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setembro 26, 2013
Julio Le Parc: Uma busca contínua por Estrellita B. Brodsky
Julio Le Parc: Uma busca contínua
ESTRELLITA B. BRODSKY
Julio Le Parc - Uma busca contínua, Galeria Nara Roesler, São Paulo, SP - 04/10/2013 a 30/11/2013
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Ao longo de seis décadas, Julio Le Parc buscou de maneira sistemática redefinir a própria natureza da experiência artística, trazendo o que ele chama de “perturbações dentro do sistema artístico”. Ao fazer isso, ele brincou com as experiências sensoriais do público e deu aos espectadores um papel ativo. Com seus colegas membros do Groupe de Recherche d’Art Visuel (GRAV) – um coletivo de artistas criado por Le Parc com Horacio García Rossi, Francisco Sobrino, François Morellet, Joël Stein e Jean-Pierre Vasarely (Yvaral) em Paris no ano de 1960 –, Le Parc gerou encontros diretos com o público ao desmontar o que eles consideravam ser as amarras artificiais das estruturas institucionais. 1 Como expresso em seu manifesto Assez de mystifications [“Chega de Mistificações”, Paris, 1961], a intenção do grupo era encontrar maneiras de confrontar o público com obras de arte fora do ambiente museológico por meio de intervenções em espaços públicos com jogos subversivos, charges de cunho político e questionários bem-humorados. 2 Com tais estratégias, Le Parc e o GRAV transformavam espectadores em participantes com maior autoconsciência, tanto alcançando uma forma de nivelamento social como antecipando algumas das estratégias relacionais e colaborativas sociopolíticas que vêm se proliferando ao longo das duas últimas décadas.
Após a dissolução do GRAV em 1968, Le Parc continuou se dedicando ao que chama de “una búsqueda permanente” (uma busca contínua) por uma experiência artística que nunca supõe ditar um efeito pré-determinado. Em vez disso, seu esforço é no sentido de provocar uma resposta espontânea do público. Movido por um ethos utópico arraigado, Le Parc usa sua arte interativa ou imersiva como um laboratório social, produzindo situações imprevisíveis e estimulando de forma provocativa o envolvimento do espectador no processo de criação artística. Le Parc falou da função dual que tem sua obra, a de intervenção e a de crítica ao autoritarismo, em uma declaração de 1968: “Busco [busquei] criar ações práticas que se contraponham aos valores existentes… [para] criar situações… [que vão contra] qualquer tendência ao estável, ao durável e ao definitivo.” [Julio Le Parc, Guerilla culturelle, Paris, março de 1968].
A produção artística de Le Parc evoluiu de estudos geométricos bidimensionais, com pequenas caixas de luz, para instalações de grande porte, ambientes imersivos e intervenções públicas na rua. No entanto, essa produção diversa tem em comum uma função desestabilizadora central: provocar a interação do indivíduo com seu ambiente, exigindo, ao mesmo tempo, um reconhecimento daquele envolvimento. A obra de Le Parc chamada Sphère bleue (Esfera azul, 2001/2013) é um enorme globo de quatro metros de diâmetro composto por quadrados de acrílico azul transparente que parece estar magicamente suspenso no ar. A luz refratada na parte exterior da esfera inunda o espaço que circunda o globo com um azul vibrante.
A experiência perceptiva que os visitantes têm da esfera oscila entre vê-la como algo que é transparente e impenetrável e, ao mesmo tempo, frágil e monumental; algo que distorce o que se vê além e cria a consciência de se estar vendo e sendo visto em um espaço comum recém-transformado.
Os componentes físicos das obras de Le Parc – folhas de material refletivo penduradas, esculturas enormes feitas de acrílico transparente, pinturas geométricas, estruturas de luz motorizadas, telas de metal distorcidas – são tão impressionantemente variados quanto as próprias estruturas. O feito geral, no entanto, é criar um ambiente e uma impressão que alteram os sentidos e são, muitas vezes, desorientadores. Em esculturas como Cellule à pénétrer adaptée (Célula penetrável adaptada, 1963/2012) ou Formes en contorsion (Formas em contorção, 1971), Le Parc dá ênfase à mutabilidade da percepção. A fragmentação se torna inerente à apreensão de obras nas quais espelhos, luzes refletidas ou projetadas, diferentes tipos de óculos, jogos e interações físicas confundem os sentidos. Assim, perspectivas cambiantes criam um dinamismo interno ou uma instabilidade essencial por meio das quais Le Parc questiona a precisão subjetiva e os modos tradicionais de exibição que, de acordo com o que ele escreve em seu influente texto Guerrilla culturel, servem apenas para perpetuar estruturas sociais de dominação.
