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janeiro 31, 2014
Textos críticos da III Mostra do Programa de Exposições 2013 do CCSP
Artistas convidados para a III Mostra do Programa de Exposições 2013 do CCSP
CARLA ZACCAGNINI, FLORA LEITE, JAIME LAURIANO E LEONARDO ARAÚJO
Não dito por dito
O presente projeto é resultado, ainda parcial, de uma residência de pesquisa no Arquivo Multimeios (coleção de documentos sobre a produção cultural em São Paulo, iniciada em 1976 pelo extinto IDART e mantida no CCSP). Debruçamo-nos, por ora, sobre as áreas de Comunicação de Massa (Rádio), Artes Cênicas (Teatro) e Cinema, a que cada um dos colaboradores se dedicou, respectivamente.
A partir das características do arquivo – seus anos de atividade mais intensa, seus mecanismos de busca, criação e integração de material, seus modos de catalogação – pensou-se num recorte que evidencie, além da documentação ali reunida, a posição sempre histórica e subjetiva do pesquisador. Partimos de uma pergunta sobre aquilo que é invisível, aquilo que pode estar silenciado e que só se revela por meio de alguém que aponta (ou projeta) esses conteúdos disfarçados ou dormentes.
Buscamos, portanto, nesse arquivo momentos em que se torna patente uma estratégia de resistência à censura; maneiras codificadas de dizer o que se precisa e deseja, esperando do receptor a chave da decodificação (e esperando que alguns não a encontrem). O som de uma peça de teatro em que se ouve os atores gritando receitas culinárias; um programa de rádio em que o entrevistado deixa escapar uma frase ambígua; um cartaz de cinema que aproxima dois momentos históricos para lançar nova luz sobre acontecimentos presentes, etc. E também as estratégias encontradas para deixar adivinhar uma cena de sexo ou a nudez que não pode ser explícita. A censura aproxima estranhamente a política do desejo.
Por meio dessa busca se revelam os mecanismos de projeção, as vontades e as referências que podem levar o pesquisador a supor aquilo que não é evidente. Os detalhes (o tom irônico na voz do entrevistado, talvez, ou uma interrupção na fala), os indícios (algo que se soube depois sobre um determinado período, veículo ou autor) e os atalhos do pensamento a que chamamos intuições, que nos permitem tomar por dito o não dito.
Luciana Ohira e Sérgio Bonilla
RENAN ARAÚJO
Os trabalhos que aqui se apresentam nos levarão a lugares remotos
O sentimento de busca estará sempre presente em nossa curta passagem pela Terra e a imagem gravada nos olhos, no tempo e na tela, será registro vivido, amado e sonhado das trocas entre seres, objetos e demais classes de coisas que existem noutros planos. Mas o aparecimento recorrente de imagens lastreará também ideia fixa – tanto naqueles investidos de invólucro quanto nos já despidos de veículo terreno – prendendo-nos a existências que não se conjugam mais. Em alguns casos a raiva ancora os despidos em seu leito e, em outros, a condição se dá pela espera de um chamado.
George Chamberlain aguarda a ressurreição enquanto o morador da família Lane recorda em detalhes a queda de um avião enviado dos céus. E como saber se isso tudo que vivemos não é uma repetição de outro momento, uma imitação da qual nos salva apenas nossa imperfeição em copiar ipsis litteris o jugo normativo dos meios?
Embora diga-se que devemos prova diária de nossa boa fé e caridade, digo apenas para seguirmos o caminho aprendendo a desviar das artimanhas daqueles que não tenham aos demais em boa conta.
