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setembro 28, 2010
Os meandros da memória por Jacques Leenhardt
Os meandros da memória
Jacques Leenhardt
curso d’água comportado, despoluído, de águas claras, que caminha
entre margens retificadas e, provavelmente, sobre leito de saibro.
Foi submetido às exigências urbanísticas. A Ponte de Pedra,
sua irmã, agora fora do contexto, tornou-se intrusa. Estranho ver
edifícios históricos (tombados) engolidos por modernas estruturas
que os fazem parecer cadáveres em sarcófagos. Essa hibridez
vem do desamor pelo velho e da avidez de lucro. As contínuas
reformas na nossa cidade – a cidade é a nossa casa – nos transformam
em forasteiros. O progresso é uma ação de despejo em execução.
Por isso, um belo dia, na temida velhice, sentimos a incontida
vontade de voltar a nosso pátio, para reaver as nossas coisas que lá
deixamos.
Entra-se na obra de Iberê Camargo tendo a cronologia como guia. A relação com o passado, como um mundo feliz e desaparecido, dá sua nota de melancolia a uma das buscas pictóricas mais consequentes e solitárias da pintura brasileira dos últimos cinquenta anos. Sem dúvida, a terra da infância, aquela região que envolve Restinga Seca onde Iberê nasceu em 1914 é uma terra dura de onde o pintor descreverá em vários comentários o aspecto desértico e abandonado. Entretanto, nessas lembranças pessoais, ela guarda o calor do espaço familiar: a casa e a estação férrea onde trabalhava seu pai. Sublinhando a importância do céu e do horizonte, essa paisagem de solidão é marcada igualmente pelas linhas formadas pelos trilhos perdendo-se na distância e pelos fios do telégrafo onde trabalhava sua mãe. Um mundo isolado e voltado para dentro, mas ao mesmo tempo ligado a outros mundos por essas linhas de fuga que os desenhos de Iberê não cessarão nunca de reproduzir.
A infância é sempre um Paraíso Perdido. Antes de desaparecer inexoravelmente e nos assombrar a memória, ele se reveste de todas as cores da felicidade. Sua ternura nos invade e nos traz a lembrança dos laços ainda intactos. É como se existisse por si, tão pouco sensível às circunstâncias, que às vezes nos parece prolongar-se sem se prender a qualquer lugar ou espaço concreto. É o que Iberê chamava, afastando-se deste tempo, “pintar a luz de Deus, filtrada, sem sombras sobre o quadro”.
É um mundo de jogos e beleza, onde até o sofrimento encontra sua superação na atividade imaginária à qual se entrega o menino Iberê, lápis e pincéis nas mãos. Esse mundo fabuloso do passado, reconstrução, sem dúvida, idealizada, cheio de lembranças coloridas, com verdes e rosas como risos de criança, dá o tom da primeira parte da obra. Nela encontram-se as andanças alegres da adolescência, quando ainda era possível se perder nos limites da cidade e retornar ao aconchego do “pátio”.
As pinturas feitas no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro antes e depois da grande viagem iniciática na Europa reconstituem o mundo de outrora. Mas que “outrora” é este? O artista ainda não o sabe, entregue ao gozo do sabor do mundo.
Este mundo feliz da infância e, em particular o Riacho, na cidade baixa de Porto Alegre, rio errante e sujo que exala os perfumes do mundo rural. Ele respira ainda esta poesia própria aos lugares ainda livres do domínio e das cobiças humanas, incertos, ainda, entre campo e cidade. Era o tempo em que a ponte de pedra oferecia a doçura de seus arcos ao passante que se demorava diante do crepúsculo da tarde.
Mais tarde, de volta a esses lugares, Iberê terá dificuldade para reconhecer seus antigos encantos. A paisagem familiar tornou-se distante. O Riacho não mais corre na paisagem recomposta na memória. Ele já não pertence a esse tempo longínquo das lembranças. Desse momento em diante, ele estará fixado a uma imagem, monumento do passado cuja vida escapou, mas lhe retorna, algo como a madeleine de Proust. A Ponte de Pedra perdeu sua função de hífen entre as duas margens do rio. A curva romana de seu arco já não remete a uma ancestralidade arquitetônica confortadora. A ponte está lá, testemunha de uma história que se foi, perdida no passado com os bois e as carretas, testemunha de uma ruralidade, imagem já antiga, enquanto no horizonte ergue-se a grande chaminé do gasômetro.
Um novo símbolo, deste momento em diante, dominará a paisagem, imagem industrial ligada à atividade do porto que transforma o rio Guaíba num rio útil, mobilizado pelas atividades humanas e comerciais. Mas este mundo mecânico que ocupava, já há algumas décadas, a curva do Guaíba foi igualmente absorvido pela evolução urbana. A urbanização galopante lançou mão desta margem do rio e tornou o gasômetro magnífico e inútil. Pois a atividade industrial do gasômetro cessou. Ela que dava sentido àquela chaminé, decorando-a com um chapéu de fumaça branca ou negra, segundo a hora do dia. Agora, já sem qualquer função, o prédio, hoje rodeado por edifícios de escritórios, perdeu seu orgulho do trabalho e as gerações de operários que povoavam seus entornos. Sua chaminé ergue-se como um símbolo anacrônico ao mesmo tempo em que pontua com a canalização concretada do curso do Riacho a evolução histórica da cidade, redesenhando as épocas.
Era indispensável plantar o cenário das paisagens do passado às quais Iberê Camargo nunca cessará de retornar em seus textos assim como em sua pintura para compreender o potente motor de sua obra, constituído por essa nostalgia melancólica. É possível seguir os passos dessa nostalgia ao longo da obra do pintor e é nela que ele vai se deter no momento de deixar a cena artística na última pincelada de Solidão (1994).
