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julho 12, 2010
No calor do pensamento por Caroline Menezes
No calor do pensamento
Caroline Menezes
Especial para o Canal Contemporâneo
A exposição Al calor del pensamiento com obras da coleção Daros Latinamerica colocou o público europeu em contato com o hibridismo da produção artística do outro lado do Atlântico. Na mostra no Espaço Santander, em Madri, a curadora Katrin Steffen fez valer a metáfora do título para demonstrar como a produção latino-americana pode ser altamente conceitual, ao mesmo tempo em que desafia uma certa estética dos sentidos. Para justapor estes dois aspectos da arte contemporânea, selecionou mais de 70 obras de 22 artistas de diferentes países da América Latina, onde os brasileiros Cildo Meireles e José Damasceno destacaram-se.
Na Europa é comum encontrar uma divisão quase sistêmica quando se trata de arte latino-americana. A interpretação e o entendimento da arte da América Latina encontram abrigo em duas categorias distintas. A primeira leva o rótulo conceptualismo latino-americano que, diferente do europeu ou do norte-americano, teria uma vertente mais política. A segunda, mais genérica, envolve o sensorial, que passa pela arte de impacto visual, como a arte óptica e o figurativo surrealismo latino, até o engajamento corporal das obras de Lygia Clark. A crença de que a obra de arte pode carregar a ambivalência destes dois atributos causa estranheza à rigidez do pensamento europeu. Al calor del pensamiento, de fevereiro a abril deste ano, revelou nas salas de exposição do suntuoso prédio madrileno da Fundação Banco Santander, a natureza plural da arte latino americana.
Um bom exemplo de obras que desafiam formas de estruturas definidas são os trabalhos do carioca José Damasceno. O artista explora os materiais como matérias do pensamento. Suas instalações trazem um cenário escultórico que instiga o observador. Em Madri, o trabalho O presságio seguinte (experiência sobre a visibilidade de uma substância dinâmica), 1997, estrategicamente posicionado na segunda sala da galeria, atraia os visitantes a um corpo suspenso no ar. Cordas presas, de um lado ao outro do fundo da galeria, transpassavam o personagem anônimo representado por um terno trivial, tensionado por fios. As cordas puxam e içam, deixando o manequim à altura dos olhos do visitante, como se este visse um destes antigos truques de levitação em um espetáculo ilusionista. Só que no trabalho de Damasceno, as cordas que suspendem o corpo são visíveis, sendo a pessoa que desaparece. A figura humana do presságio seguinte é vazia, a tensão das cordas a mantém presente, mas não a preenche de identidade. Cada elemento da instalação, corda, paletó, calça tem seu significado expandido, sendo questionados seja por sua função ou por sua fisicalidade.
Próximo ao Presságio seguinte de Damasceno estava uma das mais sutis criações de Cildo Meireles, Razão/Loucura, 1977, que consiste em duas varinhas de bambu curvadas formando dois distintos semicírculos, um do lado do outro. Presas por um cadeado, duas correntes de metal conectam cada ponta da varinha, formando o perímetro de cada arco. Ao centro da curvatura, pendurada na direção do cadeado, há também uma corrente com uma chave na ponta. Porém, no primeiro bambu a chave não alcança o cadeado. No segundo semicírculo, a corrente é longa demais e o ultrapassa. A visão simultânea dos dois bambus leva o visitante para um tempo futuro, uma ação que está implícita na experiência da obra, mas que só ocorre na especulação do observador. O que aconteceria se a chave encaixasse e abríssemos a fechadura? A envergadura da varinha de bambu só é possível com o cadeado preso que tensiona as duas pontas. Soltar as correntes desmantelaria a sua forma. Porém, a liberação da tensão faria algo de novo ser visto e a varinha de bambu voltaria a sua aparência original. A dubiedade da obra não reside somente no seu título, mas na perspicaz maneira com que Meireles acessa o pensamento. A obra é uma metonímia do estado de consciência. O gesto mínimo que define a fronteira entre a sensatez e o delírio faz parte do processo de percepção da obra.