Artistas selecionados para a III Mostra do Programa de Exposições 2013 do CCSP
DANIELA CASTRO
Sorte no jogo, azar no amor
As aparentes dicotomias exterior-interior, em Paredes Falsas (2013), comunicação-contemplação, em Permeável (Perto Demais) (2012), e tudo-nada, em Aposta (2013), parecem tratar-se de um cheque-mate dialético, mas não. Os três trabalhos apresentados por Daniel Escobar na Galeria Olido como parte do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo de 2013 somam intercursos cruzados entre si, dentro da narrativa expositiva, e para além-muros, numa narrativa da burocratização da espontaneidade que costura nossas relações na e com a cidade contemporânea. As estruturas arquitetônicas provisórias do outdoor publicitário com o painel temporário do espaço expositivo das Paredes Falsas ilumina a equivalência do ato de contemplação ao de consumo da arte. Permeável (Perto Demais) consiste em camadas de imagens fúteis – a partir de imagens excedentes de empresas de colagens de cartazes em outdoors – perfuradas e sobrepostas de modo a interromper a funcionalidade imediatista e histérica das imagens publicitárias, criando uma paisagem de representações carregadas de silêncio sinuoso. O “painel eletrônico” estático de Aposta, que alude ao enriquecimento fácil ao alcance de qualquer jogador, sugere que a própria vida se tornou uma grande loteria: numa sociedade de contornos políticos de favoritismos, elitismos e privilégios concedidos a alguns, o mérito não tem lugar; a sorte vira um elemento determinante na condução da vida, atrofiando a capacidade do livre-arbítrio. O espontâneo não está no jogo, está no amor. Azar…
CARLOS EDUARDO RICCIOPPO
A banalidade, o lugar-comum, as sentenças “já prontas” e as pequenas notações em forma de clichês compõem como que um léxico próprio aos bilhetes. Talvez mesmo uma forma própria ao recado e à memória. Nesse vocabulário, tudo é transparente, tudo é significado imediato, mas, também, todo sentido é opaco. A pessoalidade – qualquer que seja ela – parece residir exatamente em que tais ideogramas, hieróglifos ou combinados encerrados de palavras e imagens tomem um passo à frente da linguagem, uma dianteira, e se demonstrem completos em si mesmos, sem a necessidade comunicativa implicada num “falar sobre si”. Não se trata tanto de expressões de uma vida interior, de impressões mais ou menos reflexivas sobre pequenos fatos; antes, esse vocabulário é marcado pela combinação precária, cambiante de formas muito esvaziadas de sentido próprio (os tais clichês), que, no entanto – e esta parece ser a aposta dos trabalhos que Keyla Sobral apresenta nesta mostra –, eventualmente são capazes de reter alguma coisa; quem sabe, pequenas digressões íntimas, ainda intuídas, ainda não disponíveis ou avessas ao escrutínio do pensamento.
CAYO HONORATO
Sempre foi máxima praticada por todas as nações conquistadoras introduzir nos povos conquistados seu próprio idioma, por ser este um dos meios mais eficazes para se desterrar de tais povos a barbárie de seus antigos costumes. A experiência nos mostra que, ao mesmo tempo que se lhes introduz o uso da língua do príncipe que os conquistou, também se lhes inculca o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo príncipe. Todavia, no Brasil, praticou-se o contrário: os primeiros conquistadores só cuidaram de estabelecer aí o uso da chamada língua geral (o nheengatu, uma derivação do tupi antigo), invenção verdadeiramente abominável e diabólica. Para desterrar este pernicioso abuso, um dos principais cuidados será estabelecer o uso da língua portuguesa, não consentindo por modo algum que os meninos e meninas nas escolas e todos aqueles índios que forem capazes de instrução nessas matérias usem a língua própria das suas nações, nem a chamada língua geral, mas unicamente a portuguesa.
(Texto adaptado do diretório de 1758, que proibiu oficialmente o uso do tupi moderno no Brasil)
LILIANE BENETTI
Pop-nos dessa
Newton Goto apresenta na III Mostra do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo uma variação especificamente desenvolvida da obra MetaSplash para a Galeria Olido e arredores, após um mapeamento prévio daquela região. Na versão paulistana, MetaSplash traz em destaque frases como "O sertão vai virar soja e a cidade, estacionamento", "Mercados emergentes, civilizações ancestrais submersas", "O capitalismo canibalizou a antropofagia" e "Pop-nos dessa", mimetizando a visualidade dos anúncios promocionais – balões de comunicação no formato de explosão, nas cores amarela e vermelha. As mensagens contidas no trabalho destinam-se não apenas aos visitantes da exposição, mas também aos pedestres das ruas circundantes, já que a obra desdobra-se para além do espaço expositivo. Transitando num limiar tênue entre palavras de ordem, slogans de contracultura e o nonsense, as frases são criadas ou apropriadas por Goto a partir da experiência com o meio urbano e pretendem responder criticamente ao que o artista reconhece enquanto um fetiche mercadológico presente na nossa sociedade.
PAULA BORGHI
A Crítica conta para Personagem 1, Personagem 2 e Personagem 3 o que entendeu da fala do Artista. Nesta conversa, um telefone sem fio se constrói, e tem como última palavra este texto, contato pela Crítica, nas palavras de Personagem 1, Personagem 2 e Personagem 3.
Personagem 1: tradução da palavra em matéria/filtros que se transformam/tentativa de chegar ao entendimento do outro/a partir de uma ideia, reconfigura-se a imagem projetada.
Personagem 2: palavra em escultura passando pelo desenho/o entendimento do outro e de uma cultura/trabalho infinito.
Personagem 3: resultado a partir do imaginário e as experiências não são compartilhadas/as pessoas criam uma imagem a partir da experiência e seu imaginário pessoal.
Escrito o texto, a Crítica assina seu nome.