Iberê nos deixou um enigma – disse o crítico carioca Ronaldo Brito ao olhar o quadro. Talvez aquelas três lúgubres, mulheres sejam as Parcas – as deusas da morte que estabelecem a hora fatal. A mulher embuçada deve ser Átropos, que com sua desapiedada tesoura corta os fios de ouro e seda por elas mesmas tecidos para a vida dos poetas e dos artistas. O título deve aludir à infinita e irremediável solidão daquele que está morrendo. A revista Time, ao registrar a morte de Iberê, disse que ele expressava a “miséria humana” de forma “impiedosamente honesta”. No Quadralhão, pintou sua própria miséria por não poder escapar às Parcas. Morreu amargurado porque não poderia mais pintar. Pois não queria viver apenas para viver; queria viver para pintar, na sua “alegria” e seu “tormento”.
Naturalmente, levando-se em conta o contexto no qual o quadro foi realizado e assinado alguns dias antes da morte do pintor, a hipótese de uma figuração dos Parques impõe-se. Grande leitor da literatura grega antiga, Iberê trazia em si esta cultura clássica no seio da qual a filosofia sabia produzir-se e expressar-se na linguagem simples do quotidiano. Todavia, o título que ele próprio dá a esta obra, Solidão, remete, sem dúvida, também a esse sentimento doloroso que ele expressou durante toda a vida: o sentimento de ter sido jogado num mundo para sempre estrangeiro cuja pulsação de vida jamais coincide com aquela dos homens. Um mundo que evolui segundo leis que fazem com que nosso lugar em seu seio se pareça com um angustiante enigma.
Iberê Camargo pinta depois a morte de Deus para retomar a ideia nietzschiana, ele tenta representar um mundo onde a coincidência entre os seres e as coisas permanece problemática, improvável, sempre sujeita à caução. Ele pinta, embora esta “luz de Deus” esteja extinta, apagando as sombras do mundo e garantindo a cada um seu lugar e sua razão de ser. A solidão do homem no mundo, consequência da ausência de Deus, ocupa, então, sua obra bem antes da confrontação final com a morte. A menos que consideremos que esta confrontação trágica tem seu início com o próprio nascimento da criança e que durante sua vida inteira o ser humano se confrontará com essa inocência inatingível que ele situa no passado infantil, como uma idade dourada desde sempre perdida.
Iberê Camargo não é o primeiro artista a experimentar radicalmente esse sentimento de estranheza. Aquele que o pintor escolhera como mestre quando de sua viagem de formação à Itália, Giorgio De Chirico, já o trouxera para o universo da pintura, em 1910, quando começou a pintar seus quadros ditos “metafísicos”. Esta palavra, “metafísica”, ressoa curiosamente no universo das artes plásticas. Os dicionários a definem como uma busca racional do ser absoluto. O caráter enigmático desse emprego do termo, por exemplo em Interior metafísico (1916), faz-nos compreender que o que vemos no quadro não é a coisa física ali representada, mas, antes, o que se esconde por trás das aparências, que não está na própria coisa, ou seja, na maneira como ela nos afeta, como a sonhamos, como nos toca e nos fere. Um interior não é constituído simplesmente pela série de objetos apresentados na imagem mas pela própria ideia de “casa” – e de intimidade da casa. E quando esses objetos se encontram fora dos seus contextos, como a ponte de pedra passando sobre o Riacho, já cercada de prédios de escritórios, um forte sentimento de estranheza e de solidão apodera-se de nós.
É que estamos sós diante de um mundo no qual buscamos nosso lugar. Experimentamos uma solidão irredutível em meio à proliferação dos objetos e à imensidão das multidões que nos deixam a saudade inconsolável da intimidade de nosso “pátio”, como diz Iberê. Por detrás do que se vê num quadro, revela-se a imensidão de nossa solidão e a profundidade de nossa presença no mundo.
Iberê sentira isso nos quadros de Giorgio De Chirico, já no encontro arrebatador com o artista em sua chegada a Roma em 1944. Ele recebera o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro – belo título para seu encontro com Giorgio De Chirico! –, que lhe permitiu viajar e inscrever-se no ateliê do pintor. O ano em que passa na cidade eterna nos é bem conhecido pela quantidade impressionante de anotações que ele fez nesse período. Registra tudo que diz respeito à técnica da pintura, fabricação das cores e à têmpera. Sua correspondência com o amigo Mário Carneiro dá a medida da fascinação que esses saberes empíricos e esses segredos de ateliê exercem sobre ele. É, sem dúvida, essa a razão pela qual a crítica sempre registrou unicamente este aspecto da influência de Giorgio De Chirico. Ora, em minha opinião, o contato prolongado de Iberê com o metafísico Giorgio De Chirico é tão importante para sua arte quanto os procedimentos técnicos que ele pôde aprender com o artista, e muito mais determinante para a evolução formal de sua obra do que os cursos que ele fez em Paris com André Lhote.
Existem diferentes testemunhos a respeito dessa influência tanto nos próprios quadros quanto nos numerosos textos que Iberê escreverá muitas vezes, bem depois de seu retorno da Itália. Eles concernem ao passado como o texto que coloquei na introdução neste ensaio, mas também à vanguarda artística, intimamente relacionada com o tema.
Apegando-se aos ensinamentos de Giorgio De Chirico, Iberê voltava deliberadamente as costas às evoluções da arte naquele momento que vibrava com a pintura abstrata e o neoconcretismo. É este o cerne de uma entrevista concedida por Mário Carneiro a Mônica Zielinsky:
Então, naturalmente, ele ficou perpassado dos modismos da época, todo mundo estava começando a ser abstrato, quando Iberê estava fazendo a pintura Subida de Santa Teresa, Casario, fazendo paisagens, os concretistas davam as cartas, através de Mário Pedrosa. Então ele ficou um pouco assim, como se fizesse parte de outro mundo. Iberê passou a ser um revisionista da pintura moderna naquele momento porque ele se apegou um pouco ao De Chirico, [...]
O impacto do encontro com De Chirico deixa suas marcas igualmente nas numerosas semelhanças temáticas como demonstram seus desenhos e suas telas: a estrada de ferro, a chaminé da usina, o carretel ou o manequim. E se Iberê sempre reconheceu a formação recebida no ateliê de André Lhote, ele deixa clara a diferença entre essa aprendizagem técnica e a afinidade que sentiu pelo espírito reinante nos quadros de De Chirico.
