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fevereiro 18, 2013
Judith Lauand: The 50s por Celso Fioravante
Judith Lauand: The 50s
CELSO FIORAVANTE
Judith Lauand - The 50s, Stephen Friedman Gallery, Londres, Reino Unido - 08/02/2013 a 09/03/2013
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O conjunto de obras exibido na mostra ‘Judith Lauand:The 1950s’ representa não apenas a gênese criativa da artista concretista bem como seu rigoroso modus operandi, evidenciado no cuidadoso processo de produção, catalogação e preservação de sua obra, que possibilitou que esses trabalhos se mantivessem inéditos e unidos em seu conjunto por mais de 50 anos.
As obras exibidas são criações autônomas: guaches, desenhos e colagens sobre papel cuidadosamente identificados pelas letras C (abreviação de Concreto) e A (abreviação de Acervo) e números que possibilitam sua observação de maneira cronológica, uma prática que Judith Lauand imprimiu também em sua produção pictórica. Também são exibidos guaches e desenhos preparatórios e estudos de desenvolvimento de formas, que deram origem às suas pinturas.
São todos trabalhos produzidos nos anos 50, década fundamental na produção da artista e que reverbera em sua produção até hoje, e apresentam todo o rigor e a delicadeza da artista na construção de sua poética.Os primeiros trabalhos datam de 1954, ano fundamental na carreira da artista, que passava por um período de intensa e radical transformação. ‘Em 1954 eu me encontrei com a arte concreta’ 1.
Naquele ano, Judith Lauand foi monitora da 2a Bienal de São Paulo (a Bienal de ‘Guernica’, inaugurada emdezembro do ano anterior); participou e foi premiada no 3o Salão Paulista de Arte Moderna (Grande Medalha de Bronze), na Galeria Prestes Maia; realizou sua primeira mostra individual, na Galeria Ambiente (r. Martins Fontes, 223); e teve os primeiros contatos com a produção do Grupo Ruptura, a convite de Waldemar Cordeiro. Judith Lauand esteve ligada ao Ruptura até a sua dissolução e foi a única mulher a participar ativamente do grupo 2.
O Grupo Ruptura não chegou a realizar nenhuma outra mostra exclusiva de seus artistas, mas manteve-se ativo até 1959, como grupo de discussões e organizador de mostras coletivas, como a histórica 1a Exposição Nacional de Arte Concreta 3.
A mostra foi organizada em parceria com os poetas concretos Haroldo de Campos (1929-2003), Augusto de Campos e Décio Pignatari e marcou o surgimento oficial da poesia concreta no Brasil. Curiosamente, os últimos trabalhos do conjunto aqui apresentado datam do último ano de existência do Grupo Ruptura.
Foi a partir de 1954 que o concretismo se tornou o leitmotiv da produção pictórica da artista. Suas obras abandonaram qualquer sinal de representação ou subjetividade presentes nas obras figurativas anteriores e passaram a ser regidas por um forte componente racional, com grande rigor matemático, que se evidencia ainda mais nessa série de trabalhos sobre papel. ‘Eu me baseio em elementos inerentes à própria pintura: forma, espaço, cor e movimen- to. Procuro objetivar o mais possível o problema plástico. Amo a síntese, a precisão, o pensamento exato’ 4.
Mas Lauand soube fazer concessões estéticas e, com isso, produziu obras concretas com muita liberdade e características próprias. O concretismo não a aprisionou. Seu rigor matemático foi quebrado em composições dinâmicas e que transmitiam movimento, ritmo e tensão, provocando um equilíbrio precário entre linhas, formas e cores.‘Judith Lauand buscava alguma razão matemática, mas sobretudo muitas licenças poéticas’, resumiu Paulo Herkenhoff 5.
Um exemplo disso é o uso recorrente pela artista, principalmente em 1959, de linhas e elementos geométricos que se multiplicam em sentidos convergentes, divergentes ou aleatórios, se agrupam ou se dispersam, se sobrepõem ou criam pontos de intersecção entre eles, buscando assim novas possibilidades para a ocupação do espaço pictórico e dando um grande dinamismo a ele. É o caso da pintura ‘Quatro Grupos de Elementos’ e de alguns trabalhos sobre papel deste mesmo ano de 1959, também presentes na exposição.
O conjunto de obras exibido na mostra ‘Judith Lauand: The 1950s’ apresenta assim não apenas a gênese de sua produção concretista bem como os vários caminhos por ela perseguidos dentro desta linguagem nos anos 50, uma década fundamental na produção da artista e que reverbera em sua produção até hoje, caracterizada pela busca do rigor e da delicadeza na construção de sua poética.