Nos trabalhos de Damasceno e Meireles há uma conversa que analisa a condição humana e a faculdade de conhecer a si mesmo e a realidade exterior. Desta forma podemos afirmar que tanto O Presságio seguinte quanto Razão/Loucura possuem caráter político, sendo que a criação de Meireles, datada de 1977, refere-se também ao contexto histórico da ditadura militar. Damasceno usa uma clara representação da figura humana no seu discurso, Meireles tira proveito de objetos comuns para criar índices da humanidade. Embora haja o impulso estético de vislumbrar a cautelosa combinação de materiais, ambos os trabalhos vão além do que Duchamp chamou de arte retiniana, ou seja, uma manifestação artística que atua mais por estímulos visuais do que instigações mentais. Ambos os trabalhos produzem uma reflexão, um pensamento que não se opera pela a impressão sensorial. Mas também se por outro lado, a arte conceitual seria a prerrogativa da idéia sobre o objeto artístico ou, como diria a teórica norte-americana Lucy Lippard, a “desmaterialização da obra de arte”, como se falar de desmaterialização física quando sua matéria se manifesta tão plenamente? Os dois artistas, não apenas nestes trabalhos, mas ao longo de sua trajetória, mostram uma produção que é caracterizada pela coexistência harmônica da sedução sensorial e da instigação mental. Tal atributo não é exclusividade dos brasileiros. Se um dia quisermos definir o que é chamado genericamente de arte latino-americana está ambigüidade terá que ser citada. Na exposição da coleção Daros Latinamerica em Madri esta característica foi o fio condutor do projeto curatorial.
No calor do pensamento
A mostra Al calor del pensamiento foi batizada a partir do trabalho de mesmo nome do artista chileno Gonzalo Díaz. A obra consiste em uma frase em alemão que traduzida para o português seria: "Nós buscamos o incondicional em todos os lugares e sempre encontramos apenas coisas". O fragmento é escrito em letras de cerâmica e metal aquecidas eletricamente, aumentando a temperatura do ambiente e de quem se aproxima do letreiro vermelho luminoso. Díaz faz com o que o público ‘sinta’ a idéia que expressa. Esta combinação do sensorial e do altamente cerebral do chileno foi uma metáfora perfeita para a seleção de obras da coleção Daros. Como também foi a criação do colombiano Oscar Muñoz, que por sua vez, faz com que o calor do público seja um elemento essencial para a manifestação de sua obra.
Em o Aliento,1996-2002, Muñoz convida as pessoas a se olharem no espelho. Sete placas circulares de aço na parede permitem que o visitante veja o seu próprio reflexo. Entretanto, ao se aproximar dos discos, o sopro quente da respiração faz aparecer na superfície altamente polida a imagem de alguém, homem, mulher ou uma criança que, em seguida, logo desaparece. Os retratos são fotos que o artista coletou de obituários ou da sessão de desaparecidos de jornais colombianos. O ar que alguém exala torna-se a imagem de pessoas que já morreram. Ao invés do reflexo de si mesmo, o que o expectador vê são as vítimas da violência no país do artista. Com uma abordagem poética, porém trágica, Muñoz compartilha com o público o choque da perda em uma ilustração desvanecida.
Tal qual Muñoz o argentino Leandro Erlich também convida o público a agir. No entanto diferente do colombiano que expõe uma realidade dura, Erlich faz surgir o absurdo. O artista leva o visitante a uma sala escura onde se enxerga três portas fechadas, com uma brilhante luz saindo de cada fresta, inclusive da fechadura. Diante de Las Puertas, 2004, o visitante pode retroceder ou decidir por abrir uma das portas. A expectativa de um acesso a um espaço iluminado não se completa. Ao se abrir a porta as luzes se apagam e nos encontramos de volta a sala principal da exposição. A solicitação da ação do público também é frequente em outros trabalhos da mostra como Para arrugar y tirar,1969, de Liliana Porter, que faz uma escultura de papel requisitando que o visitante arranque folhas de blocos presos na parede. A artista argentina que mora em Nova York é uma das que ganharam salas especiais em Al calor del pensamiento, que dedicou espaços para o também argentino León Ferrari, o grupo cubano Los Carpinteiros e o mexicano Carlos Amorales.