Eu não admiro a obra de Lhote. Eu o cito como teórico e grande professor. Com De Chirico eu sinto uma afinidade porque ele também expressou a solidão e o mistério que envolve as coisas.
Esta expressão “o mistério que envolve as coisas” é recorrente como um leitmotiv nos comentários sobre própria obra. Em seu esboço de uma autobiografia ele insiste mesmo nesse ponto.
Na paisagem, nessa época, procurava fixar o instante fugidio. Queria aferrar, captar este mistério que vejo envolver o real. Minha visão era fenomenológica.
É, pois, esse clima “metafísico” que aproxima os dois artistas, clima que se apegou à experiência vivida por Iberê desde sua infância e, portanto, anterior ao encontro em Roma com a pintura de De Chirico. É a paisagem solitária de Restinga Seca que marcou para sempre sua imaginação e constitui seu fundamento “metafísico”: eu nunca encontrei uma região tão desértica – deserto no sentido de solidão – como o Rio Grande do Sul, essa linha reta, que é uma linha metafísica, é uma linha que não tem fim, é uma linha, e aquele ir sempre que não tem fim, e sempre o que não tem fim para nos é um segredo, é alguma coisa que é misterioso, que nós não podemos alcançar [...]
IMAGEM De Chirico, A angústia da partida, 1913-1914
Esse espaço onde o homem é como um viajante sem referências, condenado ao mistério do infinito do espaço, provoca nele o sentimento que a existência é desprovida de sentido (sem rumo). As cidades silenciosas que De Chirico pintou durante seu período “metafísico”, entre 1910 e 1920, também figuram um mundo cujo sentido ausentou-se, onde os objetos simplesmente justapostos perderam qualquer relação significativa ou lógica uns em relação aos outros. É essa experiência que encontramos nas descrições que Iberê fará mais tarde da paisagem de Restinga Seca.
O Rio Grande é isso, é aquela amplidão, [...] sempre é aquela solidão da estrada, aquelas tardes compridas de sombras, e um cavaleiro que passa [...] A figura do andarilho sempre me impressionou muito, quer dizer, o homem que anda sem [...] anda talvez impulsionado pelos seus conflitos, não sei [...] ou a sua solidão, eu não sei por que um homem anda assim sem rumo, não é, mas anda, e todos nós, no fundo, somos andarilhos e esses, e esse, no fundo, sou eu mesmo, no fundo sou eu esse andarilho, que não sabe para onde vai, quer dizer, que tem caminhos e descaminhos, compreende [...] essa é a vida, porque nada é [...] isso é o que eu penso [...]
A figura do “andarilho” caminhando a esmo num mundo desorientado atravessa toda a obra de Iberê Camargo. Nós a encontraremos, metamorfoseada a partir dos anos 80, na figura do ciclista, na qual o artista se reconhece:
Sou um andante. Carrego comigo o fardo do meu passado. Minha bagagem são os meus sonhos. Como meus ciclistas, cruzo desertos e busco horizontes que recuam e se apagam nas brumas da incerteza. Realidade e miragem se confundem. Os quadros que pinto são visões que breve serão os fósseis semeados à margem de meu rastro.
***
No âmbito mais amplo de um estudo comparativo da obra de Iberê com aquela de Giacometti, Lisette Lagnado sublinhou a analogia entre o motivo do “andarilho” e O homem que anda. Essa aproximação, muito sugestiva, entre os dois artistas vai, sem dúvida, bem além de uma simples comparação temática. Existe uma secreta afinidade em sua tentativa comum, sempre frustrada, de ver o lápis ou o pincel captar a verdade de um contorno. Nesse trabalho de Sísifo, no que se refere, no caso de Iberê, à obra pós 1980, o artista retoma incessantemente seu trabalho, como se a representação não pudesse jamais encontrar a figura que representa. Esse retorno obsessivo lembra por sua radicalidade a obstinação que conduziu o pintor Frenhofer, na novela de Balzac A obra-prima desconhecida, à destruição total da obra. Giacometti proferia às vezes frases marcadas por um desespero comparável:
Estou fazendo aí um trabalho negativo. É preciso ter a ousadia de dar a última pincelada que faz tudo desaparecer [...]
É aqui que vemos o caminho percorrido desde a época em que Iberê tentava pintar da maneira pós-cubista de Lhote, procurando fixar na tela formas geométricas estruturantes, que permitiriam analisar a figura humana. Iberê, todavia, sentia que o exercício era puramente formal e não permitia a expressão do sentimento trágico da vida que o animava. A técnica, excessivamente limitante, tornava a expressão impossível. Ora, Iberê jamais cessou de procurar restituir não a aparência das coisas, mesmo através da análise de suas formas, mas seu ser íntimo, que é também seu mistério e seu trágico bufão.
É sabido que os diferentes artistas que gravitaram em torno do espírito surrealista viram nas coisas, e ainda mais em sua imagem, uma interrogação poética ou crítica mais do que uma realidade empírica a representar. É, sem dúvida, René Magritte que trabalhou da maneira mais sistemática essa dimensão crítica, sob o ângulo das relações entre a linguagem e a representação, as palavras e as coisas. Ele o fez especialmente em seu famoso quadro que representava de maneira hiper-realista um cachimbo, mas trazendo a inscrição “isto não é um cachimbo”. A significação desse quadro era clara: a palavra que empregamos para designar uma coisa não é a própria coisa, e o mesmo vale para sua imagem. Refletindo sobre essas aporias, Magritte havia pintado um quadro que representava dois sapatos amarrados, que terminavam em dois pés humanos com todos os dedos (O modelo vermelho, 1934). Esse desvio do sentido no interior da própria imagem, escorregão metonímico do pé para o sapato, interessava tanto André Breton, que ele escolheu essa imagem para a capa da edição original de Le surréalisme et la peinture.