NOTAS
1 Declaração da artista em entrevista ao crítico e curador Paulo Herkenhoff, em 1996, publicada no texto ‘Judith Lauand, Arte de Delicadezas Concretistas’; catálogo da exposição ‘Judith Lauand - Obras de 1954-1960’, Sylvio Nery da Fonseca Escritório de Arte, São Paulo, 1996).
2 O Grupo Ruptura foi responsável pela introdução do concretismo no Brasil ao inaugurar, em 9 de dezembro de 1952, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, a mostra Ruptura, acompanhada de manifesto homônimo. O grupo era formado pelos artistas Walde- mar Cordeiro (1925-1973), Leopoldo Haar (1910-1954), Geraldo de Barros (1923-1998), Kazmer Féjer (1923-1989), Luiz Sacilotto (1924-2003), Lothar Charoux (1912-1987) e Anatol Wladyslaw (1913-2004). Depois entraram Judith Lauand, Hermelindo Fiamin- ghi (1920-2004) e Maurício Nogueira Lima (1930-1999). Todos se declaravam seguidores do artista suíço Max Bill (1908-1994), a principal referência teórica e prática do concretismo no mundo, particularmente no Brasil, onde havia realizado mostra individual no MASP em 1950 e cuja escultura ‘Unidade Tripartida’, 1948/1949, hoje no acervo do MAC-USP, havia sido premiada na 1a Bienal deSão Paulo, em 1951. A relação do artista suíço com o Brasil se manteve intensa durante toda a década e resultou na seleção de vários artistas brasileiros, entre eles Judith Lauand, para a mostra Konkrete Kunst, organizada por ele em Zurique, na Suíça, em 1960).
3 A mostra ocorreu no MAM-SP, em 1956, então dirigido por Mário Pedrosa, e depois seguiu para o MAM-RJ, 1957, na época ainda instalado entres os pilotis do Ministério da Educação e Cultura e dirigido por Niomar Moniz Sodré).
4 Depoimento da artista por ocasião da mostra Bandeiras, em home- nagem aos 60 anos da USP, na Galeria de Arte do SESi, em 1996).
5 Trecho do texto ‘Judith Lauand, Arte de Delicadezas Concretistas’, catálogo Judith Lauand - Obras de 1954-1960, Sylvio Nery da Fonseca Escritório de Arte, São Paulo, 1996).
Judith Lauand: The 1950s By Celso Fioravante
Judith Lauand - The 50s, Stephen Friedman Gallery, London, UK - 08/02/2013 a 09/03/2013
The collection of works exhibited in ‘Judith Lauand: The 1950s’ represents the creative genesis of thisConcretist artist. It also highlights her rigorous modus operandi, made evident in the careful process of producing, cataloguing and preserving her work, which made it possible for these pieces to remain unseen and united as a whole set for over fiftyyears.
All works on paper exhibited hereare autonomous creations: gouaches, drawings and collages diligently identified with the letters C (for ‘Concrete’) and A (for ‘Acervo’, the Portuguese word for ‘Collection’) and numbers that allow us to observe them chronologically, a practice that Judith Lauand also used in her paintings. Also in the exhibition are preparatory gouaches, drawings and developing studies that later were executed on canvas.
These are all works made in the 1950s, a fundamental decade in Lauand’s production which reverberates in her work to this day, and present all her rigour and delicacy in the making of her artistic language.The first works date back to 1954, a turning point in her careerand a year of intense and radical transformation: ‘In 1954 I was introduced to concrete art’ 1.
In that year, Judith Lauand was an assistantat the 2ndBienal de São Paulo (The Bienal of “Guernica”, opened in December of the previous year); she participated in and garnered anaward in the 3rd SalãoPaulista de Arte Moderna(Great Medal Bronze) at GaleriaPrestes Maia; she hadher first solo exhibition at GaleriaAmbiente (Rua MartinsFontes); and she had her first contact with the worksby GrupoRuptura, on the invitation ofWaldemarCordeiro. Lauand was connected to Ruptura until its conclusion andwas the only woman to ever participate in the group 2.
Grupo Ruptura did not organize any other exclusive exhibition of its artists, but was active until 1959 as a discussion group and organiser of collective shows, like the historical ‘I Exposição Nacional de Arte Concreta’ 3.
