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novembro 18, 2010
Nenhum Paradigma é Confiável por Daniela Blanco, Revista Capitu
Texto de Daniela Blanco originalmente publicado na Revista Capitu em 20 de junho de 2010
'Antes de desorientar seus espectadores, os artistas confundem-se a si próprios; são os ratos que ocupam seus laboratórios experimentais'
O americano Bruce Nauman possui uma obra tão vasta e complexa quanto a do artista visual brasileiro Cildo Meireles. A distância geográfica e ideológica é grande, mas podemos encontrar um aspecto comum nas obras desses dois artistas: a problemática da espacialidade e da sensorialidade. Os dois elementos, proporcionados ao espectador pela imersão na forma de expressão mais usada por ambos, a instalação, não são somente ferramentas, mas também temáticas do trabalho artístico.
Cildo e Nauman se comprometem com a percepção, com a maneira com que o espectador sente e pensa seu corpo e mente em relação ao objeto da arte. Utilizam brincadeiras ilusionistas que fazem com que o espectador se confunda ou se sinta desorientado: a questão colocada é a de que o que se vê ou se percebe nem sempre condiz com a realidade da experiência, e vice-versa. Esse questionamento sobre as formas de percepção coloca em cheque a confiabilidade em nossa capacidade perceptiva e julgamento.
Além disso, antes de ser um desafio ao espectador, o pensamento engenhoso que permeia suas obras o é ao próprio artista que, durante o processo criativo, experimenta e avalia sua capacidade sensorial e perceptiva. Cildo e Nauman, antes de desorientar a percepção de seus espectadores, confundem-se a si próprios; tornam-se os ratos que ocupam seus laboratórios experimentais. Com essas mensagens confusas e aparentemente desconexas os dois artistas criam uma lógica, uma comunicação predeterminada, que dá vida às suas obras.
Em Eureka/Blindhotland — união de duas obras em uma —, Cildo dispõe no chão bolas de borracha que, apesar de ter exatamente o mesmo tamanho, possuem pesos e densidades diferentes; no meio encontram-se dois blocos retangulares de madeira formando um sinal de igual e outros dois blocos iguais formando um sinal de multiplicação. Cildo cria a ilusão de que os blocos são objetos diferentes. Além do conflito visual, há ainda a identificação entre o sinal de igual e o de multiplicação — sendo que ambos apresentam a mesma matéria, peso e densidade. Inspirado na fórmula de densidade de Arquimedes (densidade é igual a massa dividido pelo volume), na obra original, Eureka (dois blocos de madeira formando uma cruz), Cildo demonstra a possibilidade de criar um equilíbrio entre esses dois símbolos diferentes. Segundo ele:
'Às vezes, o trabalho é construtivista, mas não devido a seu resultado final, mas porque está presente uma ordem interna, este fator permanente de coerência que permite que coisas aparentemente dicotômicas se estruturem de maneira precisa.'
Nesta obra, é também marcante o som de cem bolas de borracha caindo em diversas combinações de componentes fixos e variáveis, que são: a altura da qual são derrubadas as bolas, o peso dos objetos e a distância entre o local da queda e o microfone. Blidhotland é um nome genérico dado pelo artista a uma série de trabalhos em que ele cria uma percepção cega da realidade através do sentido da audição e da consciência de densidade, peso e medida. Independente do que se vê, a mensagem expressa pela obra não se perde; ela é transmitida através da imersão que estimula os diversos sentidos e o discernimento da perceptibilidade.
Nauman, formado em Física e Matemática, possui uma abordagem semelhante a de Cildo com relação a arte, trabalhando sempre com a lógica e com elementos variáveis e fixos que compõe uma ordem predeterminada. O controle que possui sobre o espectador imerso em sua obra é experimentado exaustivamente pelo próprio artista durante sua concepção artística.
Na obra Green Light Corridor Nauman cria um contraste entre nossas capacidades sensoriais através do conflito entre a experiência perceptiva e a experiência física. Ao olharmos para a cor brilhante que emana da instalação, temos uma sensação de finitude, como uma luz no fim do túnel que pode ser alcançada; mas ao tentar passar por dentro do túnel a sensação que se tem se assemelha à claustrofobia, e essa experiência física gera uma outra percepção: a luz que libertaria o espectador — mais que espectador, uma cobaia do artista — parece quase inalcançável.
Já em Live/Taped Video Corridor, o artista desafia o espectador a ultrapassar um corredor estreito. O sujeito tem sua imagem filmada por trás, por uma câmera posicionada na entrada do corredor. As imagens capturadas são exibidas em monitores que se encontram no lado oposto. A imagem do sujeito que atravessa o estreito caminho é a metáfora para a luz no fim do túnel. A ironia é proporcionada pela ilusão de que o sujeito nunca chega a si próprio; quanto mais perto do monitor, mais longe se encontra da câmera que o filma, mais distante fica sua imagem. Assim, a tal luz no fim do túnel é pura ilusão, não existe realmente; ou talvez seja apenas inalcançável.
