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novembro 29, 2012
Tratado elementar de arquitetura por Marcelo Campos
Tratado elementar de arquitetura
MARCELO CAMPOS
Os tratados de arquitetura foram amplamente difundidos a partir do Renascimento italiano. Vitruvio desenvolveu seu tratado ainda na Antiguidade, em 27 a.C, e inspirou Alberti a criar o primeiro tratado da época moderna. Estesescritos guardam um sentido de normatização, aplicação de regras, leis universais. Nos tratados barrocos, as perspectivas são mais de interiores do que exteriores. No século XIX, tal empreendimento fora questionado por autores como Violet Le Duc. No século XX, as revistas ocuparam o lugar dos tratados, publicando textos de grandes arquitetos que empreendiam considerações sobre forma, espaço, lugar. A função de tais livros mantinha-se como manual de estilos e estruturas. E os tratados, então, elaboravam uma gramática para ávidos artistas, agora fartamente ilustrados com perspectivas, croquis, etc. As plantas não possuem cotas ou medidas, os desenhos não têm legendas explicativas. Alem dos projetos de arquitetura, as revistas, como um número dedicado a Mies van der Rohe, apresentavam mobiliários. Ao pensarmos nas artes, os manifestos das vanguardas e os textos de artista também criaram grandes relações com aquela antiga modalidade de escrita elementar da arquitetura. Em outro sentido, os escritos do grupo situacionista, pensando arquitetura e urbanismo em fins dos anos 1950, propunham modos de apreender as cidades, deambulações do corpo sobre espaços que, a partir da interação dos sujeitos, se tornariam construções espontâneas. Pensar a arquitetura e as cidades. É desta observação que parte o trabalho da artista Regina de Paula.
A ocupação de um campo visual “ao traçar linhas, ao dispor palavras ou ao repartir superfícies” desenha, também,“partilhas do espaço comum”, “certas formas de habitação do mundo sensível”.Ranciére traça tal afirmação refletindo sobre as imagens num mundo repleto de design. Na relação entre imagem e arquitetura poderíamos nos perguntar: como lidar com os “princípios de unidade”, os pavimentos-tipo, ohomem-modulor, conceito de Le Corbusier? Talhomogeneidade fora questionada pela pletora caóticadas imagens de consumo, mercadorias e pela própria constituição das cidades que não cabia no desenho do maestro-construtor. O que fazer de um espaço que se desmancha pelo uso, sempre recodificando seussentidos?
Regina de Paula busca o vazio, o dia feriado, o horário não comercial, em espaços arquitetônicos vivenciados, no dia-a-dia, pelo fluxo intenso de passantes na citada sociedade de consumo. Assim, gradis, letreiros, sarjetas tornam-se inanimados, perdem o sentido, a função e ganham a perplexidade de uma observação perscrutadora, desconfiada. Criam-se alvos sobre momentos de ausência. Suspendem-se as performances cotidianas. As formas e linhas superpostas são, ao mesmo tempo, estrutura e ornamento, desenho e escultura. O princípio da unidade é questionado na dissolução das ações, dos gestos. Nos espaços vazios, a quem interessa estas passagens? A perspectiva dos corredores contribui para imantar os espaços de certa transcendência. Podemos arriscar o termo “magia”. A falsa segurança empreendida pela sociedade de consumo, pela veleidade do desejo torna-se ameaçada por usos indeterminados fora do horário de funcionamento, num simples entremeio de uma jornada. E assim a cidade é habitada pela presença de outros atores, infames, até então. Como são perigosas as liminaridades!
O interesse pela arquitetura na arte contemporânea ativou distintos sentidos. Funcionara como critica à instituição, paradigma da escultura, problematização de contextos socioculturais. Regina de Paula descola desenhos e funções, linhas tornam-se fantasmagóricas, funcionando como aparições. Existiria um privilégio do desenho sobre a cor?Em texto, Carl Andre propõe a “escultura como lugar”. Regina de Paula pensa o desenho como lugar, marcando contornos, inventando geometrias, ficcionando coordenadas, arestas que deslocam e superpõem cantos, corredores, plantas baixas, como vemos na série “Não-habitável”, a partir de fotografias de um shopping em Copacabana.