This exhibition was organized together with the concrete poets Haroldo de Campos (1929-2003), Augusto de Campos and DécioPignatari and marked the official start of concrete poetry in Brazil. Curiously, the latest works here exhibited date back to the last year of existence of GrupoRuptura.
From 1954 onward,Concretism became the leitmotif of Lauand’s pictorial production. Her works abandoned any sign of representation or subjectivity that was present in the previous figurative works and started to be governed bya strong rational component with great mathematical rigour, all the more evident in this series of works on paper. ‘I base myself on elements inherent to painting itself: form, space, colour and movement. I seek to objectify the plastic problem as much as I can. I love synthesis, precision, exact thinking’ 4.
But Lauand knew how to make aesthetic concessions and, with that, she produced concrete works with great freedom and her own characteristics. Concretism did not imprison her. Her mathematical rigour was broken downin dynamic compositions that transmitted movement, rhythmand tension, provoking a precarious balance between lines,forms and colours. ‘Judith Lauandsought some mathematical reason, but above all a greatdeal of poetic license’, Paulo Herkenhoff summarised 5.
One example of that is the artist’s recurrent use, especially in 1959, of lines and geometric elements which multiply themselves in convergent, divergent or random directions. They gather or disperse andoverlay or create intersecting points, thus looking for new possibilities to occupy the pictorial space and granting it a great dynamism. Such is the case of the painting ‘QuatroGrupos de Elementos’ and some works on paper from the same year also present in this exhibition.
The set of works exhibited in the show ‘Judith Lauand: The 1950s’ thus presents not only the genesis of her Concretist production, but also the many paths she traveled in this language in the 1950s.Characterised by her quest for rigour and subtlety in the construction of her poetics, the 1950s was a fundamental timein the artist’s production that was to impact her work for decadesto come.
Celso Fioravante is a journalist and editor of website www.mapadasartes.com.br. As a curator, he has organized solo exhibitions of Brazilian Concretist artists like Rubem Ludolf, Rubem Valentim, Judith Lauand, Alberto Teixeira, João José Costa and Antônio Maluf, as well as contemporary artists like Pitágoras Lopes Gonçalves, Egidio Rocci and Vera Goulart.
Translation to English by Marcelo Nunes.
NOTES
1 Interview with Judith Lauand by art critic and curator Paulo Herkenhoff in 1996, published in the text ‘Judith Lauand, Arte de DelicadezasConcretistas’; catalogue for the exhibition ‘Judith Lauand - Obras de 1954-1960’, SylvioNery da Fonseca Escritório de Arte, São Paulo, 1996.)
2 Grupo Ruptura was responsible for introducing Concretism in Brazil by inaugurating, on 9 December 1952, at Museu de Arte Moderna de São Paulo, the exhibition ‘Ruptura’, accompanied by the manifest with the same name. The group was formed by artists WaldemarCordeiro (1925-1973), LeopoldoHaar (1910-1954), Geraldo de Barros (1923-1998), KazmerFéjer (1923-1989), LuizSacilotto (1924-2003), LotharCharoux (1912-1987) and AnatolWladyslaw (1913-2004). Then it was joined by Judith Lauand, HermelindoFiaminghi (1920-2004) and MaurícioNogueira Lima (1930-1999). All of them were self-declared followers of Swiss artist Max Bill (1908-1994), the main theoretical and practical reference of Concretism in the world, particularly in Brazil, where he had a solo exhibition at MASP in 1950 and whose sculpture ‘Tripartite Unit’ , 1948/1949, today inMAC-USP’s collection, was awarded at the 1st Bienal de São Paulo in 1951. The relation of Max Bill with Brazil was intense throughout the decade and resulted in the selection of several Brazilian artists, including Judith Lauand, for the exhibition ‘KonkreteKunst’, organized by him in Zurich in 1960.)
3 This exhibition took place at MAM-SP in 1956, then directed by MárioPedrosa, and then followed to MAM-RJ in 1957, at the time still installed between the pilotis of Ministério da Educação e Cultura and directed by Niomar Moniz Sodré.)
4 Quote by the artist during the exhibition ‘Bandeiras’, celebrating the 60th anniversary of USP, at Galeria de Arte do SESI in 1996.)