Iberê Camargo retomou esse processo crítico em um conto burlesco e antimilitarista: “Acidente em Angra”. Nessa narrativa, um florão da indústria moderna tenta produzir adubos a partir de excrementos humanos das grandes cidades usando a antiga técnica rural do pisotear da uva para produzir o vinho:
A maceração dos excrementos obtinha-se pelo pisotear em compasso de marcha – um, dois; um dois; um dois – de gigantescos pés de bronze que, como poderosos êmbolos, subindo e descendo, moíam os dejetos até torná-los líquidos. [...] Bem se evidencia o nosso arraigado e louvável respeito às nossas caras tradições.
Uma série de desenhos e de guaches sob o mesmo título, Acidente em Angra, demonstra da maneira mais caricaturalmente carnavalesca, como Iberê vale-se do poder devastador da imagem cuja violência ácida dominará toda a última parte da obra.
Mas voltemos a essa outra figura tutelar do surrealismo: De Chirico. Existe uma fotografia tirada em seu ateliê da Lapa, onde ele era visto com uma cuia de chimarrão colocada sobre a mesa ao lado de um mapa-múndi. Iberê está diante de uma série de quadros dispostos na parede e pelo chão.
Ali veem-se algumas naturezas-mortas e três vistas de arquitetura que remetem infalivelmente às Praças da Itália pintadas por De Chirico: perspectivas que se abrem diante do espectador, cujos alinhamentos de janelas e arcadas produzem um sentimento de estranheza e de solidão. Além disso, ao centro, perfila-se uma estátua decapitada que remete obrigatoriamente a O enigma de uma tarde de outono (1910), obra seminal do período “metafísico” de De Chirico.
Manequins
Se existe um ponto de encontro entre esses dois artistas, é certamente, depois dos carretéis, o tema do manequim. É conhecida a sorte desse objeto que aparece na obra de De Chirico em 1915. O pintor tinha adotado essa representação abstrata e mecânica do corpo humano depois de ter assistido ao espetáculo musical que seu irmão Alberto Savinio (aliás, Andrea De Chirico) compusera inspirando-se aparentemente no poema de Apollinaire: O músico de Saint-Merri. Para sua obra que tem por título Os cantos da meia morte, Savinio tinha realizado numerosos esboços a partir dos quais De Chirico haveria imaginado seu personagem manequim. O manequim opõe-se ao corpo humano por seu caráter esquemático. É uma montagem de formas, ligadas umas às outras por articulações, como os manequins usados pelos escultores.
Temos aqui características da própria estética da vanguarda, ilustrada, por exemplo, nas obras de Fernand Léger e que serão retomadas mais tarde pelo alemão Oskar Schlemmer. De Chirico sente de forma contraditória esse personagem desumano: por um lado, ele constitui um emblema da cidade humanamente desertificada que ele representa durante todo seu período metafísico, mas, ao mesmo tempo, ele se ajusta excessivamente bem a essa estética modernista à qual o artista já está prestes a voltar as costas. O manequim, pois, atrai e repele.
Um quadro como O filho pródigo (1922) expressa perfeitamente essa ambivalência: o filho pródigo, o manequim, está aí representado conforme a analítica dos volumes elaborada pela vanguarda cubista: multiplicam-se sobre seus ombros esquadros e compassos de arquiteto. Ele é confrontado a um corpo (o pai que o recebe) representado segundo os cânones clássicos da pintura, tais como Böcklin, por exemplo, poderia tê-los utilizado em sua época. O filho pródigo é uma alegoria do retorno do pintor aos valores da tradição pictórica após o que parece ser descaminhos de juventude. Esse retorno para o passado é naquele momento uma tentação à qual poucos artistas puderam escapar. O cataclismo da guerra havia quebrado o elã de renovação modernista, mas havia também obrigado a um olhar diferente sobre a realidade do mundo.
Pode-se pensar que Iberê conheceu em sua evolução um percurso que lembra estranhamente aquele efetuado por De Chirico. Durante um longo período, suas pinturas apresentavam uma feitura toda tradicional. Isso se observa na escolha de seus temas: a paisagem, o nu, o retrato e singularmente o autorretrato, como também em sua técnica. Ele vai beber nas fontes dos mestres que seguiu na Europa, mas igualmente na obra de outros artistas que vão balizar seu percurso e lhe oferecerão uma transição para uma nova forma, como Cézanne, Dufy ou Pascin, mas principalmente Morandi. Sob o efeito dessas diversas influências, sua arte pouco a pouco se depura, a forma que tomam os objetos sobre a tela ganha em autonomia através de uma técnica que busca cada vez menos efeitos ilusionistas da verossimilhança.
Finalmente, Iberê vai distanciar-se da técnica muito tradicional de suas primeiras pinturas, mas, como poderemos ver, a partir de 1980 ele retornará a esta técnica sobre bases totalmente diferentes.
Nesse estágio de sua evolução nos anos 60, 70, Iberê sente-se atraído pela composição das formas na tela, como já se nota em suas naturezas-mortas do fim dos anos 50, nas quais a influência de Morandi, que tinha recebido o Grande Prêmio da Bienal de São Paulo 57, é bem presente. Ele próprio explica seu percurso naquela época em seu trabalho.
Mas acontece que eu, em certo momento da minha vida, da minha obra, tomei como modelo o carretel, que é uma forma por si geométrica. Eu colocava o carretel sobre uma mesa assim como faz um pintor de naturezas-mortas, que colocava antes umas laranjinhas, frutinhas, uns bules, umas coisas, objetos, tudo aquilo que tinha no ateliê. Em dado momento eu incorporei esse carretel e depois apenas o carretel passou a ser modelo. Aí então tinha a mesa. Depois a mesa desapareceu e o último resquício da mesa era apenas a linha horizontal. E finalmente desapareceram os carretéis. Perderam a intensidade, o peso, um certo realismo e levitaram.
Esse período de pesquisas mais formais leva “naturalmente” à escolha de um objeto com estruturas geométricas fortes: o carretel.
Freud analisou longamente o jogo das crianças com a linha e o carretel. Seu movimento, feito de liberdade e de dependência, de presença e de ausência, posto que o carretel é dependente da linha que o retém, faz dele um dos brinquedos preferidos da criança. Nesse sentido, o carretel pertence à série de brinquedos com a qual De Chirico povoou suas telas na época metafísica.