Com os mesmos objetivos, Le Parc também realizou pesquisas dentro da fenomenologia das estruturas por meio da pintura bidimensional, de superfícies planas animadas com permutas aparentemente ilimitadas de formas geométricas simples. Em estudos preparatórios e pinturas, Le Parc reduz e desloca esses elementos de acordo com um sistema predeterminado para criar uma pluralidade de composições sequenciais. Em suas “séries de rotações”, como Séquences de rotation (Sequências rotacionais, 1959) ou Rotation des carrés (Rotação de quadrados, 1959), sequências progressivas nas quais um leve deslocamento de um único elemento de um círculo ou quadrado em padrões reticulados torna-se uma espécie de animação, comportando-se menos como pintura estática do que como um estado perpetuamente transitório. Em outro estudo, com tinta sobre papelão, Sur reticula (Sobre retícula, 1958), Le Parc demonstra como formas geométricas – círculos e retângulos –, quando cortadas em pedaços, podem adquirir uma mobilidade que convida o espectador a imaginar movimento além da moldura em tempo real e sempre presente, embora fugaz.
Para Le Parc, o objetivo é exatamente a interrogação e a reestruturação do entorno imediato. Ele busca uma total cumplicidade que exige do espectador não somente participação ativa, mas também autorreflexão. Dessa forma, a prática de Le Parc vai além do mero espetáculo visual rumo a um envolvimento físico com o presente – a arte enquanto concepção humana, uma que não pode mais permanecer estática ou absoluta.
NOTAS
1 Os artistas do GRAV, Julio Le Parc, Horacio Garcia Rossi, Francisco Sobrino, François Morellet, Joël Stein e Jean-Pierre Vasarely (conhecido como Yvaral), eram membros de um grupo maior conhecido como Centre de Recherche d’Art Visuel antes de separarem, formando o GRAV, em 1960.
2 Groupe de Recherche d’Art Visuel, “Assez de mystifications”. Panfleto distribuído durante a Segunda Bienal de Paris. Setembro de 1961. Reproduzido em Yves Aupetitallot, ed., Stratégies de participation: GRAV—Groupe de Recherche d’Art Visuel, 1960-1968, trad. Simon Pleasance e Charles Penwarden (Paris: Centre d’Art Contemporain de Grenoble, 1998), 71.
A constant quest
ESTRELLITA B. BRODSKY
Julio Le Parc - Uma busca contínua, Galeria Nara Roesler, São Paulo, SP - 04/10/2013 a 30/11/2013
During the course of six decades, Julio Le Parc has consistently sought to redefine the very nature of the art experience, precipitating what he calls ‘disturbances in the artistic system’. In so doing, he has played with the viewers’ sensory experiences and given spectators an active role. With fellow members of the Groupe de Recherche d’Art Visuel (GRAV)—an artist collective Le Parc established with Horacio García Rossi, Francisco Sobrino, François Morellet, Joël Stein, and Jean-Pierre Vasarely (Yvaral) in Paris in 1960—Le Parc generated direct encounters with the public, while undermining what they considered the artificial constraints of institutional frameworks. 1 As their manifesto Assez de mystifications [“Enough Mystifications”, Paris, 1961] announced, the group’s intention was to find ways to confront the public with artwork outside the museum setting by intervening in urban spaces with subversive games, politically charged flyers, and playful questionnaires. 2 Through such strategies, Le Parc and GRAV turned spectators into participants with an increased self-awareness, both achieving a form of social leveling and anticipating some of the sociopolitical collaborative and relational strategies that have proliferated over the past two decades.