CARLOS EDUARDO RICCIOPPO
O trabalho que Thiago Gonçalves apresenta agora chama a atenção para uma noção que em arte possui longa trajetória, mas que parece hoje ter caído um tanto em desuso: a técnica. É ela a protagonista do contraste entre a “gestualidade” dos elementos de dentro do prédio e o arcabouço geometrizante que se distribui nos objetos do lado de fora – entre as estruturas mais arcaicas de secagem de carne, feitas de pontaletes, e as “geladeiras”, de arquitetura mais corrigida. O trabalho não é feito de objets trouvés, mas de objetos construídos pelo artista, que observa, nesses dois tipos de estrutura, a relação entre sua forma e sua função. Talvez não fizesse sentido expor, ali, estruturas simplesmente exemplares de secagem das carnes, e daí o fato de que o artista leve a cabo o processo nas “geladeiras” em frente ao prédio – versões mais protegidas e adaptadas daqueles “varais” de dentro, decorrentes de sua precariedade, em algum momento acusada pelo sanitarismo. Servir a carne seca na abertura da mostra talvez seja a consequência natural da curiosidade que o trabalho demonstra em relação a esses objetos; reconstruí-los, mas também utilizá-los, deve ser um modo mais direto de compreendê-los, espreitando, neles, algum limite a partir do qual revelem uma possível dimensão estética.
janeiro 29, 2014
Arroz sem Sal por Kiki Mazzucchelli
Arroz sem Sal
KIKI MAZZUCCHELLI
No capítulo Cidades e Campos de Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss descreve o processo de ocupação das regiões Norte e Oeste do estado de São Paulo. Precariamente povoado no início do século XVIII, esse território passou a atrair um maior número de colonos apenas na virada do século, com o declínio da produção do café nas terras exauridas na fronteira com o estado do Rio de Janeiro e a construção das novas estradas de ferro que penetravam a zona central do estado paulista. Assim, as aglomerações que iam se estabelecendo na medida em que avançava a nova franja pioneira passavam a ser batizadas segundo alguns critérios específicos.
No caso das estações de trem, que eram instaladas arbitrariamente a distância regular, por exemplo, foi utilizada uma ordem alfabética: Adamantina, Gália, Marília, e assim por diante. Quando os fazendeiros decidiam entregar suas terras a uma paróquia, eram criados patrimônios sob a proteção de um santo; enquanto os que mantinham um caráter laico eram algumas vezes batizados com o nome de seus proprietários (Paulópolis, Orlândia) ou, por cálculo político, escolhia-se o nome de um personagem histórico (Presidente Prudente, Cornélio Procópio, Epitácio Pessoa). Lévi-Strauss observa como a designação dessas aglomerações é reveladora de seus curtos ciclos de transformação, sendo que muitas delas mudavam de nome na medida em que sofriam mudanças estruturais.
A relação mais explícita entre a denominação de determinado local e suas características pode ser observada sobretudo nos primórdios de seu processo de ocupação:
“No início, simples localidade identificada por sua alcunha, seja por causa de uma pequena plantação no meio do mato – Batatais -, seja em razão de uma carência de combustível para aquecer a marmita num local ermo – Feijão Cru -, seja, enfim, porque faltam provisões quando se chega a uma paragem distante, que passa a ser Arroz sem Sal.”
Assim, os nomes das localidades mais próximas aos centros reflete um maior entusiasmo em relação a seu potencial, exaltando a fertilidade de suas terras, sua beleza natural, ou a abundância de sua natureza e, de certa forma, lhes projetando um futuro próspero. Contudo, na medida em que o deslocamento geográfico cresce, os espíritos arrefecidos dos pioneiros, já cansados e famintos, conseguem pensar apenas em suas necessidades imediatas.
A exposição Arroz sem Sal toma a narrativa de Lévi-Strauss como ponto de partida para pensar a passagem do registro do desejo, entendido como uma pulsão que inclui aspirações e ideais para além da mera sobrevivência, para o registro da necessidade. No caso dos colonizadores do interior paulista essa passagem se dá em virtude de um deslocamento geográfico. Aqui, o foco é o deslocamento temporal que separa o momento de reorganização da ordem mundial epitomado pela queda do Muro de Berlim em 1989, com o estabelecimento do capitalismo neoliberal em escala global, e a situação atual de perda dos valores humanistas representados pela crescente erosão do estado do bem estar social. Ao mesmo tempo em que as velhas nações do capitalismo avançado eliminam gradualmente os benefícios sociais em prol da liberdade de mercado e do consumo de uma diversidade cada vez maior de bens a preços irrisórios, a China – onde o arroz de todo dia é o arroz sem sal - se afirma como a grande potência econômica contemporânea.