É, entretanto, a forma geométrica que Iberê privilegia neste objeto, familiar a todos numa época em que a costura doméstica era mais comum do que hoje. É também a razão pela qual num primeiro momento ele se apega ao que se poderia chamar a estática do carretel mais do que a dinâmica estudada por Freud.
Iberê vale-se dessas formas para jogar outro jogo: o empilhamento (Mesa com sete carretéis, 1959). Vê-se assim o artista passar de forma quase imperceptível de uma reunião de objetos estática que o aproxima de Morandi à composição de estados instáveis, de rupturas de equilíbrio, como atestam telas como Mesa com cinco carretéis (1959).
O movimento ulterior mostrará como Iberê levará a composição estrutural desses objetos-forma evoluir até lhes devolver o pleno movimento como em Figuras em movimento II (1972). Muito rapidamente o artista começará a brincar com essas formas de maneira extremamente livre, conferindo-lhes por vezes um ar quase antropomórfico ou liberando-as completamente, lançando-as num céu obscuro ligadas somente pela linha, como se fossem pipas.
Ao longo dos muitos anos durante os quais Iberê explorará esse tema, a materialidade da pintura ganhará cada vez mais importância, fazendo da forma do objeto um elemento cada vez menos decisivo. O próprio título das obras muda, e a palavra “carretel” é substituída por “brinquedo”, “figura”, “contraste”, “símbolos” ou, ainda, “signos”.
Desde então, o olho retém primeiramente a presença sensível da cor que praticamente adquire volume, como uma massa resplandecendo da própria matéria, profunda e sensual. É sobre esta matéria, que se torna matéria-prima, que o desenho vem então se superpor. Neste corpo a corpo com a cor, o traço do pincel torna-se cada vez mais visível, atestando a força dinâmica do gesto. Assim, abre-se um capítulo novo na pintura de Iberê que se libera pouco a pouco dos limites dos objetos para dar maior importância ao impulso do próprio gesto de pintar.
Essa evolução para uma pintura por vezes fortemente gestual conduzirá Iberê às fronteiras da abstração através da exploração de formas muito simples como aquela do dado (Dados e prismas, 1982). Mas é precisamente no momento em que ele atingiu esse estágio de sua evolução propriamente pictórica que o fato dramático de sua vida abateu-se sobre ele. Através de deslocamentos sucessivos, a figura humana retornou em sua pintura, a ponto de ocupar totalmente os anos de trabalho que ele tinha pela frente.
O retorno da figura humana
Não seria correto afirmar que ele estivesse então retornando a técnicas pictóricas exploradas na sequência de seus estágios com Lhote ou de De Chirico. Muito pelo contrário, a figura assume ares grotescos, carnavalescos, como num teatro medieval e cruel. Os recursos expressivos de uma pintura apressada, violenta, despreocupada com a anatomia, despreocupada com a correção da anatomia ou com a semelhança constituem a base de seu novo estilo figurativos. Pensamos então em artistas como De Kooning ou Dubuffet que sempre privilegiaram a expressividade burlesca, atentatória à bela figura legada pela tradição humanista. A ironia faz-se agressiva, e a beleza clássica que reivindicava De Chirico já é somente um mito antigo que o pintor parece desejar massacrar.
Mas seja qual for a sorte do conteúdo simbólico dessa nova maneira de representar a figura humana, por mais expressivas que sejam as deformações, Iberê volta à pintura figurativa e isto é uma ruptura maior. Esse retorno oportuniza, como se pode compreender, a aparição do manequim. Este ser artificial, construído, é O OUTRO absoluto de nosso corpo, que vive e sofre suas misérias. O manequim é pura alteridade, forma vazia, inanimada e, entretanto – ou talvez por isso mesmo –, fascinante.
Nessa oposição, encontramos o antagonismo que De Chirico desejara representar ele próprio, introduzindo essa figura ambivalente em seus quadros. Em sua obra a imagem do manequim remetia ao formalismo de vanguarda do qual ele desejava afastar-se para encontrar o sentido humano da representação pictórica. Seu Retorno do filho pródigo ilustrava sua vontade de voltar à grande tradição da pintura, ele que, em 1920, se considerava um pintor clássico. Na obra de Iberê, não se percebe qualquer vontade, qualquer pretensão ao classicismo, ao contrário, sua pintura é plenamente expressionista, mas constrói-se sobre um antagonismo comparável entre o corpo humano e a imagem morta de sua forma.
Iberê havia instalado um manequim no ateliê. Naturalmente sem a intenção de seguir os ensinamentos rigorosos de André Lhote, exercitando-se na análise escrupulosa das formas humanas. Sua pintura já não é mais do que deformação e exagero grotesco. Os muitos desenhos que mostram manequins trazem à cena uma tensão entre dois seres femininos, como se a mulher só fosse representável sob essa dupla entidade enigmática: carne concreta e desgraciosa e imagem desejável e abstrata.
Essa dualidade remete, muito além do mito da mulher, à experiência da tensão entre o ideal e o real atual, armadura conceitual de toda a história da beleza na pintura e da representação idealizada da realidade. É a própria questão da verdade humana e de sua impossibilidade de concomitância com a beleza. Desde seu retorno à figuração, Iberê afastou-se de qualquer busca das seduções do belo. Neste ponto, ele pertence ao mundo contemporâneo da arte que somente se preocupa com a expressão de um anseio artístico por verdade. O manequim que serviu na obra de De Chirico para deixar para trás o formalismo cubista reveste, na obra de Iberê, a função de tensor entre uma vontade indomável de verdade expressiva e a lembrança de uma prática da pintura que visava à produção do belo, como bem mostram as obras anteriores a 1980.
Em verdade, já nos anos 50, Iberê mostrou a importância que dava à instalação dos objetos que representava, não em sua imobilidade substancial, mas num campo de tensões e equilíbrios sempre instáveis. Vimos isso nas acumulações de carretéis, cada vez mais dinâmicas e, logo, desequilibradas, e tornaremos a vê-lo a partir dos anos 80 com o surgimento do tema do ciclista.
