|
outubro 31, 2013
Por enquanto - Laura Vinci e Ana Paula Oliveira por Douglas de Freitas
Por enquanto, Galeria Marcelo Guarnieri, Ribeirão Preto, SP - 02/11/2013 a 26/11/2013:
Ana Paula Oliveira
Laura Vinci
DOUGLAS DE FREITAS
Os trabalhos de Laura Vinci e Ana Paula Oliveira, cada qual ao seu modo, lidam com a tradição escultórica de maneiras muito díspares. Ana Paula articula matérias e procedimentos clássicos, como o mármore e a fundição, a materiais ordinários e incomuns, como borrachas, pedras, plásticos e animais, que aparecem nos trabalhos vivos, taxidermizados, ou ainda fundidos em metal, resultando em convívio forçado de coisas que parecem não se aderir, mas que estão unidas de maneira simples, quase precária. Já Laura tira partido da tradição clássica dos materiais escultóricos, buscando através da integridade e permanência deles mostrar perenidade, expor ciclos aos quais as matérias estão ou podem ser submetidas, em uma reflexão sobre a mutabilidade das coisas, a passagem e a ação do tempo sobre elas.
A presente exposição se configura como duas individuais simultâneas, ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo, e acabam por colocar esses trabalhos em contato indireto, aproximam a produção das artistas e propõem um diálogo, respeitando suas individualidades e ressaltando suas diferenças.
A instalação de Laura Vinci se isola; para acessar o trabalho, nos vemos obrigados a ultrapassar uma cortina de metal. Densa e pesada, essa cortina traz a consciência de que nosso corpo está submetido à gravidade e, de certo modo, prepara para a experiência de aderência ao chão, sob a qual tudo no interior do espaço está submetido. Do lado de dentro, uma padronagem que remete a elementos da arquitetura mourisca é criada no chão, a partir de peças modulares de mármore. Por mais que um desenho se forme a partir destes módulos, a sensação é que a linha formada pelo pequeno espaço existente entre placas de um piso comum ganhou corpo e autonomia e, assim, resta apenas o vazio de um piso ausente. Soltos no chão, esses módulos se desalinham, o desenho aos poucos se desfaz; o que era para ser permanente, como a malha de um piso, se altera com o trânsito das pessoas. Mais ao fundo da sala desce em queda constante um fio de pó de mármore que, como em uma ampulheta, se acumula no chão, lentamente cobre essa padronagem e, aos poucos, vai transformando a sala em um grande vazio branco, cheio desse pó.
Ana Paula Oliveira apresenta uma série de trabalhos que tentam romper com o peso e a tendência ao chão imposta pela gravidade. Em ‘Contrapássaro’, a artista cria um piso de metal e borracha, fragmentado e suspenso longe do chão, para servir de poleiro a pássaros imóveis, todos fundidos em chumbo. O que era para ser símbolo de leveza ganha tamanha densidade que se torna extremamente pesado. Suspensos à força, esses poleiros são excessivamente robustos, uma força desnecessária para suportar os pássaros. Com esse trabalho a artista concebe uma segunda superfície; é como se ao adentrar na exposição, estivéssemos enterrados, apenas com a cabeça de fora. Os pássaros se repetem, agora empalhados sobre placas de vidro. Dessa vez leves, continuam paralisados, ensaiam o voo, ou apenas observam sem movimento algum. Em um terceiro trabalho, um cardume de peixes de chumbo sobe por chapas de vidro, como se a água estivesse paralisada, e eles lutando contra a corrente. Permeia a exposição uma sensação de que tudo está em pausa.
As exposições se tocam apenas em um momento, onde as artistas exibem fotografias, as de Laura diminutas e em maior quantidade, e as duas de Ana Paula de grande formato. Na série ‘Almada’ de Laura, um mesmo horizonte é registrado de um mesmo ângulo em diferentes dias e tempos, em um apagar e aparecer dessa paisagem. Na série ‘Há entre as pedras’, de Ana Paula, a artista registra uma linha que traça um horizonte em diferentes pedras, um horizonte também suspenso do solo, como em ‘Contrapássaro’. Ainda que de maneiras completamente diferentes, as obras se comunicam ao apresentar esses horizontes, o da paisagem de ‘Almada’, ou o de ‘Há entre as pedras’, que traz a marca de algo físico ausente, apenas a sugestão de um horizonte possível, que compensa o desnível do solo.
