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setembro 26, 2012
A Ordem Complexa – AoLeo e Claire de Santa Coloma por Antonia Gaeta
A Ordem Complexa – AoLeo e Claire de Santa Coloma
ANTONIA GAETA
Na crónica Empório Celestial de Conhecimento Benevolente, Jorge Luis Borges escrevia sobre “uma certa enciclopédia chinesa”, na qual catalogava de maneira aleatória e subjetiva espécies e formas distintas.
Cada uma dessas formas podia assumir um significado ou um conteúdo criado ad hoc, que valia basicamente para tudo, consoante o grau de interesse e de imaginação dos leitores.
Esta aparente desordem ou não catalogação rigorosa, tornava possível a coexistência de um grande número de realidades, e encontrava um espaço capaz de acolher objetos e ideias.
É nessa linha que as obras de Claire de Santa Coloma (Buenos Aires, 1983) e AoLeo (Rio de Janeiro, 1983) se apresentam. Uma, enquanto inventário de gramáticas e figuras, outra, em forma de um conjunto de características visuais que representam uma ideia desenhada no espaço.
Ao definir um conjunto de formas e objetos, e a subjetividade enquanto carácter essencial da obra de arte, o trabalho de Claire de Santa Coloma mostra uma panóplia de questões próprias da escultura como subtração, acréscimo, equilíbrio, torção, volume, etc.
A instalação na Progetti é uma narrativa de 20 metros: uma conversação com uma coleção de formas que inclui uma combinação de objetos, registos fotográficos, elementos da natureza adulterados e camuflagens.
Cada objeto é, ao mesmo tempo, uma síntese das formas precedentes e uma prefiguração das futuras. Uma classificação que cresce e sugere ideias no campo expandido da escultura: em todo caso, um convite a descobrir e construir uma narrativa própria. Uma história da forma, um referente específico, um posicionamento do olhar.
Debatendo ainda sobre a formulação de conceitos e definições, a obra da artista é uma tentativa de aproximar e distanciar, de igualar e diferenciar, de limitar e expandir formas e ideias.
Antes de ser entendida como experiência visual, a obra de AoLeo propicia a construção de um diálogo íntimo, apresentando questões limiares da sua prática artística: uma ideia traçada no espaço e um processo de conhecimento da realidade formal.
O objeto de pesquisa, à primeira vista livre e espontâneo ou ditado pelo acaso do encontro, é meticulosamente investigado. Esta composição coloca perguntas sobre as questões inerentes ao olhar: reconhecer e construir uma paisagem, seja ela um lugar, um horizonte ou uma ideia.
As fotografias aparecem em forma de arquivo e observação de uma ação. Um processo que procura as similitudes entre paisagem herdada e paisagem construída, assim como a preocupação de concretizar e fixar ideias com um gesto.
A ênfase que o trabalho de AoLeo coloca em questões associadas à paisagem e às formas de modificar os espaços, é abordada a partir de condições próximas do fazer-se da obra, nomeadamente pelo equilíbrio constante entre o efêmero e o perene, e pelo cruzamento entre a gestualidade com pragmáticas construtivas.
Antonia Gaeta
Rio de Janeiro, Setembro 2012
setembro 24, 2012
Gais – As poucas modificações feitas não desfiguraram o diretório por Vanda Mangia Klabin
Gais – As poucas modificações feitas não desfiguraram o diretório
VANDA KLABIN
“Desenhar ainda é basicamente a mesma coisa desde a pré-história: é juntar o homem e o mundo.”
[Keith Haring, anos 1980]
Autodidata, Gais nasceu no Rio de Janeiro em 1980 e a partir de 1995 sua atuação artística passa a encontrar ressonância na esfera da vida urbana através de suas constantes intervenções em muros, viadutos ou empenas, seja por meio de pichações ou grafites. E é justamente nesse conturbado território, que o artista mostra a força de sua emergência e a potência de sua ação expressiva.
Essas incessantes interferências estéticas na trama cultural dispersiva da esfera urbana são, de natureza, efêmeras e transitórias, porém trouxeram um acréscimo estético ao acidentado percurso de sua vivência e imprimiram o seu vestígio na memória pública da cidade.