Se existe uma analogia entre esses dois temas que se baseie no fato formal de que sua estrutura é constituída por dois círculos interligados; uma relação baseada na ideia de equilíbrio instável é igualmente surpreendente, e certamente mais fundamental. O ciclista é constantemente ameaçado pela queda. Ele só se mantém pela velocidade, pela força dinâmica que o carrega rumo à conquista do espaço.
Desponta, então, uma enorme produção de telas representando um ciclista numa paisagem deserta, um duplo movimento de continuidade e de ruptura. Essa produção reata com as paisagens da infância, mas essas paisagens para sempre inconciliáveis com o ambiente protetor do “pátio”. Tudo é solidão, como Iberê declara em seus textos citados no começo. O universo da infância está definitivamente perdido, mesmo e, talvez, sobretudo, se continua a agir como fermento de nostalgia. A solidão que era um estado normal no espaço de outrora passa a ser sentida como uma ferida aberta num destino trágico.
Contra essa dor melancólica, somente o trabalho artístico, em sua proliferação voluntarista, poderá oferecer uma saída. Iberê apega-se a seu cavalete, trabalha a massa colorida de pigmentos, como se a multiplicação das obras, a velocidade de sua execução e o corpo a corpo com a matéria garantissem um equilíbrio sempre precário.
Se repensarmos os carretéis colocados em equilíbrio uns sobre os outros e também nas pipas que sobem aos ares sob a pressão contrária do ar e da contenção da linha que as liga ao solo, constatamos que Iberê nunca cessou de ilustrar esse tema do equilíbrio instável. Essa ideia fundadora em sua obra estende-se, sem dúvida, de diversas formas. Iberê rejeitava o desvio conceitual da arte contemporânea que lhe parecia ter perdido o contato com os aspectos concretos da vida humana. Se a pipa do pensamento tem o direito de voar livremente para as nuvens, ela deve, entretanto, permanecer ligada a terra. Essa era sua convicção. A onipresença do tema da roda de bicicleta poderia muito bem parecer uma retomada crítica de Roda de bicicleta, de Marcel Duchamp. O mestre da vanguarda havia feito dessa roda um simples ready made, um objeto retirado do mundo quotidiano pela vontade teórica do artista para tornar-se objeto de arte no espaço abstrato do museu. Iberê, ao contrário, recoloca essa roda mítica no quotidiano e, assim fazendo, dá-lhe novamente um valor humano e pictórico. É a sua maneira de pensar a alegoria do retorno de O filho pródigo, de De Chirico: contra a ironia aérea de Duchamp, Iberê brada sua preferência pela tragédia terrena.
Um desenho de 1970, quando os ciclistas ainda não haviam surgido em sua obra, ilustra a constância do interesse que a temática do equilíbrio como emblema da tragédia humana despertou no artista
A cena representa um picadeiro de circo, circunscrito pela linha curva da pista. Quatro figuras humanas estão simetricamente distribuídas em relação ao eixo central ocupado por um contorcionista. À esquerda, um equilibrista colorido em vermelho está erguido sobre uma grande roda. À extrema esquerda, uma figura muito esquemática poderia representar um ciclista sobre uma bicicleta de uma roda, andando nos ares sobre o arame. À direita, também no ar, um trapezista e um malabarista, com suas quatro maças em pleno voo, e um quarto pequeno personagem que parece suspenso a um cabo. Anotações explicitam o desenho, seja do ponto de vista estético (amarelo), seja por seu conteúdo descritivo: roda, jogo de paus. Grandes fios descem da cúpula do picadeiro como cabos com os quais os personagens poderiam brincar, a menos que se trate dos cordões de marionetes.
Essa imagem remete de imediato ao circo de Calder, outro mestre da oposição móvel – estável. O mundo grotesco de Iberê, terno e trágico, é um teatro que vê desfilarem, estáticos ou móveis, seres fantasmáticos. Homens ou mulheres, palhaços ou marionetes, o destino que lhes escapa carrega-os, impotentes, para o fim. Os muitos figurinos de teatro ou circo lembram que a pintura é sempre uma representação em defasagem com a vida, um carnaval em que o ator – e aqui reside seu paradoxo – representa-se a si próprio.
O retrato impossível
No acervo de obras de Iberê, conservadas na Fundação, há um objeto estranho, único em seu gênero: um cartucho de papelão cuja finalidade é guardar e proteger desenhos. Iberê nele pintou um autorretrato em que se representou sentado, energicamente postado diante do espectador, braço esquerdo estendido num gesto nobre e seguro, trazendo na mão um objeto de grandes proporções. Imagina-se uma insígnia de poder, quiçá um cetro, devido à ênfase do gesto. Reconhece-se também nessa forma um avatar do carretel, tão importante em sua obra nos 70.
Para se ter uma visão completa da imagem é necessário “desenrolar” a pintura que recobre toda a volta do cilindro. Percebe-se então a pose majestosa do personagem.
Mas, se refletirmos bem, não podemos fugir à ideia que essa imagem de afirmação de si não existe, que ela é impossível pela própria natureza do suporte sobre o qual foi pintada, uma vez que, para compô-la em sua integralidade, é necessário fazer uma montagem das diferentes partes. Os olhos captam somente os fragmentos de uma imagem assim constituída, já que é impossível vislumbrar a totalidade da superfície com um só olhar. Assim, longe de representar um Iberê Camargo em majestade, esse cilindro exibe, ao contrário, sua fragilidade. Com esse objeto que concluiu a longa série de autorretratos que demarcou toda sua obra, Iberê criou um dispositivo que traz à cena a impossibilidade de sua representação como sujeito maiúsculo. Isto remete ao trabalho sisífico do traço buscando apreender a verdade, esforço que teve por teatro permanente os incontáveis desenhos de Iberê. Cada traço recobre outro traço em sua busca desesperada de perfeição, o que remete igualmente à impossibilidade de casar o tempo das lembranças felizes e o tempo atual da nostalgia. A busca do tempo perdido é um flagelo que não nos deixa nunca, brinquedos que somos de um destino malicioso e trágico.