O conjunto de obras reunidas nesta exposição não pretende ilustrar a proposta curatorial, estabelecendo cruzamentos e diálogos tanto com a narrativa de Lévi-Strauss quanto com os comportamentos e a cultura material da sociedade de consumo no século 21. Manuela Ribadeneira e Mayana Redin apresentam trabalhos que se aproximam do texto do etnólogo francês ao se referirem, respectivamente, a ideia de conquista ou a designação dos territórios. As peças de Ribadeneira integram a série Objetos de certeza, objetos de dúvida (2013), esculturas em pequeno formato nas quais reproduz aproximadamente alguns instrumentos de navegação utilizados pelos colonizadores das Américas a partir do século XVI. Segundo a artista, esses instrumentos científicos foram desenvolvidos para responder às seguintes perguntas: “Onde estou? Para onde vou? Como posso retornar a meu ponto de origem?”. Destituídas da função primeira desses instrumentos, as esculturas de Ribadaneira conferem um sentido metafísico a essas perguntas, inquirindo sobre a realidade presente e seus possíveis caminhos futuros. Por sua vez, os desenhos da série Geografia de Encontros (2009-2013), de Mayana Redin, criam sobreposições entre dois territórios distintos, formando cartografias fictícias. No caso dos trabalhos apresentados em Arroz sem Sal, essas aproximações são ora de ordem semântica – Ilha da Decepção encontra Ilhas Desolação, Ilha do Príncipe encontra Ilha do Governador -, ora de ordem política – as fronteiras geométricas de Novo México encontra Al Kufrah, ou o passado colonial do país em Foz do Rio Tejo encontra Foz do Rio Amazonas.
Este último estabelece um diálogo com a obra Rio de Janeiro Noturno (2013), de Laércio Redondo, desdobramento da discussão acerca da persistência das relações coloniais na sociedade brasileira contemporânea que o artista explorou em sua exposição individual na Casa França Brasil no ano passado. O painel de grandes dimensões reproduz um panorama da Baía de Guanabara executado por Debret em seu Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1834-1839), sendo que a imagem é inteiramente coberta por uma camada de pigmento vermelho. É certo que o Brasil jamais gozou da efetivação plena de um estado do bem estar social, mas a estabilidade econômica conquistada na última década reacendeu – principalmente entre a imprensa internacional – a crença de que chegaria a ser o “país do futuro”. Em meio à euforia que antecede os grandes eventos internacionais sediados pela cidade e as polêmicas medidas tomadas pelo governo para “limpar” áreas indesejadas, Laércio nos oferece a paisagem contemporânea de uma violência histórica que se manifesta ainda nos dias de hoje.
Outro paralelo histórico pode ser encontrado - desta vez de ordem distinta e maneira mais transversal - no trabalho de Pia Camil. Espectacular Telón (2013), igualmente uma obra de grandes proporções, oscila entre o estatuto de objeto utilitário e pintura: uma grande cortina elegantemente decorada com padrões abstratos geométricos coloridos. No contexto da narrativa da arte ocidental, a grande corrente moderna do abstracionismo geométrico está ligada a ideais utópicos que libertariam o espectador da ilusão da representação figurativa e aproximariam arte e vida. Essa vertente que floresceu com vigor no país a partir da década de 1950, e que produziu desdobramentos radicalmente inovadores na obra de alguns artistas associados ao Neoconcretismo carioca- os quais seriam os primeiros artistas brasileiros a serem incorporados na historiografia da arte contemporânea hegemônica -, ficaria portanto associada a um período de otimismo e crescimento econômico. Espectacular Telón absorve o legado abstrato-geométrico como estilo, parte como homenagem, parte como comentário sobre sua transformação em bem de consumo valioso no contexto de um mercado superaquecido.
Desde meados do século passado, podemos dizer que a indústria não se limita à atividade manufatureira. Pelo contrário, cada vez mais uma grande parte de sua energia e recursos são empregados na criação e no desenvolvimento de uma determinada imagem para os produtos, especificamente desenhados para atender aos desejos e aspirações de determinados nichos da sociedade. A extraordinária variedade de formas e cores das mercadorias oferecidas pela indústria contemporânea é a matéria prima do trabalho de Samara Scott. Em suas esculturas, pinturas e objetos, a artista emprega materiais comprados em supermercados ou lojas populares. Sua paleta de cores inclui os azuis cintilantes das pastas de dente, os rosas perolados dos amaciantes de roupa, ou os pratas metálicos das sombras de olhos. Seu interesse reside sobretudo nos processos “criativos” de decisão envolvidos no design desses objetos, o modo como filtram e incorporam referências originariamente artísticas, transformando-as em verdadeiras tendências populares.