Na construção de objetos, a artista recorre àengenharia de castelos, lugar da infância, imaginação, fábula. Nasérie de fotografias denominada “Castelo atlântico”, o desmanche, a liquefação, a subversão infantil da destruição anunciada que prenuncia a tristeza do desfazimento. Ainda assim, a utopia de construir novamente, mais rápido, em locais quase seguros, antes que a onda venha e os destrua. Ao deixar a praia, as alamedas de prédios, a fria arquitetura. Difícil traduzir a sensação de frescor e salinidade do corpo ao sair do ritualístico banho de mar e enfrentar as ruas repletas de prédios, carros, fumaças de canos de descarga, e os sujeitos semi-nus com areias nos pés, cambaleantes, de visão turva produzida pelos efeitos iridescentes do sol. Copacabana. O lúdicoagridea negação do ócio. Em vez de nostalgia pela perda do paraíso, resta-nos brincar com as tarefas do porvir, enfrentando quarteirões, elevadores, escadas rolantes.
Nos templos, Regina cria a dualidade nas cores preto e areia. A borracha e a areia constituem os elementos amalgamados para o brinquedo oco, cuja visualidade se apresenta como intransponível, própria à firmeza das construções religiosas.
Em “Tratado elementar de arquitetura”, Regina de Paula apropria-sedo livro deGiacomoVignola, um tratado, e ocupa o lugar fictício das ilustrações. Propõem-se traçados de plantas baixas, abrem-se páginas, alocam-se corredores. A apresentação desta série ocorre de duas maneiras: o livro original com as páginas abertas e uma série de fotografias em que a artista encena a leitura. Nas imagens, uma sequencia onde as mãos folheiam otratado. Ali, os desenhos propostos por Regina,em cópias heliográficas do original, excedem-se ou reduzem-se em dobras. Sabemos que as ilustrações nos tratados foram colocadas a posteriori, ou seja, a imagem se sobrepôs à escritura. A artista, assim, imagina desenho sobre desenho, desagregando texto e ilustração.
Estes são os interesses do trabalho de Regina de Paula, deambular pela cidade, observar espaços da memóriaou estrangeiros como se observa a superfície de uma cena para a criação.E, a partir dos gestos, conectar linhas, abrir perspectivas, camadas, páginas, inventar e superpor imagens. Sim, inventam-se lugares animados pelo entremeio da arte, por aquele ambiente que para sempre se tornará um vazio ativado, uma liminaridade predicativa. Criam-se dispositivos de desagregação e reintegração. Paisagens são lugares e superfícies para projeções da imaginação. O menino levanta o braço, abre a mão e sustenta um castelo. Ela, então, repete o gesto, irmanando-se, aparentando-se ao anônimo. “O que resta quando se subtrai o fato de que você levanta o braço, o fato de que seu braço se ergue?”, pergunta o filósofo e crítico de arte Arthur Danto a partir do axioma filosóficode Wittgenstein. Ainda que os gestos sejam idênticos, aqui poderíamos complexificar a querela com a constatação do antropólogo ClifordGeertz. O que resta é a densidade da descrição, um mesmo gesto abençoa, aniquila, exercita, xinga, testa, fantasia.A artista, então, iguala seus gestos aos gestos comuns de folhear um livro, rabiscar, posar para a fotografia, erguer o braço, atravessar os corredores da urbecomo quem atravessa a passagem dos templos ou as páginas de um livro infinito, brincando com acriança de edificar monumentos com areias das cidades à beira-mar.
novembro 28, 2012
a bienal do significado. do it like you mean it. por João Paulo Quintella
a bienal do significado.
do it like you mean it.