Iberê Camargo marcou essa impossibilidade em todos os registros de sua obra, mas é sem dúvida em um de seus escritos, “O relógio”, que essa busca tão impossível quanto necessária exprimiu-se da maneira mais grotesca e desesperada. Savino, o protagonista do conto, perdeu seu relógio que caíra nos excrementos que enchiam as latrinas:
Ao descer do banco segurando as calças que lhe escorregam pernas abaixo – procura não pisar nas sujeiras espalhadas pelo chão – ouve um baque abafado dentro da fossa. Volta-se e vê, através do buraco do assento, seu relógio desaparecer, lentamente, numa imundice espessa, escura, variegada de amarelo-laranja.
– Oh! Meu relógio exclama Savino, contrafeito.
Aquele relógio antigo de prata cinzelada é a única herança que recebeu de sua avó. Não pode perdê-lo. Por isto, decide reavê-lo a qualquer custo.
A sequência do texto será tão bouffonne quanto trágica. Os seres e os elementos unem-se contra Savino que se esgota. Dia e noite, mergulhando todo seu corpo nas imundices, ele retoma incessantemente a tarefa, esgotando sua alma. Finalmente, a busca na fossa horripilante das latrinas da história só trará à superfície restos desarticulados do relógio, testemunha do “tempo perdido”. E termina-se o conto:
Com os braços erguidos e a cabeça derrubada sobre o peito, [Savino] repete desvairado:
– O tempo, o tempo ...
Como Savino, o pintor e o escritor tentam impedir a fuga do tempo perdido esforçando-se para recuperar os elementos dispersos. Nesse esforço contra a marcha inexorável do tempo, a construção da memória tem o papel principal:
Na memória, o antigo permanece. No passar vertiginoso do tempo, o instante quer ficar. O pintor é o mágico que imobiliza o tempo.
Podemos, pois, concluir, retomando a ideia da frase de Iberê com a qual abrimos este mergulho em sua obra:
O progresso [do tempo] é uma ação de despejo em execução.
Por isso […] sentimos a incontida vontade de voltar a nosso pátio, para reaver as nossas coisas que lá deixamos.
Os Inimigos de Gil Vicente na Bienal de SP por Daniela Labra
Texto de Daniela Labra originalmente publicado no artesquema.com
O artista pernambucano Gil Vicente estará expondo duas séries de desenhos na próxima Bienal de Artes de São Paulo, que inaugura no dia 21/09. Uma das séries, chamada Inimigos, consiste em desenhos em grande escala, onde o artista se retrata prestes a cometer um atentado à integridade física de personalidades influentes da política mundial e do Brasil. Obviamente polêmicos, a obra é um grito contra a apatia e o conformismo com os quais assistimos as incongruências dos líderes junto ao povo que os elegeu e confiou.
Acusado de apologia ao crime, o artista e sua obra correm o risco de serem censurados pela Ordem dos Advogados do Brasil e retirados da exposição.
Uma lástima, pois tal decisão é obtusa além de hipócrita. Perde-se neste debate moralista a oportunidade de se refletir sobre a arte e toda a sua potência transformadora. Desse modo, os desenhos do artista são tratados como meras fotografias sensacionalistas de jornais populares – lidos por milhares diariamente – e que de fato falam de violência sem conteúdo crítico, apenas para fins comerciais, o que deveria ser considerado chocante mas não é mais.
Abaixo, o texto crítico de minha autoria sobre a série Inimigos, escrito para o catálogo do artista que será lançado na Bienal de São Paulo em breve. A obra é bela e merece ser respeitada!
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Arte Fora da Ordem
“Por onde andam os subversivos?” Ao lançar esta questão na rede social onde possuo 570 amigos que mal conheço, a primeira resposta veio em seguida: – No poder. Flanando na internet, se lê que a política e o entretenimento nunca estiveram tão juntos como atualmente e que dificilmente irão se separar. “Independente da causa em questão, grande parte da comunicação política contemporânea segue a linguagem do espetáculo, como forma de guerrilha. A fórmula serve e é aplicada tanto para fins sociais relevantes como para qualquer outra coisa sem cabimento, por movimentos diversos e até por instituições como os partidos”.[1] Enquanto a tática de guerrilha vira instrumento de marketing, no Brasil indignar-se com a situação política e social está em desuso.
Indignado, porém, Gil Vicente decide ir na contramão desse padrão e repudia a linguagem do espetáculo para posicionar-se, subversivamente em forma e conteúdo, contra as estruturas da política e da cultura de massa, interligadas na contemporaneidade. Em sua ira e desilusão com o modo operacional de um sistema que considera maldito por que, como crê, apenas alimenta desigualdades e injustiças, o artista resolveu, em 2005, inventar uma persona terrorista para alvejar, com una arma gráfica, líderes arquetípicos de uma ordem mundial em crise aguda.
Ao contrário do que a primeira leitura das obras sugere, Gil se coloca, de fato, num “estado de vítima”[2] para acertar as contas com as hipocrisias, mentiras e manipulações de estadistas e representantes do Povo. No jogo que mistura realidade e ficção, o artista-vítima não panfleta ideologia partidária, nem faz julgamento moral ou religioso de qualquer ordem. Na concepção niilista de quem viu a utopia de ações movidas pelo discurso da esquerda marxista Pós-2ª Guerra, dar lugar à atual fome de destruição movida a fé, petrodólares e narcoeuros, Gil Vicente, poeta e cidadão, sugere a implosão sumária do establishment e da sua ética em situação de irrecuperável ruína.
Por sua vez, no plano da visualidade estética também pode-se creditar a Inimigos um papel de inssurgente. Seus desenhos transgridem tanto a etiqueta do politicamente correto, quanto as tendências de mercado que privilegiam ora o conforto de discursos minimalistas acríticos, ora a literalidade fácil de obras que repaginam ad nauseum o Pop e outros estilos, modernos ou pós.