Alexandre da Cunha, artista conhecido por sua obra tridimensional, apresenta aqui duas fotografias inéditas de uma série realizada durante uma residência artística na China, em 2012. Na nação do arroz sem sal da superprodução industrial contemporânea, cujo baixo custo depende de condições de trabalho exploratórias, Alexandre observou um curioso fenômeno: em algum momento do dia, onde quer que estejam, os trabalhadores simplesmente se debruçam sobre os balcões das lojas ou em assentos disponíveis para ganhar alguns minutos de sono. Os registros desses momentos peculiares em que os indivíduos sucumbem à exaustão são particularmente pungentes devido ao contexto em que estão inseridos e à abundância excessiva de mercadorias que os cercam. Parecem abatidos, derrotados pela contínua necessidade de produzir bens descartáveis que alimentam o desejo de consumo infinito estimulado pela doutrina neoliberal vigente.
janeiro 24, 2014
Rosana Palazyan na 4ª Bienal de de Thessaloniki de Arte Contemporânea
ROSANA PALAZYAN
“... Uma história que nunca mais esqueci...” é uma videoinstalação cujo vídeo produzido de forma ‘artesanal’ não tem pretensões de virtuosismos técnicos, mas de reordenar ou ornazinar a memória fragmentada sobre o genocídio armênio (c. 1915 a 1920) com base nas histórias e relatos ouvidos ao longo da vida desde a infância. Uma história que sempre foi impossível esquecer, pois o esquecimento seria o esquecimento do próprio ser.
Brasileira de ascendência Armênia de ambos os lados, tendo iniciado minha carreira no final dos anos 80 e cercada por episódios de violência, traumas sociais, econômicos e políticos em meu país, não me sentia a vontade para tratar do tema “Armênia”. Minha urgência era aproximar as pessoas adormecidas pela banalização do cotidiano às questões que nos eram mais próximas. Desde então, venho buscando delicadamente ampliar, e potencializar a reflexão sobre a violência e exclusão no tecido social, onde todos acabam vitimados.
Ao ser convidada para participar da 4ª Bienal de Thessaloniki, cidade onde meus antepassados e seus amigos sobreviventes se refugiaram durantes alguns anos, o passado tão distante, estava diante de mim, tão próximo...
E “quem se lembra do genocídio armênio?” Eu lembro.
Foi preciso remontar cada fragmento da memória como em um quebra cabeças, carregado de enorme custo pessoal, para recontar mais uma vez uma história que me foi contada e que nunca esqueci. Lembrar e fazer lembrar para nunca mais acontecer.
O fio condutor da história é um lenço bordado por minha avó materna, quando refugiada na Armenian General Benevolente Union em Thessaloniki (Grécia) onde muito jovem foi professora de bordado. O lenço transformado a cada episódio, perpassa sua história desde as memórias de infância, a vida na Grécia como refugiada, a viagem ao Rio de janeiro por volta de 1926 - até que o lenço retorne como parte integrante da obra a ser apresentada na bienal em 2013.
Escrevo este texto no calor dos acontecimentos quando nos últimos dias em meu país, jovens, mulheres, crianças, famílias, estão nas ruas lutando por seus direitos, vivendo momentos que não vivenciamos há muitos anos. O que tem me feito pensar na proximidade de todos os projetos e experiências que arte tem me possibilitado realizar.
Se não muda o mundo, tenho vivido a arte como um percurso do entendimento e encontro como o Outro. E de forma incansável tenho me dedicado a transformar as relações das pessoas frente a questões tão urgentes, na tentativa de fazer acionar a mobilização para um mundo melhor.
Rosana Palazyan, Junho de 2013
janeiro 21, 2014
Juntos, Apolo e Dionísio por Ligia Canongia
Juntos, Apolo e Dionísio
LIGIA CANONGIA
Juntos, Apolo e Dionísio, Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro, RJ - 29/01/2014 a 13/03/2014
O mundo da arte, por séculos, esteve à mercê da tensão bipolar entre dois polos distantes, que Aby Warburg dizia ser “o da prática mágico-religiosa e o da contemplação matemática” [1], tensão que parecia enraizada na civilização ocidental. Em outras palavras, essa bipolaridade residia entre os fundamentos dionisíacos e os apolíneos, entre as pulsões irracionais, a desordem, a instabilidade e a fugacidade, de um lado, e a busca da razão, do equilíbrio, da clareza e da harmonia, de outro.
O Renascimento e o Iluminismo, por exemplo, recuperaram o mito de Apolo como patrono tutelar de seu engajamento com o racionalismo, enquanto o Barroco e o Romantismo aproximaram-se de Dionísio e das representações vitais, orgíacas, licenciosas ou exuberantes.
