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fevereiro 14, 2012
A arte do pensamento ou a ponta solta do aqui e agora, por Fernando Gerheim
A arte do pensamento ou a ponta solta do aqui e agora
O pensamento é a matéria mais maleável que há. Suas possibilidades plásticas são maiores que as da argila, da palavra falada ou escrita, da imagem parada ou em movimento, do plástico. Sua capacidade de afetar é maior que a da subjetividade silenciosa da literatura ou da hipnose coletiva do cinema. A imagem 3D da Realidade Virtual não se compara à imersão de sua dupla face surround com subwoofer de som e imagem. Não existe signo como o psíquico. A verdadeira arte é pensar!
O pensamento divide o lago do indiferenciado como a quilha na água. Ele tem uma face sólida (ainda que dure pouco), como esta folha de papel, e outra líquida. Com suas palavras peludas, brilhantes ou agudas, pensar é tátil.
Os signos, como se sabe, não dizem, predizem. A partir de seu elo fundamental com o futuro, o movimento que o pensamento descreve é de trás para frente. O pensamento é como o flashforward cinematográfico.
O pensamento não tem largura, altura nem profundidade, mas possui extensão. O pensamento é só tempo.
O barco avança. A lesma do minuto rasteja. O século pisca os olhos. O zigue-zague com seu ancinho letrado.
Ao pensamento como arte não interessam deduções ou induções, apenas abduções. O que importa ao artista do pensamento é esticar linhas que o próprio pensamento, com sua materialidade puramente temporal, interrompe, retoma, bifurca, dentilha, engrena, desfia, embaraça, ao mesmo tempo que elas, ao se emanciparem, o interrompem, retomam, bifurcam, dentilham, engrenam, desfiam e embaraçam. Além do feedback, o pensamento se regenera a partir de qualquer ponto, como a raiz de uma planta, e ainda que algumas de suas linhas acabem, sua hidrografia prossegue percorrendo outros afluentes. Existem rios que não correm para o mar.
O pensamento segue a fórmula do sonho até durante a vigília. Tudo o que é percebido e tem caráter sensível nos atinge. Essa dimensão sensível é que permite a ele se tornar uma arte. Pensar é escrever com um lápis de duas pontas.
Outra peculiaridade da arte do pensamento é que ela não tem platéia. Sua forma de recepção é o recolhimento, mas, ao contrário de outras artes de apreensão individual, os signos de que são feitas suas obras ficam inscritos apenas na memória e no corpo de quem pensa, e não em objetos.
A obra do pensamento não tem valor de exposição. Sua natureza intransmissível o impede também de ter valor no mercado de arte. O pensamento afeta aquele que pensa de forma sensível, como as imagens do cinema e dos sonhos, mas como não têm audiência, não pode ser considerado entretenimento.
Aquele que pensa não possui o pensamento como a um bem patrimonial. O pensamento não é coletivo nem privado. A centelha da idéia risca a mente. A quem ela pertence? Fora do Estado de Direito, pensado por uma pessoa só, o pensamento não sofre as coerções de outros tipos de arte. A delimitação é antes uma necessidade de certo modelo de produção do que da obra.
A obra de arte do pensamento não pode constituir uma tradição para nenhuma comunidade. Aparentemente, sua arte está condenada a não ser notada – a não ser por quem pensa –, e a não alterar o estado de nada – a não ser de quem pensa. Só a culinária e a perfumaria se equiparam ao seu caráter volátil. Enquanto a gravidade nos puxa para baixo, ele voa leveloz, leveluz. Como a alavanca de Arquimedes, move o mundo.
Pode parecer que sua maior expressão seja a arte do pensamento pelo pensamento, mas a nona arte não tem nada a ver com o decadentismo solipsista que volta as costas à sociedade. Embora, em suas obras, goze da autonomia de suas qualidades plástico-intelectuais, a arte do pensamento, apesar de se dar num espaço interiorizado, é feita em contato com o outro, na situação, no ambiente. Longe de ser um esteta numa torre de marfim, o artista do pensamento, para criar suas obras, mistura-se aos lugares, às contingências, ao outro.
Deitamos na cama – eu na minha, você na sua – e o céu é visível de nossas janelas. Olhamos para ele. Disco de freesby no ar, o pensamento descreve um movimento singular. Esse trajeto transitório é a obra. Ela já aconteceu quando a notamos. Mas alterou nossa consciência como um psicotrópico. Aí está talvez o ponto importante: a arte do pensamento deve ser inconsciente de si mesma, como uma trapaça do pensamento na consciência.