5 Excerpt from the text ‘Judith Lauand, Arte de DelicadezasConcretistas’, catalogue for the exhibition ‘Judith Lauand - Obras de 1954-1960’, SylvioNery da Fonseca Escritório de Arte, São Paulo, 1996.)
fevereiro 13, 2013
Tempo, sega e desejo – Claudia Bakker por Guilherme Bueno
Tempo, sega e desejo – Claudia Bakker
GUILHERME BUENO
O objeto – maçãs. Uma escolha intuída ou propositada? Talvez, as duas motivações tenham se dado juntas. Pois não se trata de algo qualquer; ele, apesar de deflagrado por uma apropriação é o anti ready-made. Nele está a metáfora do limite entre desejo e risco. Incorpora também, por uma relação indireta, a consciência dolorosa da fugacidade (de Adão e Eva fadados à mortalidade até as naturezas-mortas de Cézanne). Um fruto cuja seiva, visto o simbolismo que carrega consigo, seria a cultura – em outras palavras, um objeto que deixou de pertencer apenas à natureza. O fato é que para Claudia Bakker, a maçã repertoria uma memória da arte, a frágil porém incisiva delicadeza da existência, a marca corpórea do ser volitivo, a quase invisível (porém supravisível) passagem entre presença corpórea x ausência fantasmagórica, intrínseca a toda obra de arte.
É também uma poética que se faz por coletas. Assim ocorre com seu compêndio de frases, coleção de pensamentos das mais diferentes origens que ela reúne, como se ali reescrevesse o seu livro, a sua prosa do mundo. A ideia mesma de colecionar traduz outra instância pela qual a artista defronta o desafio da temporalidade. Afinal, o gesto do “corte” de uma frase ou de uma fruta de seu livro ou de seu galho equilibra-se entre o destruir e o prolongar-se mediante a transformação (assim também fizeram os museus outrora com os tesouros que buscavam alhures). Haveria nessa precisa indefinição temporal um sentimento heraclitiano diante do mundo? Em seus trabalhos o tempo ganha uma maleabilidade decorrente da releitura de um mesmo problema/objeto com diferentes linguagens. O objeto (a maçã) por vezes é presencial, expõe sua mudança de estado à nossa frente. Em outros casos, tangencia a perenidade em filmes que o conservam a fundo perdido por meio da imagem. Inverte-se a suposta correspondência entre desejo e presença, pois se a imagem projetada (como, aliás, é característico da própria natureza das imagens) evoca um desejo que não se pode consumar, uma vez que o objeto se constata distante – temos uma prova disso sempre que pegamos a foto de alguém que nos faz falta – o objeto presente, com seu apodrecimento, pode sugerir uma repulsão, naquilo em que nos assustaria com a constatação de efemeridade que nos cala e espelha. Sentimo-nos no fio da linha que separa e urde simultaneamente o ciclo da vida e o horror vacui do desaparecimento, um tributário ao outro (e, digno de nota, é observar o quanto, por outro lado, a artista materializa o vazio nos espaços que ocupa). Nisso consiste o gesto conscientemente paradoxal da colheita, das coletas de Claudia Bakker, ao costurarem os liames de uma poesia de renascimento e de melancolia.
Em seu trabalho se dá a conjugação de objetos simples com os meandros do sensível que cavam no espaço expositivo, com seus textos, instalações e filmes uma seara de sentidos ora complexos, ora dispersos, ora infinitos. Eles podem ser vistos como um processo de deflagração contínua, em que um trabalho testa e reinterpreta o sentido do outro, como se existissem apenas sob condição de revolver a própria memória. Isso permite com que uma fotografia se transforme em um filme e a seguir em uma videoinstalação. Que um conjunto de frases vire texto, um livro no espaço (o que, inclusive, agrega um novo sentido àquilo ao qual nos referimos antes como sua prosa do mundo, sua capacidade de instaurar sentido por coisas à primeira vista comuns). Abre-se desse modo uma temporalidade cuja poética da artista é único fluxo capaz de organizá-la; só é admissível e autêntico um sistema sensível, que incute em si mesmo o seu enigmático ciclo em espiral... Não é à toa, portanto, que algo tão corriqueiro e banal como uma maçã consiga cristalizar referências tão amplas.
Nesse sentido, a mostra aqui apresentada no Centro Cultural Banco do Nordeste funciona como uma “antiantologia”. Isso porque assim como ela apresenta e reapresenta obras exemplares da trajetória da artista, não o faz como mera repetição isolada e sequencial de trabalhos novos e antigos, mas, uma vez que eles passam por releituras, reinterpretações, podemos falar de uma mostra que é antiantológica por se basear no sentido de reencenação, isto é, o trabalho que, tal como o tempo que continuamente discute, precisa ter consciência de suas passagens, paisagens, sobreposições e reinvenções. Um tempo para além do tempo. E que nunca se perde.
Guilherme Bueno