como artista, cineasta, cozinheiro, jogador de futebol, músico, crítico, curador, publicitário, escritor e tudo aquilo que não sou, busco significado em tudo. é uma busca. por buscar tanto, percebo e tento perceber a distinção entre o que é dotado de significado e o que não é. não confundir significado com significante. significado aqui não tem a função de apontar um conceito, de conter uma noção fechada e clara de uma intenção. o significado transparece de outra maneira bem mais difusa, não localizável, não objetiva. pode-se pintar uma tela de branco e isso ter todo o significado, isso já está claro, pode-se simplesmente não se fazer absolutamente nada e isso ser profundamente significativo.
entre pessoas que dedicaram anos de sua vida tecendo e costurando peças tão íntimas e autobiográficas quanto ficionais e surreais como f marques penteado até outros que encontram em ready-mades a pregnância congruente de suas pulsões tão individuais, parece haver um arranjo químico produzindo como que uma única densidade no ar que circula entre todas as obras que se encontram nessa bienal. para além de questões temáticas, de suporte, regionais, políticas ou o que quer que seja, a união entre essas matérias etéreas que se chamam obra de arte parece ser o "significado", todas o têm. parece um conceito absurdo de se defender como elo esse tal "significado", pois não é um conceito. é uma outra coisa e essa outra coisa é que parece reger cada vez mais o grande relógio da arte contemporânea. tic-tac, sempre em círculos, repetições com datas diferentes. mas o que está acontecendo? o gosto toma o lugar do critério. coleções são regidas por impulsos e curadores não querem saber do que se trata, querem é ter a sensação, sensação, de ter encontrado algo bom. e isso é ruim? não. é bom então? pode ser. nessa bienal com certeza é. parece que o modelo intuitivo da apple e do google (quem veio primeiro?) repercute no mundo da arte ou talvez não exista mais mundo da arte, só mundo mesmo e talvez a apple e o google é que sejam duchampianos (será que eles sabem disso?). o fato é que essa bienal traz essa nova perspectiva de forma muito sólida (não seria líquida? gasosa até?). sucedendo duas edições extremamente ligadas a seus pré-concebidos conceitos, a 30 bienal de são paulo parece ter se vaporizado para se libertar dessas mesmas amarras que continuavam ali, prontas para enlaçar a próxima presa. mas dessa vez não. esquivando-se também da tendência salão do automóvel que as grandes feiras de arte absorveram, a bienal parece ter despistado (ou seu curador astuto despistou) a grande cara de vitrine ou, pior, a grande máscara política. a bienal parece ser o que é e não querer ser o que não se é. algo muito raro nos dias de hoje.
novembro 21, 2012
Transperformance 2: Inventário dos Gestos por Marisa Flórido
Transperformance 2: Inventário dos Gestos
MARISA FLÓRIDO
Transperformance 2, Oi Futuro - Flamengo, Rio de Janeiro, RJ - 08/10/2012 a 16/12/2012
O que é o gesto? O que é o gesto na e da arte? Poderíamos pensá-lo desvinculado de um fim? Pensá-lo além do projeto da História e de seu telos quanto do juízo do gosto e de sua finalidade sem fim? A partir e além de uma antropologia das práticas e técnicas? Além da eficácia exigida pela lógica do capital? Além de sua mecanicidade e da programação impostas pelas tecnologias (enganando seus “aparelhos”, como quis Vilém Flusser)? Concebê-lo como puro dispêndio (como quis Bataille), que se afirma na perda de si e na dádiva ao outro? Concebê-lo como “a exibição da pura medialidade sem fim” que abre, ao homem, a dimensão ética e que constitui a política, como quis Giorgio Agamben? Poderíamos ver as imagens da arte ao longo de sua história como “fotogramas de um movimento virtual dos gestos da humanidade”?