No meio da multidão, no estádio lotado, assistimos à final do campeonato. A bola é lançada no espaço vazio. O ponta surge do nada e chuta de trivela. A bola desenha no ar uma curva caprichosa, girando ao redor do próprio eixo. Por uma correspondência algébrica com uma situação qualquer, o artista do pensamento vê, por um instante, nítida, para logo desaparecer, a revelação da situação numa imagem visionária. Pronto, o pensamento fez sua obra. Foi um duplo gol. O espectador/autor frui a obra solitário na arquibancada lotada. Não há qualquer possibilidade de compartilhá-la com os vizinhos, nem de fazê-la perdurar. Ele pula no cimento trepidante, abraça desconhecidos. Sua comemoração está envolvida pelo efeito que aquela obra produziu nele. No instante em que ela cintilou, em seu recolhimento intransmissível, configurou-se uma imagem única, irrepetível. O vizinho percebeu uma fagulha em seu olhar. Mesmo que a obra de arte do pensamento não lhe seja transmitida, ele é contaminado, e goza, indiretamente, de seus benefícios. Imersos na histeria coletiva, eles se abraçam. A obra do pensamento não se dirige às massas, mas é compatível com elas, convive com o choque e o espetáculo, corre por baixo de toda distração.
A imagem correspondente a este salto qualitativo seria escavar o chão. A quantidade de terra removida é a vida vivida. A camada mais funda em que estamos é a observação da vida revolvida. Cada um desses novos níveis de profundidade em que paramos para observá-la corresponde a uma nova camada da experiência. Como esses ciclos não são determinados pela nossa vontade consciente, não adianta querer dizer quando a arte do pensamento acontecerá.
Mas a obra de arte do pensamento, aberta às contingências e ao mesmo tempo ditada por necessidades internas, não seria a própria experiência? Nesse caso, como seria possível diferenciá-la da vida? Essa impossibilidade, ao invés de desmerecê-la, é a prova de sua superioridade.
A arte de pensar confunde-se com a vida, mas não é produzida por toda e qualquer experiência vivida. A experiência é condição necessária, não suficiente. No entanto, não é possível diferenciar, de antemão, uma experiência da outra. A própria constituição incerta da obra de arte do pensamento muitas vezes impede essa distinção clara.
O pensamento como arte não tem fórmula e não constitui um saber que possa ser utilizado como ferramenta para intervir de modo direto na realidade. Mas as transformações e intervenções que ele produz, apesar de estarem numa esfera de penetração sutil, têm efetividade no real. E se a obra de arte do pensamento não pode ser definida como um objeto nem ao menos semântico, uma vez que é também extra-verbal e sinestésica, ela nunca deixa de prescindir de uma forma.
As condições socialmente dadas para o pensamento não são favoráveis à sua manifestação como arte. Este é o preço que ele paga por ser de trás para a frente e estar sempre no presente imediato. Digamos que nossa atenção seja solicitada pelo cumprimento de tarefas práticas através de um serviço telefônico em que escutamos vozes gravadas, digitamos séries numéricas, rememoramos senhas, e escutamos, durante longo tempo, música de elevador por telefone. Devemos conquistar a vitória sobre o caos na administração de nossas vidas. Ou estamos do outro da lado da linha. O trabalho absorve completamente nossa atenção. Depois do expediente estaremos muito cansados, mas teremos o fim de semana para nos divertir. Nem a disposição funcional nem a do lazer, porém, são favoráveis à arte do pensamento.
Chegamos em casa bêbados, dormimos de roupa e acordamos sem saber o dia, com uma terrível dor de cabeça sobre a sobrancelha esquerda. É nessa hora, quando nos sentimos pior, que estamos mais próximos da melhor disposição para a arte do pensamento. Saímos na rua a fim de comprar um remédio para dor de cabeça e o jornal. O azul do céu ignora nossa dor. Azulzidão, pensamos, tentando traduzir em palavras nosso sentimento. O raio de luz atravessa a folhagem da copa da amendoeira e ilumina as capas das revistas do lado de fora da banca como uma natureza morta de pintura holandesa. Sentimos na pele o toque do vento, quase maternal. Sopra, sopra em mim. Pensamos em tom de prece. O prazer é menos erótico do que sublime; parece justificar mesmo o nosso mal-estar. O menor esforço é penoso, mas a equação desigual entre o nosso corpo e o firmamento nos dá a nossa real dimensão. A obra de arte do pensamento, dispersa entre proposições defeituosas e gemidos, chega ao ápice quando as linhas sinuosas e cumulativas, entrecruzadas e tão longevas que seria impossível reconstituir, se fundem no ambiente e na atmosfera poluída da avenida larga em que a buzina nervosa do carro grita em nossa cabeça, lançando uma nova linha:
Vou voltar para casa, ler o jornal e dormir de novo.
