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julho 22, 2012
Passatempo por Solange Farkas
Passatempo
SOLANGE FARKAS
Cao Guimarães - Passatempo, Galeria Nara Roesler, São Paulo, SP - 23/07/2012 a 25/08/2012
O veio de água que avança sobre a pedra, empurrado por uma força que apenas podemos adivinhar, e muda seu desenho; a água que flui e reflui bruscamente, em jorro, por entre as pernas. O mar em perpétuo movimento, guardando profundezas; as duas varas de pesca que, imóveis na praia, sondam seus mistérios. As pipas que dançam no céu, num rito de acasalamento; o balanço inercial dos brinquedos deixados a sós com o vento.
Em Passatempo, um pequeno inventário das obsessões que se convertem em poesia na obra de Cao Guimarães antecipa e celebra um encontro e um nascimento. Percorrendo um caminho no qual a presença humana é apenas presumida, como na série fotográfica Gambiarras, ou projeta-se (não sem uma certa ironia) no namoro das pipas e das varas de pescar em Paquerinhas, ou desaparece do mundo, como nos balanços vazios de Limbo, chegamos a Otto, o trabalho mais recente do artista – que tem o nome de seu filho e é descrito como “um filme de amor”.
A água – não por acaso, símbolo de nascimento e elemento que contém e alimenta o embrião nas profundezas do útero – serve de norte a esta curadoria. A água que se condensa no nevoeiro que apaga a cidade, compondo uma paisagem, enfim, real; a água onde caem as linhas de pesca, como chuva, da ponta das varas, que se lançam para o céu como antenas; a água que se irradia em círculos concêntricos, constantes, perfeitos, revelando, por contraste, a qualidade errante e errática do nosso movimento.
Nos refluxos do meio líquido, na passagem do tempo, muda a vida. Em Otto, o outro – antes entrevisto, desejado, ausente – está no centro da cena. Silenciosa e precisa, gestada em tempo orgânico, a narrativa tem como fio uma imagem de mulher. Ora se fixa em seu rosto, seu corpo, sua voz, sua risada, descobrindo-a desde um lugar de intenso encantamento. Ora a faz contracenar com as obsessões poéticas desse cinema – as coisas que se movem sozinhas, insufladas de vida por algum vento; a barriga que cresce e vira bolha, prestes a explodir num rebento.
“Instintivo e visceral como um gesto, intimista e confidente como um diário filmado”, Otto faz com que o artista quebre o silêncio da contemplação para descrever o encontro que desenha e inverte a espiral do tempo sobre as águas de um rio, o prazer de conhecer alguém, a “pesca”, no mar escuro dos genes, das características do novo ser. O fruto nasce e o futuro germina. Para Cao Guimarães, o cinema é uma arte que ainda está no berço.
julho 11, 2012
Coleção Itaú de Fotografia Brasileira por Eder Chiodetto
Coleção Itaú de Fotografia Brasileira
EDER CHIODETTO
Coleção Itaú de Fotografia Brasileira, Paço Imperial, Rio de JAneiro, RJ - 01/06/2012 a 05/08/2012
Essa mostra apresenta um recorte da Coleção Itaú de Fotografia Brasileira enfocando os últimos 60 anos da produção de caráter mais experimental, para ilustrar a capacidade nacional de absorver e transformar influências estrangeiras, refletir labirinticamente a vertiginosa história política do país e pontuar uma forma de expressão genuína, que hoje coloca o Brasil como um dos protagonistas na criação artística nesse campo.
A fotografia não foi apresentada como uma linguagem artística na Semana de Arte Moderna de 1922. Na Europa, no entanto, artistas impulsionados pelo dadaísmo e pelo surrealismo já haviam levado a fotografia a experimentar voos libertários. No Brasil, demoraria em torno de 25 anos para esses impulsos ecoarem. Colaboraram decisivamente para essa mudança de patamar, a chegada de fotógrafos europeus que, escapando das agruras da Segunda Guerra Mundial, começaram a trabalhar no Brasil disseminando os preceitos modernistas.
No campo mais experimental, foi fundamental a produção singular de Geraldo de Barros (1923-1998). Suas experiências incluíam fotomontagens, colagens e intervenções diretas no negativo fotográfico que resultavam em abstrações e num pulsante elogio das formas, como se pode observar nas fotografias que constituem o núcleo "modernista" dentro da Coleção Itaú. A partir do final dos anos 1940 vários fotoclubistas enveredam por esse caminho criando um primeiro período mais consolidado do que podemos chamar de fotografia artística ou experimental. Entre 1964 e 1985, sob a ditadura militar, essa produção praticamente deixou de existir. A fotografia voltou-se quase exclusivamente para sua funcionalidade documental, raramente conseguindo direcionar um olhar mais crítico ao regime, devido à censura imposta aos meios de comunicação.
