machado, é esse “Olhar Viajante” que aqui se nos apresenta. Orgânico, mais solto, mais fundo e transformado, agora talvez, em Criando Sempre.