Transperformance2: Inventário dos gestos reúne cerca de 25 artistas (entre artistas visuais, músicos, poetas, atores, dançarinos) em cujos trabalhos os gestos revelam certa forma de estar no mundo, mas também de tensioná-lo e abri-lo a outros modos de existência. Obras que interrogam a vida como potência que excede as formas, as significações e os atos, ao mesmo tempo que friccionam os poderes que a moldam. Obras que investem na intensidade tanto dos grandes quanto dos pequenos gestos, na força dos gestos sem finalidade e improdutivos. Mas, sobretudo, gestos que perturbam e repensam, de modo totalmente novo, as relações entre fins e meios, possível e impossível, potência e ato, atividade e passividade, doação e recepção, uso e troca, finalidade e gasto (dépense) infinito.
Este Inventário está subdividido em conjuntos que se interpenetram: “os pequenos gestos/PG” (a coreografia dos gestos diários, repetidos e banais, ressignificados em sua mecânica cotidiana como em sua mediação por tecnologias e mídias); “os pequenos grandes gestos/PGG” (gestos mínimos que guardam certo desejo utópico e tonalidades épicas, mas que, conscientemente ineficazes, cruzam o possível e o impossível, potência e impotência); “os gestos extremos/GE” (gestos em que o corpo é posto em situação-limite, interrogado como suporte de dispositivos de dominação, mas também de liberdade); “os quase gestos/QG” (a galeria dos gestos imperceptíveis que estabelecem diálogos com a pintura, com o instante pictórico e a iconografia dos gestos em sua história).
novembro 12, 2012
Súbita Matéria Evanescente por Fernando Gerheim
Súbita Matéria Evanescente
FERNANDO GERHEIM
Marta Jourdan - Súbita Matéria, Artur Fidalgo Galeria, Rio de Janeiro, RJ - 14/11/2012 a 05/01/2013
Esculturas feitas de fluidos, calor, ondas, oscilações. De velocidades, de deslocamentos, de dinâmicas térmicas. A matéria em seus estados alterantes. A matéria dos lapsos de pensamento, que invadem o limite do que para o pensamento sempre já passou: a sensação, o tom, o matiz. Fazer aparecer, na imagem, ao retardá-la até um único frame, esse movimento. O movimento que Marta Jourdan filmou é o do tempo interior. A forma dramática no momento súbito e evanescente de uma epifania.
A água não tem forma. O lugar que a contém, recipiente translúcido, explode. De um estado de contenção, concentração, se passa a outro de expansão, dispersão. A dispersão, a água, porém, já estava lá. De um lado, a entropia, latente, infiltrando desordem no sistema; de outro, a força organizadora, a linha do tempo. Marta cria uma situação em que o movimento é o mais rápido – a explosão, a maior desordem possível –, para colocá-lo mais lento, resistir ao máximo. O balé cine-atômico entre essas duas forças, ao mesmo tempo rápidas e lentas, é esculpido na imagem.
A água que explode reaparece como a chuva, e como o jato violento contra a performer-atriz. Cinescultura de velocidades e temperaturas encenada na clareira. A água, o amorfo, o líquido já tendo minado as estruturas depois de um longo período de infiltração silenciosa, irrompe de dentro das paredes. A casa explode. Roupas pelos ares. Extensões narrativas no ar, sem início ou fim.
A passagem de um estado a outro, transformadora, é ao mesmo tempo cíclica. O movimento lento quer deixar de ser cinema; a imagem parada, montada em séries fotográficas, quer se tornar um cinema de largas lacunas entre os frames, rarefeito.
A imagem dói mais do que a memória. A imagem busca sua unidade ainda mais dentro do plano, no frame. Matéria fantasmática. Uma vez isoladas num único quadro, imagens de momentos e situações diversas podem ser combinadas em proto-narrativas abertas. Na clareira, a performer-atriz convida para um chá prosaico forças contrárias da natureza. Elas estão infiltradas no dia-a-dia. O cotidiano nunca é naturalizado em 24 quadros por segundo. Se o cinema é a escrita do real como linguagem, como disse Pasolini, e nós vivemos a 24 quadros, Marta Jourdan filmou a 1000 quadros, mil vezes mais lento. O tempo do pensamento. O pensamento não tem tempo.