Suas buscas e inquietações estampadas em vários espaços públicos foram se caracterizando por experimentações de conteúdos geométricos surpreendentes e um novo vocabulário plástico foi sendo construído em relação direta com a aspereza das paredes.
Aquilo que era apenas uma manifestação urbana e os emblemas de uma desordem adquiriram uma nova espessura. Signos e imagens ganharam uma combinatória de intervenções vibráteis, fragmentos geométricos alusivos a sua adesão a uma linguagem construtiva brasileira, cuja influência tem uma presença bastante expressiva nas suas investigações estéticas. Seu trabalho adquire novos contornos no plano da tela e começa a participar de várias exposições de âmbito nacional e internacional.
Essa exposição na Huma Art Projects apresenta um conjunto de dez obras inéditas intituladas pelo próprio artista de fotomontagens, realizadas em 2012. Gais criou um novo espaço para a sua arte transitar, ampliando o campo de sua poética: aqui o seu trabalho se constrói a partir do recolhimento dos restos de um passado, da apropriação de ícones jornalísticos, recortes de revistas como “O Cruzeiro” e “Manchete”, adquiridas e selecionadas ao acaso, que remontam aos anos 1950 e 1960, que recebem também uma intervenção de tinta acrílica.
Atua agora em uma outra arena, coloca em cena a sua sensibilidade, estabelece novos acontecimentos plásticos que trazem uma singularidade ao lugar comum do mundo das imagens que povoam o nosso repertório cotidiano. Os resíduos de uma visualidade urbana encontram a sua equivalência poética nos fragmentos das revistas, nessa apropriação artística onde o vocabulário geométrico é o veículo para o fluxo de seu trabalho. Cria ambiguidades visuais entre a colagem, a pintura e a superfície colorida, recontextualizando e trazendo novas significações para o olhar.
São trabalhos híbridos, séries combinadas de sua pintura manuseadas com colaboradores anônimos, onde as pinturas e recortes se acomodam, criando um tecido estético irregular sobre a estrutura do suporte original. Através da aplicação de recortes na imagem original que perdeu a sua identidade, temos um continuum de planos fragmentados, resíduos visuais, uma descontinuidade do espaço como um obstáculo cadenciado por ritmos de cores. Essa compactação em alguma áreas tem uma espontaneidade calculada, não podemos mais ver o todo, mas as colagens funcionam como códigos interpenetrados por abstrações.
O sentido de sua obra emerge da reunião desses recortes abstratos, da dissolução da imagem inicial que representa a matriz do seu processo de trabalho, pela contradição entre a pintura e a desconstrução do real. O sentido da visão é obstruído, torna-se um mundo ausente de significados, sem identidade ou lógica entre as partes.
Essa fusão intrigante nos coloca meio à deriva, diante do impasse do real, para um mundo que traz uma opacidade reconfigurada. A imagem que podemos visualizar, deslocada do seu lugar de origem, é quase uma metáfora da nossa ilusória vida contemporânea e da artificialidade do olhar.
Percebemos também a presença de fatias de humor com as colagens, criando obstáculos para a visão, como um jogo ou uma armadilha entre algo único e singular e a sua duplicação, agora dissolvida e alterada pela interferência do artista. Ao aplicar fragmentos selecionados e recortados nas páginas ainda não molestadas, cria um sincopado visual, um puzzle, o que resulta em uma justaposição de cenas do cotidiano, agora cifradas e intraduzíveis através dessas colagens cuja essência é a geometrização, trazendo novos conteúdos estéticos, mas mantendo sempre um olhar constante para a produção da arte concreta e neoconcreta brasileira.
O crítico de arte William Rubin afirmou, a respeito do artista Jasper Johns, que a imagem tem sentido em sua falta de sentido. Essas pequenas colagens coloridas, abstratas, aparentemente banais, mas repletas de qualidades visuais, nos intrigam e nos interrogam.
Gais respira inquietação e, como ele sempre afirma, “acordo pensando em arte, passo o dia pensando em arte e vou dormir com arte na cabeça”.