Since the dissolution of GRAV in 1968, Le Parc has continued to pursue what he terms ‘una búsqueda permanente’ (a constant quest) for an artistic experience that never presumes to dictate a predetermined effect. Rather, he strives to incite a spontaneous response from the public. Driven by a deeply-rooted utopian ethos, Le Parc uses his interactive or immersive art as a social laboratory, producing unpredictable situations and provocatively eliciting the viewer’s engagement in the art-making process. Le Parc expressed his work’s dual function of intervention and authoritarian critique in a statement from 1968: “I attempt[ed] to create practical actions to contravene existing values… [to] create situations… [which counter] every tendency towards the stable, the durable, and the definitive.” [Julio Le Parc, Guerilla culturelle, Paris, March 1968].
Le Parc’s artistic production has evolved from twodimensional geometric studies, through small light boxes to room-size installations, immersive environments, and public interventions on the streets. Nevertheless, this diverse body of work shares a central destabilizing function: provoking the individual’s interaction with his or her environment while at the same time demanding a recognition of that engagement. Le Parc’s Sphère bleue (Blue sphere, 2001/2013), a monumental globe measuring over four meters in diameter constructed of hanging translucent blue Plexiglas squares, seems to be magically suspended in mid-air. The light refracted off the sphere floods the surrounding space in a vibrant blue. The visitors’ perceptual experience of the orb vacillates between being both transparent and impenetrable, fragile and monumental, one that distorts what one sees beyond and makes one aware of watching and being watched in a newly transformed communal space.
The physical components of Le Parc’s works—hanging sheets of reflective material, monumental sculptures of transparent Plexiglas, geometric painting, motorized light structures, distorting metal screens—are as strikingly varied as the structures themselves. The general effect, however, is to create a sense-altering, often disorienting environment and impression. In sculptures, such as Cellule à pénétrer adaptée (Adapted penetrable cell, 1963/2012) or Formes en contorsion (Forms in contortion, 1971), Le Parc emphasizes the mutability of perception. Fragmentation becomes integral to the apprehension of works in which mirrors, reflected or projected lights, viewing glasses, fun-house games, and physical interactions confuse the senses. Thus, shifting perspectives create an internal dynamism or essential instability through which Le Parc ultimately questions subjective accuracy and traditional modes of display, which, as he wrote in his influential text “Guerrilla culturel”, serve only to perpetuate social structures of domination.
Toward similar ends, Le Parc has also conducted research into the phenomenology of structures through two-dimensional painting, animating planar surfaces with seemingly limitless permutations of simple geometric forms. In preparatory studies and paintings, Le Parc reduces and shifts these elements according to a predetermined system to create a plurality of sequential compositions. In his “rotations series,” such as Séquences de rotation (Rotational sequences, 1959) or Rotation des carrés (Rotation of squares, 1959), progressive sequences of a slightly shifting single element of a circle or square in grid-like patterns, evolve into a form of animation, acting less like a static painting than a perpetually transitory state. In another early ink on cardboard study, Sur reticula (On a grid, 1958), Le Parc demonstrates how the geometric shapes of circles and rectangles when cut into sections can take on a mobility that invites the viewer to imagine movement beyond the frame in real time, always present yet fleeting.
For Le Parc, the goal is nothing less than the interrogation and restructuring of one’s immediate surroundings. He seeks a total complicity that demands of the viewer not only active participation but also self-reflection. In this way, Le Parc’s practice moves beyond mere visual spectacle to a physical engagement with the present—an art form as human construct, one that can no longer remain static or absolute.
NOTES
1 The GRAV artists, Julio Le Parc, Horacio Garcia Rossi, Francisco Sobrino, François Morellet, Joël Stein and Jean-Pierre Vasarely (known as Yvaral), were members of a larger group known as the Centre de Recherche d’Art Visuel before separating as GRAV in 1960.
2 Groupe de Recherche d’Art Visuel, “Assez de mystifications.” Flyer distributed during the second Paris Biennale. September 1961. Reproduced in Yves Aupetitallot, ed., Stratégies de participation: GRAV—Groupe de Recherche d’Art Visuel, 1960-1968, trans. Simon Pleasance and Charles Penwarden (Paris: Centre d’Art Contemporain de Grenoble, 1998), 71.