Foram raros os artistas que se utilizaram da fotografia durante essa época para experimentar novos limites da linguagem e, sobretudo, para realizar trabalhos que, metaforicamente, comentavam a ditadura. Duas dessas exceções foram os trabalhos de Boris Kossoy e Carlos Zilio, mostrados aqui em uma mesma sala para marcar esse período de transição.
O fim da ditadura militar e o processo de democratização criaram uma renovada atmosfera que propiciou a retomada mais livre e menos dogmática da produção artística na fotografia. Serviram como guias dessa nova fase três autores seminais: Miguel Rio Branco, Mario Cravo Neto e Claudia Andujar. Realismo e ficção se mesclaram de tal forma na obra deles que uma espécie de vertigem passou a ser a melhor forma de encontrar uma raiz definidora da estética e da visão de mundo propiciada por seus trabalhos.
A nova geração seguiu esses passos que se reflete, como podemos observar na produção dos jovens artistas aqui presentes, num território expandido em que a fotografia muitas vezes surge na imbricação com outras linguagens como a escultura, o vídeo, a pintura e a gravura, por exemplo.
Com esse histórico de sobressaltos sócio-políticos, econômicos, tecnológicos, estéticos e conceituais, a fotografia brasileira foi ganhando musculatura, absorveu as influências estrangeiras sem nunca deixar de acrescentar a elas o caráter nacional, mantendo assim a atitude antropofágica propalada por Oswald de Andrade, que no histórico Manifesto Pau-Brasil pedia "estrelas familiarizadas com negativos fotográficos".
Nessa mostra que o Paço Imperial recebe agora, optou-se porem baralhar as obras gestadas dentro do experimentalismo dos fotoclubes com trabalhos de artistas contemporâneos, estabelecendo uma espécie de espelhamento lúdico nos quais se sobressaem relações formais, mas sobre tudo uma atitude libertária diante da representação fotográfica. Uma forma de salientar que a evolução de uma linguagem não se dá necessariamente de forma linear, mas em vertiginosas espirais desenhadas pelo tempo e pela cultura.
julho 6, 2012
BANG, 2012 - Instalação fotográfica de Ana Vitória Mussi por Katia Maciel
BANG, 2012 - Instalação fotográfica de Ana Vitória Mussi
Ana Vitória Mussi - Bang, Oi Futuro, Rio de Janeiro, RJ - 22/05/2012 a 15/07/2012
Leia também "Nem uma gaivota..." de Marisa Flórido Cesar, curadora da mostra.
O bandido atira contra a câmera que o captura e nós, espectadores, desde 1903, com O Grande roubo de trem 1, somos alvos do bang bang do cinema.
Em Histoire (s) du cinéma, Jean-Luc Godard repete, na forma de texto gráfico visual e na voz off, Histoire avec un s, História com s. Vemos, então, as histórias do cinema nas batalhas e guerras do século XX. O cineasta resume a história do cinema americano como a girl and a gun. A girl and a gun, Godard repete ao longo do filme. A fórmula de Hollywood decomposta na montagem do autor que, para frente e para trás, movimenta a moviola e seu ruído. Montagem, assemblage, colagem, mistura não apenas do cinema e sua história, mas de seus continentes, europeu e americano, em cruzamentos, disputas, intrigas: a história do cinema como gênero cinematográfico. O cinema, seus heróis e covardes, suas divas e vítimas. Histoire avec un s.
Em 1991, Jean Baudrillard escreveu, em La guerre du golf n’a pas eu lieu, publicado no jornal Libération:
O drama real, a guerra real, não temos nem mais o gosto, nem a necessidade. O que precisamos é o sabor afrodisíaco da multiplicação do falso, da alucinação da violência, o que obtemos de todo prazer alucinógeno, que é também o prazer, como na droga, da nossa indiferença e da nossa irresponsabilidade, portanto da nossa verdadeira liberdade”. Para concluir: “É a forma suprema da democracia. 2
Este texto poderia ser uma critica aos filmes de Quentin Tarantino. Edição de imagens de naturezas distintas: fotografias, séries televisivas e animações em filmes que ultrapassam os acontecimentos em seus aspectos históricos, morais e éticos. O que fazer quando tudo já aconteceu? Refazer tudo em um movimento contemporâneo de eterno retorno. No caso do cinema americano, Tarantino gera um pastiche de violências do western ao filme noir, do burlesco à guerra mais visceral, onde os heróis afundam sem o alento da vitória. Uma outra nouvelle vague, um outro neo-realismo, na total desrealização do jogo americano do culto ao herói. Não existem heróis, só bandidos, não existe a paz, só a guerra, a pior de todas, aquela de todos os dias, aquela que nos torna indiferentes ao sangue, ao suor e as lágrimas.