Vanda Mangia Klabin, curadora
agosto de 2012
setembro 6, 2012
Elisa Bracher - A fragilidade do chumbo por Elisa Byington
Elisa Bracher - A fragilidade do chumbo
ELISA BYINGTON
Elisa Bracher, Mercedes Viegas Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, RJ - 10/09/2012 a 20/10/2012
Escala, peso, equilíbrio, são desafios constantes no trabalho de Elisa Bracher. Seja nos desenhos, em grandes folhas de papel de arroz que mal pousam na parede, tamanha a leveza, nas gravuras em matrizes metálicas de dois metros, nas esculturas em toras de madeira que se equilibram vertiginosas sobre si mesmas, seus trabalhos desafiam a gravidade, na indagação permanente do equilíbrio.
Para a artista, a consciência do peso da matéria parece coexistir com o segredo de sua leveza, como evidenciado na instalação “Ponto final sem pausas”, na qual uma esfera de chumbo de oito toneladas “flutuava” sobre a cabeça dos visitantes no salão central do MAM-RJ. A ousadia titânica da esfera escura, apoiada em cabos de aço ancorados na estrutura do museu, obedecia a rigorosos cálculos matemáticos que iam de encontro à intuição de equilíbrio da artista visionária. O “ponto final”, posto no espaço como um corpo celeste, tinha como cenário não apenas a arquitetura modernista, com a qual a obra media forças e se completava, mas também três “lençóis” de chumbo, segundo definição da artista - um oxímoro - de 20 metros cada um, suspensos no ar, sem tocar o chão.
O trabalho com o chumbo - metal antigo que ameaça e protege - surgiu na obra da artista ali, pela primeira vez. Mas, esteve sempre presente no imaginário e nas referencias artísticas de Elisa, desde as gravuras seminais de 1988, em homenagem às pinturas negras e Caprichos de Goya, obras emblemáticas de uma poética avessa à oficialidade das cortes, reveladoras do sofrimento do artista saturnino, marcado pela intoxicação com as tintas carregadas do metal ligado ao planeta da Melancolia. Nelas a artista definia o traço, as linhas oscilantes, intensas e vigorosas, que distinguiriam seu modo singular de sulcar a superfície das matrizes, de riscar o papel, indicar volumes, construir paisagens.
A presença do chumbo, desta vez, parecia remeter a outra série de “pinturas negras”: as telas derradeiras de Mark Rothko para a capela de Houston, nas quais o artista pintou o inexprimível. A arquitetura monocromática de Elisa, no entanto, trabalhava com outra luz. A luminosidade das grandes vidraças do museu, atribuía sutis tonalidades a um mesmo cinza e deixava entrever, no traçado das emendas das folhas de chumbo, geometrias familiares, formas já presentes no repertório linguistico da artista, exploradas nas gravuras por meio do máximo contraste cromático, preto e branco.
É possível que o uso do metal tenha servido para apontar a proximidade de Elisa a determinada genealogia de artistas e a evidenciar sua empatia com os que vivem profundamente o peso da condição humana. Um peso em relação ao qual a artista não se furta e enfrenta no trabalho diário com crianças marginalizadas, compartilhando de uma história que não narra, vive.
As novas esculturas em madeira e chumbo evocam um choque cósmico. Mostram a queda dos corpos, quando foi rompido o equilíbrio. São peças entre o geométrico e o informe, nas quais, o material distinto de cada uma das partes, propõe uma correlação de forças que salienta o peso da madeira sobre a massa de chumbo que não lhe resiste, cede, se deforma. Há algo lá embaixo ou atrás, que ficou intocado mas sustenta um peso descomunal - diz a artista. Estas peças mostram sua deformação. Talvez por isso, pela primeira vez, elas não sejam leves.
setembro 3, 2012
Emaranhados por Mario Gioia
Emaranhados
MARIO GIOIA
O que este coelho fita com um olhar tão determinado? Para onde a observação fixa deste urubu se dirige? Algumas das possíveis respostas têm a ver com quem vê tais figuras, que pode encarar os desenhos de grande escala criados por Fernanda Chieco _ exibidos agora na individual Duas na Sala do Trono, na galeria Eduardo Fernandes _ como um espelho, um portal ou, quem sabe, uma cela ou uma jaula. “É que a visão se choca sempre com o inelutável volume dos corpos humanos. [...] E eis que surge a obsedante questão: quando vemos o que está diante de nós, por que uma outra coisa sempre nos olha, impondo um em, um dentro?”1, questiona o teórico francês Georges Didi-Huberman.