No peso que prevalece de maneira leve no trabalho de Laura, ou na leveza extraída da brutalidade no trabalho de Ana Paula, cerca as exposições uma questão de corpo. É o corpo que é convocado a estar presente para perceber que está submetido à gravidade, seja em sua constatação, seja pela tentativa de vencê-la. O equilíbrio, que é medido pelo corpo através do labirinto do nosso sistema auditivo, também é essencial para perceber o horizonte, em seu alinhamento ao solo, onde tudo pesa e, mesmo móvel, está obrigatoriamente fadado a essa adesão, ou em uma possível versão suspensa, que boia em um horizonte inexistente de água ausente.
Nos trabalhos algo sempre acontece, mesmo que seja um repouso delicado, ou a constante iminência de que algo se interrompa. Mas por enquanto tudo está certo, a padronagem de mármore está feita, a areia não cessa; os peixes estão parados contra a corrente, os pássaros estão paralisados, equilibrados e equilibrando. Por enquanto.
outubro 5, 2013
Desenhando com a cor por Marco Giannotti
Desenhando com a cor
MARCO GIANNOTTI
Para um pintor, o eterno conflito entre desenho e cor não é só fonte de angustia, mas também uma maneira de se inserir e compreender a história da arte no mundo contemporâneo. Essa famosa disputa alimentou debates ferrenhos durante o Renascimento entre a escola florentina e veneziana, bem como o debate entre aqueles que defendem Poussin, Ingres ou até mesmo Picasso versus Rubens, Delacroix e Matisse. Como a pintura vive de ilusões (a perspectiva é um exemplo), tal querela fomentou a criação pictórica no ocidente. Afinal de contas, todo pintor adquire maturidade artística quando resolve de certa forma esse dilema. A maneira como cada um resolve a questão faz da escolha de uma técnica a afirmação de uma poética.
Marcus André adquiriu maturidade pictórica ao escolher a têmpera e principalmente a encáustica para realizar suas pinturas. Uma das peculiaridades do seu trabalho é como ele faz uso da cera derretida. O manejar a cera liquida com pigmento, o artista recorta a superfície pictórica com linhas cromáticas. Ao fazer o contraponto dessas linhas com recortes que aludem a empenas arquitetônicas, Marcus André nos faz ver uma paisagem urbana: por um instante, o horizonte se afirma, postes de luz, oleodutos, estradas, fábricas, casas parecem se insinuar. Mais uma vez o artista faz da ilusão um artifício, pois a paisagem pode desvanecer a qualquer instante, e voltamos a nos deparar com a força bruta da cor, do pigmento e da cera. Mas este jogo de alquimias sempre nos faz rememorar paisagens e mundos distantes, que entretanto, fazem parte da nossa paisagem, aqui, agora.
Marco Giannotti, Outubro, 2013
outubro 4, 2013
Chicama por Afonso José Afonso
Chicama
AJAX - AFONSO JOSÉ AFONSO
O OLHAR já nos pôde servir ao envolvimento do sujeito com seu mundo circundante e factível. Neste sentido o olhar guardava certa subserviência, como um sistema de reconhecimento possível, ainda que em paralelo e transgressor, à construção da PAISAGEM a favor do seu espelhamento e representação. O desvelar imagens, formas e significantes, através do desmembrar e desconstruir a NATUREZA, por meio de um campo de visão possível ou de certa correlação de similitude, espreitava o mundo para nos surpreender diante às possibilidades do real, desconstruído e imediatamente reconstruído em novas IMAGENS produzidas.
A dimensão do olhar "do artista" ou do olhar "o artista" contemporâneo se dá de outro modo. Marcado pelo predicado de uma quase privação de sentido, fixada ora na simples complacência das sensações puras trazidas pela obra, ora num olhar desautorizado, que já não mais se presta a dimensões subjetivas do sujeito relacionado com seu 'mundo visível , a contemporaneidade afirma e requer para sua compatibilidade uma relação em que o campo de visão não mais se esgota na pura autonomia da visualidade, reclamando uma dimensão psíquica ampliada para que o OLHAR se realize.
A obra de Marcus André exige esta mesma constituição aflitiva, carente deste reenquadramento entre observador e obra observada. A impossibilidade de pousarmos olhares atribulados ou esquivos é experimentada pelo conjunto dos planos, plataformas ou blocos de cores e massas, edificadas entre transparências e opacidades da encáustica "surda", que contundentemente da cera se faz tinta em camadas silentes. Como que seladas, a comungarem direções escorridas não de todo alienadas, razões saltam cristalizadas como em uma "coagulação", um ultimo instante de fluidez e estado
líquido.
Abrasado, Marcus André faz da pintura um ato insistente por meio da mecânica de um conjunto, apontando direções ancoradas na dramaticidade das cores e em linhas de matéria espessa. A pintura presente quase vacila para condensar seu tempo.