Na exposição Bang, de Ana Vitória Mussi, três paredes abrigam quatro projeções que se tocam e funcionam para dentro e para fora, no deslizar do movimento parado, no entrecruzar das formas e ritmos que combinam as imagens que passam como em um filme. Um filme contrastado pelas fotografias que fixam o que mostra a televisão da artista, para ela, uma janela para os acontecimentos em versões que se materializam e desmaterializam no tempo do click da câmera que opera.
A instalação-filme Bang transcende a relação entre a artista e a curadora. Juntas na edição de imagens, orquestrando a um só tempo a guerra que se pacifica no olhar, elas nos paralisam nos batimentos fotográficos precisos como os alvos a serem atingidos. Olhar que, aos poucos, entra em sincronia com o sublime das imagens que mostram, nas palavras de Jean Baudrillard, um real sem origem nem realidade, porque tudo é cinema.
A mulher olha, a arma atira, os corpos mergulham, os aviões planam e nós, imersos no movimento do tambor que gira imagens e tanques, somos acolhidos no preto e branco do cinema em todos os tempos e pela trilha de Tarantino em seu bang bang. E o tempo é bergsoniano porque aqui o passado é contemporâneo do presente que ele foi. Nos termos colocados por Gilles Deleuze, em seu texto A ilha deserta 3, a duração é uma memória, porque ela prolonga o passado no presente. Bergson enuncia que o presente vai progressivamente, com o envelhecimento, tendo uma carga mais pesada de passado. Para o autor, o passado sobrevive em si, como lugar no qual nos colocamos para nos lembrar: o passado é o em si, o virtual, o presente que ele foi e o atual presente do qual agora ele é passado. Deleuze repete Bergson, estendendo o pensamento da imagem em si para a imagem como o puro do tempo, como o virtual do tempo, como a imagem-tempo.
A instalação Bang, de Ana Vitória Mussi, nos acorda com a delicadeza das imagens que flutuam no presente de um passado que não passa nunca, porque as imagens são mais que arquivos: são percepções incrustadas em nossos corpos, como a guerra e o cinema.
1 The Great train robbery, filme dirigido por Edwin S. Porter, produzido pela Edson filmes. (volta ao texto)
2 "Le drame réel, la guerre réelle, nous n’en avons plus ni le goût ni le besoin. Ce qu’il nous faut, c’est la saveur aphrodisiaque de la multiplication du faux, de l’hallucination de la violence, c’est que nous ayons de toute chose la jouissance hallucinogène, qui est aussi la jouissance, comme dans la drogue, de notre indifférence et de notre irresponsabilité, donc de notre véritable liberté. » Et de conclure : « C’est la forme suprême de la démocratie." Jean Baudrillard (volta ao texto)
3 Bergson (1858-1941). In ____ Gilles Deleuze. A ilha deserta. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2006. (volta ao texto)
Nem uma gaivota... por Marisa Flórido Cesar
Nem uma gaivota...
MARISA FLÓRIDO CESAR
Ana Vitória Mussi - Bang, Oi Futuro, Rio de Janeiro, RJ - 22/05/2012 a 15/07/2012
Leia também o texto de Katia Maciel.
A legenda alerta: estamos na suspensão do “ainda não” que antecede o estopim da arma, o clique da câmera fotográfica, a deflagração do trágico acontecimento: a guerra. Um segundo tão asfixiante que parece se estender ad aeternum.
Guerra, fotografia, cinema, televisão – muitos já disseram o quanto estão indissociáveis. Há uma estreita e longa relação entre as imagens técnicas e os conflitos bélicos. Se cenas da Primeira e da Segunda Guerra Mundial nos chegavam pelas películas cinematográficas, logo as imagens de guerra, do Vietnã à do Golfo, seriam transmitidas via satélite, pela televisão. É por essa janela em nossas casas que assistimos às guerras viscerais desta cidade, às invasões nas favelas, ao som ensurdecedor da artilharia, a população acuada e muda. Nenhum pássaro cruza, nenhum cão ladra. Estamos aqui e não lá, talvez pensemos aliviados, ainda que este “lá” esteja em imediata proximidade, ainda que os estrondos das armas que ouvimos bem aqui à nossa volta se confundam com aqueles emitidos ao vivo pela tevê. A mediação e o brilho dos holofotes midiáticos cegam e anestesiam a dor desse desamparo.