setembro 25, 2013
Clemens Krauss por Felipe Scovino
Clemens Krauss, Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro, RJ - 04/09/2013 a 10/10/2013
FELIPE SCOVINO
As figuras que habitam as pinturas de Clemens Krauss não possuem rosto. Não conseguimos identificar quem são elas. Em muitos casos, apenas distinguimos o gênero. Mas essa suposta negação, nos faz crer que elas podem ser qualquer uma de nós. Há uma identificação às avessas. Ao obliterar o rosto enquanto possível foco da composição e dar ao óleo um tratamento borrado e impreciso, Krauss desvia a nossa atenção para o que é frequentemente visto como o centro psicológico da composição – o rosto humano – para outras partes e características da pintura. Suas pinturas parecem se desfazer, ao mesmo tempo em que apontam uma dinâmica própria e veloz ao óleo. Por outro lado, o artista promove uma concentração da tinta que faz com que a pintura ganhe um efeito óptico, como se ela estivesse saltando do plano para o espaço e quisesse conquistar uma tridimensionalidade. Esse acúmulo de óleo nos permite visualizar o modo como o artista traça suas linhas e constrói, com gestos vigorosos e tinta encorpada, uma atmosfera que remete a trágica contingência do sujeito. A ideia de incerteza que ronda a pintura de Krauss cria um diálogo perfeito com o vídeo ER, feito em parceria com Benjamin Heisenberg. O filme documenta a vida de um personagem fictício conhecido como ER. Ele é um menino, descrito como psicopata, que chantageia seus pais com explosões de raiva e simulação de ataques epiléticos. Com tomadas feitas de forma amadora e uma edição que remete a colagens (circunstâncias que podem ser encontradas em sua pintura, em especial no tom “errático” que neste suporte pode ser revelado na desordem ou no “desfazer” dos corpos), uma voz gerada por computador relata a estória do menino, mas em várias passagens, o áudio não corresponde ao texto. Além disso, a total falta de emoção na voz digitalmente gerada contribui para criar a atmosfera de estranheza e dúvida. Um sentimento de hesitação sobre a pessoa descrita aos poucos consome o espectador, e nessa experiência que Krauss está interessado: pôr em dúvida as nossas certezas sobre o mundo, e afirmar a obra de arte como um enigma, uma imagem que necessita a todo o momento ser revelada e refletida pois as suas significações estão sendo constantemente refeitas.
setembro 20, 2013
Mostra Nordeste de Artes Visuais por José Rufino
Mostra Nordeste de Artes Visuais
JOSÉ RUFINO
Mostra Nordeste de Artes Visuais, Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza, CE - 24/09/2013 a 31/10/2013
Novas expressões artísticas e o caráter questionador das obras são os motes principais que caracterizam a Mostra Nordeste de Artes Visuais.
O elo que une os artistas selecionados é, a princípio, um paradoxo artístico: eles possuem em comum o fato de serem nordestinos, na mesma medida em que seus interesses não se limitam às questões unicamente regionais. A mostra possui um direcionamento semelhante ao ambiente globalizado em que vivemos, sendo assim transregional. Estamos em um cenário mais prolífico à dispersão e confronto da produção, graças à tecnologia atual, que permite uma interação rápida e internacional, especialmente entre os próprios artistas.
A iniciativa tem o objetivo de contribuir com a circulação das artes visuais produzidas no Nordeste brasileiro, com o intercâmbio cultural entre artistas, público e entidades que fomentam o setor.
A Mostra Nordeste de Artes Visuais é realizada pela Representação Regional Nordeste do Ministério da Cultura (MinC - RRNE), a Funarte Nordeste, o Fórum Nordeste de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, através das Secretarias de Cultura dos Estados da Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, e Maranhão, das Fundações de Cultura dos Estados da Bahia e Piauí, Fundação de Cultura de Aracaju, Prefeitura do Recife, Museu Murillo La Greca e Centro Cultural Banco do Nordeste.
José Rufino
setembro 12, 2013
Mundos cruzados: arte e imaginário popular por Luiz Camillo Osorio & Marta Mestre
Mundos cruzados: arte e imaginário popular
LUIZ CAMILLO OSORIO & MARTA MESTRE
O escritor André Sant'Anna tem uma frase muito certeira para falar da "dimensão" estética que existe em todo o ser humano: "Arte é arte, não importa se o autor é louco, é criança, uma senhora aposentada ou Guimarães Rosa".