Enforced Perspective, também de Nauman, se assemelha a Eureka, de Cildo: uma série de instalações esculturais onde 36 blocos de metal fazem com que o espectador seja obrigado a mudar seu percurso de acordo com a disposição destes no chão. Os padrões formados por estes blocos parecem bastante simples, mas a infinitude de arranjos que podem ser feitos com eles possibilitou ao artista testar os diferentes comportamentos do espectador. Blocos exatamente iguais em tamanho e peso proporcionam ao artista diversas possibilidades de interação com o público, apenas por mudanças em sua distribuição.
Na obra Raw Materials, Nauman reune 22 gravações de textos e falas diversas de seus 40 anos de carreira no espaço expositivo Turbine Hall, na Tate Modern de Londres. Vozes e frases sobrepostas preenchem o vazio, e emprestam um caráter de medida ao espaço e ao som. O artista trabalha com a instabilidade ao descontextualizar cada gravação e reuni-las, criando oportunidade para novas associações e significados, o que resulta em um trabalho quase que abstrato. Na verdade, sendo que o trabalho se trata de uma coletânea dos conceitos expostos pelo artista em sua carreira, ideias que evoluíram umas das outras durante um determinado período, a mensagem não é tão abstrata assim, mas sim coerente com o ideário artístico de Nauman. A abstração se encontra apenas na forma de expressão e não no conteúdo da obra.
Algo parecido ocorre na obra Babel de Cildo, em que diversos rádios sintonizados em estações diferentes são expostos empilhados, formando uma metáfora para a história bíblica da Torre de Babel: esta pretendia ser alta o suficiente para alcançar o paraíso; a presunção humana enfurece Deus que faz com que seus construtores passem a falar cada um uma língua diferente, com o intuito de impossibilitar a sua comunicação. Essa impossibilidade na comunicação, como conta a história, tornou-se a causa de todos os conflitos da humanidade.
À inquietante imagem da torre formada por rádios de Cildo, soma-se uma perturbadora cacofonia, que mostra no que essa impossibilidade de comunicação resulta: o caos em que cada indivíduo tenta fazer com que sua mensagem se sobressaía em meio a tantas vozes, mas só consegue ter sua individualidade engolida pela massa. Como se vê, Cildo também utiliza a abstração dos diversos sons descontextualizados para expressar um efeito ou mensagem predeterminados.
Também de temática religiosa é a obra Missões: Como Construir Catedrais, de Cildo Meireles. O chão, forrado pelo brilho de moedas douradas, contrasta com a ossada pendurada logo acima. Representando a violência perpetrada pelos colonos na América Latina estimulados pela ambição na caçada pelo ouro, a obra mostra o papel da Igreja que, ao tentar civilizar os povos ali encontrados com suas missões, acabou por prejudicar toda uma cultura existente anteriormente.
Brincando novamente com pesos e medidas, Cildo coloca, como ponto de apoio entre morte e prosperidade, a comunhão cristã: formada por uma fina coluna de hóstias — o corpo de Cristo — que interliga o chão dourado ao céu de ossos. Aqui, o artista expressa a fraqueza dos argumentos civilizatórios — apoiados na fé cristã — em que se baseavam as missões. Há também na obra um contraste entre os valores que influenciaram direta ou indiretamente as ações dos colonos: a violência e a ambição se mostram de maior importância que a fé cristã; o que está representado por valores espaciais e sensoriais.
Levando ao limite seu questionamento sobre a espacialidade, e trazendo ainda à tona a questão do tempo, Cildo cria uma de suas obras primas: Fontes. Em uma grande sala branca, pendem do alto seis mil fitas métricas, enquanto mil relógios cobrem as paredes ao redor. O som do tic-tac descompassado, combinado à distribuição desordenada das fitas métricas, é completado pelos quinhentos mil números de vinil espalhados pelo chão, representando a impossibilidade destes objetos de realizarem suas funções: medir o tempo e o espaço.
Os conceitos de tempo e espaço — tão exatos — são subvertidos, desconstruídos, e jogados ao chão. O artista nos mostra mais uma vez que nenhum paradigma é confiável; até mesmo a exatidão dos números pode ser arruinada pela percepção.