Em Bang, de Ana Vitória Mussi, cenas de guerrilha urbana nos morros cariocas (emitidas ao vivo e fotografadas da televisão) são intercaladas com cenas de filmes e documentários da Segunda Guerra Mundial, ao som da canção que compõe a trilha sonora do filme Kill Bill, de Quentin Tarantino. Ana Vitória interrompe o contínuo temporal das imagens em movimento do cinema e da tevê pela fotografia, as edita e monta em associações singulares: o salto do atleta olímpico do documentário de Leni Riefenstahl e o voo do avião de combate (os quase deuses e suas quedas); a complexa triangulação dos olhares com as máquinas de guerra e as máquinas de imagem (da fotográfica ao celular); a suavidade e a redenção do amor em tempos de insanas brutalidades.
As imagens são projetadas como um slideshow na sala escura do cinema. Salvo que, nesta instalação, não estamos no conforto das poltronas, mas em meio ao bombardeio de quatro projeções que nos obrigam a uma dança corporal, na busca ou na esquiva dos disparos das imagens e do lugar de sua próxima aparição.
Há mais de quatro décadas, Ana Vitória Mussi dedica-se à investigação da fotografia, explorando seus limites e possibilidades além dos usos e meios convencionais. Estendeu-a além da cópia no papel, abriu seu campo perceptivo e semântico, dialogou com os dispositivos de produção de imagem, como o jornal, a tevê e o cinema. Em interlocução com essas grandes mídias, a artista vem indagando as formas de uso e monopólio, de mitificação e exemplaridade das imagens. Refletir suas potências e fantasmagorias, interrogar a condição da imagem no mundo contemporâneo e nossa submissão a seus poderes – eis o que faz.
Por isso, à artista não interessa fotografar a guerra, mas seus modos de exposição, visibilidade e espetacularização: o que relaciona a imagem à violência e a violência à imagem, o que aproxima o homo videns do homo belicus.
Tecnologias de guerra romperam visões homogêneas, armas aéreas violentaram o continuum espacial. Se, “para o homem da guerra, a função da arma é a função do olho”, como disse Paul Virilio, também poderíamos dizer que a função do olho mecânico, a máquina fotográfica, é função da arma. O ato fotográfico é um golpe deferido na ilusória continuidade espaço-temporal, que a isola do contexto e faz da fotografia um fragmento errático e afásico, a partir do qual pouco se pode dizer sobre seu tempo, lugar e acontecimento. Todavia, a máquina de imagem é de guerra não apenas por seu laço com a morte, com “o isto foi”, como a definiu Roland Barthes, mas porque guerras se travam por meio da imagem, guerras se travam entre imaginários. No documentário O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, a multidão conforma o grande corpo coletivo e sem individualidades da nação ariana, em que apenas uma cabeça, uma face e uma voz dominam a cena: aquelas do ditador deificado. Como prefigurado nos filmes de Hollywood, as Torres Gêmeas são abatidas pelo inimigo que condena a imagem, difundindo seu espetáculo de morte – como imagem – aos olhos aturdidos de um mundo que o assiste pela tevê. O pastor evangélico chuta a imagem de uma santa católica, execrando a idolatria, em sua tele-evangelização em rede nacional. As fronteiras entre fato e ficção, entre propaganda e registro revelam-se sempre difusas.
A iminência de algo que pode ser o fim (a morte) ou o triunfo heroico sempre rondou as imagens de Ana Vitória Mussi. São situações-limite da existência humana, sua falta de chão. Como os corpos no ar dos saltos olímpicos ou os aviões em queda, envoltos em profunda melancolia e solidão. Como a fotografia, a existência é um fragmento errático, mudo, insignificante. Resta descobrir a delicadeza, reencontrar a humanidade na saturação cotidiana da violência e de suas imagens.