Coleção Daros Latinamerica
Fundada há dez anos a coleção Daros Latinamerica possui atualmente mais de 1300 obras de artistas da América Latina. Em um primeiro momento, as exposições organizadas pela a coleção, sob a direção de Hans Michael Herzog (leia entrevista) visava familiarizar o público europeu com a arte latina-americana. Ao longo de uma década, a Coleção Daros mostra que tem vigor de propor exposições que vão além da questão geográfica ou de identidade. Al calor del pensamiento que também incluía obras de nomes históricos como os argentinos Julio Le Parc e Marta Minujín, a cubana Belkis Ayón, de outro brasileiro Vik Muniz, além dos colombianos Doris Salcedo, Oswaldo Maciá, José Alejandro Restrepo e Miguel Angel Rojas chama atenção por discutir temas pertinentes à arte contemporânea na América Latina não só funcionando para apresenta-la aos europeus. O forte diálogo entre as obras expostas, sustentou características inerentes à arte da região como o teor político e a participação do público, assim como deu ênfase ao hibridismo peculiar que faz a arte latino-americana, cada vez mais, ser um dos focos principais da cena artística mundial.
julho 1, 2010
Projeto expandido por Fábio Tremonte
Projeto expandido
Fábio Tremonte
Especial para o Canal Contemporâneo
O projeto AREAL, criado em 2000, surgiu a partir de conversas entre os artistas Maria Helena Bernardes e André Severo durante viagens ao interior do Rio Grande do Sul. Perceberam que as suas produções pessoais passavam por um momento de inquietação em relação aos formatos existentes, nos quais o artista produz para uma exposição e onde o experimental parece ter um espaço mais restrito.
O AREAL consiste em fazer uso da paisagem do estado do RS, criando situações e intervenções onde a experiência direta com o local e o público são de extrema importância. Como desdobramento de suas ações, os artistas mantêm uma série de publicações chamada Documento AREAL; além de promoverem encontros, debates e apresentações abertas sobre seus trabalhos e filmes na tentativa de manterem um contato próximo com o público.
No ano em que completa 10 anos, o AREAL foi convidado a fazer uma exposição no Santander Cultural, em Porto Alegre. Inicialmente, o convite foi rejeitado, pois uma das motivações que levou os artistas a idealizarem o projeto foi, justamente, a criação de espaços alternativos onde os trabalhos aconteceriam sem precisar, necessariamente, estarem numa exposição.
Por fim, acabaram aceitando o convite para realizarem a exposição, mas esta não seria uma exibição de seus trabalhos. Optaram por trazer artistas que fossem referenciais para eles. Assim surgiu a mostra Horizonte Expandido, exposição norteada pelo viés das influências mais importantes de suas produções e pesquisas artísticas.
Os trabalhos escolhidos para a exposição tem em comum, além da importância histórica, ter o vestígio dos artistas em cada um deles. Podemos encontrar o corpo do artista, o rosto, a voz, o gesto, a ausência sob a forma de vídeos e fotografias.
Joseph Beuys surge em uma entrevista falando sobre seu trabalho, sobre a relação arte e vida, sobre política; Oiticica também aparece como imagem e voz (e alma, talvez) em dois documentários, nos seus escritos, pousando para fotos. Vito Aconcci faz um vídeo onde narra e comenta suas ações e performances produzidas nos anos 70, conta detalhes da produção: o que deu certo e o que não deu, o que era planejado, como aconteceu. Gordon Matta-Clark está presente no filme que fez de Spliting, onde aparece serrando uma casa ao meio. Marina Abramovic é vista suportando um arco tensionado, onde na outra ponta Ulay segura uma flecha pronta para ser disparada. A ausência do corpo de Ana Mendieta está presente em fotografias, com seu corpo deixou marcas na areia, na terra, na grama. Robert Smithson nos apresenta filmes como Spiral Jetty e Monolake, onde o deslocamento geográfico e a experiência com a viagem e o lugar são primordiais.
Outro aspecto da exposição é a proposta educativa, que se diferencia do comumente visto e presenciado na maioria dos espaços culturais. Não há visitas guiadas ou a presença de monitores no espaço expositivo. O público não é recebido por uma equipe educativa, a exposição foi pensada para que o visitante possa vê-la e vivenciá-la sozinho, em contato direto com as obras e artistas. Um espaço foi construído para servir de lugar para pesquisa, onde foram colocadas mesas e um estante com materiais de referências: livros sobre os artistas da exposição, livros do projeto AREAL e livros sobre assuntos relacionados à mostra.
Horizonte Expandido não é apenas uma exposição, sobretudo, é um compartilhar dos artistas-curadores com o público. É a abertura de suas pesquisas, de suas influências que, em geral, ficam restritas ao ateliê.