Nauman, seguindo o mesmo caminho, na obra Corridor with Mirrors and White Lights impõe uma quebra ao sentido de espaço que ele mesmo explora em suas outras obras. Em um novo corredor, ladeado por espelhos que lhe emprestam, com a luminosidade branca, uma sensação de infinitude, Nauman impossibilita o espectador de ao menos tentar passar pelo corredor e alcançar a luz no fim do túnel. A passagem é tão estreita, que nem o mais descarnado ser humano pode ultrapassá-la. Aqui, o único dos sentidos a que se pode recorrer é o da visão — já que se está impossibilitado da experiência física —; e esta, a visão, se mostra nada confiável, pois o artista se utiliza de artifícios para criar ilusões de ótica. A mensagem porém, condiz com a experiência: o infinito é realmente inatingível.
novembro 1, 2010
A paixão da câmera, por Holland Cotter, The New York Times
Texto de Holland Cotter originalmente publicado no New York Times em 29 de julho de 2010
Em "Original Copy", no MoMA, fotos se encontram com a escultura
A história da arte naufraga a não ser que continue se movendo em direções imprevisíveis. Assim, vez por outra, o Museum of Modern Art interrompe sua marcha marmórea para trilhar um atalho não pavimentado com uma mostra de tema fértil.
Tais mostras tendem a ser cerebrais e livrescas. Exigem nosso tempo e concentração. Como uma recompensa, elas nos oferecem novas maneiras de olhar a arte. Foi assim com "Manet e a Execução de Maximiliano" quatro anos atrás. Assim é com "The Original Copy: Photography of Sculpture, 1839 to Today" [A Cópia Original: Fotografia de Escultura, de 1839 até Hoje].
A nova mostra não será nenhum recorde de bilheteria. Eu diria mesmo que é o oposto. Se você acredita que o papel da arte é gerar bens visuais que deslumbrem à primeira vista, você ficará mais feliz gastando seu tempo de MoMA na atual exposição de Matisse. Se, entretanto, você está com disposição para ver um conjunto de imagens –ímpares, fabulosas e freqüentemente estranhas– ordenadas de modo a contar uma história de como duas formas de arte, fotografia e escultura, se encontraram, casaram-se, reproduziram-se e se tornaram virtualmente uma, então "Original Copy" é para você.
A mostra, organizada por Roxana Marcoci, uma curadora no departamento de fotografia do museu, começa onde a fotografia começou oficialmente, com a estréia pública do daguerreótipo na França em 1839 e, logo após, da fotografia em papel na Inglaterra. A esta altura, naturalmente, a escultura tinha uma história bastante antiga. Contudo quase imediatamente os dois meios se aliaram.
A ocasião e a tecnologia desempenharam um papel em sua fusão. A era do museu de arte já estava bem adiantada. Por meio dos museus a classe média em desenvolvimento tivera acesso a uma arte que tinha sido prerrogativa dos ricos e que, no caso da escultura clássica grega, representava a herança cultural da Europa. Os membros da nova audiência da arte queriam uma parte dessa herança para si e, por meio da fotografia, eles poderiam tê-la.
A imagem mais antiga da exposição, um daguerreótipo de 1839 de Alphonse Eugène Hubert, é basicamente uma natureza-morta, mas composta inteiramente de pedaços e partes de esculturas clássicas, incluindo um busto de gesso da Vênus de Milo. Relativamente acessíveis para comprar, tais imagens podiam transformar o lar de um comerciante em um mini-Louvre.
A associação entre escultura e fotografia tinha vantagens formais assim como sociais. A fotografia no início, com seu longo tempo de exposição, exigia temas imóveis. Caso uma pessoa posando para um retrato estremecesse minimamente, a imagem ficava borrada. A escultura era muito mais fácil de fotografar. Ela não estremecia.
Ela também não viajava se fosse monumental ou fixada em um lugar. Você precisava ir onde ela estava, e fotógrafos audaciosos iam. Nos anos 1850 Charles Nègre escalou, em estilo Quasimodo, por sobre os telhados da Notre-Dame em Paris e tirou uma foto do anjo da Ressurreição entalhado e empoleirado no cume.
Quase ao mesmo tempo outro fotógrafo amador parisiense, Maxime Du Camp, estava no Egito, onde ele pagou uma equipe de trabalhadores locais para escavar uma imagem colossal do faraó Ramses II especificamente para que ele pudesse fotografá-la. Sob Napoleão, os franceses haviam ocupado o Egito e embarcado toneladas de escultura antiga para Paris. Mais tarde, por meio da fotografia, du Camp enviou para casa esculturas ainda mais espetaculares.
A fotografia em seus primórdios levava uma vida dupla, como um instrumento de registro e como uma forma artística. Para Eugène Atget, ela era ambos. As fotos que ele tirou de esculturas públicas em Versailles nos anos 1920 são documentais, mas também fantásticas. Ao fotografá-las repetidamente, em diferentes estações e mudanças de luminosidade, ele confere a elas humores e personalidades, torna-as atores em um teatro visual.