julho 4, 2012
Moradas por Felipe Scovino
Moradas
Felipe Scovino
Escrever sobre os legados do neoconcretismo na arte brasileira tem sido uma constante nos últimos anos. Temas como arte e vida, geometria sensível e organicidade viraram recursos infalíveis desse atravessamento temporal e estabeleceram um modelo para a passagem entre modernidade e contemporaneidade nas artes visuais brasileiras. Afora os ruídos dessas categorias, a obra de Elizabeth Jobim ressalta o melhor desse diálogo entre neoconcretismo (ou as linguagens construtivas brasileiras) e as produções artísticas posteriores. Enquanto no neoconcretismo, o vazio constituía-se como volume das obras e transmitia, entre outros estatutos, uma qualidade de corpo às formas, ou pelo menos uma disposição de diálogo mais efetivo e afetivo com o mundo – se pensarmos, por exemplo, nas obras de Amilcar de Castro, Lygia Clark, Sergio Camargo e Willys de Castro que por sua vez estabelecem um diálogo fecundo com Jobim -, na mais recente série de obras de Jobim, essa pesquisa ganha continuidade e desvios: o vazio torna-se dispositivo para a fabricação de lugares ao mesmo tempo em que há um duplo movimento nas suas obras. Das telas ao ganharem volume e buscarem incessantemente um lugar no mundo; há uma certa insatisfação em serem apenas representações bidimensionais. O que está diante de nós são quartos, ambientes, salas, portas e toda a sorte de espaços arquitetônicos. Em determinados momentos por meio de uma experimentação com distintas qualidades de tinta e cor, Jobim consegue chegar a uma superfície brilhante na qual o nosso corpo finalmente invade aquele espaço. Nesse processo de espelhamento, nos vemos habitando aquela casa. O tamanho antropomórfico das telas e o fato de estarem muito próximas ao chão dialogam com a ideia desses espaços convocarem uma presença, de quererem ser preenchidos.
O segundo movimento é o do corpo do espectador ao investigar os deslocamentos, torções e passagens que suas obras nos revelam ao tornar aparente o seu interesse pelo intervalo, pelo espaço entre os módulos, por uma fresta que não é tão somente o espaço que divide as telas mas uma linha que assume a fratura como índice para o corpo. É o vazio assumindo a sua condição de parte integrante da obra e por conseguinte inventor de lugares. Como partes constituindo um todo, temos a ilusão de que construímos incessantemente esses espaços porque eles nunca terão formas definitivas, apesar de rigorosamente acabados no interior da razão em que foram pensados.
Fora o fato da obra de Jobim ter estreita ligação com as linguagens construtivas e com a história da pintura, sua pesquisa iniciou-se a partir de desenhos tendo as pedras como modelo. É curioso e compreensível o fato da artista operar ao mesmo tempo um dado secular da história da arte (a natureza-morta) e transformar a experiência de ver e exercitar volumes de um elemento inorgânico em criação de linguagem e afeto, isto é, em como aquela forma pintada sobre a tela que venhamos a identificar como corpo tem sua origem no que há de mais concreto, bruto e ao mesmo tempo transitório, que é a própria natureza. A obra parece questionar até que ponto ela é abstrata. Jobim está interessada nas dualidades, nos estados contínuos de mudança e fundamentalmente em tornar visível esses movimentos/imagens quase imperceptíveis.
Se em séries anteriores, era a tinta que invadia as laterais da tela marcando essa “quebra da moldura” ou o desejo da linha em perseguir o espaço além de uma bidimensionalidade assim como o mesmo movimento podia ser observado na fratura entre as telas, ou ainda no branco/vazio que era o pano de fundo para a aparição de um grafismo arquitetônico que em vários momentos absorvia um signo da cidade (o jogo de azulejos e o calçamento, por exemplo), agora sua nova série diminui os espaços vazados mas não o seu dado fenomenológico, isto é, a sua capacidade de a partir de uma economia de elementos ou um mero gesto desarticular as certezas sobre o visível e inventar jogos de percepção que nos faz mergulhar em uma imprecisão sobre os nossos sentidos. Da mesma forma que o espaço está sendo experimentado, o mesmo acontece com a cor. Em um processo de seguidas camadas, o vermelho adquire uma cor de ferro, ou o azul que depois de um incessante processo de artesania transforma-se em um roxo. Os espaços construídos pelas telas não querem ser facilmente identificados pois transitam em um território que fica entre o real e o imaginário. Jobim sustenta a “natureza primária da arte”: permitir que a obra seja um eterno enigma.