Protagonistas das duas obras, o coelho e o urubu constituem a força motriz da nova série de Chieco, ao lado do polvo, do leitão, do peixe-pênis, do peixe-monstro, do baiacu, da arraia, do cordeiro, das carcaças de peixe e até de uma pequena árvore e de urso de pelúcia. É certo que o olhar das duas figuras agora apresentadas desafia mais enfaticamente quem as assiste. De forma mais sintética na sala expositiva, Coelho (2012) e Urubu (2012) potencializam sentidos anteriormente tocados pela artista paulistana em Trono de Pescador, mostra que esteve em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, até o início de agosto.
Instalados na Sala das Princesas e na Sala Luis de Vasconcelos, os dez desenhos de Trono de Pescador só exibiam animais mortos, personagens retratados com tubos, fios e cânulos que não mais possibilitavam a vida, atores de uma narrativa que se encerrava nela mesma. Hoje, em Duas na Sala do Trono, os bichos nos impõem, ainda que de forma melancólica, outros embates e relações.
Tão fortes quanto o coelho e o urubu são os elementos de mobiliário doméstico descartado e que, nas composições da artista, adquirem novo status. Chieco concebeu tais obras em residência na Coreia do Sul. No país que angariou a denominação de “tigre asiático” por conta do crescimento econômico que passou especialmente nos anos 90, a paulistana estranhou a grande quantidade de cadeiras, poltronas, sofás e bombonas abandonados por esquinas, cruzamentos e fundos de terrenos. Deslocados das funções iniciais, os objetos provocam fricções no tecido regular da urbe asiática, como a atestar uma memória do resíduo que insiste em permanecer, índice de um espaço em transformação contínua e nem sempre positiva. “ ‘A caminhada é um dos nossos derradeiros espaços de intimidade’, diz ele [Francis Alÿs]”2, aponta Nicolas Bourriaud em Radicante, reforçando o caráter movente do artista contemporâneo, aspecto na qual Chieco pode ser filiada.
E a artista oscila entre um caráter deambulatório, por meio dos percursos cotidianos, e a âncora num suporte marcado pela rigidez, pela resistência. O lápis de cor se inscreve duradouramente no hanji, papel utilizado por Chieco como superfície particular de seus traços. A cor entre o bege e o amarelado e a rede intrincada e densa de fibras faz com que o desenho não traga nada de esboço. “Errou, joga fora”, comenta a artista, que tem de adaptar as composições ao corte pré-determinado do material _ ele não é vendido em rolos, e sim em folhas, e a publicidade das lojas que o comercializam enfatiza a durabilidade de mais de 1.000 anos.
Assim, a poética de Chieco se assenta em inquietações contemporâneas e movediças, questionando a lógica do consumo desenfreado e dando novos contornos a procedimentos que poderiam ser artesanais ou anacrônicos. Como Argan já alertara em História da Arte como História da Cidade: “Não temos nenhuma dificuldade em admitir que a cidade, no sentido mais amplo do termo, possa ser considerada um bem de consumo [...]. Trata-se, em suma, de conservar ou instituir ao indivíduo a capacidade de interpretar e utilizar o ambiente urbano de maneira diferente das prescrições implícitas no projeto de quem o determinou; enfim, de dar-lhe a possibilidade de não se assimilar, mas de reagir afetivamente ao ambiente. [...] É essa passagem que a cidade moderna deve realizar, a passagem da concretização, da dureza das coisas, à mobilidade e mutabilidade das imagens”3. Móvel, mutante, a obra de Fernanda Chieco sempre reelabora as questões: O que vemos? O que nos olha?
Notas
1. DIDI-HUBERMAN, Georges. O Que Vemos, O Que nos Olha. São Paulo, 34, 2010, p. 30
2. BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. São Paulo, Martins Fontes, 2011, p. 96
3. ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 219 e 220 , p. 219 e 220