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fevereiro 28, 2014
A nova maravilha por Juliana Monachesi
A nova maravilha
Helen Faganello - O Grande Gabinete das Maravilhas, FACISB, Barretos, SP - 14/03/2014 a permanente
Antes de as pessoas poderem viajar e antes, também, de as exposições itinerarem mundo afora, dadas as facilidades da mobilidade contemporânea, os gabinetes de curiosidades cumpriam esta dupla função de transporte: o de pessoas e coisas. Espécie de museu portátil que levava aonde as pessoas estavam uma coleção de maravilhas oriundas de todas as partes do globo - espécimes raras de fauna e flora, pedras preciosas, livros, gravuras -, o gabinete propiciava uma viagem da imaginação rumo aos mais surpreendentes recantos do desconhecido.
Maravilhas dos séculos 16, 17 ou 18 já não nos parecem, seres do século 21, assim tão maravilhosas. O que no mundo haveria ainda de nos maravilhar, a nós que temos acesso irrestrito a praticamente tudo? E qual poderia ser, hoje, a pertinência da criação de um gabinete de curiosidades? Como ele deveria ser, para funcionar? Estas perguntas encontram respostas certeiras na obra que Helen Faganello concebeu especialmente para a Faculdade de Medicina de Barretos.
Começando pelo fim - como deveria ser? -, o gabinete das maravilhas contemporâneo é monumentalmente grande, intransportável. Não precisa mais viajar, afinal de contas, apenas promover viagens da imaginação. Voltaremos a isto mais adiante. À questão sobre a pertinência, a obra de Helen responde tendo sido pensada como uma resposta a um lugar específico: ao âmbito de uma universidade de ciências biológicas, ao contexto de um hall de entrada com pé direito vasto, ao convite de fazer conviver arte e ciência. E o que, senão a arte, conseguiria ainda carregar a potência do maravilhamento?
fevereiro 5, 2014
Cosmogonia de Evany Cardoso por Marisa Flórido
MARISA FLÓRIDO
Em Cosmogonia de Evany Cardoso, a aurora e a noite dos tempos são convocadas sob a “mão sonhadora para uma rivalidade da delicadeza”. Testemunham antigas promessas e desencantos. Suas serigrafias se instalam no espaço expositivo ensaiando a coreografia do universo, ou, antes, nossas presunçosas tentativas de dar-lhe desenhos, medida e contorno, de decifrar elos e extrair analogias e concordâncias entre as coisas e os seres. Uma “não-paisagem”, diz a artista, que constata a impossibilidade de enquadrar o universo em uma totalidade fechada e decifrável.
Por isso os dólmenes, menires e as constelações do zodíaco. São signos primevos, ativadores de ansiados vínculos: entre o tempo prodigioso do princípio, o anúncio de nosso destino e finitude e a passagem dos dias inexpressivos; entre a gravidade desta matéria que nos ata ao solo e o desejo de alcançar as estrelas; entre este ser precário e errante e a agitação febril do cosmos.
Por isso também um grande cubo negro e opaco — em que estão impressas as galáxias e o zodíaco — em meio a uma das salas: é como se, a um só tempo, o cosmos inteiro quisesse ali irromper e seu excesso fosse contido por aquela geometria. Pois se o cubo se refere aos vetores de espaço-tempo da perspectiva euclidiana, ele é também uma caixa preta cuja altura se aproxima à de um homem, tem sua quase medida. A evasão pelas estrelas sonhadoras é então interrompida pelo hermetismo daquele dado. O cubo impõe sua presença física constrangendo e disputando com o espectador o local onde se instala. E se mundo e homem se reflexionam por laços de empatia, a escala um tanto humana do dado rebate-o sem piedade: o homem é algo inescrutável como uma caixa fechada.
A rigidez dos ângulos exatos do cubo é contrastada pela amorfia de nuvens impressas sobre o acrílico. Signo indicial que mostra mais do que demonstra, como disse Damisch, a nuvem escapava por sua fluidez da racionalização da perspectiva, cumprindo um papel ambíguo no Renascimento: a um só tempo mascarava o infinito inimaginável e o designava.
Rivalizam e se enlaçam delicadamente: o fugidio e o inelutável, as bordas e o ilimitado, transparência e opacidade, a cosmogonia do mundo e aquela da arte. Por isso, o uso da própria matéria para imprimir a imagem, como a pedra (carborundo) usada como “tinta” na série Pedras.
Como descerrar mundos pela cosmogonia obstinada, incessante e falha da arte? Como atar nossas ínfimas misérias e desmesurados sonhos à coreografia dos astros que, indiferentes, seguem desatentos seus cursos e rotações? Parece interrogar-se a artista. Sob sua mão “sonhadora e obrante”, mundos ainda não existem ou não existem mais. Existe a “matéria imediatamente”, a matriz da gravura, ela própria origem das repetições serigráficas, o eterno retorno de suas efígies. Como se apenas a repetição existisse, sem qualquer princípio, sem qualquer fundamento originário.
Cosmogonia não evoca a gênese de mundos e seres, mas sua reiterada quase aparição, sua reiterada quase consumação. É nesse quase — em que cabe e se esquiva um infinito — que se alojam suas serigrafias, que se aloja a arte.