Agenda de eventos - Elizabeth Jobim na Lurixs, Rio de Janeiro
julho 2, 2012
Sergio Camargo: Trajetória escultórica por Paulo Venancio Filho
Sergio Camargo: Trajetória escultórica
PAULO VENANCIO FILHO
Sergio Camargo é, por excelência, o escultor construtivo do volume a da massa, da homogeneidade entre cor e matéria. Escultor da massa e do volume, da presença física, a obra de Camargo é plena de ressonâncias arquitetônicas - sua lírica musicalidade, fluída e contínua, encontra também um paralelo na heterodoxa arquitetura moderna de Niemeyer. De fato sua escultura se faz aderindo e contrariando a certos pressupostos do não-objeto neoconcreto. Desconsidera a base, mas de certa forma, e dentro da forma, mantém aquele núcleo incognoscível que o não objeto pretendia aniquilar. Mas podemos dizer que esse núcleo, no caso de Camargo, é, ao mesmo tempo, suprimido e mantido através da plena identidade e unicidade entre forma, cor, matéria. Núcleo e obra são a mesma coisa, plenamente transparentes um ao outro. Por esta via muito singular, heterodoxa ao neoconcretismo, mas em sintonia com ele, Camargo resolveu modernamente a presença tão atávica na escultura da massa e volume, o que o coloca muito próximo de outro construtivo singularíssimo como Hans Arp, tanto o Arp dos relevos quanto o das esculturas. Nos dois, o mesmo gosto pela massa cheia ininterrupta, pelas superfícies curvas e esfericidade, tanto na madeira como no mármore além do branco que também é tão presente na obra do escultor suíço.
As primeiras esculturas de Camargo, figuras femininas enclausuradas em si mesmas, agachadas, torcidas e retorcidas, corpos só núcleo, massa e volume indistintos e concentrados, são pura matéria em tensão que o bronze impenetrável ainda mais acentua; a luz é como que repelida e indesejada, como se a matéria dela procurasse escapar e se esconder. A qual forma então reduzir este conflito? Grosso modo o corpo humano não passa de um grande cilindro. Tronco, braços e pernas aspiram à clareza da forma geométrica, nada mais. De um torso, podem surgir torções e o cilindro, em si, estático; mas na sua combinação múltipla, ora aleatória ora controlada, se estabelece a dinâmica tão singular do trabalho no seu inquieto e constante organizar e desorganizar.
Camargo foi mesmo um precursor ao fazer da obra o próprio sistema levando-o até o seu limite material e formal. Este caráter singular e surpreendente do trabalho, work in progress experimental, exige e propicia a realização de novas leituras e sentidos, estimulando a reflexão crítica sobre as relações entre modernidade e contemporaneidade, retomando aspectos do passado e verificando-os, renovados, no presente. Notável e enigmático, fato que sempre surpreende, é como a potência plástica da obra se desdobra além da lógica do sistema. A escultura transcende a soma - ou subtração – dos elementos geométricos; o todo subsume as partes; uma vez pronta não há mais como desarticulá-la de tal modo está unificada pela unidade da matéria e cor, transparente a si mesma. Nos relevos de madeira como nas esculturas em mármore o método é unívoco à matéria, o cálculo à sensorialidade, o rigor à liberdade. Fascinante é o resultado sempre inesperado e surpreendente, quando, a princípio poderia parecer óbvio e mecânico. Mais do que qualquer dos abstrato-geométricos Camargo desfaz o crítico dilema razão-sensação dispondo de ambas com a mais absoluta liberdade.
Uma obra que se faz dessa maneira a rigor não tem princípio nem fim; podemos entendê-la de modo livre e articulado, desobedecendo qualquer sentido evolutivo ou cronologia. O rigor formal e a liberdade da forma que estrutura o processo escultórico de Sergio Camargo, desde suas obras mais características dos anos 1960 até suas últimas obras, encontra-se no raciocínio imaginativo que desenvolveu a partir de uns poucos e discreto elementos geométricos, ora estruturando-os em conjunto ora isolando-os, observando seu comportamento sob o efeito da luz e da movimentação do espectador, ampliando e deformando os mesmos elementos, ora atingindo uma escala quase monumental ora reduzindo a obra a estudos diminutos, Camargo produziu uma reflexão das mais completas e complexas sobre as possibilidades da escultura moderna e uma das obras mais inovadoras da arte moderna brasileira.
Ao final da obra uma parábola escultórica se completa; do plano ao espaço e de volta ao plano, o mesmo percurso que vai do bidimensional ao tridimensional e retorna ao bi-dimensional. Da unidade cor matéria, à tinta branca rala, fosca, opaca e “quente” da madeira à madeira, absorvendo a luz, mortiça à extinção da luz, no duro negro belga, núcleo fechado que só reflete.