Para Nietzsche, Apolo e Dionísio eram os protótipos originais da arte, mas, a partir dele, agora entendidos como polos complementares de uma mesma essência. Afinal, Nietzsche foi o primeiro a anunciar o surgimento de forças dionisíacas no seio mesmo do equilíbrio e da simetria apolínea.
A arte contemporânea, numa retomada nietzscheriana, parece ter dissolvido de vez essa dicotomia, para muitos uma esquizofrenia crônica e secular, tornando a desordem e o transe dionisíacos compatíveis com o caráter moderador e objetivo do modelo apolíneo.
Esta exposição nada pretende, senão destacar, nas obras de seus artistas, a sinergia que brota dos acordos entre a pulsão e a ordem, entre a experiência sensorial e o cogito, ou entre o universo organizado e o prazer.
Angelo Venosa, Antonio Dias, Daniel Senise, Fábio Miguez, José Damasceno, José Resende, Kilian Glasner, Laura Vinci, Marcos Chaves, Paulo Pasta e Paulo Vivacqua agregam ao senso apurado da forma uma energia animista que vibra acima ou abaixo da formalidade, desfazendo, mas, ao mesmo tempo, reconhecendo a força poderosa dessa polaridade. Ela é a energia que produz o tônus vital de suas obras, a engrenagem soberana que torna o controle e a disciplina simples agentes de um mundo flutuante e admirável.
[1] WARBURG, Aby – citado por Giorgio Agamben in “Aby Warburg e a ciência sem nome”, Revista Arte & Ensaios, n o.19,PPGAV/EBA-UFRJ, Rio de Janeiro, 2009, pág. 139.
Construções para lugar nenhum por Luisa Duarte
Construções para lugar nenhum
LUISA DUARTE
As obras reunidas em “Construções para lugar nenhum” são fruto de uma pesquisa que teve como ponto de partida trabalhos de artistas do time da Galeria MV e outros presentes em seu generoso acervo. Ou seja, não havia um partido curatorial à priori. Se existe um fio condutor que alinhava toda a coletiva, ele foi gestado após um olhar atento diante deste universo expandido.
Algumas questões chamaram atenção e tornaram-se os vetores que conduzem a mostra. A persistência da questão do grid moderno, a geometria como herança a ser apropriada e, no mesmo lance, desconstruída. Uma geometria sensível, uma geometria cujo ângulo final não fecha. As formas arquitetônicas do espaço da arte como alvo crítico da institucionalização da mesma. Linhas retas e cores fortes que endereçam uma abstração cuja origem está no tecido urbano das cidades. Metros cuja numeração é não linear, que nada medem de fato, como se estivessem ali somente para recordar a nossa obsessão de tudo calcular, numerar, esquadrinhar. (Amália Giacomini, Anna Maria Maiolino,Antonio Dias,Raymundo Colares,Cildo Meireles)
Comparece uma opacidade nas imagens, aquelas que insinuam caminhos, algo a ser visto mas que não se entrega facilmente, não exibem o ponto a ser alcançado, tampouco deixam límpido o que estamos mirando. Fotografias na contra-mão da objetividade. Textos editados, dando a ver somente fragmentos. Há também pinturas que esboçam pistas de paisagens que aspiram a lugar nenhum. (Luiza Baldan,Mauro Restiffe,Enrica Bernardelli, Omar Salomão, Gisele Camargo,).
Notamos acúmulos de tinta, volumes sem narrativa, anti-discursivos. Somente o vermelho, o branco. O DNA da pintura, de toda e qualquer pintura ainda a ser feita (MarciaThompson). Uma construção de natureza pictórica com panos e costuras enferrujadas, fruto de gestos obsessivos que formam uma grade fora de esquadro (Jaqueline Vojta). Completando essa sucessão de travessias na quais importam antes o meio, do que a partida ou a chegada, temos diante de nós os elementos vazados, que atravessam o espaço, não se completam (a cadeira de Enrica Bernardelli, a manta de Tatiana Grinberg, o círculo que falha de Beatriz Caneiro).
Assim, “Construções para lugar nenhum” surge como a cartografia de uma cidade iniciada, mas cujos edifícios não foram concluídos, não por falta de tempo ou material, mas porque é exatamente a construção que interessa, e não o seu acabamento. Habitar este entre, este espaço resistente a definições, a discursos amarrados, cristalizados. É a tudo isso que parecem aspirar as obras reunidas na exposição. Em uma época na qual o resultado é prioridade, fazendo de planejamento, eficiência e competência palavras de ordem, um pouco de construções para lugar nenhum podem gerar um ar mais leve em meio a tamanha pressão por se chegar a algum lugar. Não deixar de construir, mas quem sabe construir tendo em vista o próprio gesto e não o que dele pode advir. O lugar nenhum é agora mesmo.