O pensamento, por sua natureza in futuro, nos direcionou para algo que não existia antes e ele próprio criou. O artista do pensamento trabalha em meio às ações mais triviais e cotidianas e a obra de arte do pensamento está sempre em progresso.
Contrariando a impossibilidade de mensurar obras de arte do pensamento, eu mesmo cronometrei o que julguei ser alguns pontos de inflexão de linhas que se desenvolviam para, possivelmente, engendrar uma obra do pensamento. Às 12:04, minha interlocutora nesta meta-micronarrativa me disse a seguinte frase: “As pessoas têm um poderzinho.” Não foi o significado que ela deu à frase em seu contexto específico o que mais me interessou – ela se referia às pessoas que estavam do outro lado do serviço de telecomunicação. “Poderzinho” referia-se a um aspecto das relações humanas através daquelas mediações maquínicas em que não se via ninguém do outro lado; o diminutivo continha o encanto das relações motivadas de som e sentido. E foi principalmente o fascínio da forma que fez com que a frase – que significava as coisas pequenas às quais aquelas pessoas sem poder nenhum se agarravam para exercer, elas também, algum poder – fincasse uma das linhas interligadas da configuração em curso naquela tarde tórrida.
Às 15:32, quando eu caminhava pela calçada, recebi um folheto anunciando com letras e números azuis uma promoção de curso de inglês. Entregaram-me outros desses panfletos de anúncio ou oferta que eu amassei e joguei fora na primeira lata de lixo pública – só peguei para ajudar os panfleteiros. Qual a ligação daquilo com aquela frase que ela havia dito mais cedo? Não havia ligação nenhuma, mas eu não sei por que as duas coisas me impeliam a combiná-las. Elas eram apenas alguns dos fios com a ponta solta que vinham sendo esticados no curto período daquela tarde. Seu movimento parecia aguardar, inquieto, para ser completado.
O pensamento é menos o sentido do que seus lapsos.
Às 17:12 fui ao Copy Center fazer fotocópia de documentos originais para dar entrada no processo de que me ocupava ao telefone quando ela disse aquela frase. O Copy Center era um bureau de impressão, eles faziam tanto impressão a laser colorida quanto de fotos em camisetas. Dali saíam boa parte dos cartazes, folhetos, filipetas, portfólios, estampas e outras imagens reproduzidas que circulavam pelo bairro – como devia ser o caso do panfleto do curso de inglês das 15:32 .
Os próprios funcionários traziam estampada na camiseta amarela a logomarca do birô, que também estava reproduzida na parede: os “C”s de Copy Center, um em cima do outro, formavam as duas curvas do símbolo indiano (Om), só que invertido para poder coincidir com as letras “C”: . O amarelo e o degradê vermelho daquele jogo com a similaridade das formas sugeriam o pôr-do-sol, criando uma associação do símbolo-védico hippie com os trópicos. Ou talvez fosse com a Califórnia. Isso não ficou claro.
Esse evento insignificante de 17:12 fez com que, retroativamente, a frase de 12:04 – “As pessoas têm um poderzinho” – e o folheto do curso de inglês de 15:32 passassem a existir como pontos de uma configuração. A unidade que os interligava, embora cada um deles, individualmente, não tivesse importância, formou uma constelação legível, mas que eu não sabia decifrar.
O silêncio foi o pensamento da obra.
Nessa nova e antiga arte, o emissor e o receptor são um só. A obra é um pensamento que se pensa consigo mesmo, wireless. Linhas entrecruzadas num tecido de tramas e subtramas de uma roupa viva, que ainda não acabou de ser costurada. A roupa do futuro. O emissor e o receptor, no mesmo espaço e tempo, são também, cada um deles para o seu par, o outro. Embora suas obras possam constituir, pelo tônus, um ponto-síntese, a sua totalidade é inacabada. Isso não decorre da falta de durabilidade da obra, que, como sabemos, não deixa provas de sua passagem, mas da sua relação com outros pensamentos, que prolongam a linha da qual ela é um ponto e, ao prolongá-la, modulam a obra. A rigor, não é possível dizer onde uma obra de arte do pensamento acaba e outra começa. Podemos fazê-lo apenas depois, como historiadores do próprio pensar.
Da nota de pé de página de uma idéia surge outra. Sem unidade, não há transcorrer. Pensar é a ponta solta do aqui e agora.
Fernando Gerheim