Foi a partir desta ideia, que aponta para possíveis reverberações de práticas populares na arte moderna e contemporânea e, além disso, do diálogo implícito com a obra de Ione Saldanha, cuja exposição ocorre concomitantemente que fizemos esta prospecção nas coleções do MAM. Nosso objetivo é encontrar nelas os olhares cruzados onde convivem contaminação, espontaneidade, deslocamento, apropriação e autenticidade.
É através de alguns exemplos desta mostra que podemos entender que a arte não vive num circuito fechado, que as hierarquias deixaram de fazer sentido, e que arte popular e arte contemporânea são "mundos" comunicantes.
O confronto de ambos tem uma rica função antropológica, um efeito de espelho, que sob o véu de expor os outros, deixa passar observações sobre nós, as nossas noções de arte, seus limites e valores.
setembro 8, 2013
Cães sem Plumas [prólogo] por Moacir dos Anjos
Cães sem Plumas [prólogo]
Cães sem Plumas [prólogo] reúne artistas visuais que pertencem a gerações diversas, agrupados em torno de uma invenção de linguagem de João Cabral de Melo Neto. Não por terem criado obras marcadas pela escrita angular do poeta, mas por partilharem com ele um desassossego frente ao que testemunham nos lugares onde transitam ou moram, e que o texto daquele fixa de modo singular. É uma mostra sobre aqueles que, no Brasil, vivem na iminência de perder o que lhes confere humanidade, embora pudesse ser sobre moradores de outros cantos que subsistem sob condições igualmente precárias. Se há nessa delimitação de foco algo de assumidamente arbitrário, há também nela a urgência de falar de algo que no país perdura quando já deveria ter terminado, e sobre o que com frequência se cala.
A poesia de João Cabral de Melo Neto é magra, não cabendo nela excessos retóricos. É construída por desbaste cuidadoso dos muitos significados possíveis que cada palavra carrega, dotando-as de secura que renova a linguagem. Por subtrair do texto criado tudo que é redundante ou sobra, foi chamada, apropriadamente, de “poesia do menos”. Tal operação de abate não retira das palavras, contudo, seu poder de ressoar, com agudeza e detalhe, ideias e coisas que fazem o mundo ser como é. Ao contrário, a magreza de sua poesia ecoa, comenta e refaz, em termos próprios, um espaço social marcado por carência e falta. [i] Talvez em nenhum outro poema de João Cabral de Melo Neto essa relação entre as palavras e a vida nelas contida seja mais precisa e próxima do que em O Cão sem Plumas, texto em que o autor descreve, com o pulso inventivo da linguagem que usa, o Recife ribeirinho de 1950, atravessado pelo rio Capibaribe. Na visão crítica e concisa do poeta, esse era ambiente que tinha algo “da estagnação / do hospital, da penitenciária, dos asilos, / da vida suja e abafada / (de roupa suja e abafada) / por onde se veio arrastando” o rio. Ao longo do poema, o curso do Capibaribe e o curso das vidas dos que vivem próximos às suas águas e lamas se tornam, no encadeamento de palavras, progressivamente indistintos, fazendo da descrição de uma paisagem de penúria a narração simultânea de ruínas pessoais daqueles que a habitam. O rio e os moradores de tal lugar seriam ambos “cães sem plumas”, expressão que parece designar, em forma de radical paradoxo, situações de destituição absoluta. Um “cão sem plumas”, escreve João Cabral de Melo Neto, “é quando uma árvore sem voz. / É quando de um pássaro / suas raízes no ar. / É quando a alguma coisa / roem tão fundo / até o que não tem”. [ii]
Não se pretende, nesta exposição, evocar o ambiente ou a época descritos no poema. Tampouco se deseja ilustrar o texto ou traduzi-lo em imagens. Mas reclamar o emprego da ideia de um “cão sem plumas” para identificar, na produção de um conjunto de artistas visuais, grupos de pessoas cujas vidas são marcadas, no Brasil, por lacuna e ausência. Comunidades que são excluídas – por descaso ou aberta subjugação – dos ganhos que as transformações modernizadoras que o país empreendeu em décadas recentes trouxeram a muitos, seja no campo tecnológico, no da gestão macroeconômica e até mesmo no da cidadania e da proteção social. Pessoas que vivem à margem de quase tudo que outros já alcançaram no Brasil, e para as quais somente existe interdição. São “cães