janeiro 10, 2014
À primeira vista e Primeira paisagem por Marcelo Campos
À primeira vista
Curadoria de Brígida Baltar, Efrain Almeida, Marcelo Campos
À Primeira Vista, Artur Fidalgo Galeria, Rio de Janeiro, RJ - 24/01/2014 a 13/02/2014
A ideia central desta exposição é apresentar uma produção selecionada e acompanhada por Brígida Baltar, Efrain Almeida, Marcelo Campos. O processo de orientação, discussão, reflexão acontecera junto a um grupo de artistas que acompanhou um curso ministrado na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Nos trabalhos, podemos perceber potencialidades diversas e diversificadas. O uso do vídeo, a pintura, o desenho, a escultura, a fotografia vêm agregar conceitos ao modos de agir diante do objeto e das imagens da arte. Ao mesmo tempo, esta será uma feliz oportunidade de percebermos poéticas ainda em formação, a aurora da criação, a força de uma premier, uma predição, uma possível destinação de bons caminhos. À primeira vista trata, assim, do frescor dos acontecimentos.
O fato de termos trabalhos vinculados a meio diversos enriquece a variedade de abordagens sobre assuntos múltiplos. Com isso, destacamos a recorrente citação da história da arte, a coragem no uso de imagens tradicionais. Ao mesmo tempo, os modos de impressão das imagens e o uso de cortes à laser, por exemplo, coadunam-se aos mais comezinhos recursos. A manufatura acentua-se tanto nas possibilidades de uso de meios e materiais simples como a argila, o arame, a colagem, o tecido quanto se apresenta nos recursos de edição dos vídeos. Os artistas nos fornecem a sensação de quebra ampla e irrestrita das hierarquias entre alta e baixa materialidade.
Em outra medida, a questão geracional abandona quaisquer contingências de faixa etária. O grupo apresenta-se com trabalhos recentes, ainda que as trajetórias individuais aconteçam em momentos diferentes da carreira, da vida e das pesquisas de cada artista.
Há, inegavelmente, uma retomada das questões relacionados ao corpo, na presença de performances, ações, no uso do retrato. Ao mesmo tempo, muitos trabalhos optam por certa ironia, por uma maneira mais livre, uma leveza no uso da imagem, nas citações, nos modos de registrar, editar, selecionar conceitos e visualidades. Ainda assim, enfrentam-se assuntos nodais como a hipocrisia da Classe Média, a sexualidade, a etnicidade, as categorias tradicionais da arte.
Acreditamos, assim, que um grupo heterogêneo em termos sociais e culturais possa congregar desejos, produzir novidades e nos conquistar à primeira vista.
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Efrain Almeida: Primeira paisagem
Efrain Almeida - A Primeira Paisagem, Armazém Fidalgo, Rio de Janeiro, RJ - 24/01/2014 a 13/02/2014
Primeira luz, primeira paisagem, o nascimento. Estes são os interesses que norteiam a escultura, onde o artista Efrain Almeida apresenta-nos a imagem da natividade, tão cara à história da arte cristã, mas, agora, destinada a um bestiário íntimo. Efrain observa filhotes de pássaros nidificados, à espera de proteção, de um vir-a-ser potente. Nascer, aqui, não se opõe ao morrer, mas, sim, à inatividade, à inação, à inércia, recusadas pelo primeiro grito por auxílio. Ao mesmo tempo, estamos diante das crueldades da primeira infância, as expectativas de filhotes com bicos abertos, as exigências auto-referentes, a observação voltada para cima como se dispostos a ler os prenúncios no ar.
Pulsações por Tania Rivera
Pulsações
TANIA RIVERA
Texto do catálogo da individual de Marcos Bonisson Pulsar, realizada no MAM Rio, 22/09/2013 a 24/11/2013
A fotografia é trama e listra, é recorte e colagem. Matéria e ato.
Rompendo a rígida submissão à realidade que costuma definir a fotografia, as polaroides de Bonisson mixam tempos e espaços distintos e combinam-se em puro swing de ritmo, cor e textura. Em uma “geometria do acaso” (para usar uma expressão do artista), elas ressoam cortes e alternâncias como a linha orgânica de Lygia Clark, os metaesquemas de Hélio Oiticica e o Boogie Woogie de Piet Mondrian. E assumem uma natureza corpórea: a imagem, na polaroide, mostra-se película sensível, epiderme que a delicada manipulação do artista corta ou marca com ponta seca, tinta ou exposição ao calor. Os cortes e as inscrições ecoam então, em palimpsesto, algo que já era a imagem fotográfica: recortes íntimos, escrita externa.