Materializada no desafio herdado da não linearidade de um tempo histórico presente, recorta a matéria e fornece a alusão da vertigem. Assim, infiltra sua verdade manobrada e a abandona imediatamente, para repelir o que ainda possa persistir de banal.
AjAx - Afonso José Afonso
outubro 3, 2013
O que pausa e o que passa por Moacir dos Anjos
O que pausa e o que passa
Sandra Cinto - Pausa, Casa Triângulo, São Paulo, SP - 09/10/2013 a 09/11/2013
Até a altura em que a vista consegue discernir algo, as paredes da sala – pintadas em cor próxima a de papel gasto – estão todas cobertas de finos traços horizontais e paralelos. A lembrança de pautas musicais é imediata, ainda que agigantadas e sem acolher qualquer notação de sons articulados. Abrigando somente o silêncio e a pausa, elas paradoxalmente evocam, por meio de sua ostensiva presença, o fato de serem lugares onde se marca, por meio da música, o inevitável fluir do tempo. Há algo, contudo, que perturba essa aproximação entre os campos visual e sonoro que Sandra Cinto promove. Em vez de regulares, como seria esperado desses suportes de escrita musical, os espaços entre as linhas riscadas nas paredes vão-se gradualmente reduzindo desde cima e a partir de baixo, de modo que, em um dado ponto, quase se confundem em uma única linha mais grossa. E ao criar essa cadência visual de aproximação e de afastamento dos traços que formam as pautas, a artista sugere truncar a capacidade de a música marcar os momentos que passam. Faz com que o desenho – expressão muda – demande a suspensão impossível do tempo que, ao fim e ao cabo, sempre corre.
Nessa mesma sala grande, Sandra Cinto ajunta ainda outros tantos índices da música que está ausente das pautas desenhadas. Instrumentos diversos – violoncelo, contrabaixo, violinos, flautas – são fixados ou apoiados na parede ou sobre o piso, sempre destituídos de sua função de emitir os sons que lhes são próprios. Alguns são mesmo combinados entre si ou com outros objetos para formar algo inédito, como se aproximados em cópulas que anulam seus atributos singulares. Outros, por terem sido de alguma maneira modificados ou por deles faltarem partes, tornam-se igualmente impossíveis de serem tocados. Os instrumentos feitos de madeira são ainda pintados da mesma tonalidade das paredes, como se ecoassem, para além daquela superfície planar, o silêncio que emana delas. Sobre as superfícies sinuosas desses objetos de tocar, a artista faz desenhos que são, todavia, em tudo diversos das linhas regulares que cobrem os muros da sala: imagens de paisagens inventadas de montes ou mares, todos feitos de traços curvos e delgados. De novo, a evocação da música é aqui feita somente para pausá-la, como se os breves intervalos de silêncio entre sons que a tornam possível fossem fixados e alongados por duração incerta.
Na sala menor, aonde se vai subindo escada, a pauta desenhada nas paredes vira quase somente rodapé, como se até a já silenciosa remissão à música feita na outra sala não pudesse alcançar esse espaço. No centro de ambiente que convida à voz baixa e ao andar devagar, Sandra Cinto dispõe uma estranha vitrine que está dentro de outra e de mais uma terceira, na qual se guarda somente um caderno de pautas musicais e uma concha, construção natural capaz de reproduzir o murmurar do movimento das águas. Assim tão fechado por detrás de vidro, o livro não serve, contudo, para anotar música; e tampouco é possível levar a concha ao ouvido para ouvir a memória do mar. Ainda outra vez, uma pausa é criada para escutar, no espaço inventado da sala, o silêncio que quase o tempo inteiro escapa da vida ordinária.
Há, por fim, mais uma peça que a artista oferece aos outros, na qual torce e refaz os sentidos que se insinuam nas anteriores. Lá fora, já afastada do controlado ambiente das salas expositivas, encontra-se uma mesa feita para aproximar pessoas em torno de conversa calma e da partilha de qualquer coisa. Uma mesa que recorda, na construção e nos riscos que cobrem seu tampo, os objetos e as pautas musicais encontrados dentro da galeria, mas que com o uso incorporam, por meio de inevitáveis marcas e manchas, os rastros da passagem daqueles que ali sentaram e sentam. Como se nessa mesa Sandra Cinto finalmente conciliasse a vontade de pausar a vida e o reconhecimento de que tudo que nela passa provoca ruídos. Como se a mesa fosse música.
Moacir dos Anjos, setembro de 2013.