Estes desenhos, no entanto, possuem o traço e a narrativa de impacto dos quadrinhos policiais transmitindo, em cada um deles, a tensão contida na cena imediatamente anterior ao grande desfecho da estória. Porém, por serem diretos e literais, por que narrativos, a sofisticação de Gil Vicente se mostra justamente na dispensa do uso de metáforas, ainda que utilize amplamente o recurso da representação.
O grande paradoxo desta série porém, está no fato de que, ao levar tais desenhos a público, o artista exerce todo o Poder que o status quo lhe confere. Gil Vicente aproveita-se da posição privilegiada de profissional inserido num circuito intelectual respeitável, para trocar o estado de Vítima na ficção do desenho por um estado de Representante social na vida real. Sem desfaçatez e atento, ele se utiliza abertamente do sistema – também político – da instituição de arte, para fazer sua obra circular semi protegida de possíveis censuras e ataques das esferas poderosas.
Longe de culpas, Gil Vicente é um ateu em busca da fé na consciência política transformadora, hoje apaziguada pela midiatização da cultura e pulverizada em centenas de coletividades ativistas as quais, pela pluralidade de motivações e modos de atuação, nem sempre conseguem tecer uma alternativa efetiva contra o sistema de poder, cada vez mais controlador e onipresente.
Em Inimigos, o artista dá um tiro de advertência para o alto, como um guerrilheiro que se move na possibilidade de fazer terrorismo sem sangue, através da imagem e da poesia. Representando-se na execução de um ato limite, ele urra contra Estados ignóbeis e acorda para a luta os jovens e adultos anestesiados pelo consumismo e pelo prazer imediato. Assim, os desenhos de Gil Vicente advertem que a arma mais subversiva existente, mesmo com todos os sustos e espetáculos, consumos e tecnologias, é a capacidade de reflexão e de gerar sonhos. E que diante do menor risco dessa capacidade ser tolhida deve-se pressionar, sem hesitar, o botão Indignar-se.
setembro 10, 2010
é por Marcio Doctors
é
MARCIO DOCTORS
O desejo de Anna Maria Maiolino é tocar no que “é”. Mas o que significa isso? Significa dizer que a realidade é transparente, e o mistério, aparente. Significa dizer que Maiolino busca despertar, através de sua obra, o mistério como aparência. Talvez a imagem da primeira aparição de Deus a Moisés possa exemplificar metaforicamente o que estou procurando expressar. Deus se apresenta na imagem de uma sarça ardente. Um fogo que não consome o arbusto que está queimando e que quando perguntado por Moisés como deve apresentá-lo aos outros homens responde: diga que sou o que é. Em outras palavras, “o que é” é o mistério da essência. Não é imprescindível que a potência se realize – que se consuma –, mas é fundamental que a potência se revele como essência imanente. A aparência com que Deus se apresenta não é a do fogo que queima e destrói, mas a da força capaz de arder sem destruir: potência criadora. No episódio da sarça ardente, Deus torna aparente a sua potência como essência criadora, sem intermediações: simplesmente “é".
O que Anna Maria Maiolino busca explicitar por meio de sua obra é, no Projeto Respiração, é a arte como energia criadora. O fogo simbólico de Prometeu, que é o desejo do homem de descolar-se do imediato da vida para atingir níveis de percepção mais apurados por saber-se consciente da vida, Maiolino introduz na sua videoinstalação através da figura feminina de vermelho que caminha silenciosamente levando adiante a chama do desejo criativo da paixão e do conhecimento. A artista projeta nessa figura a força da resistência e da permanência da arte, mas, ao mesmo tempo, habita a casa com sons que trazem de volta a vida nas suas múltiplas dimensões, que a casa ao tornar-se museu, paralisou. São sons que chamam pelo nome de Anna, pelo nome de Sandra, a performer; é o som da flauta de seu neto; são sussurros e falas incompreensíveis, respirações e suspiros; é a voz cansada de Anna declamando Santa Teresa de Ávila:
Vivo sem viver em mim.
E de tal maneira espero,
Que morro porque não morro.
é é uma espécie de resistência que a vida cria por superposições e camadas de sentido que Anna traz consigo e descobriu também ao conviver com a casa, que são os medos, os desejos e os sonhos de Eva Klabin. é é a misteriosa estátua de Santa Teresa de Ávila, que atrai tanto os visitantes do museu, recoberta por um manto vermelho durante a performance do dia da inauguração. é é a cama de Eva klabin com uma colcha vermelha cheia de ovos, tributo da artista ao maior de todos os mistérios – a fecundação. é é mais que tudo não esconder o desejo e o mistério. É fazê-los cúmplices da arte e revelá-los sem temor, na sua transparência.
é é uma intervenção substantiva, que se pretende direta e indicativa, sem subterfúgios, porque busca explicitar o mistério; que é ser o que é. Não busca o ser das coisas, mas a pulsão que as habita, que não é outra coisa que não elas mesmas. Esse mundo blindado que a artista cria é de pura consistência metafísica, que ela nos apresenta despida de qualquer transcendência. Maiolino, na sua intervenção, nos oferece uma multiplicidade de camadas de sentidos, reservando para cada um de nós a possibilidade de transitar pelos espaços da casa permitindo-se experimentar a difícil, delicada e arriscada experiência da imanência.
é é uma intervenção que não tem a pretensão de nos ensinar nada; ao contrário, quer simplesmente nos oferecer a possibilidade de experimentar o sentido da multiplicidade da diferença, que cada um de nós traz consigo por sermos singulares. Esse sentido único, que pertence a cada um de nós, é para Anna a possibilidade da experiência da diversidade. Esse uno que determina a diferença é a explicitação do mistério, que a artista tenta nos apresentar de forma direta, simples e imediata na sua intervenção do Projeto Respiração. A casa de Eva Klabin permitiu que Maiolino lidasse diretamente com o outro, que é Eva, e descobrisse aqui, num tempo paralisado por uma vida, um desvio que nos permite nos questionar experimentando a diferença como mistério pulsante; carne do mundo.
Haverá tantos mistérios quantos indivíduos.
Haverá tantos sentidos quantos indivíduos: é...
Marcio Doctors é curador da Fundação Eva Klabin
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