As imagens utilizadas por Bonisson vêm do arquivo ou diário pessoal em polaroide que ele mantém desde a década de 1980. As polaroides são como um fluxo permanente de registro de sua relação com o mundo, em uma acumulação também presente no que o artista chama Estudos-Listas, realizados desde 2007 com inscrições e colagens geométricas em papelão. Neles, o impulso ao arquivamento e à listagem segue a lógica da categorização a partir das semelhanças, juntando elementos de mesma espécie (“onomatopeias”, “ossos humanos” ou “amigos que eu não tenho visto”, por exemplo). Mas a ideia de taxonomia encanta o artista, sobretudo, por sua potência dispersiva e alegórica, capaz de revirar ironicamente a classificação e abrir a categoria para a vastidão mundo das coisas. Seu ato taxonômico aproxima-se, assim, do que fazia Hélio Oiticica em seu período em Nova York, no que ele designava como “repertório”: fotografias e elementos diversos como trechos de textos e recortes de revista que aparecem nas Newyorkaises e no Conglomerado. Para Oiticica, trata-se de “imagens abertas meramente apresentadas, não diretamente concebidas como ‘representação’ de algo ‘significante’, mas como imagens de repertório poeticamente-dadas”.
No inventário de vivências poeticamente dadas pelas polaroides de Bonisson, trata-se também de um repertório de diferenças, de uma coleção de vida, de um aglomerado de mundo sempre in progress. Infiltrações em paredes de locais diversos, bicicletas, corpos, pátios parisienses ou personagens no arpoador (local caro ao artista), cores e formas. E trata-se, desde 2001, de mixar tais diferenças em colagens – ou melhor, no jogo de palavras de Bonisson: em Polagens – que são “trabalho de pintura” e “combinação de cores”, em pura “swingagem”.
É impossível recuperar do que se trata em algumas imagens, sobretudo aquelas que constituem o fundo de colagens mais antigas. Mas isso não tem a menor importância, justamente porque se trata de mostrar o caráter discordante da fotografia em relação ao mundo – e a si mesma. Há algo intimamente heterogêneo em todo instantâneo fotográfico – toda imagem é híbrida e por isso se recorta e transforma internamente, pulsante e sempre combinando-se com outras imagens.
Essas imagens inventadas pulsam: nelas mesmas e em sequência, uma após a outra. Elas embaralham o tempo (agora, antes e depois chegou a ser cogitado como título da exposição) e compõem espaços intersticiais, intervalos de máximo contato. Elas reverberam no corpo (como faz a pulsão, segundo Freud) e disseminam-se em linha infinita.
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Como uma navalha, a câmera fotográfica é às vezes capaz de cortar a vida.
Em sua colagem em papelão Estudo-lista de cut-ups (sem data), Bonisson celebra sua descoberta dos cut ups de William Burroughs no início dos anos 1980, e afirma “a vida como cut up e a linguagem também”. Ele retoma e amplia, assim, a afirmação do próprio Burroughs de que “a vida é um cut-up”. A vida não seria mais do que uma sequência mais ou menos ilógica de acontecimentos sem sentido inerente, segundo o escritor americano. Bonisson, por sua vez, reconhece nessa sequência aleatória e independente do sentido a estrutura não só dos acontecimentos da vida como da própria linguagem.
A linguagem (assim como a vida) é uma combinatória de elementos sem significação imanente – o artista nela ressalta, assim, o papel do acaso, do acontecimento transformador. E põe em primeiro plano sua organização rítmica, sua alternância, seu jogo poético. Sua trama corpórea.
A alternância está presente em outros trabalhos de Bonisson sob a forma do revezamento, do ziguezague. Há vários Estudos Zigzag traçando caminhos oblíquos entre marcos de localização, sobretudo na areia do Arpoador. Em Sonho em Ziguezague (2007), este é feito com pregos e linha sobre duas polaroides que retratam o artista adormecido, como a desenhar nele um trajeto onírico. “Eu caminho em zigzag”, escreve ele no Estudo-lista de cut-ups (s./d.), afirmando tal gesto geométrico como uma espécie de condição do sujeito no mundo.
Na polaróide, a imagem assume toda sua sensibilidade de película, como já notamos. Cortá-la é operação corpórea. “Estripo a imagem”, diz Bonisson sobre ela. Como sobre uma mesa de anatomia, o artista disseca a imagem, fazendo nela incisões, em busca talvez de seus órgãos, sua verdade última. Mas a polaroide só pode dar-lhe superfície, matéria de cor, simulacro de textura – revelando, sobretudo, diferenças, intervalos entre um e outro campo de cor. Estripar a imagem corresponde, assim, a revelar sua matéria de linguagem, para em seguida colocá-la em jogo na colagem, fazendo-a participar de nosso ziguezague na vida. Bonisson nota que “em ‘estripo’ há strip, faixa, e também há trip”. Viagem do sujeito pelo vasto mundo da imagem.