sem plumas”, por exemplo, a maior parte dos índios deste país, acossados por doenças e pela ganância infinda sobre as terras a que pertencem. Assim como o são os loucos e presidiários que apodrecem em um sistema curativo e prisional falido. Ou as crianças e adolescentes que moram nas ruas e gastam o pouco tempo de vida que ainda vão ter entre esmolas, delitos e o inevitável enlace com a dependência química. São também “cães sem plumas” aqueles que, frente à violência desregulada no campo ou à voracidade especulativa sobre o espaço urbano, terminam sendo retirados à força de seus lugares de vida e destituídos dos meios de sobrevivência. Ou os tantos de quem o Estado suspendeu seus direitos mais básicos, como os torturados pela polícia política no passado de exceção e os perseguidos hoje, sob um regime democrático, por serem negros, homossexuais ou apenas por serem pobres. São ainda “cães sem plumas”, nessa lista assumidamente incompleta, os homens e mulheres que, vítimas de uma desassistência absoluta, sequer têm seus nomes identificados depois de mortos, alongando a sua condição de párias mesmo quando tudo o mais acaba. Assim como o são os estrangeiros que, atraídos pela expectativa criada de vida melhor para os que aqui moram, terminam aviltados em suas prerrogativas mais simples. É dessas pessoas, não contabilizadas no cálculo produtivista que rege e mede o avanço econômico do Brasil, que esta exposição quer dar notícia.
Cães sem Plumas [prólogo] não se filia, entretanto, a um recorrente discurso fundado em mera denúncia moralizante, o qual expõe as graves fraturas sociais do país ao mesmo tempo em que as apazigua, remetendo suas causas sempre a outros momentos e outros lugares, nunca coincidentes com o agora e com o aqui. O que se busca é inscrever, em narrativa concomitante àquelas outras que relatam o que é considerado avanço no Brasil, danos de várias ordens infligidos a parcelas específicas da população do país, quase sempre ausentes de sua paisagem simbólica. Inscrição tecida por meio de criações aproximadas no espaço expositivo, que de modo menos ou mais direto invocam a subtração de tantas vidas. É certo que há vários outros danos que não são computados nesta mostra, assim como diversos outros artistas os convertem em mais imagens e formas, concedendo visibilidade social aos agravados e aliviando-os de uma mudez que lhes é imposta. Antes e longe de exaurir o tema, o que se quer é justamente levantar assuntos que são ainda pouco confrontados em espaços de apresentação artística no Brasil, como se não valessem o bastante para isso ou, no limite, sequer existissem. E se a feitura da exposição nesse campo é marcada por óbvia contradição – o dinamismo crescente do chamado meio da arte também resulta, afinal, do modelo de crescimento vigente no país –, não fazê-la seria abrir mão do poder que os pequenos ruídos e gestos possuem de criar fissuras nas convenções que definem o que é da esfera do comum. Seria assumir que imaginar novos nexos entre as pessoas, coisas e fatos que demarcam o que é um lugar não produz o efeito transformador dos afetos. Seria esquecer daquilo que pode a arte.
Cães sem Plumas [prólogo] baliza o início de uma investigação mais ampla e duradoura, embora seus pressupostos sejam já aqui apresentados. Primeiro, reconhecer que persiste e se reproduz, no Brasil, um tipo de vida na qual gradualmente se desmancha o que de humano pode haver nela. Depois, saber ser impossível dissociar essa situação de privação extrema da indiferença que ela desperta naqueles que preservam a sua humanidade. O grau de despossessão que marca esses “cães sem plumas” é índice inequívoco de que, a despeito de ter mudado muito e beneficiado tantos os que antes pouco tinham, o país permanece desigual e excludente. Esta é uma exposição sobre vidas roídas. Sobre aqueles que não são contados.
Moacir dos Anjos
NOTAS
[i] Secchin, Antonio Carlos. João Cabral: A Poesia do Menos. São Paulo, Duas Cidades/Brasília, INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1985. volta ao texto
[ii] Cabral de Melo Neto, João / O Cão sem Plumas. Barcelona, O livro inconsútil, 1950; 2ª ed. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1984 (com fotografias de Maureen Bisilliat). volta ao texto