Seu contemporâneo Auguste Rodin também tinha consciência do poder da fotografia, mas como um meio de propaganda. Ele podia mostrar apenas quantidades limitadas de suas volumosas esculturas em qualquer lugar específico, mas ele tinha fotografias do restante para elevar as vendas. Quando ele concordou em posar com "O Pensador" para o jovem Edward Steichen em 1902, Rodin provavelmente imaginou que receberia imagens promocionais na transação. O que ele conseguiu na foto, que Steichen fez juntando dois negativos, foi um exemplo clássico da fotografia manipulando e absorvendo a escultura.
Constantin Brancusi era a contraparte idealista do Rodin realista. Ele fotografava obsessivamente seu próprio trabalho. Apenas em fotografias, ele sentia, sua escultura era completa, e compatível com a visão que a originara. Em parte porque a fotografia lhe permitia controle total sobre a disposição de seu trabalho como ele se mostrava em seu estúdio, que era por sua vez uma forma de assemblage escultórica e um ambiente quase místico. Para criar este ambiente ele quebrou regras fotográficas básicas. Com seu flash ele produziu explosões ofuscantes de luz em superfícies polidas de bronze. Ele fotografava fora de foco de modo que certas esculturas pareciam vibrar como se vivas. Os resultados são sensacionais: escultura desencarnada, em alguma dimensão extraterrestre.
Marcel Duchamp levou a interdependência dos dois meios um radical passo adiante ao criar esculturas estritamente para a câmera. No processo, ele movimentou decisivamente os valores convencionais então vinculados à escultura e à fotografia. Ao tornar uma tradicional e sólida forma de arte elevada dependente, para sua existência, de um meio moderno que ainda possuía apenas um status cultural incerto, ele trouxe à baila uma nova política da arte.
Quanto à relação de escultura e fotografia com política social, esta era uma história antiga, e a Sra. Marcoci devota um espaço considerável a ela na galeria mais ampla da exposição. Aqui nós retornamos ao século 19 em um par de fotografias de Bruno Braquehais tiradas em 1871 enquanto rebeldes contrários ao governo em Paris derrubavam o monumento napoleônico conhecido como a Coluna Vendôme, durante a Comuna de Paris.
Em imagens que trazem à mente a destruição da estátua de Saddam Hussein em Bagdá em 2003, nós primeiro vemos a coluna de pé, mas coberta com cabos, depois sua arrematada estátua de Napoleão repousada no chão. Braquehais pretendia que suas imagens fossem souvenires de um evento glorioso. Ao contrário, elas foram usadas pela polícia para processar os rebeldes, um dos quais era Gustave Courbet.
Estas fotografias são as mais antigas entre as dezenas que retratam monumentos carregados ideologicamente que compõem essa parte da exposição: esculturas da era soviética de heróicos operários tiradas por Igor Moukhin na Rússia; monumentos à supremacia branca fotografados por David Goldblatt na África do Sul; uma escultura processional hindu capturada por Rosalind Solomon em Calcutá; e os retratos presidenciais do Monte Rushmore vistos através das lentes de Lee Friedlander.
Nestas fotografias, esculturas concebidas para incorporar idéias bastante específicas são simultaneamente documentadas e alteradas.
O operário do Sr. Moukhin, fotografado em um terreno cheio de ervas daninhas cercado por lares arruinados, já não parece tão heróico. O monumental Monte Rushmore na imagem do Sr. Friedlander é apenas um reflexo opaco em uma janela. Outras fotografias são mais abertamente críticas de seus temas escultóricos rigidamente programados; a maioria, no entanto, assume uma postura mais neutra, deixando atitudes e idéias circular livremente.
Livre-circulação é consideravelmente o nome do jogo no restante da exposição, já que se torna cada vez mais claro que depois de uma parceria longa e continuada com a fotografia, a escultura pode ser qualquer coisa, e qualquer coisa pode ser escultura: um bloco de goma de mascar, uma batedeira de ovos pendurada em uma parede, uma cratera lunar transportada, via fotocolagem, a um deserto americano.
Possivelmente a única característica indisputável da arte em nosso tempo é sua abrangência de aspecto inconstante. Todos os meios –escultura, fotografia, pintura, performance, vídeo etc.– estão em pé de igualdade e podem coexistir na obra de um único artista.
Distinções entre alta e baixa cultura, original e cópia, real e virtual, clássico e qualquer que tenha sido seu oposto, basicamente evaporaram. O que restou é uma espécie de estética cornucopiana, representada de forma brilhante por uma das peças mais recentes na exposição, “Voyage of the Beagle” (2007), de Rachel Harrison.
Tradução de Juliana Monachesi